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Ciência e Tecnologia
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ibro 2006-N°128
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INOVAÇÃO MOVIDA A ÁLCOOL ESPECIAL
100 ANOS DE 14-BIS CACAU RENASCIDO
O CORAÇÃO DA MULHER
A QUÍMICA DA CACHAÇA
Radio Eldorado AM Sintonize 700 kHz Sábados, às 12h30 Reprise aos sábados às 19h30 e aos domingos às 14h ■ Se preferir, ouça o programa nos/te da revista Apresentação Tatiana Ferraz Comentários Mariluce Moura Diretora de redação de Pesquisa FAPESP
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LIDERANDO TENDÊNCIAS
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Veja aqui alguns destaques dos programas que foram ao ar entre os dias 24 de junho e 8 de julho
PESQUISA RESPONDE 09.09.09 ■ Luciano Gerard Por que no Brasil as pessoas trocam o L pelo R e o R pelo L em palavras como pobRema ou gaLfo? m Paulo Chagas de Souza, lingüista da Universidade de São Paulo (USP) - Em diversas línguas às vezes é difícil distinguir dois sons com pronúncia parecida, como o S e o Z. Algo semelhante ocorre com o R e o L. Neste caso, a di-
naior dinossauro já encontrado no Brasil: o Maxakalisaurus topai, um gigante de 13 metros de altura que pode ter pesado até 9 toneladas e v/Veu há 80 milhões de anos, encontrado no município de Prata, em Minas Gerais. O nome dessa espécie homenageia os índios maxacalis, de Minas, e uma divindade adorada por eles, a Topa. O esqueleto completo reconstituído está exposto no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ao lado da réplica pode-se observar alguns dos fósseis reais do bicho.
pele do animal. Ele era herbívoro e, depois de morrer, foi devorado por outro dinossauro. MEMÓRIA 16.09.2006 As primeiras obras de que se tem notícia no Brasil são relacionadas à construção da cidade de Salvador em meados do século XVI, feitas de forma rudimentar e sem o rigor técnico das construções renascentistas da Europa. Daquela época para cá houve um notável avanço da engenharia no país. Um pouco dessa história é contada no li-
ecnoiogia nas onaas ao raaio erença é que para falar o L a gente deixa o ar escapar pelo lado da língua. Na história da língua portuguesa também é comum o L se transformar em R. Algumas palavras que em latim eram com L acabaram com a pronúncia alterada para R na passagem para o português. Um exemplo é a palavra glúten, que vem do latim e deu no nosso grude. Nobilis deu nobre. Como existe com freqüência essa substituição de L por R, as pessoas ficam em dúvida e acham que uma palavra como sicrano, que é com R, está errada e a corrigem para siclano. É o mesmo que acontece com garfo e gaito ou falta e farta. As pessoas têm dúvida sobre qual é a forma correta e fazem o que se chama de hipercorreção.
02.09.2006 ■ Apresentador Pesquisadores da Universidade Federa! do Rio de Janeiro mon-
Ponte de 1907 em Santos: uso pioneiro do concreto armado B Alexander
Kellner, diretor do Museu Nacional e paleontólogo membro da equipe que reconstruiu o Maxakalisaurus topai. - A montagem desse novo dinossauro brasileiro foi extremamente trabalhosa. Da descoberta à inauguração da exposição, foram quase dez anos de trabalho. Uma das principais características do dinossauro é que suas costas eram revestidas por placas dérmicas, pequenos escudos de ossos embutidos na
vro 500 anos de engenharia no Brasil. Escrito por especialistas ligados à Escola Politécnica da USP e à Escola de Engenharia de São Carlos, o livro apresenta uma visão global da engenharia no país, além de relembrar a adoção do concreto armado pela construção civil nacional. Organizado por José Carlos Moraes, o livro ganhou o Prêmio Jabuti 2006, na categoria Ciências Exatas, Tecnologia e Informática.
POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA
24 INOVAÇÃO Governo federal lança programa que oferece R$ 450 milhões em recursos não reembolsáveis para empresas inovadoras
CIÊNCIA
36 AGRICULTURA Técnicas simples mostram como recuperar as plantações de cacau
50 FÍSICA Começa a funcionar o detector brasileiro de ondas gravitacionais
30 PARQUES TECNOLÓGICOS Apoio da prefeitura e da Embraer acelera projeto em São José dos Campos
Filósofos e cientistas sociais examinam a questão da ética na política contemporânea
Psicólogos e advogados defendem moderação nas críticas à internet e dizem que mídia virtual apenas exterioriza distúrbios do mundo real
FAPESP altera norma e abre mão de ser titular das patentes geradas por projetos de pesquisa
Estudo que propôs zona de proteção para o Parque da Cantareira inspira projeto de lei
ÉTICA
SOCIOLOGIA
PROPRIEDADE INTELECTUAL
AMBIENTE
76 82
27
28
HUMANIDADES
86 HISTORIA
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BIOQUÍMICA
BEBIDA
Veneno de ferrão de arraia fluvial provoca dor, inchaço e necrose
Estudos proporcionam um melhor conhecimento da aguardente de cana e contribuem para a sua qualidade
44 MEDICINA Maioria dos médicos não alerta mulheres para risco de infarto, embora mortalidade seja próxima à masculina
68 IMUNOTERAPIA Kit de diagnóstico inovador monitora a evolução da alergia respiratória
TECNOLOGIA
49 GENÉTICA Camundongos com alteração genética sofrem perda de memória semelhante à do Alzheimer
4 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 128
70 FARMACOLOGIA Empresa prepara imunoterápico para tratar câncer e uma vacina contra carrapatos
Cartas da imperatriz Leopoldina revelam articuladora política que odiava a democracia SEÇÕES CARTAS
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IMAGEM DO MÊS
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CARTA DA EDITORA
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MEMÓRIA
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ESTRATÉGIAS
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LABORATÓRIO
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SCIELO NOTÍCIAS
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UNHA DE PRODUÇÃO
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RESENHA
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LIVROS
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FICÇÃO
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CLASSIFICADOS
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Capa: Mayumi Okuyama Fotos: Eduardo César
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Geneticista de opiniões polêmicas, Francisco Salzano relembra seu trabalho com os índios, fala sobre o conceito de raça e defende as pesquisas com transgênicos e células-tronco.
CAPA Sertãozinho, no interior paulista, torna-se pólo de produtos e processos inovadores para a indústria do álcool
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ESPECIAL No aniversário de 100 anos do vôo do 14-Bis, Pesquisa FAPESP rememora a trajetória de Alberto SantosDumont, resgata histórias pouco conhecidas e conta novidades, como a descoberta de um manuscrito inédito do criador do primeiro avião a decolar, voar e aterrissar por seus próprios meios.
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Pesquisa eleitoral
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As reportagens de Pesquisa FAPESP retratam a construção do conhecimento que será fundamental para o desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução.
Números atrasados Preço atual de capa da revista acrescido do valor de postagem. Tel. (11) 3038-1438 Assinaturas, renovação e mudança de endereço Ligue: (11) 3038-1434 Mande um fax: (11) 3038-1418 Ou envie um e-mail: fapesp@teletarget.com.br Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP Rua Pio XI, 1.500 São Paulo, SP 05468-901 pelo fax (11) 3838-4181 ou pelo e-mail: cartas@fapesp.br Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em inglês e espanhol. Para anunciar Ligue para: (11) 3838-4008
6 ■ OUTUBRO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 128
Quando amostragens não-probabilísticas são utilizadas, nem mesmo aproximações para a distribuição de probabilidade do estimador são conhecidas e, portanto, não vejo como estimar o erro amostrai quando a amostragem é feita por cotas (reportagem "Meu reino por um ponto a mais", edição 128). Como aparentemente esta é a metodologia utilizada atualmente por diversos institutos de pesquisas eleitorais, gostaria de saber como o cálculo do erro é feito. Além disso, desconheço o conceito de "amostra representativa". ADILSON SIMONIS
Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP São Paulo, SP O autor da matéria sobre pesquisas eleitorais, Carlos Haag, deveria, necessariamente, ter ouvido um pesquisador de alguma universidade, especialista em estatística, para opinar sobre o assunto. As pesquisas eleitorais, como parecem ser feitas (sim, pois os institutos de pesquisa de opinião são muito vagos sobre a parte metodológica), usam amostragem por cotas, que, além de não ser um esquema probabilístico, não possibilita o cálculo do erro padrão das estimativas das proporções de votos de cada candidato. Ou seja: 1) a tal "margem de erro" não pode ser calculada com o esquema de amostragem usado; 2) na realidade, cada estimativa (de cada candidato e da proporção de votos nulos, brancos e abstenções) tem seu erro padrão estimado (e, portanto, não há uma só margem de erro, como os institutos anunciam); 3) embora os institutos não digam como calculam a "margem de erro", suspeito que seja por meio de metodologia que somente se aplica à amostragem aleatória simples, que não é a usada nessas pesquisas. Parece-me lamentável que
uma matéria de tal importância não ouça pesquisadores sobre tais temas. PEDRO A. MORETTIN Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP São Paulo, SP
Resposta do pesquisador: A visão teórica dos estatísticos está correta, mas há que se levar em consideração o ponto de vista dos institutos de pesquisa na viabilização de uma pesquisa: uma amostra probabilística é extremamente cara e extremamente lenta. É claro que vocêpode torná-la mais rápida, aumentando-se o preço dela, mas isso inviabilizaria a realização de pesquisas no Brasil. Os que pagam por elas não estão dispostos a pagar uma amostra probabilística. Seja como for, uma pesquisa é sempre um instantâneo de uma campanha. Ao analisar 400 pesquisas com os resultados, vi que, empiricamente, pode-se afirmar que elas acertam.
Fernando Birri Acabo de receber a revista Pesquisa FAPESP com a entrevista do Fernando Birri (edição 127). Além da autora Mariluce Moura ter conseguido resumir o prolixo, mas coerente e inquieto pensamento do Birri e suas reflexões, creio que abriu um espaço novo na revista. SéRGIO MUNIZ
São Paulo, SP
Canais de Santos É com grande satisfação que recebemos a edição deste mês de Pesquisa FAPESP, que destaca na matéria "Criação no concreto" (edição 127) os canais de Santos. O enfoque é dos mais oportunos, mesmo porque oferece uma nova e valiosa informação quanto ao pioneirismo, no país, da técnica
utilizada na construção do sistema de drenagem da cidade. Por certo, essa informação apresentada pela revista dará um novo e importante foco para a cidade, que está se preparando para as comemorações, em 2007, do centenário da construção do canal 1, o primeiro do revolucionário sistema de drenagem idealizado por Saturnino de Brito, que livrou Santos de epidemias e garantiu o seu desenvolvimento. Estão previstas atividades culturais e educativas, entre elas seminário, programação específica nas unidades educacionais, inauguração de marcos e certames variados envolvendo a comunidade. A comissão coordenadora dos festejos do centenário dos canais, criada pelo prefeito João Paulo Tavares Papa, já lançou site específico (www.canaisdesantos.com.br), promoveu concurso para a escolha da logomarca dos festejos, lançou o livro Os planos da cidade: as políticas de intervenção urbana em Santos, de Estevan Fuertes a Saturnino de Brito (1892-1910), de autoria de Sidney Piochi Bernardini, e está promovendo a exposição fotográfica Os canais de Saturnino, idealizada por esta Fundação Arquivo e Memória de Santos, que tem caráter itinerante. A Fundação Arquivo e Memória de Santos sente-se honrada em ter contribuído com seu acervo iconográfico para tão relevante publicação e coloca-se sempre à sua disposição. CRISTINA GUEDES GONçALVES
Diretora-presidente da Fundação Arquivo e Memória de Santos Santos, SP
João Alexandre Barbosa Agradeço muitíssimo à revista Pesquisa FAPESP pela publicação do texto sobre João Alexandre (edição 127). Como o artigo não é assinado, peço que encaminhe os meus agradecimentos ao autor. É verdadeiramente uma homenagem que dá lugar à
voz de João Alexandre em toda sua sonoridade e justeza analítica. ANA MAE
São Paulo, SP
ta importante, especialmente para o Brasil, que, no futuro das energias potencialmente disponíveis no planeta, tem oportunidades que não podem ser perdidas. Parabéns pelo trabalho e meus votos de sucesso sempre.
Stefan Zweiq OZIRES SILVA
Sou leitor assíduo da publicação e queria dizer que "À sombra do passado" foi a melhor reportagem da edição 126. O trabalho de vocês melhora a cada dia. Espero que o alto nível da publicação continue como tônica desse projeto. FáBIO FERREIRA DE SOUZA JúNIOR
Vespasiano, MG
EMPRESA QUE APOIA A PESQUISA BRASILEIRA
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Hidrogênio Tenho recebido regularmente os exemplares de Pesquisa FAPESP e, com sinceridade, desejo cumprimentar a equipe pelo excelente trabalho de qualidade produzido. A revista serve não somente para divulgar o grande trabalho feito pela Fundação como também traz para o leitor novidades que podem ajudá-lo a identificar oportunidades, sempre necessárias no mundo de hoje. Quero mencionar, em particular, a grande reportagem "Reforma energética" (edição 126). Realmente é um aler-
Diretor-presidente da Osec - Unisa São Paulo, SP
Sugestão Tenho observado o significativo aumento no número e diversidade de pássaros em São Paulo nos últimos anos. A primeira grande surpresa foi há cerca de dez anos, quando observei um bando de maritacas (hoje muito comuns no Butantã, onde moro), em uma praça no bairro da Bela Vista, centro de São Paulo. Depois, a dos sabiás, que também por aqui são vistos diariamente e em abundância. Em meu quintal, sempre deixo um pedaço de fruta para esses simpáticos e cantantes pássaros. Aliás, menciono o seguinte fato pitoresco sobre os sabiás em São Paulo: na última primavera, quando seu canto é intenso, ouvia um programa de rádio (acho que sobre o problema do ruído urbano), em que o funcionário da prefeitura entrevistado mencionou a reclamação de um munícipe, que pedia tomada de providências a respeito de um certo sabiá que o acordava diariamente por volta das 4h30 da manhã. Também sou agradavelmente acordado, nos meses da primavera, por esses pássaros. Acho que esse fenômeno de aumento, diria repentino, dos pássaros em nossa cidade merece mais um artigo nesta excelente revista, com ênfase nas causas desse aumento. Roberto V. Ribas São Paulo, SP Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br, pelo fax (11) 3838-4181 ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.
PESQUISA FAPESP 128 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ 7
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do Mês
Sinais do passado A descoberta de um bloco gravado com símbolos numa pedreira mexicana sugere que os povos do Novo Mundo podem ter desenvolvido um sistema de escrita 350 anos antes do que se pensava. A placa, encontrada por um grupo de trabalhadores que fazia uma escavação em Cascajal, nos arredores de San Lorenzo, data provavelmente do ano 1000 a.C Tudo indica que foi feita pela civilização olmeca, que floresceu de 1300 a 400 a.C. e se tornou o primeiro Estado da Mesoamérica, região que engloba o México e a América Central. Até então considerava-se que o primeiro registro de escrita nas Américas, dos mesmos olmecas, remontava ao ano 650 a.C. As inscrições não foram decifradas. São 62 símbolos, entre eles representações de insetos, milho e conchas.
8 ■ OUTUBRO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 128
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Carta
da Editora
Pesquisa CARLOS VOGT PRESIDENTE MARCOS MACARI VICE-PRESIDENTE
Inovações de hoje, invenções geniais de ontem
CONSELHO SUPERIOR CARLOS VOGT, CELSO LAFER, GIOVANNI GUIDO CERRI, HERMANN WEVER. HORÁCIO LAFER PIVA, JOSÉ ARANA VARELA. JOSÉ TADEU JORGE, MARCOS MACARI, SEDI HIRANO, SUELY VILELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO RICARDO RENZO BRENTANI DIRETOR PRESIDENTE CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ DIRETOR CIENTÍFICO JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO PESQUISA FAPESP CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL. WALTER COLLI DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS EDITORES EXECUTIVOS CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA) EDITORES ESPECIAIS FABRÍCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA (EDIÇÃO ON-LINE), RICARDO ZORZETTO EDITORA ASSISTENTE DINORAH ERENO
EDITORA DE ARTE MAYUMi OKUYAMA CHEFE DE ARTE JOSÉ ROBERTO MEDDA DIAGRAMADORES ARTUR VOLTOLINI, MARIA CECÍLIA FELLI CONSULTORIA DE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA FOTÓGRAFOS EDUARDO CÉSAR, MIGUEL BOYAYAN SECRETARIA DA REDAÇÃO ANDRESSA MATIAS TEL: (11) 3838-4201 COLABORADORES ABIURO, ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), BRAZ, DANIEL KON (ESTAGIÁRIO). DANIELLE MACIEL (ESTAGIÁRIA). EDUARDO GERAQUE (ON-LINE), FLORA FAJARDO, GONÇALO JÚNIOR, HÉLIO DE ALMEIDA, IRACEMA CORSO, JAIME PRADES, LAURABEATRIZ, LAURA TEIXEIRA, MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÕ NEGRO, NEGREIROS, PEDRO MATIELLO (ESTAGIÁRIO), THIAGO ROMERO (ON-LINE) E YURI VASCONCELOS. COORDENAÇÃO DE MARKETING E PROJETOS ESPECIAIS CLAUDIA IZ1QUE (COORDENADORA) TEL. (11) 3838-4272 PAULA ILIADIS (ASSISTENTE) TEL: (11) 3838-4008 e-mail: publicidadeJ-fapesp.br ASSINATURAS TELETARGET TEL. (11) 3038-1434 - FAX: (11) 3038-1418 e-mail: fapesp@teletarget.com.br IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRÁFICA TIRAGEM: 35700 EXEMPLARES DISTRIBUIÇÃO DINAP CIRCULAÇÃO E ATENDIMENTO AO JORNALEIRO LMSX (11) 3865-4949 FAPESP RUA PIO XI. N° 1.500. CEP 05468-901 ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP
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MARILUCE MOURA
A dica veio de Fernando Reinach, biólogo e executivo da Votorantim Novos Negócios, numa conversa informal: por que vocês não fazem uma reportagem sobre o cluster de Sertãozinho? A razão era a impressionante capacidade ali instalada para produzir inovação tecnológica num campo em que o Brasil ocupa, sem a mais leve sombra de dúvida, posição de liderança mundial, ou seja, a geração de energia baseada em cana-de-açúcar, assentada numa poderosa agroindústria sucroalcooleira. Decidimos fazer. E o resultado é a bela reportagem de capa desta edição (a partir da página 58), na qual Dinorah Ereno, editora assistente de tecnologia, oferece material abundante para que se possa refletir a respeito das possibilidades de crescimento econômico que o investimento decidido em inovação - particularmente num campo em que temos consideráveis vantagens comparativas - abre ao país. Conforme seu relato, Sertãozinho, uma pequena cidade no nordeste paulista a 320 quilômetros da capital, com menos de 100 mil habitantes, traduz de forma consistente e concentrada em sua paisagem as transformações ocorridas no setor sucroalcooleiro nas últimas décadas, tempo em que as velhas chaminés de tijolos das usinas de açúcar e álcool cederam lugar a empresas modernas, afinadas com as mais avançadas tecnologias para garantir maior produtividade no campo e incontáveis ganhos no processo industrial. Vale a pena conferir. No âmbito da tecnologia, aliás, o centenário do vôo do 14-Bis nos ofereceu o pretexto perfeito para falar nesta edição de um dos mais importantes, senão o mais importante inventor brasileiro. Estamos nos referindo, claro, a Alberto Santos-Dumont, que, conforme já é consenso entre os pesquisadores da área, deu a maior contribuição individual para o desenvolvimento da aeronáutica em seus primórdios. Assim, é no mínimo justo dedicar à sua trajetória, a histórias pouco conhecidas e mesmo a algumas novidades sobre o genial inventor, as 12 páginas de um suplemento especial que esta edição lhes reserva (no centro da revista, páginas I a XII), resultado de excelente trabalho do editor chefe, Neldson Marcolin.
- DIRETORA DE REDAçãO
Permaneço ainda um pouco nos domínios da tecnologia porque seria injusto não destacar aqui a reportagem imperdível do editor de tecnologia, Marcos de Oliveira, sobre pesquisas que têm ampliado o conhecimento a respeito da brasileiríssima cachaça e contribuído de forma decisiva para o aumento de sua qualidade (a partir da página 64). Entro enfim na ciência com um alerta muito importante: andam tratando mal o coração das mulheres, quando é necessário, na verdade, dispensar-lhe a máxima atenção. O coração vai aqui em sentido real, orgânico, ainda que muitas mulheres inclinem-se a pensar que a frase cairia como uma luva no uso metafórico do vocábulo. Mas importante neste espaço é informar que estudos na Europa, nos Estados Unidos e em alguns levantamentos feitos no Brasil indicam, conforme relato do editor especial Ricardo Zorzetto (página 44), que é preciso chamar a atenção dos médicos para a saúde cardiovascular da mulher, dado que embora o infarto já seja há anos uma causa de morte das mulheres quase com o mesmo peso que tem entre os homens, elas continuam a receber, neste particular, menos atenção do que eles. E uma ótima notícia surge de pesquisadores empenhados em deter uma praga que nos últimos anos atacou duramente os cacauais do sul da Bahia, a ponto de dizimar parte significativa das plantações e infligir pesadas perdas econômicas à região - a vassoura-de-bruxa. É que, conforme relato do editor de ciência, Carlos Fioravanti (página 36), que foi a Ilhéus e arredores ver de perto o que se passa, técnicas simples e engenhosas estão conseguindo levar a cacaueiros que não dão abrigo à praga. Para encerrar pelas bonitas páginas de humanidades: vale um destaque especial ao exame que filósofos e cientistas sociais fazem neste momento da explosiva questão da ética na política, conforme a reportagem do editor de humanidades, Carlos Haag (página 76), e outro para o perfil insuspeitado de Leopoldina, imperatriz do Brasil, traçado a partir das próprias cartas dessa maquiavélica articuladora política (página 86). E, por fim, vale voltar ao começo da revista, para ler a polêmica entrevista do geneticista Francisco Salzano (página 12). PESQUISA FAPESP 128 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ 9
O renascimento
do Patriarca Projeto publica on-line documentos, livros e imagens reunidas de José Bonifácio de Andrada e Silva
DECRETO. Vv.
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Avendo-Me representado os Procuradores Geraes denl guinas Províncias do Brasil já reuuidos nesta Corte, e difierentes Câmaras, e Povo de outras, o quanto era necessário , e urgente para a mantença da Integridade da Monarchio Portugueza , e justo decoro do Brasil, a CoDVqcaçaó de huma Assembléa Luso-Brasilicnse, que investida daquella porção de Soberania , que essencialmente reside no Povo deste grande, e riquíssimo Continente, Constitua as tasca sobre que se devaó" erigir a sua Independência,, que a Natureza marcara, c de que já estava de posse , e a sua Uniaõ com todas os outras partes integrantes da Grande Família Portugueza , que cordialmente dezeja: E Keconbecendo Eu a verdade e a turca das ra-sões , que me foraõ ponderadas, nem vendo outro modo de assegurar a felicidade deste Reino , manter huma justa igualdade de direitos entre elle, e o de Portugal , sem perturbar a Paz, que tanto convém a ambos,
o parecer do Meu Conselho d' Estado, Mandar convocar huma Assembléa Geral Constituinte e Legislativa , composta de Deputados das Provincias do Brasil novamente
NELDSON MARCOLIN
acordarem , e que serão publicadas com a maior brevidade. José Bonifácio de Andrada c Silva , do Meu Conselho d' Estudo, e do Conselho de Sua Magestade Fidclissima El-Rei o Senhor D. Joaõ Sexto , e Meu Minisnistro e Secretario d' Estado dos Negócios do Ueino do Brasil, e Estrangeiros, o tenha assim entendido , e o faça executar com os despachos necessários. Paço três de Junho de mil e oitocentos e vinte e dous.
osé Bonifácio de Andrada e Silva não descansa em paz. Quase 170 anos após ua morte, há muito por saber sobre quem foi o personagem crucial do Império e ator imprescindível da Independência. Isso para falar apenas da parte mais conhecida de sua vida. Se forem computados os longos anos como cientista, administrador, pensador, poeta e político em outros países além do Brasil, é caso quase para se desistir de pesquisar seriamente o Patriarca da Independência. "Este é um enorme problema para o pesquisador brasileiro: José Bonifácio passou 40 de seus 70 anos no exterior", diz Jorge Caldeira, doutor em ciência social e jornalista. "Reunir informações sobre ele é um drama também no Brasil, onde todo o material está muito fragmentado."
Com a Rubrica de S. A. R. o PRÍNCIPE REGENTE. José Bonifácio de Andrada e Silva.
Na Impressão Nacional.
Decreto de 3 de junho de 1822 convoca Constituinte: preparação para o 7 de Setembro
Caldeira criou e dirige o projeto José Bonifácio: obra completa, um ambicioso trabalho de reunião de tudo o que foi produzido por Andrada e Silva e dos documentos que tenham relação com ele. O objetivo é fotografar documentos, manuscritos e imagens e deixar disponível para consulta no site www.obrabonifacio.com.br. Hoje o site tem o equivalente a 35 livros de 300 páginas, o que caracteriza a maior coleção sobre José Bonifácio (1763-1838) reunida no Brasil. Caldeira começou a pensar no projeto quando organizou a coleção Formadores do Brasil para a
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Editora 34. "Descobri que a biografia mais recente sobre ele foi publicada em 1943 por Otávio Tarquínio de Souza", diz. A dificuldade em encontrar material disponível torna qualquer mestrado ou doutorado muito complicado e caro, o que explica o número pequeno de estudos específicos sobre Bonifácio. A partir dessa constatação, Caldeira acreditou que poderia usar uma das características da internet, a universalidade, para divulgar em um site, gratuitamente, as informações que ainda não existiam reunidas. Todas as imagens e documentos encontrados aqui ou no
exterior são fotografados e disponibilizados no site. Para transformar essa idéia em realidade Caldeira conseguiu o patrocínio da Cosipa e da Rio Negro, empresas do sistema Usiminas, por meio da Lei Rounet. Formou um conselho diretor com nomes competentes da história e da ciência política brasileiras: Boris Fausto, Alberto da Costa e Silva, Celso Lafer, José Murilo de Carvalho e Esther Caldas Bertoletti. "São eles que indicam onde estão as coisas sobre e do Bonifácio", explica. Para tocar o projeto cotidianamente há uma equipe que já chegou a ter
Bonifácio idealiza a bandeira brasileira (quadro de Eduardo Sá): várias raças, um só país .^JSAyA-AA :twr
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27 historiadores, entre graduandos e doutores. Uma equipe técnica adapta as ferramentas existentes na internet à prática da pesquisa histórica e às necessidades dos internautas. O que já está no ar hoje é resultado do trabalho de 60 pessoas. Nestas duas páginas há dois bons exemplos do que encontrar na coleção on-line. Um é o decreto de 3 de junho de 1822 em que Bonifácio convoca a Assembléia Constituinte do Brasil, baixado cerca de três meses antes do 7 de Setembro - é a primeira amostra dos preparativos para a proclamação da Independência. Outro é
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Aos 56 anos, Bonifácio recebe a Carta de Mercê de dom João VI, em 1820, e se torna conselheiro real
uma Carta de Mercê concedida a ele por dom João VI, em 1820, quando recebeu o título de conselheiro real. Ambas estão disponíveis no site. O projeto começou em 2005 e deve ir até 2008 ainda existem milhares de informações a serem encontradas e transportadas para o meio virtual. Até agora foram consumidos R$ 2 milhões. E ainda será preciso visitar Paris, Lisboa, Coimbra e Freiberg, onde Bonifácio viveu, e arquivos e bibliotecas da Suécia, Dinamarca, Itália e Hungria, por onde ele passou como estudante de mineralogia ou a trabalho. Uma característica do projeto é que ele permite uma ampla pesquisa não apenas sobre o Patriarca, mas também acerca do Império ou de quaisquer outros personagens importantes que tenham convivido com ele, como dom Pedro I. O enciclopédico Bonifácio certamente ficaria muito feliz com tantas informações. PESQUISA FAPESP 128 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ 11
rancisco Salzano
Um geneticista de opiniões polêmicas MARCOS PIVETTA
pai queria que ele fosse médico. Ele prestou vestibular para a carreira e não foi aprovado. Mas passou no exame para história natural da Uni■ H versidade Federal do Rio ^^ Grande do Sul (UFRGS), ^^^ curso que era a porta de entrada para a área biológica nos anos 1940. O pai não insistiu na idéia de direcionar a escolha profissional do filho e deixou-o seguir seu caminho. No terceiro ano de faculdade, o jovem gaúcho flertou com a zoologia antes de se apaixonar por outro campo de estudo: a genética. Começava assim, há mais de meio século, a longa carreira de Francisco Mauro Salzano, hoje com 78 anos e pela segunda vez presidente da Sociedade Brasileira de Genética. Autor de mais de mil artigos e textos científicos, sem falar nos livros técnicos ou direcionados para o público leigo que escreveu, o cientista, membro da Academia Brasileira de Ciências há mais de três décadas, orientou 80 alunos de mestrado e doutorado. Mais conhecido por seus trabalhos com populações indígenas, em especial com os xavantes do Brasil Central, Salzano incursionou (e ainda incursiona) por vários ramos da pesquisa genética, tateando questões da evolução humana, da chegada do homem às Américas e até da área médica. É um homem, para dizer o mínimo, de opiniões fortes e polêmicas. Diz, por exemplo, que o conceito biológico de raças humanas existe, sim, e não deve ser 12 ■ OUTUBRO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 128
abandonado. E afirma que o termo eugenia precisa ser relativizado. Salzano é também um feroz crítico dos opositores dos transgênicos e das pesquisas com células-tronco humanas embrionárias. "Atualmente há grupos que não só tentam ignorar a ciência, como procuram hostilizá-la", diz Salzano, que falou a Pesquisa FAPESP em sua sala de trabalho no Departamento de Genética na UFRGS. Abaixo os trechos mais representivos da entrevista do veterano geneticista: ■ O que levou o senhor a se interessar por genética mais de 50 anos atrás? — Meu pai era médico, tendo sido diretor da Secretaria de Saúde aqui do estado, e tinha interesse em que eu seguisse a carreira dele. Mas, quando cursava o ensino secundário, a medicina não me entusiasmava muito. ■ Por que não o entusiasmava? — Tratar doentes não era muito o meu desejo. Quando eu estava no fim do curso e deveria prestar o vestibular, já estava mais interessado nos problemas de ensino da área de biologia. Então prestei dois vestibulares: um para medicina e outro para história natural, nome dado à época para biologia. Passei em história natural e "rodei" na medicina. ■ Que era o que o senhor queria... — Pois é. Aí comecei a fazer história natural. Gostei do curso, e meu pai não insistiu para que eu fizesse novo vestibular. Com isso, fui
cursando história natural. Naquela época, eu estava muito mais entusiasmado com literatura e cinema do que com ciência. Mas, quando cheguei ao terceiro ano, fiz um exame de consciência e... ■ O curso durava três anos? — O bacharelado era três anos, depois mais um de licenciatura. Então pensei: vou me formar agora e sei pouquíssimo da matéria. Foi quando organizamos um grupo de trabalho, de estudo de zoologia, que era minha matéria mais fraca. Nessa época, tinha voltado de São Paulo, onde fizera estágio de aperfeiçoamento, o professor Antônio Rodrigues Cordeiro, que estava interessado em genética. ■ Isso foi em que ano? — Em 1950.0 professor Cordeiro viu o nosso interesse e disse: "Vocês estão estudando zoologia? A genética é que é muito boa mesmo..." ■ Ele já foi vendendo o peixe dele... — Ele convidou a mim e a uma colega que estudava comigo para estagiarmos no laboratório dele. Foi amor à primeira vista. A emoção que eu tive ao passar as moscas drosófilas, pequeninas, de um frasco para outro! O que fazíamos era bem elementar, a chamada repicagem: passar as moscas de um frasco de cultura para outro. PESQUISA FAPESP 128 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ 13
■ Não se conhecia, então, a estrutura do DNA. O que se almejava com a genética? — Na realidade, a genética brasileira estava sendo fundada, em última análise, por três professores de São Paulo: o André Dreyfus, da Biologia da USP, Carlos Arnaldo Krug, do Instituto Agronômico de Campinas, e Friedrich Brieger, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, a Esalq, de Piracicaba. Isso começou na década de 1940; mas, na década de 1930, alguns trabalhos de Krug já despontavam. Mas foi efetivamente a partir de 1940 que começaram a se desenvolver esses três centros. Nessa década, vem para o Brasil, a convite da [Fundação] Rockefeller, o professor Theodosius Dobzhansky, um russo naturalizado norte-americano. Ele estava interessado em biologia dos trópicos, pois trabalhava nessa área no hemisfério Norte, e a Rockfeller estava interessada em promover pesquisas na América Latina, especificamente em biologia. Estabeleceu-se um intercâmbio entre a Universidade Columbia de Nova Yorque e o Departamento de Biologia Geral da USP. Foi a partir desse programa que o professor Cordeiro foi para os Estados Unidos, passou um ano trabalhando com o Dobzhansky e vários outros. Trabalhando com drosófilas, que eram o modelo da época. ■ Quais eram os objetivos desses estudos? — Desde o início, o foco era a genética das populações. Isto é, questões de evolução e de microevolução, as modificações genéticas dentro de uma espécie e quais os fatores que influenciam essa variabilidade. Até hoje trabalho com essa questão. ■ Seu doutorado foi sobre drosófilas? — Sim. Foi com esse material que fiz meu doutorado. No final de 1950 estagiava como voluntário no laboratório do Cordeiro, que já estava com um intercâmbio forte com São Paulo. Cordeiro tinha conseguido, com o [Crodowaldo] Pavan, que era o cooordenador principal e assistente do Dreyfus, que uma pessoa mais experiente fizesse especialização em São Paulo. Mas a pessoa escolhida na última hora desistiu e foi fazer medicina. A vaga sobrou e surgiu a possibilidade de eu, recém-formado, com apenas três ou quatro meses de estágio sem remuneração, obter essa bolsa da reitoria da USP. ■ A bolsa sobrou para o senhor. — Mas o Pavan falou: "O rapaz parece 14 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP128
promissor, mas, como ele está recéminiciando, a bolsa será dividida por três pessoas". A bolsa era de cinco alguma coisa (não lembro a moeda da época). Eu iria receber dois, o Isaías Raw (hoje no Instituto Butantan) também dois e um chileno iria ganhar só um. O Pavan também disse para eu não pensar que era mártir da ciência, pois ciência tem que ser feita assim mesmo, o pesquisador tem que sofrer. Eu fui para São Paulo e fiquei um ano lá. ■ Nessa época, o senhor já havia feito a opção pela universidade, pela pesquisa? — Exatamente. Pela pesquisa. Em seguida, fiz o doutorado a distância. Fazia o trabalho de campo e de laboratório aqui no Rio Grande do Sul e defendi a tese em 1955 lá na USP, tendo o Pavan como orientador. Um dos membros da banca foi o professor Dobzhansky, luminar da ciência, um dos criadores da chamada teoria sintética da evolução, até hoje um paradigma. Como iríamos fazer um trabalho colaborativo com o pessoal de São Paulo, fiquei mais um ano depois do doutorado fazendo essa pesquisa. Em 1956 fui para os Estados Unidos fazer um pós-doutorado de um ano, já mudando para a genética humana, que era o campo que estava surgindo. Antes disso, se considerava que a genética humana não era muito promissora do ponto de vista científico. ■ Por quê? — Primeiro, porque o tempo de vida do homem é muito longo. Segundo, porque ele tem poucos filhos. Terceiro, porque não se pode fazer experiência (com ele). ■ Era complicado estudar o homem... — Por isso davam preferência a esses outros modelos experimentais. Mas o que fez a genética humana estourar mesmo foi o surgimento de novas técnicas bioquímicas de análise de material genético. Elas abriram novas perspectivas. Com elas, era possível estudar a nossa espécie com um grau de informação muito maior do que com as drosófilas. ■ Imagino que a publicação da estrutura do DNA deve ter tido um impacto grande nos estudos de genética. — O Dobzhansky já falava que o DNA era provavelmente o material genético. Isso já na década de 1940, início da de 1950. Mas a parte molecular da genética
só foi introduzida no Brasil anos depois, quando se democratizou, digamos assim, a metodologia, que antes era muito cara. A técnica chamada de PCR, na qual há a multiplicação do DNA, facilitou muito a análise molecular e, a partir da década de 1980, abriu perspectivas para o pessoal do Terceiro Mundo investigar também. ■ A genética das populações indígenas do Brasil já o interessava nessa época, não? — Nos Estados Unidos trabalhei com o professor James Neel, que, na época, era do Departamento de Genética Humana (da Universidade de Michigan). Passei um ano aprendendo as técnicas, as metodologias de análise. Quando estava para voltar ao Brasil, discuti com ele quais as possibilidades de trabalho aqui. Ele me aconselhou, e eu concordei imediatamente, que grupos de derivados de africanos e de europeus podiam ser mais bem estudados na África e Europa. Mas os ameríndios não. Esses deveriam ser estudados aqui, na América. Então, já em 1957, planejei me aprofundar mais nos grupos indígenas. E foi o que eu fiz. Em 1958 fiz minha primeira excursão de campo aqui, no Rio Grande do Sul, e depois, paulatinamente, fomos estendendo o trabalho para o resto do Brasil, ultimamente com foco especial na Amazônia. Continuamos até hoje com esse interesse, mas não só com ele. Ao longo do tempo, também me interessei pelas populações urbanas do Rio Grande do Sul e do Brasil como um todo e também pela questão da variabilidade patológica. ■ Quais foram seus trabalhos mais importantes? — Geralmente saliento o modelo de estrutura de população que o professor Neel e eu desenvolvemos, que tentava explicar como se davam as migrações de grupos indígenas ou de grupos de caçadores e coletores em geral. Segundo o modelo, ocorrem fissões e fusões entre os grupos indígenas ao longo do tempo. As fusões populacionais se dão de acordo com linhas de parentesco biológico. Um grupo, mais ou menos relacionado geneticamente, sai de uma aldeia e funda outra. ■ Algo como pai, mãe, filhos, tio e primo saem e fundam outra aldeia? — Exatamente. Essa fissão, essa separação, não se dá aleatoriamente. Esse grupo que migra tem uma condição genéti-
ca mais homogênea do que o da aldeia original. Posteriormente, esse grupo vai se fundir (ou não) com outro grupo. Enfim, consideramos a dinâmica de fissão e fusão própria dos grupos caçadores e coletores, que são mais ou menos nômades. Essa dinâmica é basicamente diferente da que ocorre com os grupos de agricultores, que são fixos, têm grande número de filhos para cuidar da terra e os núcleos populacionais são muito diversificados. Entre os agricultores, não há esse tipo de fissão/fusão que ocorre com os grupos de caçadores e coletores. Tudo isso se reflete na variabilidade genética. ■ Em que sentido? — Num grupo isolado e endogâmico haverá uma perda da variabilidade genética e, ao longo dos diversos núcleos de povoamento, haverá uma diferenciação, digamos, X. Ao passo que, num grupo que freqüentemente se separa e depois junta, a manutenção da variabilidade genética é muito mais fácil do que em grupos isolados. Essa estrutura da população influi em sua variabilidade genética. Esse é um ponto importante. ■ Quando exatamente o senhor começou a trabalhar com os xavantes? — Meu primeiro trabalho de campo foi em 1962. Desde aquela época temos feito levantamentos genealógicos dos xavantes, e diferentes grupos de pesquisadores, alguns vinculados a nós, outros mais independentes, continuam a estudar essa população. Os xavantes são um caso muito raro de população tribal da qual temos toda a informação genealógica, de fertilidade, de mortalidade, há aproximadamente 60 anos. Esse tipo de informação possibilita uma série de estudos importantes do ponto de vista genético e epidemiológico e propicia uma oportunidade também de fornecer apoio a esses povos. Em alguns casos, esses povos têm uma situação médico/epidemiológica bem pior do que a das populações urbanas. ■ Em seus estudos com índios, o senhor trabalhou sempre com antropólogos. Não houve muitos conflitos entre o pessoal da genética eo da área de humanas? — Havia uma série de problemas, mas o principal choque que houve foi com um jornalista norte-americano que acusou de maneira frontal e pessoal o professor James Neel de ter inclusive
sido responsável pela morte de grande quantidade de índios de uma tribo, dos ianomâmis. ■ Essa história saiu num livro há alguns anos (Darkness in El Dorado: How scientists and journalists devastated the Amazon, publicado pelo jornalista Patrick Tierney, que acusa os pesquisadores de terem provocado um surto de sarampo que teria levado à morte muitos índios na Venezuela). — Exatamente. Esse caso resultou até num outro livro que publiquei com a professora Anna Magdalena Hurtado, que é venezuelana e mora nos Estados Unidos (a obra Lost paradises and the ethics ofresearch and publication, editada em 2004 pela Oxford University Press). Nesse livro, rebatemos item por item todas as acusações caluniosas desse jornalista. ■ O caso dos ianomâmis ganhou certa repercussão na imprensa. — Certa não, muita. Tive que depor dois anos atrás na Procuradoria de Justiça, pois estava havendo um processo lá em Roraima relacionado com as coletas realizadas nesse estado. Tive que informar que eu não recebia dinheiro dos Estados Unidos, que provar que nenhuma das pesquisas poderia prejudicar os indígenas e assim por diante. ■ É fácil formar uma equipe multidisciplinar de pesquisadores para trabalhar com índios? — É preciso escolher bem os colegas da equipe. Todo tipo de equipe interdisciplinar ou multidisciplinar pode ter problemas. Tem que se ter cuidado e estar preparado para, eventualmente, surgirem interpretações alternativas (às suas).
Mas, em geral, acho que nunca tive um choque maior. No momento, há a discussão clássica sobre o povoamento das Américas. O Walter Neves [arqueólogo da USP] diz que foram pelo menos duas populações distintas, primeiro uma não-mongolóide, parecida com a Luzia, de traços primitivos, e depois uma mongolóide a colonizar as Américas. Nosso grupo tem outro modelo. ■ As duas teses são incompatíveis? — Nosso grupo - que inclui a Maria Cátira Bortolini da UFRGS, o Sandro Bonatto, da PUC-RS, o Fabrício Santos, da UFMG, e um professor argentino, Rolando González-José - desenvolveu uma nova tentativa de síntese da colonização das Américas. Segundo esse modelo, a morfologia diferente de Luzia seria considerada como fazendo parte de um só grande grupo colonizador, que teria entrado aqui há uns 20 mil anos. Quando se leva em consideração que pode haver grande variabilidade genética e morfológica dentro de um único grupo, não é de estranhar que algumas pessoas, como Luzia e outras, apresentem traços distintos. Divergimos do Walter, mas sempre dentro de um esquema de respeito mútuo. Ele é muito meu amigo, mas exagera um pouquinho. ■ Além dos trabalhos com populações indígenas, o senhor destacaria alguma outra contribuição sua à genética? — Descobrimos também um tipo de hemoglobina humana, uma das proteínas mais variadas de nosso repertório. Dependendo dessa variação, a hemoglobina pode provocar repercussões maiores ou menores na fisiologia humana. Descobrimos um tipo de hemoglobina muito curioso, chamado hemoglobina Porto PESQUISA FAPESP 128 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ 15
Alegre, porque foi identificado aqui na década de 1960. Essa hemoglobina tem uma série de características peculiares que ocorrem devido à mutação de um único aminoácido. No indivíduo ela não se manifesta, não provoca nada. Mas, se for colocada dentro de um tubo de ensaio, essa hemoglobina tende a se polimerizar, a se agregar. É uma molécula muito curiosa, que serviu inclusive de modelo para a investigação do processo de polimerização em si, independentemente da hemoglobina. ■ Como o senhor encontrou esse tipo de hemoglobina? — Ela ocorre basicamente em pessoas de descendência européia. Foi uma descoberta curiosa. Estávamos interessados em investigar a variabilidade da hemoglobina em indivíduos afro-derivados, entre os quais é mais freqüente a clássica anemia falciforme. Eu e um técnico fomos numa creche mantida por freiras só para crianças afro-derivadas de Porto Alegre. Começamos a coletar material das crianças até que na fila da coleta apareceram duas meninas brancas, para usar o termo clássico do IBGE. O técnico então me perguntou: "Professor, vamos coletar delas também?" Disse: "Vamos coletar de todo mundo para que essas meninas não se sintam discriminadas". E foi numa dessas crianças brancas que descobrimos a mutação. ■ Como o senhor avalia a genética no Brasil? —A genética, até certo ponto, foi privilegiada em relação a outras ciências no Brasil. Desde o início, ela esteve vinculada a instituições internacionais. Sempre esteve mais ou menos em boa situação. Devido a mudanças de paradigmas, especialmente de técnicas de investigação, houve oscilações em termos da inserção da genética brasileira no contexto internacional. Temos uma dependência muito grande na questão de insumos, reagentes. Atualmente estamos relativamente bem, mas não estamos na ponta. Na ponta estão os Estados Unidos, depois vem a Europa. Mas há áreas da genética em que estamos fazendo trabalhos importantes, reconhecidos internacionalmente. ■ Quais áreas o senhor destacaria? — O trabalho de seqüenciamento da bactéria Xylella fastidiosa, com repercussão internacional, é um exemplo clássi16 • OUTUBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 128
co. Nosso trabalho aqui no Sul é bem reconhecido também. Estamos bem, em geral, na parte de evolução e na genética humana médica. Na área mais aplicada, não tenho muito conhecimento. Mas nesse caso o que importa é a aplicação no Brasil, não fora. Então, eu diria que, se não estamos na ponta, estamos dentro do grupo dos primeiros países que fazem pesquisa na área. ■ Em seu último livro DNA e eu com isso? (editora Oficina de Textos), o senhor critica os detratores dos transgênicos e das pesquisas com células-tronco embrionárias humanas. Para o senhor, não há nenhum problema ético nesse tipo de pesquisa? — Concomitantemente ao desenvolvimento fantástico da genética, houve um progresso apreciável da bioética. Esse termo nem existia há 20 anos. Atualmente há uma rede de organismos que estão vigilantes para que qualquer desvio ético seja, primeiramente, identificado e, na maior parte das vezes, evitado. Toda a pesquisa atual é submetida a uma comissão institucional de bioética. Se há dúvidas sobre o caráter da pesquisa, ela é submetida a comissões nacionais. No caso dos transgênicos, entidades institucionais e nacionais verificam se a aplicação de um determinado produto é ou não válida, se ele pode causar algum prejuízo para a população e assim por diante. Atualmente há grupos que não só tentam ignorar a ciência, como procuram hostilizá-la também. E esses grupos têm que ser fortemente combatidos. ■ O senhor se refere aos criacionistas? — Dos místicos, dos antitransgênicos, dos anticélulas-tronco. São principalmente esses três grupos. A transgenia é
uma simples técnica genética, muito mais sofisticada do que a anterior. O homem é um organismo muito avassalador. Desde que surgimos como espécie, estamos modificando o meio ambiente. Estamos operando na natureza há muito tempo, só que com técnicas não tão sofisticadas como as atuais. Mas a transgenia, em termos ecológicos, é muito menos prejudicial do que as técnicas tradicionais de melhoramento genético. Se queremos, por exemplo, melhorar de maneira tradicional uma variedade de soja ou de milho, temos de realizar uma série de procedimentos. Temos de hibridizar essa planta com uma espécie próxima e, em seguida, realizar uma série de cruzamentos ao longo do tempo para passar o material genético de uma variedade para outra. O problema é que, para melhorar uma característica de uma planta, introduzimos na soja ou no milho centenas ou milhares de genes dessa espécie próxima. Na transgenia isso não ocorre. Utilizamos um só gene, um segmento pequeno de DNA, de uma espécie e o introduzimos na variedade que queremos melhorar. Nesse caso, a possibilidade de ocorrer qualquer problema prejudicial ao homem ou à natureza diminui fantasticamente. Isso sem falar no tempo que se ganha com a transgenia em relação ao trabalho de melhoramento genético clássico. m E no caso das células-tronco embrionárias humanas? Existe a discussão de quando começa a vida do embrião... — A questão é onde começa o direito da pessoa. O espermatozóide tem vida, o óvulo tem vida. A posição da Igreja Católica, que não é universal, é de que o direito da pessoa começa na fertilização, quando há um ser em potencial. Mas uma coisa é a potencialidade; outra é a
realização. A própria Igreja Católica, anos atrás, caracterizava o direito da pessoa, portanto o direito à vida, ao nascimento. Santo Tomás de Aquino, que foi um dos expoentes da Igreja Católica, dizia que o direito da pessoa principia ao nascer. Toda essa celeuma em relação a embriões congelados nas clínicas de fertilização in vitro é um absurdo. Quando a célula-ovo (união do espermatozóide com o óvulo) se forma, a probabilidade de esse produto vir a se tornar um indivíduo em si ainda é muito pequena. O processo de reprodução na espécie humana é muito ineficiente. Mais da metade desse produto é eliminado em fase muito precoce do desenvolvimento humano. Então, não há nenhuma garantia de que esse ovo vai dar um indivíduo. Esse é o primeiro ponto. O segundo é que aquele punhado de células que estão se formando não pode ser considerado um organismo em si porque ele não tem um eixo condutor que comande suas reações. Todos os comandos de como aquelas células vão se ajeitar vêm de fatores do citoplasma materno. Há ainda um terceiro ponto. Nessa fase precoce não há nenhuma indicação de que vai nascer um, dois ou três indivíduos. Pode ocorrer a formação de cinco pessoas em vez de uma. Não se pode esquecer que a oposição da Igreja também está vinculada à questão do aborto, à questão de quando o embrião, o feto, tem direito à vida. A posição da Igreja Católica é oposta à de organismos como a Organização Mundial da Saúde, segundo a qual esse direito só surge quando o feto tem possibilidade de vida pelo menos parcialmente independente, o que só ocorre em torno do sexto mês de gestação. Antes disso, ele pode ser considerado como parte do organismo materno. Portanto, a mãe teria direito de dispor desse material como bem quisesse. ■ Sempre que se fala dos avanços da genética, alguém levanta o fantasma da fabricação de exércitos de clones, eugenia. Como o senhor responde a essa crítica? — A clonagem reprodutiva é um negócio completamente louco. É complicadíssima. É muito mais fácil, muito mais gostoso fazer filhos pelo método natural. É impossível imaginar que se possa montar uma fábrica para produzir um exército de clones, mesmo com todo o progresso que a ciência vem tendo. A clonagem reprodutiva só faz sentido
para casais com problemas. Aí sim é eticamente aceitável.
cimento da criança? Para que ele a veja nascer e morrer? Isso não tem sentido.
■ Mas, no futuro, os pais não poderiam querer desenhar seus filhos, talvez com olho azul, com o auxílio da genética? Qual seria o limite de abordagens desse tipo? — O limite é o conhecimento. Provavelmente nunca chegaremos ao nível de conhecimento que permita desenhar uma pessoa de maneira tão detalhada. Mas é o tal negócio: se uma pessoa tem um filho de 4 anos, ela não vai jogá-lo numa escola qualquer. Vai procurar uma escola que proporciona à criança o máximo de rendimento intelectual, de personalidade. Por que, então, há tanta resistência à idéia de também se proporcionar a essa criança o melhor material genético possível? Se um pai pode se esforçar para que o ambiente do filho seja o melhor possível, por que não poderia fazer o mesmo com o material genético da criança? Muita gente acha que o material genético tem que vir do acaso. É um absurdo. Uma coisa é a vida. Outra coisa é a qualidade de vida. Dizer que uma pessoa com uma anormalidade genética, seja lá de que tipo for, tem qualidade de vida igual à de outra pessoa sem esse problema é fazer um pouco de conta. Falar em eugenismo virou um insulto, uma coisa horrorosa. Mas isso precisa ser relativizado, ver até onde a gente pode influir e até onde não pode. Sabemos que indígenas brasileiros matavam as crianças que nasciam defeituosas, o que era natural dentro de seu contexto cultural.
■ Do ponto de vista da genética, ainda é possível falar em raças humanas? — Raça é outro termo que ficou execrado, devido a exageros do politicamente correto. Raça é um conceito biológico claro, que vale para todos os organismos, não só para a espécie humana. É óbvio que, quando duas populações se separam, elas começam a se diversificar uma da outra. Enquanto não há isolamento reprodutivo, enquanto essas duas populações puderem cruzar uma com a outra, elas são raças. No momento em que não puderem mais cruzar uma com a outra, elas são consideradas espécies. Isso é um conceito clássico, neutro, não tem nada a ver com discriminação ou racismo. Mas, no afã de fazer com que o horror do racismo não exista mais, muitos geneticistas e biólogos vieram com essa história de que não há raças. É um absurdo. Lógico que existem raças na espécie humana. Me dá teu sangue que eu te digo, agora, com certeza, desde que eu tenha um número suficiente de marcadores genéticos, se teus ancestrais vieram da Europa, África ou Ásia. Certeza. Sem exagero. Há diferenças clássicas que se devem a uma história evolutiva diferente. No fundo, o problema não é a diferença biológica. É a discriminação social. Esse é o ponto-chave. Independentemente da diferença biológica, temos de tratar de forma igual as pessoas.
■ Mas, culturalmente, hoje essa medida é difícil de ser aceita por nós. — É verdade. Mas, para a cultura deles, era perfeitamente aceitável. Até onde vai o que é aceitável e o que não é está fundamentalmente relacionado com os princípios desenvolvidos ao longo do tempo, princípios que também têm que ser modificados à medida que a gente obtém novos conhecimentos. Conhecimento é poder. Essa é uma frase que a gente sempre ouve. Então conhecimento tem que ser aplicado. Se sei que uma criança nascerá anencéfala e, ainda assim, proíbo que o casal interrompa a gestação em época precoce, devido a princípios éticos, morais ou religiosos, estou cometendo um absurdo. Sei que a criança vai morrer de todo jeito ao nascer. Para que deixar o casal sofrer por um longo tempo até o nas-
■ E não negar as diferenças biológicas. — É ingenuidade acreditar que a discriminação vai acabar se negarmos as diferenças biológicas. Não vai, até porque eventualmente se inventa outro motivo para discriminar. Na Irlanda e em outros lugares, a discriminação entre protestantes e católicos não é baseada em caracteres morfológicos. É discriminação basicamente social. Se pegarmos, ao acaso, uma pessoa do continente africano e outra da Europa, só de olhar sabemos que são diferentes. Não dá para negar a realidade só porque ela poderá em si ser benéfica para as relações do planeta. Os princípios fundamentais são estabelecidos pelos direitos universais da pessoa humana, pela ONU. Independentemente do sexo, da raça, da religião, as pessoas têm o mesmo direito. Fazer qualquer tipo de discriminação é contrário à ética. • PESQUISA FAPESP 128 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ 17
O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
A ética em xeque
■ Excelência colombiana O Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia da Colômbia selecionou dois centros de excelência em áreas consideradas estratégicas para o país e vai destinar US$ 1,7 milhão a cada um deles nos próximos cinco anos. Os centros de pesquisa somam-se a outros quatro que haviam sido escolhidos em 2004 e 2005 no âmbito de um programa apoiado pelo Instituto Colombiano para o Desenvolvimento da Ciência e da Tecnologia (Colciencias). As propostas, que envolvem pesquisadores de várias universidades, estão vinculadas às áreas de modelagem e simulação de fenômenos complexos e de desenvolvimento institucional em áreas afetadas pela guerrilha. A meta do programa é consolidar redes que articulem grupos de pesquisadores de alto nível em torno de pesquisas comuns. "Semestralmente, serão feitas avaliações técnicas e financeiras e, ao final do segundo ano, o processo de ava-
Uma comissão do Congresso dos Estados Unidos censurou os Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês), principal pólo público de pesquisa médica do país, por tolerar a permanência de cientistas flagrados em situações antiéticas. Uma investigação descobriu que 44 pesquisadores do NIH prestaram consultoria ao setor privado sem pedir autorização aos superiores, o que
liação será feito por pares internacionais que decidirão se o centro seguirá sendo apoiado nos três anos seguintes", disse à agência de notícias SciDev.Net a assistente do programa Claudia Patrícia Serrano. •
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é proibido. Alguns foram demitidos, mas dois seguem na ativa. Thomas Walsh, do Instituto Nacional do Câncer, é acusado de receber US$ 100 mil de uma empresa sem declarar o trabalho. Trey Sunderland, do Instituto Nacional de Saúde Mental, omitiu mais de US$ 700 mil em honorários e é suspeito de compartilhar com uma empresa o material de pesquisa de sua instituição. "Há um grave
■ Livros-textos para todos Livros de referência de alta qualidade são inacessíveis para estudantes universitários de países em desenvolvimento.
problema quando o sistema cria uma ilusão de integridade, mas preserva os transgressores", disse ao siteáa revista Science o parlamentar Joe Barton. O NIH recomendou que ambos fossem demitidos, mas argumenta que eles têm vínculo funcional com o Exército, a quem caberia dar o bilhete azul. "Pelo jeito, vão aposentar-se antes que as investigações terminem", afirma Barton. •
Para enfrentar o problema, um professor de economia da Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos, lidera uma iniciativa que busca produzir livros-textos gratuitos e disponíveis na internet. "Nosso modelo de livro acadêmico é inviável nos países pobres", disse Rick Watson, o pai da idéia, ao site ScienceDaily. No projeto, batizado de The Global Text Project, o grupo de Watson planeja criar uma enciclopédia com mil livros-textos eletrônicos sobre temas abordados nos dois primeiros anos do ensino universitário. As editoras costumam reduzir à metade seus preços em países pobres. Um livro de biologia vendido por
US$ 108 nos Estados Unidos custa US$ 51 em Uganda, diz Watson. Mesmo assim, é caro para um país cuja renda per capita é US$ 250. Por meio do projeto, os estudantes encontrarão os livros-textos na internet e em formato pdf. Dezessete professores de cinco países estão escrevendo os capítulos do primeiro livro, que será lançado em janeiro. •
■ Elefantes expulsos do paraíso Choques entre elefantes e rinocerontes são comuns na disputa por espaço nos santuários ecológicos da África. Por conta disso, o Serviço de Vida Selvagem do Quênia decidiu transferir no mês passado 150 elefantes de seu maior parque nacional para uma reserva menor, a fim de preservar os rinocerontes. "Precisamos proteger os rinocerontes para que a quantidade deles possa aumentar", disse à agência de notícias Associated Press o chefe do programa de elefantes do Serviço, Patrick Omondi. Os elefantes, cada um com cerca de 7 toneladas, foram deslocados em caminhões para um parque numa área 80 quilômetros distante do santuário de rinocerontes Ngulia. O Quênia tem apenas 539 rinocerontes e cerca de 70 estão no santuário. A situação dos elefantes é um pouco menos dramática. Sua população no
Quênia estabilizou-se em cerca de 35 mil animais, bem abaixo dos 167 mil registrados na década de 1970. A caça promoveu um declínio da população entre os anos 1980 e 1990, mas a proibição mundial do comércio de marfim ajudou a conter o problema a partir de 1989. •
■ Em defesa das mulheres As universidades norte-americanas alimentam uma "cultura discriminatória às mulheres", afirma um relatório divulgado pela Academia de Ciências dos Estados Unidos sobre a situação feminina em carreiras científicas e tecnológicas. Segundo o site da revista Science, o documento propõe a criação de instâncias nas instituições acadêmicas que estabeleçam parâmetros e monitorem estratégias capazes de aumentar a presença feminina na pesquisa científica. Há quatro vezes mais homens que mulheres entre os doutores em ciências e cargos de
tempo integral nas universidades. E mulheres de minorias étnicas são "virtualmente ausentes" de posições importantes. A questão fundamental, segundo o relatório, não é tanto atrair mulheres, mas garan-
tir condições de mantê-las trabalhando depois que são treinadas. Ocorre que boa parte delas acaba se afastando da carreira por não conseguir conciliá-la com as tarefas de mãe de família. •
Rivais se aproximam Os ministros da Agricultura do Irã, Jihad Mohammad-Reza Eskandari, e do Iraque, Yuarib Nadhim alAbudi, celebraram um memorando de cooperação na área de ciência e tecnologia, segundo informou a Ima, agência de notícias do governo iraniano. De acordo com o documento, o ministro iraquiano expressou seu interesse em utilizar a expertise dos vizinhos em agricultura e veterinária, principalmente em campos de pesquisa como a produção de vacinas, o cultivo em regiões de clima adverso, além do melhoramento de espécies vegetais,
como trigo e cevada, e animais, como gado bovino, carneiros e cabras. O documento menciona um plano dos dois países de criar um grupo de biossegurança que irá implementar padrões internacionais de controle da saúde animal e de pragas agrícolas. Um comitê bipartite irá reunirse duas vezes por ano para assegurar que os esforços serão levados à prática. O intercâmbio faz parte de um esforço diplomático para aproximar os dois vizinhos, que nos anos 1980 travaram uma guerra responsável pela morte de 1 milhão de pessoas. •
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Orgulho ferido Um editorial da respeitada revista britânica The Lancet sobre o futuro de Cuba acendeu uma polêmica com pesquisadores latino-americanos. O texto da revista sugeriu que o país pode mergulhar num caos após a morte do ditador Fidel Castro, que sofre de câncer, como ocorreu nos países do Leste Europeu após a queda de seus regimes comunistas. E conclamou os Estados Unidos a preparar ajuda humanitária para os cubanos. De quebra, a publicação insinua que há dúvidas sobre a capacidade do sistema de saúde cubano de fazer frente a este quadro. "O editorial é um desrespeito à soberania de Cuba", diz Maurício Torres Tovar, coordenador-geral da Alames (Associação Latino-Americana de Medicina Social). "A atenção do Estado cubano com a saúde de sua população é um exemplo para todos. Cuba também tem uma notável vocação solidária, ajudando com remédios e profissionais diversos países atingidos por catástrofes", afirmou. Sérgio Pastrana, da Aca-
www.pubs.royalsoc.ac.uk/archive Até dezembro, o site da Royal Society, do Reino Unido, disponibiliza gratuitamente download de artigos gue publicou desde 1665.
demia de Ciências de Cuba, também protestou: "Temos condição de decidir se precisamos de ajuda e direito de escolher a quem pedi-la". •
FLORA BRASIUENSIS 4
■ Sementes para a África A África abriga 16 dos 18 países com maior índice de desnutrição do mundo e é a única parte do mundo onde a produção agrícola declinou nos últimos anos. Uma parceria entre duas grandes fundações pretende promover uma revolução verde na África, por meio do aumento da produtividade na agricultura e do treinamento de pesquisadores. Segundo o jornal TheWashington Post, a Fundação Bill e Melinda Gates, do fundador da Microsoft, e a Fundação Rockefeller vão investir US$ 150 milhões em um programa que prevê o desenvolvimento de variedades de sementes e a formação de uma nova geração de agrônomos e pesquisadores. O programa terá sede em Nairóbi, no Quênia. •
20 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 128
O PROIETO
#4
A OBRA
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http://florabrasiliensis.cria.org.br Depois das imagens, chega à internet o texto integral em latim das guase 23 mil espécies descritas na Flora Brasiítensis, de von iviartius, marco da botânica.
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http://geolig.igc.usp.br/geoproc 0 Grupo de Geoprocessamento da Geologia da USP mostra seus projetos e oferece informações ambientais, além do download de mapas de bacias.
Reflexões sobre a América Latina ■ Os vencedores do Jabuti O Jabuti, o mais famoso prêmio literário do país, concedido anualmente pela Câmara Brasileira do Livro, foi entregue na noite de 13 de setembro, na Sala São Paulo, na capital paulista. Os prêmios mais esperados foram anunciados na cerimônia. Na categoria Ficção o escolhido foi Cinzas do Norte, do amazonense Milton Hatoum. Ruy Castro, com Carmen - Uma biografia, levou o primeiro lugar em Não-Ficção. Os três primeiros lugares em cada uma das demais categorias do Jabuti haviam sido divulgados em agosto. A violência no coração da cidade, de Paulo César Endo, que teve apoio da FAPESP, ficou em terceiro lugar na categoria Educação, Psicologia e Psicanálise. O ganhador na categoria foi O sonhar restaurado, de Tales Ab'Sáber. Destaques da biblioteca indisciplinada de Guita e José Mindlin, um passeio por
0 prêmio concedido ao livro sobre a biblioteca de José Mindlin
Começa a funcionar neste mês a Cátedra Memorial da América Latina, voltada para estudar as realidades culturais, históricas e políticas dos países latino-americanos. A cátedra é um projeto acadêmico que une a Fundação Memorial da América Latina e as três universidades estaduais paulistas - USP, Unicamp e Unesp - e pro-
algumas das principais obras colecionadas pelo casal Mindlin, que funcionam como notáveis registros de momentos da história do Brasil, foi o terceiro colocado na categoria Projeto/Produção editorial. O projeto é de Diana Mindlin e o livro foi editado pela FAPESP,
moverá a cada semestre letivo um curso ministrado por um professor convidado, além de palestras e eventos vinculados a temas selecionados. O primeiro desses temas é energia e o catedrático convidado é Luiz Augusto Horta Nogueira, da Universidade Federal de Itajubá e consultor das Nações Unidas. "A idéia é que nos pró-
Edusp e Fundação Biblioteca Nacional. O primeiro lugar na categoria ficou com Caminhos do ouro na estrada real, de Antônio Gilberto Costa. •
■ Convênios assinados A FAPESP e a Deutsche Forschungsgemeinschaft (DFG), fundação que promove pesquisas nas universidades e em institutos especializados da Alemanha, assinaram um acordo de cooperação que apoiará atividades de projetos de pesquisa e de intercâmbio científico e a mobilidade de jovens cientistas, entre outras ações. As propostas deverão ser apresentadas pelos pesquisadores a suas respectivas agências. A FA-
ximos semestres venham catedráticos de vários países", diz Fernando Leça, presidente da Fundação Memorial da América Latina. Cerca de dez alunos-bolsistas indicados por diversas universidades do continente participarão do curso a cada semestre. O tema escolhido para o primeiro semestre de 2007 é o meio ambiente. •
PESP receberá propostas de pesquisadores de instituições superiores de ensino e pesquisa do Estado de São Paulo. A FAPESP também celebrou com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) um convênio para implementar o Programa de Parcerias para a Expansão do Atendimento a Pós-Graduação. O objetivo é estabelecer uma contrapartida para a concessão de bolsas de pós-graduação stricto sensu, de tal modo que a Capes coloque mais 150 bolsas no estado de São Paulo por meio de cotas alocadas nos programas reconhecidos pelo MEC, e a FAPESP conceda mais 150 bolsas por meio de seu sistema de atendimento direto ao pesquisador. •
PESQUISA FAPESP 128 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ 21
Estratégias
Brasil
Gargalo no oceano O Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) e a Empresa Gerencial de Projetos Navais (Emgepron) celebraram um protocolo de cooperação técnica e um contrato voltados para resolver um gargalo da pesquisa do país. O objetivo da parceria é desenvolver o projeto de um moderno navio de pesquisa oceanográfica, capaz de dar suporte a missões científicas e estimular a formação de redes de pesquisa. Há um consenso de que a pequena frota mantida por universidades e instituições de pesquisa é insuficiente para essa tarefa. A iniciativa faz parte de um esforço dos ministérios da Ciência e Tecnologia e da Defesa, do CGEE e da Secretaria da Comissão Internacional para os Recursos do Mar (Secirm), com o apoio da Finep. A Emgepron terá apoio do Centro de Projetos de Navios da Marinha para desenvolver o projeto. "A parceria marca uma participação mais efetiva da Marinha no sistema de ciência e tecnologia nacional", disse o almirante José de Melo Pinto, representante da Marinha na assinatura do protocolo. •
■ Pesquisa ganha menção honrosa O editor especial de Pesquisa FAPESP Ricardo Zorzetto recebeu menção honrosa no IV Prêmio Alexandre Adler de Jornalismo em Saúde na categoria revista pela reportagem "Crianças - por uma vida longa e saudável", publicada na edição de maio deste ano. O 22 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 128
trabalho trata da prevenção de doenças crônicas que pode permitir às crianças chegar com saúde aos 100 anos. Célia Chaim, de IstoÉ, também recebeu menção honrosa por "O drama da hanseníase no Brasil". Os vencedores da categoria foram Cristiane Segatto, Matheus Leitão, Ana Aranha e Flávio Machado, de Época, com "Estamos doentes". Os ganhadores na categoria principal foram Jorge Carrasco e Pâmela Oliveira, do jornal O Dia, com a série "Aids - violência, discriminação e descaso". O Prêmio Alexandre Adler é uma iniciativa do Sindicato dos Hospitais, Clínicas e Casas de Saúde do Município do Rio de Janeiro, do Centro de Educação em Saúde do Senac Rio (CES/Senac) e do Sindicato de Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro. •
■ Projeto binacional As agências espaciais brasileira (AEB) e ucraniana (Nsau) começam a organizar o lançamento da Alcântara Cyclone Space (ACS), empresa binacional que terá sede em Brasília. A ACS é fruto de um trata-
do assinado entre as duas agências e irá oferecer ao mercado nacional e internacional o serviço de lançamento de satélites com o foguete ucraniano Cyclone IV a partir do Centro de Lançamento de Alcântara, no Maranhão. O investimento inicial de cada país será de US$ 4,5 milhões. De acordo com o presidente da AEB, Sérgio Gaudenzi, o documento de criação da empresa foi feito nos moldes da hidrelétrica Itaipu binacional. "Era o único existente para servir de parâmetro", disse. "O mercado espacial pode chegar a U$ 10 bilhões nos próximos anos. Com o lançamento da Alcântara Cyclone Space vamos garantir uma fatia desse mercado", afirmou Gaudenzi. •
■ As rotas dos que estudam fora Cerca de 20 mil jovens brasileiros estudam em universidades do exterior, segundo relatório da Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Esse contingente vem aumentando, mas é pequeno quando comparado a outras nações. Representa apenas 0,8% dos 2,7 milhões de jovens do mundo que estudam fora de seus países. As universidades americanas atraem mais de 35% dos brasileiros. Portugal desponta em segundo lugar, com 11%, seguido pela França, com 8%, e pelo Reino Unido, com 5%. Nos últimos 30 anos, o contingente mundial dos jovens que estudam fora de seus países multiplicou-se por cinco. Segundo o estudo da OCDE, o destino preferido dos estudantes ainda é os Estados Unidos, com 22% das opções. O Reino Unido vem em segundo lugar, com 11%. Mas vêm crescendo outros destinos, como Austrália, Nova Zelândia e África do Sul. O Brasil não chega a atrair 1% dos estudantes internacionais. •
■ Célula para entrar Até o dia 10 de novembro uma enorme estrutura cenográfica que simula o funcionamento de uma célula vai peregrinar por 16 escolas da capital paulista. Concebida para estimular o ensino de genética, a célula tridimensional tem 16 metros quadrados de área e, dentro dela, o visitante encontrará modelos do núcleo celular e de suas estruturas mais importantes. A iniciativa é do
Retratos da desigualdade
O Programa Mulher e Ciência, voltado para estimular a produção de pesquisas e reflexões sobre a desigualdade entre homens e mulheres no Brasil, está chegando à segunda edição. A iniciativa prevê dois tipos de incentivos: um edital de R$ 1,2 milhão para apoio a pesquisas e o 2o Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero, um concurso de redação para estudantes de ensino médio e de artigos científicos para alunos de graduação e pósgraduação. O R$ 1,2 milhão oferecido no edital divide-se em duas categorias: projetos cujos coordenadores sejam doutores há
Centro de Estudos do Genoma Humano (CEGH) do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), um dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP
menos de sete anos vão receber até R$ 16 mil, diante de R$ 50 mil para aqueles cujos coordenadores sejam doutores há mais de sete anos. O concurso de redações e artigos científicos distribuirá prêmios em dinheiro, computadores, bolsas de iniciação científica, de mestrado e doutorado. O programa é uma iniciativa da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Ministério da Educação (MEC) e do Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher. •
no estado de São Paulo. Cerca de 5 mil alunos de ensino médio terão acesso à célula e a atividades complementares nas 15 escolas públicas e um colégio particular que participam do programa. •
PESQUISA FAPESP 128 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ 23
POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA
INOVAÇÃO
Pedra
funda
Governo federal lança programa que oferece R$ 450 milhões em recursos não reembolsáveis para empresas inovadoras FABRíCIO MARQUES
24 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 128
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governo federal pôs em prática o dispositivo da Lei de Inovação que permite a destinação de recursos públicos não reembolsáveis a em^^V presas que desenvolvam produtos e processos inovadores. No dia 6 de setembro, o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), por intermédio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), lançou o Programa de Subvenção Econômica, que compreende duas chamadas públicas nas quais são oferecidos R$ 450 milhões nos próximos três anos. A chamada principal oferece R$ 300 milhões às áreas consideradas estratégicas da Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (Pitce) do governo, como os setores de fármacos e medicamentos, semicondutores e software, bens de capitais com foco em biocombustíveis e combustíveis sólidos, além de áreas promissoras como biotecnologia, nanotecnologia, biomassa e energias alternativas. "Mas em-
presas de quaisquer áreas podem apresentar seus projetos porque, do total disponível, R$ 90 milhões serão reservados para ações em áreas não contempladas pela Pitce", diz Rogério Amaury de Medeiros, superintendente de planejamento da Finep. "É muito importante que as empresas se apresentem, porque a procura por esse edital nos ajudará a mapear as demandas e planejar as novas chamadas públicas. Nossa expectativa é grande, mas não sabemos se aparecerão 100 ou 500 projetos", afirma Medeiros. A segunda chamada, que conta com R$ 150 milhões, não envolverá a distribuição de recursos a princípio. Ela vai apoiar o Programa de Apoio à Pesquisa em Empresas (Pappe), operado pela Finep em parceria com agentes regionais, como fundações de amparo à pesquisa, secretarias de estado e bancos de desenvolvimento. O objetivo do edital é identificar e credenciar os parceiros regionais para, através deles, distribuir os recursos às empresas num segundo momento. Ainda neste ano deve ser lançado um terceiro edital com R$ 60 milhões para subvencionar a contratação
de mestres e doutores por empresas. Parte dos custos das empresas com salários desses profissionais poderá ser ressarcida pelo governo por um período de no máximo três anos, como estabeleceu a chamada Lei do Bem (11.196/2005). A medida busca combater outra mazela: a presença ainda pequena de cientistas trabalhando em centros de pesquisa e desenvolvimento de empresas. No Brasil, segundo levantamento feito pelo IBGE em 2002, há menos de 29 mil pesquisadores trabalhando em empresas, diante de 94 mil em empresas da Coréia do Sul e quase 800 mil nas dos Estados Unidos. A aplicação de recursos públicos não reembolsáveis em empresas não era viável antes da Lei de Inovação. A legislação permitia o investimento no setor privado apenas de forma indireta, por meio de estímulo a parcerias entre instituições científicas e tecnológicas e o setor privado. "O Brasil começa agora a utilizar um mecanismo de política pública que já vem sendo empregado há longa data por países desenvolvidos", disse o presidente da Finep, Odilon MarPESQUISAFAPESP128 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ 25
cuzzo do Canto. "A publicação dos editais é uma providência que demorou, mas mesmo assim sinaliza positivamente sobre o apoio à pesquisa em empresas", diz o diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz. "Este expediente é usado fartamente por todos os países desenvolvidos e busca criar condições para que as empresas possam enfrentar os elevados riscos de investir em inovação", afirma. Direção certa - A subvenção a atividades tecnológicas em empresas é um dos poucos espaços permitidos aos países em meio às restrições a subsídios no setor produtivo impostas pela Organização Mundial do Comércio, observa Sérgio Queiroz, professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e secretário adjunto de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo. "As chamadas públicas são apenas um primeiro passo, mas são iniciativas concretas e estão na direção certa", afirma Queiroz. A inovação é crucial para dar competitividade às empresas e desenvolver a economia. Os indicadores brasileiros mostram que o setor privado do país tem baixa capacidade de inovar. A Pesquisa Nacional de Inovação Tecnológica (Pintec) de 2003 registrou uma queda no número de empresas brasileiras que fazem pesquisa e desenvolvimento de forma contínua eram 2.432 em 2003 diante de 3.178 no ano 2000, num universo de mais de 10 mil empresas pesquisadas. Entre elas apenas 1.200 tinham produtos diferenciados capazes de colocá-las na liderança do mercado nacional e somente 177 exibiam processos inovadores de impacto mundial. A porcentagem do faturamento das empresas investida em pesquisa e desenvolvimento também caiu, de 3,8% em 2000 para 2,5% em 2003. Esse desempenho acendeu o sinal de alerta entre autoridades e empresários. Em junho de 2006 a Confederação Nacional da Indústria (CNI) estabeleceu metas a serem alcançadas até 2010. Entre elas, o número de empresas inovadoras para o padrão nacional deve crescer para pelo menos 4 mil e as de padrão in26 ■ OUTUBRO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 128
ternacional para mais de 500. Para a CNI, pelo menos 50% do fomento público destinado ao desenvolvimento científico e tecnológico precisa ser alocado diretamente nas empresas na forma de subvenções e financiamentos se o país quiser alcançar tais metas. Avalia-se que o Estado brasileiro precisaria investir em torno de R$ 3 bilhões por ano no estímulo à pesquisa dentro das empresas, na forma de subsídios e de encomendas tecnológicas. "Só que esses R$ 3 bilhões devem ser aportados de forma que para cada R$ 1 bilhão investido pelo Estado as empresas apliquem R$ 4 bilhões", diz Brito Cruz, da FAPESP. É intenção do governo federal lançar, a partir de agora, pelo menos dois editais de subvenção a cada ano. "Essa primeira experiência privilegia os setores considerados estratégicos, mas não necessariamente esse critério vai repetir-se nos próximos editais", diz Rogério Amaury de Medeiros, da Finep. e todo modo, a expectativa da Finep é que esses R$ 450 milhões iniciais tenham impacto mensurável na capacidade de inovar de algumas áreas. "Creio que temos condição de avançar muito em áreas como softwares e fármacos", diz Medeiros. A Finep admite que ficou de fora de seu esforço um ponto frágil da cadeia de inovação das empresas: a ausência de uma política nacional de encomendas tecnológicas, em que o poder público contrata e subsidia parcialmente pesquisas de interesse público realizadas por empresas. Por meio desse instrumento, o Estado, em vez de comprar indiscriminadamente pelo menor preço internacional, opta pelo desenvolvimento do produto por uma empresa nacional. Nos Estados Unidos, cerca de US$ 20 bilhões são gastos anualmente em compras tecnológicas por agências governamentais. "O Brasil já foi mais forte nisso, mas afastou-se desse caminho ", diz Sérgio Queiroz, da Unicamp. A indústria de telecomunicações desenvolveu-se bastante graças ao poder do Estado. A Embraer, hoje um exemplo de empresa brasileira inovadora, talvez não tivesse se consolidado sem as encomendas que o governo fez à empresa, principalmente em seus primórdios.
Uma outra notícia promissora no campo da inovação foi o lançamento do Programa de Investigação Tecnológica (PIT), que reúne a Unicamp, a Universidade de São Paulo (USP), o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen). O objetivo do programa é mapear a viabilidade comercial de tecnologias inovadoras desenvolvidas por essas instituições e capacitar alunos a investigar e qualificar essas tecnologias. Nos próximos dois anos, cada instituição selecionará projetos de inovação tecnológica em curso nos seus laboratórios, num total de 120 tecnologias. O processo será conduzido com apoio de estudantes-bolsistas e terá como bússola a primeira experiência do PIT, realizada recentemente em Campinas, que avaliou 60 tecnologias produzidas pela Unicamp nas áreas de Novos Materiais, Econegócios, Saúde e Agronegócios, entre outras. "As atividades desenvolvidas pelo PIT servem de suporte para difusão das tecnologias geradas nas instituições", afirma Roberto Lotufo, professor e diretor executivo da Agência de Inovação da Unicamp (Inova), que lidera a execução do programa. "A idéia é fazer com cada tecnologia estudada aquilo que já fazemos na Agência da Inovação da Unicamp quando buscamos empresas para licenciar patentes. Os empresários procuram informações básicas sobre a viabilidade comercial e a aplicação de uma determinada tecnologia e nem sempre seus criadores estão preparados para responder." Depois de treinados, os alunos responsáveis pelo andamento do programa começarão a investigar as tecnologias por meio de entrevistas com pesquisadores. A intenção é mapear diferenciais e limitações de cada projeto. No final, ainda será feita a pesquisa de viabilidade econômica das iniciativas, dimensionando-as nos mercados nacional e internacional. Todos os projetos com bom potencial poderão ser transferidos para a sociedade por dois caminhos: a geração de pequenas empresas nascidas nas próprias instituições de pesquisa ou por meio de licenciamentos que serão feitos para grupos privados já constituídos. "Trata-se de uma ação para se melhorar a qualidade das patentes das instituições acadêmicas em São Paulo", diz Brito Cruz. •
O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
Para difundir o
conhecimenti FAPESP abre mão de ser titular das patentes geradas por projetos de pesquisa
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Conselho Superior da FAPESP aprovou uma mudança na política para a propriedade intelectual gerada por projetos de pesquisa financiados pela Fundação. A FAPESP não mais exige ser a titular de patentes sempre que isso for do interesse da instituição de pesquisa que sedia o projeto. A norma anterior estabelecia a divisão da titularidade da propriedade intelectual entre a Fundação e a instituição a que está vinculado o pesquisador responsável pela patente. De acordo com a decisão do conselho, um dos objetivos da mudança é adequar-se às exigências da Lei de Patentes, segundo a qual a propriedade intelectual sempre pertence à instituição que emprega o pesquisador. "A mudança também busca criar condições para estimular a valorização da propriedade intelectual dentro das instituições de pesquisa, como prevê a Lei de Inovação", diz o diretor científico da Fundação, Carlos Henrique de Brito Cruz. No período de 1999 a 2003 a FAPESP encaminhou 83 pedidos de registros de patentes ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), o que lhe valeu o 7o lugar no ranking geral de solici-
tações. Isso foi um resultado da norma que estabelecia a titularidade das patentes para a Fundação. A nova diretriz tem como fundamento a idéia de que a FAPESP não deve substituir as instituições de ensino e pesquisa, mas ajudá-las a valorizar a propriedade intelectual por meio de apoio e financiamento. Além do registro e da proteção da patente, é preciso buscar o licenciamento da propriedade intelectual com empresas e esse esforço deve ser feito pela instituição que abriga o projeto. A minuta da nova política foi debatida no dia 4 de maio numa reunião da diretoria científica da Fundação com
pró-reitores de pesquisa das principais universidades paulistas e aprovada no dia 30 de maio pelo Conselho Técnico-Administrativo (CTA) da FAPESP, antes de ser encaminhada ao Conselho Superior. Embora não exija mais ser titular da propriedade intelectual, a FAPESP não abre mão de compartilhar os benefícios eventualmente auferidos pelas patentes. No que diz respeito a royalties, a diretriz estabelece que a FAPESP negociará uma fração da parte que cabe à instituição de pesquisa. Documentos como o Termo de Outorga deverão ser alterados e um Termo de Convênio passará a especificar, com base nas novas regras, as condições combinadas entre instituições de pesquisa, a FAPESP e as empresas, nos casos dos programas Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe) e Parceria para Inovação Tecnológica (Pite). Estrutura de apoio - A FAPESP continuará apoiando as propostas de auxílio para registro de patentes no âmbito do Programa de Apoio à Propriedade Intelectual (Papi). O Núcleo de Patenteamento e Desenvolvimento de Tecnologia (Nuplitec) da Fundação permanecerá como uma estrutura complementar para apoio a pesquisadores, universidades e institutos de pesquisa na busca de licenciamentos da propriedade intelectual dos inventos resultantes de pesquisas financiadas pela FAPESP. Na norma aprovada, o Conselho Superior afirma que a propriedade intelectual em instituições acadêmicas "deve ser um meio para intensificar os resultados institucionais na busca da difusão do conhecimento com o objetivo de criar desenvolvimento". E ressalta que as patentes não devem ser vistas como uma forma de ganhar dinheiro. "É bem conhecido e documentado o fato de que poucas instituições acadêmicas do mundo ganham mais dinheiro com propriedade intelectual do que gastam com sua geração e manutenção. Mesmo assim, é essencial que se preocupem e se envolvam com esta atividade devido a seu compromisso com a difusão do conhecimento e a geração de novas oportunidades." • PESQUISA FAPESP 128 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ 27
O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA AMBIENTE
Núcleo Cabuçu do Parque Estadual da Cantareira, um pedaço intocado de 26,7 quilômetros quadrados de H I floresta nos limites de ^^f Guarulhos (SP), vai ga^^^ nhar um cinturão de proteção se for aprovado um projeto de lei encaminhado pela prefeitura à Câmara de Vereadores da cidade. O projeto disciplina o uso do solo no município, que pertence à Região Metropolitana de São Paulo, e estabelece diretrizes para a criação de uma área de proteção ambiental numa faixa de terra de 32,2 quilômetros quadrados entre o Núcleo Cabuçu e a área urbana de Guarulhos. Essa área de transição, que é classificada como zona rural pela legislação atual, sofre uma intensa pressão da urbanização. Já abriga ocupações irregulares e aterros. Mas 45% de seu território ainda é composto por Mata Atlântica praticamente inexplorada. De acordo com o projeto de lei, que deve ser votado ainda neste ano, a ocupação dessa faixa passaria por um processo de reorganização: moradias em zonas de deslizamento seriam removidas para locais mais seguros, áreas desmaiadas receberiam de volta a vegetação natural e atividades como o ecoturismo ganhariam incentivo. Assim, o cinturão seria convertido numa zona de defesa, capaz de impedir que a metrópole avance sobre o Parque Estadual da Cantareira, região de mananciais tombada no século XIX. O advento da área de transição, encampado pela prefeitura, é resultado direto de um projeto financiado pela FAPESP no âmbito do Programa de Pesquisa em Políticas Públicas, instituído em 1995 com o objetivo de estabelecer parcerias entre universidades e institutos de pesquisa e órgãos do setor público e do terceiro setor na busca de soluções para problemas concretos da população ou entraves à boa gestão administrativa. "Temos uma chance histórica de 28 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 128
evitar que a urbanização encoste no Parque Estadual da Cantareira, como já aconteceu em municípios vizinhos como São Paulo", diz Antônio Manoel dos Santos Oliveira, coordenador da pesquisa, que é diretor do Laboratório de Geoprocessamento e professor do Mestrado em Análise Geoambiental da Universidade de Guarulhos (UnG). O projeto Cabuçu foi realizado entre 2001 e 2005 e promoveu um inédito mapeamento da região, com a identificação de cada uma de suas microbacias e a instalação de uma estação meteorológica. Foram elaborados mapas de geologia, de uso do solo e de legislação ambiental, entre outros, além de um diagnóstico sobre as possibilidades de exploração sustentável. A busca de soluções envolveu pesquisadores da UnG, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), em parceria com secretarias da Prefeitura de Guarulhos, o Instituto Florestal e o Sistema Autônomo de Água Esgoto (SAEE) da cidade. Segundo o secretário de Desenvolvimento Urbano de Guarulhos, o arquiteto Roberto dos Santos Moreno, a parceria foi importante tanto para os técnicos da prefeitura e dos órgãos públicos, depositários de novos conhecimentos sobre a região, como para os pesquisadores, convidados a avaliar questões práticas. "O projeto de pesquisa tornou-se um grande aliado nosso na definição do novo zoneamento da cidade e teve influência na elaboração do novo Plano Diretor de Guarulhos, aprovado em 2004", afirma Moreno.
A definição da área de proteção ambiental não vai evitar que a região contígua ao Núcleo Cabuçu seja habitada, mas busca impedir usos que causem impactos significativos. "A idéia da área de proteção é conservacionista, não preservacionista", explica o professor de geologia da UnG Márcio Roberto Magalhães de Andrade, que se incorporou ao projeto quando trabalhava na área técnica da prefeitura de Guarulhos. Com base nesse diagnóstico, o grupo propôs uma nova abordagem para a região. As microbacias constituiriam as unidades básicas de diagnóstico ambiental e planejamento urbano. Seriam desenvolvidos modelos de ocupação que respeitem as condições ambientais de cada microbacia, eliminando áreas de risco e valorizando os serviços da biosfera. Nesse sentido, o projeto contribui para a Avaliação Subglobal Ecossistêmica do Milênio, que está sendo iniciada na Reserva da Biosfera do Cinturão Verde da Cidade de São Paulo. A participação da população na gestão do meio ambiente é outra pedra de toque do projeto. Um dos objetivos é articular proprietários rurais, moradores e a polícia ambiental do município. Outro é criar um parque de educação ambiental, que ajude a disseminar entre os estudantes a importância da ocupação sustentável. "A gestão das florestas urbanas é problemática em todo o Brasil. Nossa experiência poderá ser aproveitada por outras cidades", diz Antônio Manoel dos Santos Oliveira, coordenador do projeto. • FABRíCIO MARQUES
Estudo que propôs zona de proteção para o Parque da Cantareira inspira projeto de lei
A área urbana de Guarulhos avança em direção ao verde do Parque da Cantareira
PESQUISA FAPESP 128 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ 29
O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA PARQUES TECNOLÓGICOS
Plano de vôo Apoio da prefeitura e da Embraer aceleram projeto em São José dos Campos
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Parque Tecnológico de São José dos Campos começa a deslanchar. O seu perfil de atuação já está definido: reunirá empresas de tecnologia e serviços de apoio à indústria aeroespacial, tendo como âncora a Embraer. O parque também estará aberto para abrigar empresas com atividade ligada à biomedicina - como diagnóstico de imagem ou informática médica, por exemplo -, que tem forte articulação com as áreas de engenharia. O núcleo do parque, um prédio com 30 mil metros quadrados de área construída comprado pela prefeitura municipal, está em fase final de organização. Terá papel estratégico para o empreendimento, já que reunirá tecnologia industrial básica e serviços para dar suporte às empresas que se instalarem em seu entorno. Já sedia, por exemplo, um curso de logística em transportes, com 160 vagas, e, a partir do próximo ano, oferecerá aulas também de computação e tecnologia aeronáutica. Os cursos são oferecidos pela Faculdade de Tecnologia (Fatec), instituição gerida pelo Centro Paula Souza. Neste mês, o núcleo do parque será o novo endereço do curso de especialização em engenharia aeronáutica, ministrado pelo Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) aos 30 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 128
novos engenheiros da Embraer, de acordo com Marco Antônio Raupp, coordenador do parque. No próximo ano estará pronto o Centro de Desenvolvimento de Tecnologia Aeronáutica, um conjunto de laboratórios de integração de sistemas, softwares embarcados e estruturas leves, que está sendo montado pela Embraer, em parceria com o ITA e o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). A coordenação do parque faz planos de instalar no núcleo também um Centro de Desenvolvimento de Tecnologia Biomédica. O prédio deve estar totalmente ocupado até o final do ano. Vocações locais - O Parque de São José dos Campos integra o Sistema de Parques Tecnológicos de São Paulo - um programa da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico (SCTDE), sediado e gerido pela FAPESP -, que prevê a instalação de empreendimentos semelhantes em todo o estado. "O objetivo é estimular a cooperação entre instituições de pesquisa, universidades e empresas regionais, dando suporte ao desenvolvimento de iniciativas intensivas de conhecimento", afirma João Steiner, coordenador do programa. Cinco empreendimentos - todos eles alinhados às vocações locais e apoiados em, pelo menos, uma empresa âncora já estão em andamento: em São José dos
Campos, voltado para a indústria aeronáutica; em São Carlos, especializado nas áreas de óptica, materiais e instrumentação avançada; em Ribeirão Preto, focado no setor de saúde; em Campinas, direcionado às tecnologias de comunicação e informação; e em São Paulo, que, muito provavelmente, terá como bandeira os serviços intensivos de conhecimento, segundo prevê Steiner. O Parque Tecnológico de São Paulo é o que está mais atrasado. A sua instalação, planejada para ocupar terreno na região próxima ao Ceagesp, exigirá a requalificação da área. "É uma iniciativa complexa", ele resume. Os demais projetos estão em fase de credenciamento de área para serem implantados no próximo ano. O empreendimento de São José dos Campos deu um salto de três anos em seu cronograma, "graças ao apoio da prefeitura municipal e ao interesse da Embraer", como sublinha Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP. A expectativa é que a infra-estrutura do Parque de São José fique pronta no próximo ano. Uma equipe de especialistas contratados pela coordenação do programa já iniciou a elaboração do projeto urbanístico e do plano de negócios que atestará a sustentabilidade do empreendimento. O Master Plan, como é conhecido, ficará pronto em 270 dias. Definirá, por
exemplo, a forma de utilização da área total de 3,5 milhões de metros quadrados em torno do núcleo do parque, que deverá incluir, além de empresas, empreendimentos imobiliários e comerciais. "Queremos atrair para o parque indústrias de base tecnológica, serviços tecnológicos e um projeto residencial, com serviços gerais", explica Steiner. Para atender uma demanda da prefeitura, o Master Plan do Parque de São José dos Campos deverá incorporar empreendimentos também na área biomédica. "A Universidade Federal Paulista (Unifesp) está abrindo um campus na cidade e vai oferecer cursos que permitam uma intersecção com as engenharias para aproveitar o potencial da região", explica o coordenador do parque. Os primeiros cursos, de ciência da computação voltado para a biologia e medicina, e de enfermagem, iniciam no próximo ano. Também está prevista a implantação de um curso de biotecnologia, com ênfase em tecnologia genômica e em informática. "Buscamos afinidades entre os institutos de pesquisa já instalados no município e a Unifesp. Concluímos que podemos aproveitar a experiência do ITA e do Centro de Tecnologia Aeroespacial (CTA) para estimular a criação de empresas de material odontológico e farmacêutico, como, por exemplo, fabricantes de prótese circulatória", afirma Raupp. • PESQUISA FAPESP 128 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ 31
CIÊNCIA
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Creme protege da insolação Um tratamento experimental de pele testado em camundongos não só causou um bronzeamento sem sol, mas também reduziu os efeitos danosos causados pelos raios ultravioleta. Pesquisadores do Centro DanaBoston, Estados Unidos, sob a coordenação de David Fisher, aplicaram à pele de camundongos de pelagem clara, geneticamente modificados, um composto químico chamado forskolin, derivado da raiz da planta Coleus forskohlii. Como resultado da aplicação tópica de forskolin, que restaura os mecanismos de produção do pigmento melatonina, os animais ficaram bronzeados e não se queimaram. Se os resultados forem reproduzidos em seres humanos, o tratamento pode permitir que as pessoas de pele clara - as mais sujeitas ao câncer de pele por causa de falhas nos mecanismos que levam à produção de melatonina - evitem os danos do sol sem deixar de tomar sol. <
■ Amargo com gosto de veneno A capacidade de sentir o gosto amargo é, de fato, uma forma de o organismo se defender das toxinas de plantas. De acordo com um estudo da Current Biology de setembro, as variantes de um receptor de gosto amargo, o TAS2R38, pode detectar glucosinolatos, compostos com efeitos potencialmente danosos, em frutas e vegetais. No experimento coordenado por Paul Breslin, do Monell Chemical Senses Center, Estados Unidos, 35 adultos
saudáveis - previamente classificados segundo as variantes genéticas que lhes conferiam maior ou menor sensibilidade ao gosto amargo - deram notas para o amargor de vários vegetais, alguns com glucosinolatos, como brócolis, couve e nabo, outros sem, como espinafre, chicória e berinjela. Os voluntários mais sensíveis ao amargo atribuíram valores até 60% mais altos aos vegetais com glucosinolatos, demonstrando que variações no gene TAS2R38 afetam a percepção do amargo em alimentos com toxinas desse grupo. •
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■ Machos nascem mais tarde
Espinafre: não mais tão perigoso
Quando os carrapatos invadem o ninho, as fêmeas do tentilhão Carpodacus mexicanus protegem os filhotes machos retardando o seu nascimento. Põem os ovos dos filhotes fêmeas antes dos ovos dos machos, mais sensíveis aos sugadores de sangue. Assim, as mães reduzem o tempo de exposição dos machos da prole aos parasitas, e tanto eles quanto as irmãs poderão se desenvolver o bastante até deixarem o ninho. Em um estudo pu-
£ blicadoem setembro na PNAS, | Alexander Badyaev, da Uni| versidade do Arizona, Estados Unidos, observou que o organismo das fêmeas, uma vez exposto aos carrapatos, libera hormônios que afetam a ordem da postura dos ovos e apressam a maturação dos herdeiros antes do nascimento. Sem carrapatos, as chances de um ovo ser macho ou fêmea são iguais; quando há, as mães praticamente escondem os filhos nos ovos.
■ Meio humana, meio símia Saiu das areias do deserto da Etiópia um esqueleto de uma criança - provavelmente uma menina - de 3 anos de idade que viveu há cerca de 3,3 milhões de anos. É a criança mais antiga já descoberta e o primeiro representante juvenil de uma espécie primitiva de seres humanos, o Australopithecus afarensis, descrita na edição de 21 de setembro da revista Nature. Encontrada e descrita por paleontólogos liderados por Zeresenay Alemseged, do Instituto Max Planck de Leipzig, Alemanha, a cha-
Internet ajuda a comer melhor
Casal de tentilhões: o macho é o de peito vermelho
mada filha de Lucy, em alusão à representante adulta mais antiga já encontrada dessa linhagem remota da espécie humana, concilia algumas características de macacos - da cintura para cima - e humanas da cintura para baixo. Caminhava em pé, mas tinha braços bastante semelhantes aos de chimpanzés e de gorilas, numa clara indicação de que era hábil em escalar árvores. Quase completo, o esqueleto deverá ajudar bastante a entender a morfologia, o comportamento, os movimentos e os padrões de desenvolvimento de nossos ancestrais. •
Não é fácil mudar alguns hábitos de alimentação e consumir alimentos com menos gorduras saturadas, mais encontradas em carnes gordas e laticínios. Mas pode haver uma saída simples: comprar pela internet. Rachel Huxley e um grupo do George Institute for International Health, em Sydney, na Austrália, queriam descobrir se as recomendações sobre uma boa alimentação distribuídas por meio de um sistema de compras pela internet levariam a escolhas de alimentos mais saudáveis. Os pesquisadores ofereceram a um grupo de participantes do estudo a possibilidade de receber conselhos sobre alimentação em geral e a outro, a chance de receber conselhos específicos que lhes permitissem trocar alguns alimentos por outros com menos gorduras saturadas. O segundo grupo comprou alimentos mais saudáveis que o primeiro. Uma das conclusões desse estudo, publicado em setembro na PLoS Clinicai Trials, é que tecnologias de baixo custo por internet podem motivar as pessoas a se alimentarem melhor. •
tários com idade entre 70 e 80 anos que participaram dessa pesquisa, a taxa média de perda de peso dobrou de 0,27 kg por ano para 0,55 kg por ano, de acordo com o estudo publicado na revista Archives of Neurology. Os 125 voluntários que apresentaram demência moderada começaram o estudo pesando em média 2 kg menos que os outros, em que a demência não foi diagnosticada. Os dois grupos perderam peso no mesmo ritmo por quatro anos. A partir do quinto ano de acompanhamento, a perda de peso se acentuou no grupo que mais tarde receberia o diagnóstico de demência. O emagrecimento pode ser um indicador da perda das habilidades mentais ao longo do envelhecimento, embora não possa ser usado como indicador definitivo, já que o peso de uma pessoa pode variar muito de um ano para outro, alerta David Johnson, coordenador da pesquisa. Ainda não se sabe por que esses dois fenômenos estão ligados. •
■ Perda de peso e Alzheimer Médicos da Universidade de Washington, Estados Unidos, detectaram uma sutil, mas clara, perda de peso nas pessoas idosas um ano antes de apresentarem os primeiros sintomas de uma forma de demência causada pelo mal de Alzheimer. O peso das pessoas apresenta normalmente um lento e contínuo declínio de cerca de 0,2 kg por ano a partir dos 60 anos de idade. Nos 449 volunPESQUISA FAPESP 128 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ 33
Entre tapas e humilhações
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■ Cresce a espera por transplantes O Brasil conta com um dos maiores programas públicos de transplantes do mundo, com cerca de 8.500 transplantes por ano, mas os prazos de espera ainda são longos, concluiu Alexandre Marinho, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O tempo mínimo de espera é de 1,6 ano para coração e o máximo, de 11 anos para rim. Em um estudo publicado nos Cadernos de Saúde Pública, Marinho examina a situação nacional dos últimos anos e conclui: "Se a taxa de chegada de candidatos a transplantes aumentar, mesmo em pequena proporção, os tempos de espera na fila sofrerão elevações dramáticas". A prevenção e o controle de doenças crônicas como hipertensão e diabetes poderiam ajudar a reduzir a necessidade de receber um órgão transplantado. •
A violência física, psicoló^^ ^^|^^ gica e sexual contra as muLk k ifl Ik lheres ainda é alta e invi/-J%^ ±_-<-'M sível, concluíram pess^2 V quisadores da USP em Ribeirão Preto. André \ JA B Marinheiro, Elisabeth w M Vieira e Luiz de Souza pro^B ■ curaram 564 mulheres que ^B mk haviam passado por atendi^Bi B mento clínico ou ginecoloM H gia) em um centro de saúM H de de Ribeirão Preto, intefl H rior paulista, e conseguiram W entrevistar 265, com idade Wf entre 18 e 49 anos. Uma em B^ cada quatro contou já ter IJ sofrido violência física BSJ K empurrão, chute, soco ou V V ^k surra -, sendo que 40% dos ■ ^B BV episódios haviam ocorrido ^ ^PJ Wr no ano anterior à entrevis^B| PJ ^JP^ ta. Quase metade relatou ter sido vítima de violência
■ Mais soja e calor na Amazônia A abertura acelerada de áreas para o plantio da soja tem ampliado rapidamente o desmatamento e alterado a capacidade da Anazônia em reter dióxido de carbono de modo intenso a ponto de afetar o clima regional, que se tornou mais seco e quente, de acordo com análises de pesquisadores da Nasa, com base em imagens de satélite. Essa situação é mais nítida no estado de Mato
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Grosso, onde as plantações elevam em três graus a temperatura média regional à medida que ocupam mais espaço, avançando sobre a floresta em um ritmo ditado pela variação dos preços da soja no mercado internacional. Por meio de dois estudos, um deles publicado no mês passado na revista PNAS e outro a sair na Earth Interactions, os pesquisadores concluíram que as plantações são um dos meios menos eficientes de absorver carbono da atmosfera. •
psicológica (insultos, humilhações ou ameaças) e 10% disseram que foram forçadas a praticar sexo, por intimidação ou de forma degradante. Os fatores de risco mais comuns são o uso de drogas pelo companheiro, o nível de escolaridade e a condição socioeconômica. Para os pesquisadores, esses problemas permanecem invisíveis para a rede pública de saúde, já que o registro de casos de violência é menor que o observado. As mulheres nem sempre vêem a violência de que são vítimas: quase metade contou já ter passado por alguma forma de violência, mas só 22% reconheceram o ocorrido como violência. •
■ Quando a morte é um bom sinal De repente apareceu um tamanduá andando pelos arredores da cidade de Assis, oeste paulista. Foi atropelado ao cruzar uma rodovia. Virou motivo para conversa, mas sua morte não deve ser apenas lamentada, porque é um sinal da recuperação das matas nativas, especialmente do Cerrado. Como agora é proibido por lei pôr fogo na vegetação, as matas que sobrevivem em
meio às plantações e pastagens podem engordar e às vezes se transformar bastante. As formas campestres do Cerrado o campo sujo e o campo cerrado, que lembram um pasto maltratado - tendem a desaparecer ou limitar-se a áreas pequenas, porque, deixadas em paz, dão espaço para vegetações mais encorpadas, como o
próprio Cerrado e o Cerradão, mais denso. Em um estudo publicado no Edinburgh Journal ofBotany, Giselda Durigan, do Instituto Florestal, e James Alexander Ratter, do Jardim Botânico de Edimburgo, atestaram essa mudança comparando fotos aéreas e imagens de satélite da região de Assis nos últimos 40 anos. Outros estudos realizados em São Paulo indicam que o Cerradão poderá predominar como resultado desse adensamento da vegetação, que pode
ser intenso a ponto de levar também ao desaparecimento de algumas espécies de plantas do Cerrado, em especial as que necessitam de mais luz (o Cerradão é mais escuro e mais úmido que o Cerrado). É possível prever que, com mais vegetação, apareçam mais animais. Motoristas, atenção. •
■ Gorduras rebeldes Só tomar remédios não basta para reduzir e manter baixos os níveis de colesterol no sangue. É preciso também controlar com mais freqüência as taxas de gordura no sangue e, quando necessário, ajustar a medicação, concluiu um estudo coordenado por Rodrigo Moreira, do Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia, do Rio de Janeiro. A análise de 412 prontuários em quatro centros de atendimento (um no Rio, dois em São Paulo e outro em Caracas, Venezuela) mostrou que, mesmo no grupo de 158 pessoas que tomavam estatinas, os medicamentos mais indicados nessas situações, as médias do colesterol total e triglicérides estavam acima dos limites capazes de evitar o entupimento dos vasos sangüíneos e o infarto. Uma das hipóteses levantadas é que o baixo nível socioeconômico dificulte o controle adequado dos lipídeos, mesmo que mais da metade das pessoas avaliadas receba a medicação gratuitamente. •
A cronista da ilha "Eu queria ver o mundo com olhos de ícaro", escreveu a bióloga Alpina Begossi em seu caderno em setembro de 1986, na primeira vez que foi à Ilha de Búzios, no litoral norte de São Paulo. Em dois anos ela ocupou com suas observações cinco cadernos contando outras 15 viagens de campo, que resultaram no livro Os diários de campo da Ilha de Búzios (Ed. Hucitec), assinado por ela e Eduardo Camargo, tenente-coronel da Polícia Militar do Rio que participa
■ Os sedimentos do rio Tietê Durante quatro anos as equipes coordenadas de Antônio Mozeto, da Universidade Federal de São Carlos, Wilson Jardim, da Universidade Estadual de Campinas, e de Gi-
METOBOSDE COIETA, ANÃ1ISES FÍSJtO QUÍMfCAS E ENSAIOS BKKÍKSICOS E EtOTOXKOlÓCICOS K SEDIMENTOS DE ACUA DOCE
com Alpina de pesquisas na Amazônia e na Mata Atlântica. Os relatos mostram que essa pesquisadora do Museu de História Natural da Unicamp, além de estudar a ecologia da ilha, soube ouvir o que os pescadores tinham a mostrar e contar sobre pescarias, peixes - enfim, a vida na ilha. Os diários mostram como ver o novo sem preconceitos e como colher informações sobre o dia-adia sem se preocupar só com o que vai entrar nos relatórios científicos. •
sela Umbuzeiro, da Cetesb, coletaram amostras de sedimentos de todo o rio Tietê, da cabeceira, na região de Salesópolis, à foz, no rio Paraná. A análise físico-química e biológica dos metais e compostos orgânicos dessas amostras possibilitou a criação de um sistema de avaliação da qualidade de sedimentos e estabeleceu valores que devem servir de padrão para os órgãos ambientais brasileiros. O resultado da pesquisa está no livro Métodos de coletas, análises físico-químicas e ensaios biológicos e ecotoxicológicos de sedimentos de água doce (224 páginas, R$ 73,50, Editora Cubo Multimídia, www.editoracubo.com.br, 16-3307-3828). •
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CIÊNCIA AGRICULTURA
A vassoura varrida Técnicas simples mostram como recuperar as plantações de cacau CARLOS FIORAVANTI(TEXTO) E EDUARDO CéSAR (FOTOS), DE ILHéUS
Alex Montenegro Maron visitou pela primeira vez no final de agosto as plantações de cacau de Edvaldo Magalhães Sampaio nos municípios de Nilo Peçanha e Piraí do Norte, sul da Bahia. Durante horas, Maron, fazendeiro formado em direito que passou pelo menos 40 de seus 66 anos administrando as plantações de cacau da família, observou como um professor severo os cacaueiros carregados de frutos que se espalhavam por todo lado praticamente sem sinais da vassoura-de-bruxa, a doença que há dez anos se nutre da fortuna dos produtores de cacau da Bahia, do Pará, de Rondônia, do Amazonas, de Mato Grosso e do Acre. Lá pelo meio da tarde, a camisa verde-clara pesada de suor, mas vendo que poderiam estar ali as saídas para recuperar as terras compradas pelo avô que viera do Líbano e vendia panelas e roupas de casa em casa antes de se tornar fazendeiro, Maron se rendeu: "Nunca vi nada igual". Seu filho Alex Maron, de 35 anos, também ficou admirado. Era a primeira vez que via o pai dar o braço a torcer. Edvaldo Sampaio, que aos 66 anos sobe e desce os morros da fazenda sem se cansar, pôs em campo um conjunto de técnicas agrícolas que mostram que é possível escapar do ataque do fungo causador da vassoura-de-bruxa, doença que ganhou esse nome porque deixa os ramos secos como uma vassoura velha. Seu trabalho casa-se com outras iniciativas que acenam com a perspectiva de a cacauicultura nacional reerguer-se em outros moldes - a diversificação impondo-se à monocul36 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP128
tura e o cacau deixando de ser apenas uma commodity para ser visto também como uma matériaprima refinada e de maior valor, como é feito há décadas com o café. Agora produtores de cacau e fabricantes de equipamentos e de chocolates se articulam com o propósito de inaugurar a produção, talvez já no próximo ano, do chocolate fino inteiramente nacional, mais saboroso e com teores de cacau até quatro vezes maiores que os de hoje - tão bons ou, que seja, quase tão bons quanto os legítimos chocolates suíços, aqueles que derretem vagarosamente na boca. Mas a cacauicultura quase morreu antes de mostrar sinais que pode agora germinar outra vez, com mais cuidados com o solo e com as próprias plantas, em meio à desolação deixada pela vassoura-de-bruxa. Detectado na região de Ilhéus em 1989, o fungo, então chamado de Crinipellisperniciosa e agora rebatizado de Moniliophtera perniciosa, fez a produção cair de 390 mil toneladas em 1988 para cerca de 100 mil em 2000. Terminava então a era dos coronéis do cacau, como eram chamados os fazendeiros mais ricos e poderosos - alguns deles haviam de fato comprado a patente de coronel do Exército. Sentiam-se imbatíveis a ponto de não acreditarem que as plantações escuras e úmidas pudessem ser atingidas por uma praga ou que os preços internacionais do cacau pudessem cair. Mas desabaram - de US$ 4 mil para US$ 600 a tonelada-justamente quando a doença se apossava dos 600 mil hectares das árvores que forneciam a matéria-prima para os chocolates do mundo. "Passamos de milionários a baganeiros", recorda Alex Maron, filho. A produção da fazenda da fa-
A flor de cacaueiro: lavouras renascem com cuidados intensivos com o solo e as รกrvores
mília em Itabuna passou de 17 mil arrobas em 1986 para míseras 400, em 1994 - dos cem funcionários, ficaram quatro. Das 250 mil pessoas empregadas nas quase 30 mil fazendas de cacau da região, 200 mil ficaram sem trabalho. Uma das heranças desse achatamento da pirâmide social são as casas de bambu, palha e plástico preto, ocupadas pelos desempregados, às margens das estradas próximas a Ilhéus, a antiga Roma do cacau. Outra vítima foi a Mata Atlântica do sul da Bahia, uma das poucas regiões do Nordeste que ainda abriga amostras desse tipo de vegetação. Para pagar dívidas, os fazendeiros derrubaram e venderam como madeira milhares de árvores da floresta que antes faziam sombra aos cacaueiros. Nessa época devem ter desaparecido de 100 mil a 150 mil hectares de mata nativa. Edvaldo Sampaio também sentiu o baque e quase foi ao desespero. Só em um mês, julho de 1999, deixou de colher um volume de cacau equivalente à carga de 10 caminhões, 10 mil arrobas, devoradas ainda no pé pelas colônias do fungo que havia acabado de chegar a suas fazendas nos arredores de Gandu, município próximo a Ilhéus. Por dois meses observou as plantas tentando descobrir o que fazer para não perder as terras em que, 12 anos antes, havia posto todo o dinheiro que tinha. Em setembro daquele ano, fez o que os outros fazendeiros faziam, mas em ritmo alucinante. Trabalhou de sol a sol com 25 peões para enxertar 117 mil hastes de clones - variedades resistentes à doença - nos cacaueiros que cobriam 320 hectares em suas quatro fazendas (cada hectare eqüivale a 10 mil metros quadrados). Dois anos depois, quando terminou, sentiu-se livre de um fantasma: "A miséria não me pega outra vez". A inquietação o levou muito além. Em uma espécie de tratamento intensivo, reforçou a adubação, podou as árvores e induziu o florescimento com o propósito de antecipar a colheita para o primeiro semestre do ano e assim escapar do ataque dos fungos, mais intenso no segundo semestre. Deu certo. Cercadas por plantações tomadas pela vassoura38 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 128
de-bruxa, que deixa as folhas com um vermelho pálido, como se tivessem sido queimadas, suas quatro fazendas exibem atualmente uma produtividade de até 80 arrobas de cacau por hectare - em média quatro vezes maior que a média do estado. Este ano devem produzir 15.200 arrobas, já perto das 19.300 arrobas anuais de antes da crise. "Em dois anos, quando recuperar a produção", anuncia, "vou organizar um foguetório que toda a Bahia vai ouvir". Contra as regras - Visto como um maluco que só fazia coisas erradas até o ano passado, quando seus resultados se tornaram conhecidos por meio de uma lis-
Fruto em agonia: fungo devorou três guartos da produção de cacau (ao lado)
ta de discussão sobre cacau na internet, Edvaldo Sampaio é um especialista em quebrar regras. Quando se recomendava plantar clones alinhados, esse agrônomo baiano nascido em Castro Alves os misturou para facilitar a polinização das flores e a frutificação. "Fiquei com medo", conta, "e pensei que desse jeito o risco de dar errado seria menor". Como se verificou mais tarde, à custa de uma queda brutal da produção, as árvores carregadas de flores não geravam frutos porque algumas variedades de clones eram incompatíveis e não polinizavam as flores da própria variedade. Enquanto outros produtores decepavam as árvores
originais para os clones crescerem mais rápido, Edvaldo só cortava os ramos mais finos e mais tarde os maiores. Resultado: até hoje em sua fazenda os tocos convivem com os clones já crescidos e produzem até dez frutos cada um. Outra ousadia foi resgatar o gesso, que ninguém mais usava, para fazer com que as raízes se aprofundassem e a planta pudesse se fortalecer contra o fungo. "O que Edvaldo fez mostra que existem soluções simples contra a vassourade-bruxa, fundamentadas cientificamente, e nos permite economizar pelo menos dez anos de trabalho", comenta Gonçalo Amarante Guimarães Pereira, coordenador de um laboratório do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e de uma rede de pesquisadores acadêmicos e de produtores de cacau interessados em vencer a vassoura-de-bruxa. Já aplicadas nas quatro fazendas de Edvaldo Sampaio - duas sob o mesmo clima quente e úmido de Ilhéus e duas sob um clima mais seco -, essas técnicas casaram com perfeição com as conclusões formuladas em laboratório ao longo de cinco anos sobre os mecanismos da doença e sobre como deter a destruição das plantas. Foi como se os testes de campo, que normalmente sucedem o trabalho científico, já estivessem prontos ao terminar a fase de pesquisa no laboratório. Muito simples, mas usadas no momento exato, de modo que permitam à planta driblar o fungo, as criações de Edvaldo Sampaio começam a ganhar a forma de tabelas e gráficos - e, experimentando agora o rigor científico, invertem o fluxo habitual da produção de conhecimento, que normalmente segue das instituições de pesquisa para as fazendas. Uma equipe da Unicamp acompanha desde o início deste ano o comportamento dos cacaueiros das fazendas de Edvaldo Sampaio para entender com precisão a eficácia das medidas que ele testou empiricamente. O entomologista Kazuiyki Nakayama e o fisiologista Paulo Marrocos coordenam outro grupo, do Centro de Pesquisas do Cacau (Cepec) da Comissão Executiva do Pla-
no da Lavoura Cacaueira (Ceplac), que iniciou em agosto um experimento com 2.400 cacaueiros de uma fazenda no município de Uruçuca, próximo a Ilhéus. Querem avaliar as inovações de Edvaldo Sampaio, às quais acrescentaram outras, para estimular a polinização das flores e gerar mais frutos. Os resultados preliminares devem sair em um ano e os finais em dois, segundo José Luis Pires, chefe do serviço de pesquisa da Ceplac. "Não temos nenhum constrangimento em aprender com os agricultores", comenta Pires, geneticista paulista que chegou a Ilhéus em 1987, pouco antes de começar a derrocada do império do cacau. Equipe confiante - As avaliações das propostas de controle da vassoura-debruxa vão correr sobre a base de conhecimentos que começou a ser construída em janeiro de 2000, quando Gonçalo Pereira lançou a idéia de entender e resolver a mais cruel das doenças dos cacaueiros estudando o conjunto de genes - ou genoma - do fungo que a causa. Sua equipe havia integrado o grupo que havia seqüenciado o genoma da bactéria Xylella fastidiosa, causadora de uma grave doença dos laranjais. O conhecimento e os equipamentos que haviam reunido ao longo desse trabalho pioneiro nutriam a confiança para lidar com um microorganismo cujo genoma logo se mostrou 13 vezes maior. Um ano depois, Gonçalo conseguiu R$ 1,2 milhão da Secretaria de Agricultura, Irrigação e Reforma Agrária (Seagri) do estado da Bahia e no ano seguinte mais R$ 1,3 milhão do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Lentamente ele foi tecendo a rede de pesquisa agregando competências comprovadas ou potenciais da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), em Ilhéus, da Ceplac, da unidade da Embrapa em Brasília, da Universidade Federal da Bahia (UFBa) e da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs). Ao mesmo tempo se reunia com produtores de cacau da Bahia e passava horas explicando as novas perspectivas de estudo da doença e mostrando que eram pouco fundamentadas as alternativas então alardeadas, segundo as quais água do mar ou urina de vaca eram ótimas contra o fungo que destruía as árvores de cacau. A rede de pesquisa expandiu-se em 2003 quando a Unicamp incorporou
uma lista de discussão sobre cacau - a lista do cacau. Criada em 1999 pelo produtor Deroaldo Boida de Andrade, a lista estava por ser extinta. Gonçalo Pereira, que assumiu como coordenador, via a lista como uma forma de comunicação rápida entre as pessoas ligadas à produção e comercialização de cacau, normalmente desunidas. Os cem nomes logo se tornaram 720 - não só de fazendeiros, como no início, mas também de processadores de cacau, pesquisadores, professores universitários, políticos, jornalistas, funcionários de órgãos públicos e consumidores. Por meio da lista é que o trabalho de laboratório e os ensaios em campo convergiram em agosto de 2005 em um caminho único de propostas de ação contra a vassoura-de-bruxa. Reconhecimento - Foi quando Edvaldo enviou aos outros integrantes da lista uma foto de um de seus cacaueiros, cheio de cacau. Outro integrante da lista, Edno Querino Câmara, pediu-lhe que explicasse o que era o risco no caule daquela árvore - um corte superficial, na altura do peito. Era o roletamento, um dos artifícios usados para induzir o florescimento e antecipar a safra, colhendo cacau sem fungo ainda no primeiro semestre de cada ano. Nem era o mais importante dos truques de Edvaldo, mas era 40 ■ OUTUBRO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 128
A morte e a esperança: cacaueiro doente, com folhas secas, e sadio, com folhas verdes e frutos
exatamente o que o pesquisador da Unicamp estava procurando. Gonçalo já sabia que o ciclo reprodutivo do fungo acompanha com rigor o crescimento da própria planta. Meses antes, ele havia tentado quebrar essa sincronia: apressou a maturação das flores pulverizando hormônios vegetais sobre as árvores. O experimento mobilizara cerca de cem homens e, três meses depois, deu em nada. Ao ler a mensagem na lista, porém, Gonçalo percebeu que estava diante da resposta às dúvidas que torturavam a ele e à sua equipe. E não pensou duas vezes antes de disparar uma mensagem reconhecendo que Edvaldo havia encontrado o que ele perseguia havia dois anos, comentando a lógica científica daquela técnica e concluindo, em vermelho: "Você encontrou a solução!" Por fim, pedia para que o fazendeiro descrevesse em detalhes o que havia feito para que os pesquisadores entendessem melhor como funcionava esse novo método de restabelecer a vida nos cacaueiros. O coordenador do Laboratório de Genômica e Expressão da Unicamp venceu a habitual prudência e foi tão incisivo porque tinha em mãos o mapa da
doença, elaborado a partir do genoma do fungo em conjunto com os outros grupos de pesquisa de São Paulo e da Bahia. Os pesquisadores detalhavam em quase 20 artigos científicos os mecanismos pelos quais a planta se defende, além de indicarem proteínas essenciais do fungo que, se bloqueadas, poderiam deter a doença. Havia assim desvendado as duas formas de comportamento do fungo, que no início da doença exibe uma personalidade calma e passiva, alimentando-se de tecidos vivos, e depois assume uma personalidade agressiva e tempestuosa, só se nutrindo de tecidos mortos. Justamente por já ter identificado genes e mecanismos bioquímicos pelos quais o fungo ataca e a planta se defende é que Gonçalo Pereira percebeu que as técnicas de Edvaldo deveriam funcionar. Meses depois, visitando as fazendas, verificou que realmente funcionavam. "Meu êxito vem de fazer tudo mais cedo", resume Edvaldo Sampaio. Ele poda os ramos dos cacaueiros entre outubro e dezembro, com os frutos terminando de amadurecer no pé, enquanto os produtores normalmente os podam alguns meses mais tarde, de janeiro a março, quando os esporos do fungo estão no ar, à espera de tecidos novos em que possam se alojar. Por causa da poda antecipada, os esporos encontram brotos já maduros e,
sem ter onde aderir, morrem. Mesmo que alguns esporos consigam aterrizar em tecidos novos, encontrarão uma planta bem nutrida, porque Edvaldo Sampaio aduba o solo com uréia, rica em nitrogênio, em março, no início das chuvas. O excesso de nutrientes apressa a mudança de fase do fungo, que assume a forma mais agressiva e se prepara para começar a se nutrir de tecidos mortos. Só que desta vez a planta está forte, resiste e impede o desenvolvimento do fungo. Desse modo é possível antecipar a colheita dos frutos - livres do Moniliophtera perniciosa - para maio, junho e julho. O corte superficial do caule é feito entre 15 de novembro e 15 de dezembro apenas com os cacaueiros mais antigos e a cada cinco ou seis anos. Riqueza relativa - Esses cuidados podem ajudar não só a cacauicultura a renascer, mas também a manter o que ainda resta de Mata Atlântica no sul da Bahia. Diferentemente de outras culturas agrícolas, o cacaueiro precisa de sombra - uma peculiaridade que levou ao método de cultivo conhecido como cabruca, em que o cacau é plantado em meio à vegetação natural. Vista do alto, a cabruca parece uma floresta fechada, embora não seja realmente uma mata nativa e nem sempre consiga preservar a diversidade biológica. A principal razão é que, para que os cacaueiros recebam a dose certa de umidade e luz, toda a vegetação mais próxima ao solo é cortada e só permanece uma em cada dez árvores mais altas. Com tão pouca mata original, só vivem por ali as espécies mais comuns de animais, especialmente aves e pequenos mamíferos. "As cabrucas refletem a diversidade das matas vizinhas", observa Deborah Faria, bióloga da Uesc. Anos atrás Deborah constatou que uma área pequena de cabruca diluída em meio à mata madura era muito rica em espécies de animais, que não distinguiam os limites entre as plantações e a floresta. Em 2002, por meio de um estudo publicado em fevereiro na Biodiversity Conservation, ela atestou uma situação oposta: áreas amplas de cabrucas dominando uma paisagem com pouca floresta nativa são pobres em diversidade de animais. "Somente se usadas adequadamente", ela concluiu, "é
que as cabrucas podem servir para preservar a biodiversidade". Edvaldo Sampaio estima que desde agosto do ano passado 1.500 fazendeiros e pesquisadores visitaram suas plantações. Pouco a pouco suas ousadias ganham outras terras. "Estou aplicando essas técnicas em minha fazenda e está dando certo", comenta Paulo Gonçalves, que cultiva 350 hectares de cacau em Linhares, Espírito Santo. Há também quem diga que esses remédios só se aplicam em condições específicas de solo e clima somadas a um perfeito adensamento e sombreamento das árvores. Ou que, por exigirem cuidados intensivos com a planta e o solo, podem ser caras - algo trágico para os proprietários, a maioria endividados ou em litígio com os bancos, por causa dos empréstimos que tomaram para implantar as saídas anteriores, que não deram certo. Edvaldo assegura que tudo o que faz é econômico, embora os custos ainda sejam incertos.
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rovavelmente ninguém foi mais impetuoso que ele em testar tantos artifícios ao mesmo tempo, mas outros produtores também criaram suas próprias receitas de adubação e plantio e lentamente substituem as árvores por clones mais produtivos e resistentes a doenças. Talvez neste caso as descobertas de cada um não possam se espalhar tanto porque a resistência das mesmas variedades de clones varie de uma fazenda a outra, provavelmente em razão do solo ou do microclima, de acordo com um experimento coordenado por Karina Gramacho na Ceplac. Ela colheu amostras de sete tipos de clones das próprias fazendas e as infectou com uma dose de esporos três vezes maior que a normalmente usada nos experimentos. Em um caso extremo, a resistência de um mesmo clone, o EET 392, variou de 20% a 100%, enquanto outro, o Scavinaó, exibiu uma resistência abaixo de 30%, mas quase igual para todos os isolados. Karina verificou: "Estamos lidando com um fungo com uma excepcional capacidade de adaptação". • > Leia também As duas faces da vassoura-de-bruxa e Sinais de renascimento no www.revistapesquisa.fapesp.br
de cacau fino: ja com gosto de chocolate
CIÊNCIA
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uem freqüenta as praias do rio Tietê no interior de São Paulo deve prestar atenção onde pisa. Há três anos banhistas e pescadores vêm dividindo esse espaço de lazer com arraias fluviais que, às vezes, causam dolorosos acidentes. Com o corpo em forma de disco, esse peixe de até 30 quilos costuma se enterrar na lama nas regiões rasas do rio. Quando um turista distraído pisa seu corpo, leva uma ferroada. Não que a arraia seja agressiva. Mas o pisão aciona um mecanismo involuntário de defesa do peixe, que agita seu longo rabo e acaba enterrando o ferrão na perna ou no pé do banhista - a morte em setembro do zoólogo e apresentador de TV australiano Steve Irwin, vítima de uma ferroada no peito desferida por uma arraia marinha, é um caso raro. Com quase 10 centímetros de comprimento, o ferrão da arraia fluvial é uma estrutura óssea em forma de faca serrilhada, recoberto por um tecido glandular que se rompe na ferroada e libera o veneno no organismo da vítima. O aumento desse tipo de acidente nos últimos anos levou uma equipe de pesquisadores paulistas a investigar as características dos ferimentos e do próprio veneno desse peixe, que até alguns anos atrás não freqüentava o Tietê.
Veneno de ferrão de arraia fluvial provoca dor, inchaço e necrose
Como um punhal IRACEMA CORSO
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Análises coordenadas pela biomédica Kátia Cristina Bárbaro, do Laboratório de Imunopatologia do Instituto Butantan, mostraram que o veneno da arraia fluvial (Potamotrygon falkneri) é mais tóxico que o de uma arraia marinha encontrada em todo o litoral brasileiro: a Dasyatis guttata, mais conhecida como arraia-bicuda ou arraia-prego. Para avaliar os efeitos de uma ferroada, a equipe de Kátia aplicou doses iguais de veneno de cada uma dessas espécies em grupos diferentes de camundongos. Um dia após injetar o veneno da arraia fluvial em quatro camundongos, só dois continuavam vivos. No segundo dia, todos estavam mortos. Já os roedores que haviam recebido o veneno da arraia-bicuda sobreviveram. Os testes mostraram ainda que os venenos de ambas as espécies provocam inchaço e dor intensa. Só a penetração do ferrão, aliás, já causa um ferimento profundo que arde como fogo. Mas é o veneno que contribui para que a dor, comparável à de uma facada, estenda-se por até 24 intermináveis horas. Não bastassem esses efeitos nada agradáveis, o veneno da arraia fluvial também causa a morte do tecido (necrose) na região da ferroada, além de lesão muscular. Em geral são necessários até três meses para a cicatrização completa do ferimento. Kátia também notou que o veneno da Potamotrygon falkneri parece se espalhar mais facilmente no organismo. É que um de seus componen-
tes é a enzima chamada hialuronidase, que ajuda a dispersão das toxinas. A hialuronidase dissolve um composto gelatinoso - o ácido hialurônico - que mantém unidas as células dos tecidos. Estudando a morfologia do ferrão e o tecido que o envolve, a equipe do Butantan, com o auxílio de pesquisadores do Laboratório de Biologia Celular, constatou que a arraia de água doce também pode liberar maior quantidade de veneno em uma ferroada porque seu ferrão é todo recoberto por tecido glandular produtor de veneno. Já no ferrão da arraia marinha o tecido glandular restringe-se a apenas dois pontos. Marcela da Silva Lira, bióloga do grupo de Kátia, tenta atualmente produzir um soro capaz de combater a atividade do veneno da arraia de água doce e reduzir seus efeitos. Embora ainda não se tenha chegado ao antídoto, há uma boa notícia. Nos testes feitos no Butantan, o veneno da Potamotrygon e o da Dasyatis estimularam o organismo de coelhos a produzir anticorpos. "É um sinal de que o soro pode neutralizar o veneno das arraias", diz Kátia. Origem remota - Apesar da diferença aparente- a Dasyatisguttata tem o corpo em forma de triângulo e pode atingir o triplo do tamanho da arraia de água doce -, imagina-se que essas duas espécies tiveram um ancestral comum que viveu no mar e chegou ao continente entre 20 milhões e 10 milhões de anos
O PROJETO Estudos comparativos entre glândulas secretoras de venenos de arraias fluviais (gênero Potamotrygon) e arraias marinhas (gênero Dasyatis) MODALIDADE
Linha Regular de Auxílio à Pesquisa COORDENADORA KáTIA BáRBARO
- Instituto Butantan
INVESTIMENTO
R$ 37.750,00 (FAPESP)
atrás, quando o oceano Atlântico ocupava parte das atuais regiões Sul e Centro-Oeste do país. Até pouco tempo atrás, as quase 20 espécies de arraias fluviais existentes no Brasil eram encontradas apenas nos rios Paraná, Paraguai, Araguaia, Tocantins e na bacia amazônica. Acredita-se que a construção de barragens das hidrelétricas da bacia dos rios Paraná e Tietê nas últimas três décadas tenha favorecido a migração das arraias até pelo menos a região de Presidente Epitácio e Castilho, no interior de São Paulo. Foram os acidentes com a P. falkneri no alto rio Paraná que chamaram a atenção dos médicos João Luís Costa Cardoso, do Hospital Vital Brazil, e Vidal Haddad Júnior, da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista
(Unesp) em Botucatu, para a chegada desse peixe ao interior de São Paulo. Cardoso e Haddad decidiram procurar Kátia após verificar que as pessoas ferroadas pela arraia fluvial desenvolviam necrose semelhante à causada pelo veneno da aranha-marrom (Loxoscelessp), estudada pela pesquisadora. Do primeiro contato para cá, Kátia tornou-se uma das coordenadoras da rede que acompanha os acidentes com a arraia de água doce no Paraná, no Mato Grosso do Sul e em São Paulo e investiga o impacto ambiental provocado por esse peixe. Em colaboração com Patrícia CharvetAlmeida, ela estuda também o veneno de arraias do Pará. Enquanto não se produz um antídoto para o veneno das arraias, os pesquisadores aprendem a amenizar a dor das ferroadas com os ribeirinhos, que costumam mergulhar a perna ou o braço ferido pelo ferrão em uma bacia com água quente. A água quente diminui a dor porque o veneno da arraia é sensível ao calor, como Kátia comprovou em experimentos de laboratório. Essa estratégia simples, porém, não impede a necrose na região do ferimento - no caso dos pescadores, geralmente a mão ou o braço, atingidos quando tentam livrar o peixe da rede ou do anzol. Incomodados pelos acidentes ou ainda pouco habituados ao peixe recém-chegado, os ribeirinhos e freqüentadores do Tietê não apreciam a presença das arraias nem sua carne, embora seja muito saborosa. •
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Arraia fluvial (Potamotrygon sp): ilustração do naturalista britânico Alfred Wallace, que percorreu o rio Negro entre 1850 e 1852
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©CIÊNCIA MEDICINA
Mais atenção ao
coração feminino Maioria dos médicos não alertam mulheres para o risco de infarto, embora mortalidade seja próxima à masculina RICARDO ZORZETTO
Andam tratando mal o coração das mulheres. Estudos realizados na Europa e nos Estados Unidos indicam que ainda hoje a saúde cardíaca feminina recebe menos atenção que a masculina, embora o infarto seja há anos considerado uma das principais causas de morte no mundo todo - e não apenas entre os homens. Dos 7,2 milhõesde pessoas que a cada ano perdem a vida em conseqüência de problemas cardíacos, cerca de 3,4 milhões são mulheres, segundo dados da Organização Mundial da Saúde. Apesar de os números sugerirem que a diferença não é tão grande assim, boa parte dos médicos ainda não parece estar convencida. Uma das provas mais contundentes é um estudo publicado no primeiro semestre deste ano na Circulation, a mais importante revista em cardiologia clínica. Parte do projeto Women at Heart, lançado em 2005 pela Sociedade Européia de Cardiologia com o objetivo de chamar a atenção dos médicos para a saúde cardiovascular da mulher e aprimorar o tratamento dispensado a elas, o estudo envolveu a colaboração de 197 centros de cardiologia europeus e acompanhou durante um ano o atendimento dado a 2.197 homens e 1.582 mulheres, com idade entre 50 e 72 anos e diagnóstico de angina peitoral: aquela intensa dor no peito que queima feito brasa e se espalha 44 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 128
para o pescoço e as costas, causando falta de ar e deixando o braço esquerdo dormente - em geral o primeiro sinal de que o coração não anda nada bem. O trabalho mostrou que na consulta inicial a probabilidade de receber indicação para passar por um teste em que se acompanha o desempenho do coração durante o esforço físico - eletrodos colocados no peito registram o ritmo dos batimentos cardíacos enquanto se caminha em uma esteira - foi menor entre as mulheres do que entre os homens. Elas também receberam menos indicação de passar por um exame chamado angiografia, que investiga o estado das artérias do coração, do que os voluntários do sexo masculino. Os médicos prescreveram com mais freqüência medicamentos para evitar a coagulação do sangue ou reduzir o nível de colesterol para os homens do que para as participantes do estudo, mesmo depois de confirmado o diagnóstico de doença cardíaca. Entre as mulheres foi menor a chance de receber um implante de vasos para restabelecer o fluxo de sangue para o coração. Como já se deveria esperar, o risco de sofrer um infarto - fatal ou não foi duas vezes maior entre as mulheres do que entre os homens.
"Os resultados desse estudo indicam uma subutilização sistemática de métodos diagnósticos e de tratamentos com as mulheres em comparação com os homens, embora ambos os grupos tivessem recebido o diagnóstico de cardiologistas e a angina das mulheres fosse mais intensa", escreveu a epidemiologista Viola Vaccarino, da Universidade Emory, Estados Unidos, em um comentário sobre o estudo publicado na mesma edição da Circulation. Segundo a epidemiologista, a menor utilização de exames nãoinvasivos no estágio inicial da doença traduz-se em atraso no diagnóstico e em danos mais graves à saúde. "É importante combater a crença disseminada de que as mulheres não desenvolvem doenças cardíacas, exceto em idade avançada", escreveu Sharonne Hayes, da Clínica Mayo, Estados Unidos, em artigo publicado este mês na Nature Clinicai Practice. Talvez seja cedo para afirmar, mas o trabalho da Circulation pode justificar uma descoberta feita por Viola Vaccarino no final da década passada. Analisando dados de 380 mil pessoas com idade entre 30 e 89 anos que haviam sofrido
infarto, ela constatou que a perspectiva de recuperação era pior entre as mulheres que entre os homens - a situação era ainda mais crítica para aquelas em que o problema havia surgido antes dos 60 anos. Também levantou duas possíveis explicações para esse cenário: o diagnosticado é muito tardio entre as mulheres ou só se identificam os casos graves. xceto essa dúvida que intriga pesquisadores do mundo todo, o estudo europeu deixa - ou deveria deixar- mais alertas os cardiologistas, ginecologistas e os outros médicos que cuidam da saúde feminina nos países desenvolvidos e também no Brasil. Afinal, por aqui as doenças do coração também estão entre as que mais ceifam vidas desde a década de 1960 - perdem apenas para o acidente vascular cerebral, também conhecido como derrame. E a proporção entre os sexos de morte por problemas cardíacos não é tão desigual: para cada duas mulheres que morrem por infarto três homens se vão porque o coração deixa de bater de um momento para outro. Registros do banco de dados do Sistema Único de Saúde (DataSUS)
indicam que as mulheres somam 40% das 80 mil pessoas mortas por infarto em 2004 - entre elas, os problemas cardíacos estão até mesmo à frente do câncer. Em algumas capitais brasileiras a taxa de mortalidade por problemas cardíacos superava, em meados da década de 1980, os índices masculinos de países como a Inglaterra e a Finlândia, constatou o epidemiologista Paulo Lotufo, superintendente do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (USP). É uma situação que mudou pouco nas duas últimas décadas. "Nesse período houve redução na taxa de mortalidade por doenças cardíacas, mas foi pequena", afirma o cardiologista Antônio de Pádua Mansur, do Instituto do Coração (InCor) de São Paulo, que há sete anos iniciou os levantamentos sobre os riscos de morte por doenças cardiovasculares no país. Incomodado com a falta de informações abrangentes sobre a nossa população, Mansur analisou os atestados de óbito dos brasileiros com mais de 30 anos que morreram de 1979 para cá. E não gostou do que viu: as mortes causadas por infarto baixaram de 194 em cada grupo de 100 mil homens em 1979 para 164 por 100 mil em 1996. Entre as mulheres, a queda foi menor: de 119 pa-
ra 105 por 100 mil. O levantamento mais recente, a ser publicado ainda este ano, confirma a tendência de queda lenta e gradual observada desde 1985: a taxa de mortalidade por doenças cardíacas, desta vez entre mulheres com mais de 65 anos, passou de 857 para 522 por 100 mil entre 1981 e 2001 na Região Sudeste, provavelmente por causa do melhor controle da hipertensão e dos níveis de colesterol, que contribuem para o bloqueio dos vasos que levam sangue ao coração. Capitais - A redução, porém, não é geral. Quando se separam as mortes registradas nas capitais das ocorridas nas cidades do interior, torna-se evidente o crescimento da mortalidade por infarto entre as mulheres com idade entre 30 e 69 anos nos grandes centros urbanos, como São Paulo e Brasília. "Esse aumento está, em parte, associado à maior precisão no preenchimento dos atestados de óbito nas regiões Centro-Oeste e Sudeste, mas também à alimentação menos saudável e ao sedentarismo", diz Mansur, coordenador do Núcleo de Estudo e Pesquisa do Coração da Mulher, do InCor. Conhecidos dos cardiologistas, esses números preocupam porque são novidade para a maioria das pes-
soas e mesmo para médicos de outras especialidades. Embora não existam dados sobre o que os brasileiros - e em especial as brasileiras - sabem a respeito dos problemas cardíacos, calcula-se que a situação não seja melhor do que na Europa e nos Estados Unidos, onde menos da metade das mulheres afirma já ter recebido alguma orientação de seus médicos para evitar as doenças cardiovasculares. Por trás desse desconhecimento quase geral estão razões históricas e sociais. "As doenças cardiovasculares revelaramse uma causa importante da mortalidade masculina após a Segunda Guerra", diz Lotufo, da USP. "Naquela época os homens fumavam e as mulheres não." Nas décadas seguintes o cigarro, o principal desencadeador dos problemas cardiovasculares nas mulheres, passou a enfeitar também os lábios femininos, ao mesmo tempo que os avanços médicos permitiram às pessoas viver cada vez mais. "Havia um certo descuido com a saúde da mulher até o final da década de 1980", conta Lotufo. Foi quando os cardiologistas começaram a notar que os problemas cardiovasculares também eram comuns entre elas, com conseqüências para toda a sociedade: as doenças
cardíacas são a segunda principal causa de perda de anos saudáveis de vida entre homens e a terceira entre mulheres. "Não era raro uma mulher de meia-idade chegar ao pronto-socorro com dor no peito e o médico não pensar em infarto", lembra o médico e epidemiologista Júlio César Pereira, da Faculdade de Saúde Pública da USP. "Era um círculo vicioso em que o cachorro tenta morder o próprio rabo", diz Lotufo, "o médico não fazia diagnóstico porque não pensava na possibilidade de as mulheres serem vítimas do infarto; como não imaginavam essa hipótese, não produziam estatísticas sobre o problema, o que, por sua vez, colaborava para a falta de diagnóstico". Felizmente a saúde feminina passou a receber mais atenção nos últimos 15 anos, inclusive das próprias mulheres, quando os médicos notaram algo estranho: a probabilidade de receber tratamento para o infarto era cerca de seis vezes maior entre o público masculino que o feminino. Ou o coração das mulheres era mais resistente que o dos homens, ou havia algo errado. Com essa questão em mente, os coordenadores de grandes estudos populacionais passaram a incluir as mulheres em pesquisas que investigavam o surgimento, a evolução e a terapia de diversas doenças. Até então vigorava a idéia de que o organismo feminino funcionava como o do homem: bastava investigar o que se passava com eles para saber o que deveria ocorrer com elas - embora se saiba que o corpo do homem e o da mulher reagem de modo distinto às doenças desde os tempos de Hipócrates de Cós, o pai da medicina. Uma nova leva de estudos que surgiram no início da década de 1990 mostrou que o coração feminino não era tão forte assim, ajudando médicos e pacientes a reverem conceitos e preconceitos, como o de que o infarto era problema exclusivo da população masculina. Hoje se sabe que há diferenças importantes: os problemas do coração se manifestam nos homens de sete a dez anos mais cedo que nas mulheres. Esse intervalo coincide com o período que se passa desde o final da vida reprodutiva feminina com a menopausa, quando os ovários param de funcionar e a taxa dos hormônios reprodutivos femininos cai muito. 48 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP128
Essa, aliás, foi durante muito tempo a justificativa biológica para o descuido em relação à saúde da mulher. organismo feminino produz até por volta dos 50 anos o hormônio estrógeno, que facilita a dilatação dos vasos sangüíneos e a irrigação do coração, ainda que as artérias que o banham de sangue estejam parcialmente obstruídas por placas de gordura. "Por essa razão se acreditava que as mulheres estivessem livres do problema", diz Pereira, que recentemente calculou a provável duração dessa proteção natural. Em colaboração com o matemático Laécio Carvalho de Barros, da Universidade Estadual de Campinas, ele analisou os dados de 3.350 pessoas de 54 cidades brasileiras que haviam sofrido infarto entre outubro de 1997 e novembro de 2000. Constatou que aos 23 anos de idade o homem corre duas vezes mais risco de sofrer um infarto do que a mulher. Essa probabilidade, porém, diminui lenta e progressivamente até por volta dos 61 anos, quando as mulheres encontramse tão propensas quanto os homens a ser vítima de entupimento dos vasos sangüíneos do coração, provocando sua parada, segundo resultados publicados em abril deste ano no European Journal of Epidemiology. Depois dos 61 anos, o infarto passa a ser uma ameaça maior para o sexo feminino que para o masculino: uma senhora de 80 anos está duas vezes mais próxima de um ataque cardíaco do que um homem da mesma idade. Cautela - Mas é preciso interpretar esses dados com cautela. "Esses números são uma medida de risco relativo e indicam quantas vezes a probabilidade de infarto é maior nos homens que nas mulheres", explica Pereira. "O que mede a gravidade do problema é o número de mortes observadas na população." Além disso, há uma limitação nesse estudo. Feito com base em informações de pessoas que sofreram infarto, seus resultados não representam necessariamente o estado do coração dos brasileiros. Mesmo assim, dão uma idéia de quanto dura o efeito protetor do estrógeno. "Os médicos", diz Pereira, "devem ficar mais atentos ao coração das mulheres com mais de 61 anos".
No InCor, Mansur e José Antônio Ramires, em colaboração com José Mendes Aldrighi, da Faculdade de Saúde Pública da USP, confirmaram o efeito protetor do estrógeno em um estudo publicado em 2005 nos Archives of Medicai Research. Eles observaram que uma variante do gene responsável pela fabricação da proteína à qual o estrógeno se liga nas paredes dos vasos sagüíneos era mais comum entre as mulheres com doença cardíaca precoce, antes dos 55 anos, do que nas saudáveis. Mas a proteção do estrógeno não é tudo. Em outro estudo, avaliaram os fatores de risco mais freqüentes em 850 homens e 468 mulheres com pouca vascularização do músculo cardíaco. As mulheres geralmente apresentavam mais problemas considerados fatores de risco para o infarto, como hipertensão arterial, diabetes, níveis de gorduras (triglicérides e colesterol) aumentados, além de histórico familiar de problema cardíaco. Entre os homens, os fatores de risco que mais contribuíram para a doença cardíaca foram o tabagismo e a ocorrência anterior de um infarto. "Esse número maior de fatores de risco pode explicar a maior freqüência de mortes súbitas entre as mulheres e a maior mortalidade feminina após o infarto", diz Mansur. "O lado positivo é que os fatores de risco são menos intensos entre elas." Esse resultado sugere que muitas mulheres podem viver melhor, apenas com o controle dos fatores de risco. Nada muito complicado. Basta ter acesso a um posto de saúde em que se avalie a pressão arterial e os níveis de açúcares e gorduras no sangue. "Essas medidas não impedem o problema cardíaco, mas possivelmente o adiam por algumas décadas, reduzindo o custo social e a deterioração da qualidade de vida associados à doença", diz Mansur. Uma idéia mais precisa do que se passa com o coração das brasüeiras e dos brasileiros deve surgir em alguns anos, quando, espera-se, estejam prontos os resultados iniciais do Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto (Elsa). Esse levantamento, que envolve a participação de sete instituições de pesquisa, deve acompanhar por dez anos a saúde de aproximadamente 15 mil pessoas de seis capitais brasileiras (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Vitória, Porto Alegre e Salvador). •
fundação Casa de Cabangu/Eu Naveguei pelo Ar (nova Fronteira)
Especial
De tão ousado, às vezes Alberto Santos-Dumont parecia sobre-humano. O inventor do primeiro aparelho mais pesado que o ar a decolar, voar e aterrissar por seus próprios meios desvendou se gredos importantes da navegação aérea. Entre 1898 e 1910, era visto com freqüência nos céus da França, ora em uma pequena cesta de balão apre ciando a paisagem e demons trando a viabilidade do trans porte pelos ares, ora voando com o elegante ultraleve De moiselle sobre os campos dos arredores parisienses. É consen so entre pesquisadores da área que o brasileiro foi quem mais Neldson Marcolin contribuiu para o desenvolvi mento da aeronáutica nos seus primórdios. Neste ano do centenário do vôo do 14-Bis, Pesquisa FA PESP lembra a parte principal de sua trajetória, resgata algumas histórias pouco conhecidas e conta novidades, como a descoberta de um ma nuscrito inédito do genial inventor.
100
anos no ar
Em ares nunca dantes navegados Os construtores de balões Henr i Lachambre e Alexis Machuron est ranhar am o projeto de seu primeiro balão esférico, o Brasil. “O projeto surpreendeu os dois porque II
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Musée De L`Air
acervo do Museu Paulista da universidade de são Paulo
Musée De L`Air
Q
uando Alb erto SantosDumont const ruiu seu primeiro balão, em 1898, já hav ia aeronautas nos céus da Europa. Jovem, rico e solteiro, o brasileiro poderia ter sido apenas mais um a desfrutar da agradável sensação de se deixar levar pelo vento, vendo o mundo de cima. Mas Du mont queria mais: desejava determinar a direção de seu destino. Inovações e adapta ções feitas em um tempo ina creditavelmente curto o leva ram a inventar dirigíveis e, posteriormente, aviões. Em pouco mais de dez anos de atividades Dumont foi quem mais contribuiu para o de senvolvimento da aeronáuti ca quando se duv idava da possibilidade de um aparelho mais pesado que o ar voar. O inventor nasceu em 1873 no sítio Cabangu, na cidade mi neira de Palmira, hoje SantosDumont, e começou a se inte ressar por balões em 1888, ao ver um deles em São Paulo. Em 1892 fixou morada em Paris, após a morte do pai. Estudou informalmente física, química, mecânica e eletricidade com um preceptor chamado Garcia. Interessado em tecnologia, aficion ado por todos os tipos de máquinas e leitor de Júlio Verne, em 23 de março de 1898 Du mont finalmente realizou seu sonho e ascendeu em um balão, em Paris, como passageiro. De pois de tornar-se um experiente balonista, decidiu que já era a hora de ter seu próprio balão. No mesmo ano mandou cons truir dois deles, esféricos, e fez o primeiro dirigível com um mo tor de sua invenção.
O inventor sobre a fuselagem do nº 9 (no alto); o pequeno Brasil (acima, à esquerda); e na cesta do nº 1, com o primeiro motor a gasolina: ousadia
acervo do Museu Paulista da universidade de são Paulo/Eu naveguei pelo ar (nova Fronteira)
O nº 5 contornando a Torre Eiffel, em 1901: Santos-Dumont quase ganhou o Prêmio Deutsch com ele, feito realizado com o nº 6
o Brasil era todo ele inova ção: tecido diferente, cesta pequena, tamanho extrema mente reduzido”, diz o físico Henrique Lins de Barros, do Centro Brasileiro de Pesqui sas Físicas (CBPF), principal especialista em Santos-Du mont no Brasil, autor de San tos-Dumont e a invenção do vôo (Jorge Zahar Editor) e roteirista do documentário O homem pode voar, de Nel son Hoineff (2006). Barros lança este mês mais um livro: Desafio de voar – pioneiros bras il eiros da aeron áut ic a (1709-1914), da Metalivros. Dumont começava com essa pequena aeronave a im primir um estilo de inventor que virou sua marca: a extre ma simplicidade, leveza e ele gância dos projetos. Foi assim com o dirigível nº 1, quando ele, contra a opinião de todos os aeronautas e construtores, decidiu que deveria instalar um motor a gasolina com hé lice acoplado à cesta. A alega ção era a temeridade que se ria colocar uma máquina que libera faíscas tão perto do hi drogênio, altamente inflamá vel. Ele resolveu a questão dirigindo o cano de escapa mento para baixo. Simples, eficaz e seguro. Em 19 de outubro de 1901, o inventor ganhou o Prêmio Deutsch com o dirigível nº 6. A prova consistia em sair de Saint-Cloud, cir cundar a Torre Eiffel e voltar ao ponto de partida em 30 minutos – demonstração de finitiva de que era possível navegar pelos ares. Ao todo, Dumont construiu mais de 20 aparelhos, entre balões e aviões. Uma car acterística importante do brasileiro: ele divulgava os planos de suas criações e não patenteou ne nhuma delas no campo da aeronáutica. “Este foi um dos motivos que favoreceu de maneir a impressionante o desenvolv imento da avia ção”, diz Barros.
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Fundação Casa de Cabangu/Eu naveguei pelo ar (nova Fronteira)
> Um dândi cria
moda em Paris
Santos-Dumont foi um refina do homem de sociedade. A he rança deixada pelo pai, Henri que Dumont, permitiu a ele usar sua criat ividade não só para construir balões e aviões, mas também para vestir-se com esmero e freqüentar a alta soci edade parisiense. Os trajes do inventor estavam sempre impe cáveis, mesmo quando traba lhava com motores ou madeira. Seus ternos riscas-de-giz, o co larinho alto, sapatos com salto (para parecer mais alto) e cha péu com a aba abaixada o tor navam facilmente reconhecido por onde passava. Seu estilo combinava à perfeição com a Belle Époque, então em pleno curso na França. Por essa época, o brasileiro ajudou a lançar um acessório que se tornaria obrigatório. Em uma recepção no restau rante Maxim’s, em 1904, co mentou com o amigo Louis Cartier que, em pleno vôo, era difícil pegar o relógio para cronometrar o tempo. Cartier mandou fazer um protótipo que pudesse ser usado no pul so e o batizou de “modelo Santos”. Essa, porém, não foi uma inovação absoluta de Dumont – algumas mulheres já usavam relógio no pulso, mas sem sentido prático, ape nas como se fosse uma jóia.
> Acidentes viram
eventos
Santos-Dumont tinha um modo particular de divulgar a aerost aç ão e a aviaç ão. Quando construiu o dirigí vel nº 9, o Balladeuse (anda rilho), ele o estacionava di ante de seu apartamento, na esquina da rua Washington com a avenida dos Champs Elysées, para tomar um café em casa, enquanto a multi dão parava para aplaudir. Ou o usava para ir almoçar no restaurante La Cascade, pró IV
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> Cataratas do Iguaçu tornam-se parque Em 1916 Santos-Dumont es tava com 42 anos, afastado da aviação e em viagem pela América do Sul. Visitou o Chi
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le, passou pela Argentina e acabou hospedado no Hotel Brasil, de Foz do Iguaçu, de Frederico Engel. No dia 24 de abril, Engel e seu filho o leva ram para conhecer as catara tas do Iguaçu para onde segui ram a cavalo em viag em de quatro horas por uma picada. O inventor encantou-se com o que viu, mas não entendeu como aquele espetáculo estava em terras que pertenciam a uma única pessoa – no caso, o uruguaio Jesus Val. Dumont prontificou-se a convencer o então presidente do estado do Paraná, Afonso Camargo, a desapropriar o lo cal. Como não havia estradas nem ferrovias que ligassem a então Vila de Iguaçu a Curiti ba, ele seguiu a cavalo – dormindo e comendo sabe-se lá como – por 300 quilômetros a linha do telégrafo, instalada pelo Exército, até Guarapuava. A viagem, feita em companhia de um guarda-postes, durou seis dias. De Guar apuava seguiu de carro até Ponta Grossa e de lá a Curitiba, de trem. Ca margo o recebeu no dia 8 de maio. “No dia 28 de julho de 1916, por meio do decreto 653, o presidente do estado do Paraná desapropriou as terras junto às cataratas do Iguaçu e as declarou de utili dade pública para criação de um parque”, diz Mário Ran gel, ex-piloto e empresário. Rangel foi o idealizador e promotor, em 1973, de um concurso nacional sobre do cumentos relat ivos a Du mont realizado em Curitiba. “Essa história, até então esquecida, foi enviada por carta por Elfrida Rios, filha de Frederico Engel, com có pia do livro de hóspedes do hotel e ganhou o segundo lu gar no concurso.” Hoje as ca taratas fazem parte do Parque Nacional do Iguaçu, criado em 1939, e foram declaradas pela Unesco como Patrimô nio Natural da Humanidade.
acervo do Museu Paulista da universidade de são Paulo
ximo a Longchamps. “Essa atitude não era mero capri cho ou exibicionismo, mas um modo muito eficiente de mostrar um novo meio de transporte, que podia ser rá pido e seguro”, diz o físico Henrique Lins de Barros. Quando ocorriam os inevi táveis acidentes com seus dirigí veis, ele tratava, em suas narra tivas e comentários, de dar mais ênfase aos fatos periféricos e, ao mesmo tempo, minimizar o acontecimento principal. Em agosto de 1901, por exemplo, o nº 5 caiu de 32 metros de altura quando estava sobre o Hotel Trocadero. O aeronauta ficou pendurado a 15 metros e con seguiu subir por uma corda (foto à esquerda). Dumont aju dou os bombeiros a recuperar os restos do balão e ainda teve presença de espírito para testar o motor. Em carta, agradeceu ao comando do regimento: “Mi nha aterrissagem sobre os tetos de Paris, onde seus valentes bombeiros exercem tão cons tantemente a sua coragem colo cando em risco suas vidas, for neceu-me ocasião de apreciálos em circunstância tão nova tanto para eles como para mim”. Em out ra ocas iã o, em 1909, ele saiu com um De moiselle para passear e foi longe demais. Perto da noite, foi obrigado a pousar nos jardins do castelo do conde de Gallard. Ao narrar o ocor rido, Dumont lamenta, com ironia, a falta de sinais indi cativos do Touring Club nos ares. E reconhece o “inconve niente” do aeroplano para as visitas sociais: “Sem chapéu, com roupa do trabalho azul, cheio de graxa e de óleo, tal era meu equipamento para minha apresentação”.
No alto, pouso defronte do castelo de Wideville Davron, com seu Demoiselle, em 1909; no meio, com amigos e amigas da alta sociedade; acima, fazendo a refeição em mobiliário criado por ele: excentricidade
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A polêmica que se arrasta por um século não existe para os que se inteiram dos detalhes da história da invenção do vôo. Santos-Dumont foi de fato o primeiro a voar por seus próprios meios, com de colagem e pouso autônomos. Em 23 de outubro de 1906, o 14-Bis percorreu 60 metros a 3 metros de altura, após cor
Estados Unidos, teriam voa do em 17 de dezembro de 1903. Segundo seu próprio relato, atingiram 258 metros em 59 segundos contra ven tos fortes na praia de Kill De vil Hills, em Kitty Hawk, na Carolina do Norte. Toda a documentação sobre fato tão importante não passou de um telegrama e a presença
“Hoje há uma modalidade de aeroplano que se encaixa bem nisso, chamado motopla nador, que não decola sozinho”, diz o físico Henrique Lins de Barros. Uma vez no ar, ele voa muito. “Em 1908, os aviões franceses voavam 10 km; os Wright chegaram a 124 km.” A diferença entre os vôos de Dumont e o dos Wright é
O primeiro vôo, agora sem polêmica rer cerca de 100 metros no Campo de Bagatelle, em Pa ris (foto desta página). Em 12 de novembro voou por 220 metros, no mesmo lugar, e estabeleceu o primeiro recor de da aviação para velocida de: 41,3 quil ôm et ros por hora. O feito foi homologado pela Federação Aeronáutica Internacional (FAI), criada em 1905. Os irmãos Orville e Wil bur Wright, mecânicos de bicicleta de Dayton, Ohio,
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de alguns salva-vidas que proc ur av am dest roç os de um navio. Com o declarado objetivo de guardar segredo sobre o invento para vendêlo a uma potência militar, eles só se apresentaram pu blicamente em 1908. O pro blema é que, para decolar, o Flyer sempre dependia de alguma ajuda externa, como a de uma catapulta para fazêlo correr sobre trilhos e, aí sim, sair do chão com a aju da de ventos fortes.
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importante para entender o caso. “Em 1905 aeroclubes do mundo inteiro regula mentaram as condições que um vôo precisaria satisfazer para ser validado”, explica Rodrigo Moura Visoni, da UniRio, estudioso do assun to. De acordo com essas re gras, o vôo deveria ser públi co e anunciado com antece dênc ia, feito com temp o calmo e sobre terreno plano. A altura e o tempo de per manência no ar não seriam
considerados fatores desclas sificatórios, mas a decolagem teria de ser desassistida e o pouso sem acidentes. Um comitê idôneo acompanha ria tudo. “Apenas o avião de Dumont cumpriu todas es sas normas e voou diante de centenas de outras pessoas.” O nome surgiu quando ele foi acoplado ao balão nº 14 nas experiências pré-vôo. De 14 para 14-Bis foi um sal to. A imprensa parisiense o chamou de Oiseau de proie (ave de rap in a). Dumont mudou o 14-Bis até concor rer e ganhar o prêmio Arch deacon (3 mil francos, pelo vôo inédito dos 60 metros) e o do Aeroclube da França (1,5 mil francos, pelo vôo dos 220 metros). Não ganhou o Deutsch-Archdeacon (50 mil francos, para quem voasse mil metros em circu it o fec had o), gan ho por Henri Farman. Mas já não era preciso. Santos-Dumont estava na história.
Fundação Casa de Cabangu/Eu Naveguei pelo ar (Nova Fronteira)
14-Bis Medidas comprimento 9,60 metros envergadura 11,46 metros peso 290 quilos (apenas o avião) motor Antoinette 8 cilindros potência 50 cavalos velocidade 41,3 (km/h) diâmetro da hélice 2
Material usado estrutura de bambu e madeira (abeto) entelado com seda branca ■ juntas de alumínio ■ cordas de piano, para manter a rigidez ■ rodas aro 26 ■
Configuração leme colocado na frente imitando pato (canard) ■ motor alojado entre as asas ■
Controle com a mão esquerda o piloto acionava uma roda que controlava o leme profundor ■ com a mão direita acionava uma alavanca para controlar a direção ■ também com a mão direita coordenava o avanço da ignição do motor com um manete ■ com o pé, fazia a ignição do motor ■ a partir de 12 de novembro usava um colete especial que o ligava aos ailerons, situados nas extremidades das asas, por meio de cabos. Com isso podia inclinar o avião para a direita ou para a esquerda ■
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Santos-Dumont suicidou-se em 23 de julho de 1932, no Hotel de La Plage, no Guarujá, litoral de São Paulo. Durante muitos anos alimentou-se a informação de que o desgosto de ver sua invenção usada como poderoso instrumento de destruição o levou a se matar. De fato, o inventor sempre la mentou ver o avião provocan do tantas mortes na guerra, embora tenha sugerido seu uso militar para observação. O que se sabe hoje é que Du mont parecia ter uma séria depressão, nunca corretamen te diagnosticada e tratada. O pesquisador Rodrigo Moura Visoni lembra que o jornalista Edgar Morel, em seu livro Histórias de um re pórter (Record, 1999), diz que o médico inglês Bevam Jones fez o diagnóstico de esclerose múltipla em 1910. Essa infor mação teria sido crucial para Dumont decidir encerrar a carreira de aeronauta. Foi Morel quem revelou para o público a real causa da morte do inventor, em 1944, o suicídio. Até então dizia-se que ele havia morrido de infarto. “Acho difícil acreditar nessa hipótese da esclerose múltipla”, diz Henrique Lins de Barros. “Como alguém sofrendo de uma doença degenerativa, como esclerose múltipla, po deria esquiar em Saint Moritz na década de 1910 e jogar tênis na década de 1920, como ele fazia?” Barros conta que há recibos indicando que o inventor consultou-se com o psiquiatra Juliano Moreira, no Rio de Janeiro. O sobrinho-bisneto Mar cos Villares Filho confirma que os primeiros sinais de perturbação teriam aparecido em 1910. “O mais provável é que ele tivesse uma depressão profunda, de origem bioquí mica, algo perfeitamente tra tável hoje”, especula.
Não escapa ninguém. Pode ser gênio, benfeitor da hu manidade, intelectual de re nome e, ainda assim, para o público comum, a vida pes soal parece interessar mais do que a obra. Com SantosDumont não foi diferente. O fato de nunca ter se ca sado, a apar ênc ia sempre bem cuidada, os modos refi nados e a enorme timidez o tornaram alvo de seguidos comentários sobre uma su posta homossexualidade. Os últ im os aparecer am com destaque no livro do norteamer icano Paul Hoffman, Asas da loucura (Objetiva, 2003). Suas conclusões fo ram tiradas dos jornais de língua inglesa New York He rald e Paris Herald, que co briam as experiências de Du mont pela Europa, e do NewYork Mail and Express. Hoffman reproduz frases desses periódicos como a de que Dumont tinha uma “timi dez feminina sem o charme feminino” ou “ele com certeza tem um poder de fascinação sobre o sexo oposto, que nem sua aparência e modos em so ciedade justificam”. Também fala sobre anéis e jóias usados pelo inventor e reproduz boa tos conhecidos de que o escri tor e cartunista George Gour sart, o Sem, amigo de Dumont e autor de charges populares sobre ele, poderia ter sido seu amante, assim como Jorge Dumont Villares, sobrinho que foi buscá-lo na França para seguir com o tratamento que fazia perto da família, no Brasil. Apesar das insinuações numerosas contidas no livro, não há uma única carta, bilhe te ou testemunho que com prove tal tese. Pelo contrár io. Obv ia mente, ser homo ou heteros sexual é absolutamente irrele vante e em nada diminui ou eng randece a excepcional
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> Fama de
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homossexual
frangalhos
As mulheres eram presença constante nos campos de prova. Ao lado, notícia de jornal sobre Dumont e Edna Powers
centro de documentação e histórico da aeronáutica (cendoc)
> Nervos em
Barros traz à tona uma entrevista de Agenor Barbo sa, colega de Dumont e seu procurador, à Revista do Ins tituto Histórico e Geográfico de São Paulo, em 1959: “As suas aventuras amorosas, se as teve, foram muito discre tas. Não tinha, nem nunca teve, ‘ligações’ sentimentais. Neste ponto era como, no exílio, o patriarca José Boni fácio – pagava simplesmente de sua bolsa, o que lhe apete cia, sem out ras complica ções... O único ‘caso’ amoro so de sua vida, que eu saiba, foi um tremendo ‘rabicho’ por uma jovem norte-ameri cana, filha do milion ário Mr. Spreckels, que procurou logo afugentar a filha do homem perigoso que tinha a mania de voar... E foi só”. Rodrigo Mour a Visoni lembra de trecho da autobi ografia Tudo em cor de rosa (Nova Fronteira, 1977), de Yolanda Penteado, de tradi
cional família paulista, que conviveu com boa parte da elite artística e intelectual do país no século passado. Yo landa fala de Dumont assim: “(...) conheci o Alberto San tos-Dumont, um irmão do meu tio Henrique. Seu Al berto, como o chamávamos, vinha todos os dias para jan tar e ia ficando, dizendo que era para ver a lua sair. No Flamengo, as noites de lua cheia eram realmente boni tas. Ele era uma pessoa irre quieta. Eu achava engraçado que me desse tanta atenção. E tia Amália dizia: ‘Alberto, você está ficando tonto, na morando essa menina’. Seu Alberto, de fato, me fazia a corte, trazia-me bombons, flores, levava-me a passear. As pessoas que o conheciam melhor diziam que, quando ele me via, ficava elétrico”. Barros acred it a que a propalada homossexualida de do inventor é um mito. “O
refinamento francês soava como afetação homossexual para os jornalistas norteamericanos, que o descrevi am como efeminado”, diz. “Hoffman não entendeu os costumes e valores da época e viu tudo com a visão dis torcida que se tinha naquele tempo nos Estados Unidos.” O artista plástico Guto La caz, também estudioso da obra do inventor e autor da exp os iç ão Santos-Dum ont Designer, realizada este ano em São Paulo, lembra de vá rias mulheres por quem o inventor se interessou: além de Lurline Spreckels e Yolan da, houve Edna Powers e Aida D’Acosta. “Ele não pa recia insensível às mulheres, mas é preciso lembrar de um desenho feito por ele (acima) em que escreveu: ‘Dirigível, biplano e monoplano – mi nha família’”, diz Lacaz. “Po eticamente, Santos-Dumont casou-se com a aeronáutica.”
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contribuiç ão do brasileiro pa ra a aviação. Mas sua família e pesquisadores brasileiros cri ticam a má-fé do tema justa mente por se tratar de boat os que, até o momento, não en contraram justificativa nos fatos. “A história que se criou sobre Santos-Dumont e seu sobrinho Jorge é absurda, sem pé nem cabeça”, critica Mar cos Villares Filho. “Jorge foi escolhido pela família para buscá-lo em Paris justamente porque não tinha filhos, em bora fosse casado”, diz. Por sua vez, Henrique Lins de Barros examinou cen tenas de fotos de Santos-Du mont e afirma nunca ter visto nada que lembrasse anéis ou jóias. O inventor usava apenas um relógio Cartier e uma me dalha com a imagem de São Bento presa a uma corrente no pulso para protegê-lo con tra acidentes. O presente foi dado pela princesa Isabel, condessa d’Eu.
Musée de l`Air
> A descoberta de um manuscrito Há muit o que descobrir sobre a obra de Santos-Dumont. “Existe boa história da ciência no Brasil, mas a história da técnica e da tecnologia ainda é incipiente por aqui”, afirma o físico Henrique Lins de Bar ros. Ele reclama dos poucos trabalhos acadêmicos que tra tam de forma exaustiva e ana lítica a obra de Dumont. “Ele se tornou patrimônio dos mi litares e isso parece desestimu lar os pesquisadores.” Ainda assim, surgem novidades. Alberto Dodsworth Wan derley, sobrinho-bisneto do inventor, descobriu recente mente um manuscrito inédito dele escrito em francês e tra duzido pela mãe, Sophia He lena Dodsworth Wanderley. “O livro tem 13 capítulos e é uma espécie de pré-história da aeronáutica”, diz Wanderley. Provavelmente escrito em 1902, de acordo com Barros o X
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texto mostra que ele tinha um conhecimento crítico sobre a história da aeronáutica e teó rico sobre química e física. A descoberta do manus crito ocorreu depois que So phia Helena doou todo o acer vo de Santos-Dumont em 2003 para o Centro de Docu mentação e Histórico da Ae ronáutica (Cendoc), no Rio de Janeiro, onde está disponível para consulta. Esse acervo já havia sido previamente orga nizado pelo marido de Sophia, Nelson Freire Lavenère-Wan derlei (os dois já morreram). Mas havia ainda um em brulho dentro de um armá rio que não foi doado, desco berto anos depois por Alber to Wanderley. Era um ma nusc rito de 212 pág in as, escrito em um papel peque no, de 20 por 16 centímetros, faltando as páginas de 111 a 115. “Estou digitando o livro aos poucos e não sei quando publicarei”, diz ele, ainda sem editora. “Há a idéia de
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publicar no mesmo volume um outro livrinho dele, de 20 páginas, O homem mecâ nico, de 1929, já conhecido, mas nunca editado.”
> Novos balões
e aviõe s
O pesquisador Rodrigo Mou ra Visoni, autor de artigos sobre Dumont publicados no Brasil e em Portugal, tem qua tro livros ainda inéditos sobre o inventor. Três deles reúnem reportagens, entrevistas e arti gos do próprio Santos-Du mont e sobre ele. E um quarto esclarece a polêmica secular com os Wright. Visoni garim pou material indicando que, ao contrário do que se pensa va, Dumont teria trabalhado em um Demoiselle em 1913, quando se acreditava que ele tinha encerrado a construção de aviõe s em 1910. “De acordo com a revista Lecture pour Tous, edição de 1º de janeiro de 1914, ele enco
mendou aos construtores Mo rane e Saulnier um avião De moiselle novo, muito mais sólido e robusto que os prece dentes”, conta Visoni (o artigo original integra um dos livros do pesquisador). “Não se tem notícia de que ele tenha voado nesse aparelho, embora exis tam fotos do avião.” Visoni também aposta que a produção do aeronauta foi maior do que a conhecida hoje. Até agora se contam 14 balões, entre esféricos e dirigí veis, e nove aeroplanos. Nessa conta não entram as numero sas modificações que SantosDumont fazia com freqüência nos modelos. “Em 1913 ele deu uma entrevista em que di zia ter construído 14 dirigíveis, sem contar os esféricos, e 19 aeroplanos”, afirma Visoni. Agora resta esperar que os pesquisadores descubram no vos documentos, artigos e fo tos da época para se conhecer com mais precisão a obra completa do inventor.
> O sucesso tardio da O sucesso da Embraer, a quar ta empresa aeronáutica do mundo, com uma receita líquida de R$ 9,1 milhões em 2005, não espanta ninguém – é o mínimo que se espera da terra de Santos-Dumont. O que pouco se comenta é o fato de essa indústria tão forte ter demorado tanto tempo para ser construída. “Sempre tive mos uma grande população com baixa renda, com poucos recursos para usar o transpor te aéreo, e demoramos muito para ter um centro de forma ção de engenheiros”, diz Ozires Silva, o principal idealizador e empreendedor da Embraer e, hoje, presidente da Organiza ção Santamarense de Educa ção e Cultura, em São Paulo. Até 1950, ano da fundação do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), só havia engenheiros aeronáuticos for
Silva. “Concluímos que se não produzíssemos um avião pró prio, inovador, não teríamos como competir com o merca do já estabelecido.” Na mesma ocasião, esse mesmo grupo descobriu que em 1965 existiam 45 cidades bras il eir as serv id as pelo transporte aéreo. Ocorre que em 1958 esse número era muit o maior, cerca de 400 ci dades. Entre outras, a razão fundamental para isso foi a t e utilização dos crescen aviões a jato. Essas aeronaves requeriam infra-estrutura maior para operar e eram grandes demais para as comunidades pequenas. “Pen samos então que se fizésse mos um avião não muito grande, que pousasse em pis ta curta e exigisse infra-estrutura mais modesta, ajuda ríamos a levar o transporte aéreo de volta às pequenas cidades.” Naquela época, em 1967, não se sabia que o fe
mados no exterior. “E aqui se fazia avião sob licença de em presas estrangeiras ou se bus cava modelo semelhante ao que já existia lá fora.” Mas, no começo da década de 1960, o ITA já tinha dez anos e formava 80 engenhei ros por ano em diferentes especialidades dentro da aero náutica. Nessa época, um gru po lá formado achou que era o momento de fazer algo. “Nos reunimos no ComandoGeral de Tecnologia Aeroespa cial (CTA) para tentar res ponder à pergunta: como cri ar uma real e ampla indústria aeronáutica no país?”, conta
nômeno brasileiro se repetia no mundo. “Dessa forma criamos o Bandeirante, de 16 lugares, com hélices, para ser mais ba rato”, diz. “O primeiro protó tipo foi feito no CTA e o avião voou com sucesso em 1968.” O processo para decidir como fabricá-lo foi longo e penoso até o governo concordar em criar uma companhia mista. Ou seja, o conceito de aviação regional foi criado e desenvolv ido aqui. “Cami nhamos dentro da velha tra dição mercadológica: desco brimos um nicho de mercado e o ganhamos.”
embraer
indústria no Brasil
Na página ao lado, o Demoiselle; acima, o Bandeirante: quase 60 anos entre as duas inovações
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XI
instituto de desenvolvimento aeronáutico de caldas nova (IDAC)
Dia 5 de novembro os franceses voltarão cem anos no tempo e assistirão a um vôo do 14-Bis sobre o Campo de Bagatelle, em Paris. O even to marcará as comemorações do centenário do vôo pioneiro na França, embora as datas ori ginais tenham ocorrido dia 23 de outubro e 12 de novembro de 1906. Antes disso, o 14-Bis voar á no dia 22 deste mês na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. O avião será pilotado por Aline, filha de Alan Calassa, piloto e empresário de Caldas Novas, Goiás, fas cinado por SantosDu m ont e seus aparelhos. No iní cio de 2005, ele concluiu a cons trução da réplica do avião depois de anos atrás de informações no Brasil e na Fran ça e de consultas exaustivas a fotos, documen tos, reportagens da época e especialistas. O resultado é surpreendente: o 14-Bis voa com suavidade e elegância. “Santos-Dumont sabia exatamente o que es tava fazendo”, garante Calassa. “Quando ele de senvolveu o avião em sistema canard, imitando pato, fez isso para que o aparelho pudesse se des
De volta a Paris
locar com menos potência de motor”, diz. “Co meçou com um motor de 24 HP em setembro, foi para 36 HP em outubro e 50 HP em novem bro.” A sustentação se dá apenas nas asas. “O 14Bis é um conjunto perfeito de aerodinâmica.” Autodidata, Calassa fez quatro réplicas do avião. Uma está no Musée de l’Air, na França, outra nos Estados Unidos, uma terceira em ex posição pelo Brasil e a quarta em Caldas Novas, para testes. O empresário gastou R$ 1,5 milhão do próprio bolso para construí-las. A Embraer patrocina as exposições no país e exterior. As exibições de vôo são feitas por Aline, de 22 anos e 52 quilos, o mesmo peso de SantosDumont. Depois do avião pronto, foram feitas algumas descobertas. Mesmo pesando o dobro da filha, o avião voa muito bem com Calassa (foto nesta pág ina) e consegue até carregar duas pessoas – uma delas sentada sobre a jun ção das asas. Também se descobriu que o 14Bis faz curvas, ao contrário do que se pensava. “Talvez Dumont não soubesse disso porque não era piloto como os pilotos viriam a ser”, diz Calassa. “Ele tinha acabado de inventar o avião e estava aprendendo tudo.”
> Assista o vôo de Alan Calassa no site de Pesquisa FAPESP: www.revistapesquisa.fapesp.br
Camundongos com alteração genética sofrem perda de memória semelhante à do Alzheimer Tm 14 de dezembro de 2004 saiu do laboratório da bioquímica Vânia Ferreira Prado, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o primeiro lote de um grupo especial de roedores: camundongos geneticamente alterados para não aproveitarem com eficiência a acetilcolina, um dos mensageiros químicos responsável pela transmissão do comando de uma célula nervosa a outra. Desenvolvidos por Vânia e seu marido, o farmacêutico Marco Antônio Prado, os roedores seguiram para o laboratório do neurocientista Ivan Izquierdo, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), onde passaram por uma série de testes de memória. Incapazes de liberar rapidamente a acetilcolina que fabricam, esses camundongos apresentam problemas de memória e fraqueza muscular. Eles não reconhecem objetos nem outros roedores a que foram apresentados minutos antes. Também resistem menos ao esforço físico: caem exaustos após cinco minutos de corrida, enquanto os camundongos normais conseguem correr em uma esteira por quase uma hora, como mostraram experimentos feitos pelos grupos de Izquierdo e do casal Prado, descritos em um artigo da edição de setembro da
revista Neuron. "Conseguimos produzir animais que podem ajudar a entender de modo mais preciso a importância da acetilcolina para o funcionamento do organismo", afirma Marco Antônio. Desde que o médico e farmacologista alemão Otto Loewi constatou em 1921 que a acetilcolina - o primeiro neurotransmissor identificado, formado a partir do ácido acético e da colina - atuava na comunicação entre as células nervosas, tenta-se descobrir como e em quais processos fisiológicos ela age. Sabe-se, por exemplo, que a carência de acetilcolina atrapalha o aprendizado e prejudica a formação da memória, mas não se conhecem os detalhes. "Há indícios de que ela ajude a manter a concentração, essencial para o registro de informações", diz Marco Antônio. Outros modelos - Fora do sistema nervoso central, esse neurotransmissor atua na comunicação entre nervos e músculos ou entre nervos e glândulas, como as supra-renais, produtoras do hormônio adrenalina. "Nossos camundongos", diz o pesquisador da UFMG, "poderão ser úteis para testar medicamentos contra a perda de memória ligada à redução dos níveis de acetilcolina e a debilidade característica de algumas doenças musculares (miastenias)". Não é a primeira vez que se criam roedores geneticamente alterados para simular os efeitos da carência ou da di-
ficuldade de aproveitamento da acetilcolina - e serem usados como modelo biológico do mal de Alzheimer. Há animais que produzem e liberam taxas normais de acetilcolina, mas não conseguem aproveitá-la porque lhes faltam as moléculas às quais o neurotransmissor adere para acionar as células nervosas. Os camundongos criados por Vânia e Marco Antônio, em parceria com pesquisadores da Universidade Duke, Estados Unidos, são diferentes: produzem acetilcolina normalmente, mas não a utilizam de forma adequada porque sua liberação é menos eficiente que o necessário. Marco Antônio aposta que essa defasagem na liberação da acetilcolina esteja associada aos efeitos do mal de Alzheimer sobre a memória. "Alguns pesquisadores que estudam o mal de Alzheimer se preocupam com a enzima que produz a acetilcolina", diz o farmacêutico da UFMG, "mas essa enzima pode existir em quantidade menor e ainda assim o animal produzir taxas normais do neurotransmissor". Já a liberação reduzida da acetilcolina altera o comportamento físico e mental dos camundongos. Além desses animais que liberam acetilcolina mais lentamente no sistema nervoso central e nos outros nervos do corpo, o casal mineiro já gerou uma outra linhagem de camundongos, que manifesta esse efeito só no cérebro. • RICARDO ZORZETTO PESQUISA FAPESP 128 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ 49
O CIÊNCIA FÍSICA
Ecos da gravidade Começa a funcionar o detector brasileiro de ondas gravitacionais
Coração de metal: esfera de cobre de 1,1 tonelada está pronta para registrar as ondas
uando sobra tempo, o físico Sérgio Turano de Souza toca guitarra em uma banda de rock. Já não é lá muito assíduo aos ensaios e agora talvez tenha de faltar um pouco mais porque é um dos responsáveis pelo Detector de Ondas Gravitacionais Mario Schenberg, um equipamento único no país que começou a funcionar experimentalmente no dia 8 de setembro, sem hora certa para imprevistos. Por enquanto não houve nenhum - ao menos nenhum tão desalentador quanto o transbordamento do lençol freático, seis anos atrás, sobre o fosso que era cavado para abrigar o detector. Em um dos galpões do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) começava então a etapa realmente concreta da perseguição às ondas que, se encontradas e se forem pulsadas em vez de contínuas, poderão mostrar que podem de fato existir as partículas elementares conhecidas como grávitons, por enquanto só previstas teoricamente, às quais se atribui a força da gravidade. Semanas atrás, ainda que à espera de tarefas extras, a equipe coordenada pelos físicos Odylio Aguiar, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), e Nei Oliveira Jr., da USP, acompanhou a primeira coleta de dados, que seguiu por cinco dias contínuos, e a cada momento batia um olho no conjunto de aparelhos eletrônicos, fios, bombas de vácuo e termômetros meticulosamente organizados que cobrem um cilindro de alumínio de 1 metro de diâmetro por 3 de comprimento. Dentro desse cilindro é que se esconde o coração do detector: uma esfera maciça de cobre e alumínio, de 65 centímetros de diâmetro e 1,15 tonelada, suspensa por uma haste de cobre e mantida no vácuo sob uma camada de hélio líquido a quase 270 graus Celsius negativos. Sua sutilíssima pulsação — ou oscilação - indicará quando forem finalmente detectadas as ondas gravitacionais, que constituem um dos mais desafiadores objetos de estudo da física contemporânea.
Conhecidas até agora somente por meio de evidências indiretas, como a redução da órbita de estrelas binárias, as ondas gravitacionais são definidas como deformações no espaço resultantes do movimento acelerado de corpos grandes como as próprias estrelas. Podem ser comparadas com as ondas que se formam quando atiramos uma pedra sobre a água de um lago, ainda que sejam extremamente fracas e, teoricamente, possam se propagar à velocidade da luz. Elas fascinam os físicos porque representam o último teste da Teoria da Relatividade Geral, formulada em 1916 por Albert Einstein - todas as outras predições, como o desvio da luz ao passar perto de estrelas como o Sol, já foram comprovadas. Exausto, sem voz e dormindo bem menos que o habitual por causa da entrada em operação do detector e das constantes viagens entre São Paulo e São José dos Campos, onde está o Inpe e sua casa, Aguiar sabe que tão cedo não será possível se pôr em pé de igualdade com as equipes de outros 11 detectores semelhantes - em operação há muitos anos nos Estados Unidos, Alemanha, Itália e Austrália - que também correm atrás das ondas gravitacionais. "O detector é agora como um carro que andou pela primeira vez após juntarmos as peças que antes nunca estiveram juntas", compara o físico de 52 anos que há pelo menos 20 trabalha com equipamentos desse gêne-
ro. "A sensibilidade ainda está aquém do que precisamos para ser competitivos." Nessa fase inicial, de testes e ajustes dos componentes, o detector opera somente com três dos seis sensores previstos no projeto inicial. São os sensores que transformam as oscilações da esfera em sinais elétricos, captados por antenas de microondas e amplificados em frações de segundo antes de chegar ao computador instalado em um mezanino próximo a uma das paredes do galpão. Vibrações audíveis - Até o final do ano, porém, devem ser instalados os sensores definitivos. Segundo Aguiar, serão muito mais refinados e sensíveis. Construídos em um dos laboratórios do Inpe pelo físico Sérgio Ricardo Furtado, os novos sensores - ou transdutores - terão uma cavidade de nióbio, elemento químico supercondutor, e uma membrana de silício com uma espessura de 20 milésimos de milímetro. A membrana dos sensores atuais é metálica e apresenta uma espessura de 200 a 300 milésimos de milímetro, que resulta em uma sensibilidade bem menor às ondas que podem chegar a qualquer momento das profundezas do espaço. Com os sensores definitivos, o detector poderá captar ondas gravitacionais nas freqüências de 3.100 a 3.300 Hertz, que se encontra na faixa dos sons que podem ser captados pelo ouvido humano. Portanto, seria possível ouvir a
vibração da esfera de bronze, desde que os sinais passassem por um microfone e fossem amplificados, já que a esfera se encontra envolta por vácuo. O detector instalado na USP custou aproximadamente US$ 800 mil, financiados pela FAPESP, e absorveu o trabalho de cerca de 30 físicos experimentais e teóricos da própria USP, do Inpe, do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), também de São José dos Campos, da unidade paulistana do Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ainda que entre só agora em uma corrida que já começou, conta com duas vantagens que resultam do fato de ser esférico: poderá captar as ondas que chegarem de todo o céu e determinar também a direção de onde vieram. Já os detectores que funcionam com barras de alumínio em vez de esferas ou então por meio de laser poderão registrar somente as ondas, segundo Aguiar. "É quase impossível que peguemos a primeira onda", diz ele. "Mas serão os detectores esféricos que vão determinar a forma e a direção das ondas." Aguiar acredita que os físicos brasileiros, caso cheguem a essas informações igualmente estratégicas, poderão então conversar de igual para igual com os representantes das equipes à frente de equipamentos que custaram 400 vezes mais. • CARLOS FIORAVANTI PESQUISA FAPESP 128 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ 51
Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org
Notícias A adoção do registro de ensaios clínicos nos países da América Latina e Caribe, seguindo as normas e padrões definidos na (International Clinicai Trials Registry Platform (ICTRP), foi tema de várias atividades durante o 8o Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva e 11° Congresso Mundial de Saúde Pública, realizado no Rio de Janeiro de 21 a 25 de agosto. Durante o evento, Abel Packer, diretor da Bireme/OPAS/OMS, informou sobre a decisão da Bireme de estabelecer, como critério obrigatório para os periódicos indexados na Lilacs e SciELO, a exigência de registro prévio dos ensaios clínicos relatados em artigos submetidos à publicação.
■ Educação
■ Saúde
Doenças vetoriais sob controle? Atualmente, entre as principais doenças vetoriais no Brasil sujeitas a controle, estão: dengue, malária, leishmaniose, doença de Chagas, febre amarela, esquistossomose, peste e febre do Oeste do Nilo. De acordo com o estudo "Perspectivas de controle de doenças transmitidas por vetores no Brasil", de Pedro Luiz Tauil, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (UnB), os programas mais importantes, pelo volume de recursos que movimentam, são o de controle da malária e da dengue. "A análise do controle de doenças transmitidas por vetores no Brasil necessita considerar três aspectos: a urbanização da população, a transformação do caráter eminentemente rural dessas doenças em concomitante transmissão urbana e a descentralização do controle para municípios. A imensa maioria da população (80%) está vivendo nas cidades", aponta o trabalho. Tauil mostra que algumas doenças passaram rapidamente a ser transmitidas em áreas urbanas graças à rápida emergência de seus vetores nessas áreas, principalmente a dengue, a leishmaniose visceral e a malária. "Há dificuldades para o controle dessas doenças, pois as atividades em áreas rurais são operacionalmente mais efetivas, atingem coberturas mais elevadas e são mais bem aceitas pela população do que as exercidas em áreas urbanas", descreve o pesquisador. Segundo ele, a descentralização do controle para os estados e municípios está em implementação, apesar das dificuldades, pois o controle vetorial não fazia parte da prática dos órgãos federativos. "Para um controle mais efetivo, há necessidade de determinação política, ações multissetoriais e uso racional de inseticida", afirma.
Visões sobre o ensino médio Conhecer as motivações, perspectivas e necessidades de alunos e professores do ensino médio, bem como as relações entre educação e trabalho, é o objetivo do estudo "Educação e trabalho: representações de professores e alunos do ensino médio", que se baseou em duas pesquisas que utilizaram questionários para a coleta de dados. A primeira foi feita em uma amostra de docentes e discentes do ensino médio, enquanto a segunda obteve informações dos participantes do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), em 2004. Os autores são Cândido Gomes, Clélia Capanema, Jacira da Silva Câmara e Lakné Cabanelas, da Universidade Católica de Brasília. Em ambos os casos, a visão da escola é positiva, mas a entrada dos jovens no mundo do trabalho tem se tornado difícil e tardia, levando à conversão do ensino médio em ensino de massa. "As duas pesquisas denotam a dualidade estrutural da sociedade brasileira, com a divisão entre a escola de educação geral para os nossos filhos e a escola de segunda oportunidade, para os filhos dos outros", apontam os pesquisadores. Aparentemente, o ensino médio regular passa ao largo das necessidades profissionais e pessoais dos alunos. De outro lado, o trabalho que subtrai o aluno da escola é o mesmo que o devolve a ela. "O trabalho agudiza a consciência de que é preciso aumentar a escolaridade." A dificuldade de o jovem obter trabalho sem o curso médio completo leva muitos deles a permanecer em compasso de espera até completar este nível de escolaridade. ENSAIO: AVALIAçãO E POLíTICAS PúBLICAS EM EDUCAçãO - VOL. 14 - N° 50 - Rio DE JANEIRO JAN./MAR. 2006 www.scielo.br/scielo.php?scrípt=sci_arttext&pid=S010440362006000100002Slng=pt&nrm=iso&tlng=pt
■ Biologia REVISTA DA Soe. BRáS. DE MEDICINA TROPICAL VOL. 39 - N° 3 - UBERABA - MAI./JUN. 2006
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www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S003786822006000300010&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
52 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 128
Formigas por todo lado A cidade de Uberlândia, em Minas Gerais, apresenta um processo de urbanização acelera-
do, com crescimento populacional de 3,5% ao ano, acima da média nacional. Entre os problemas causados pela urbanização está o fornecimento de hábitats para uma grande variedade de insetos. A idéia do artigo "Levantamento da diversidade de formigas na região urbana de Uberlândia", de Narcisa Soares, Luciana Almeida, Marcus Marcolino e Ana Bonetti, da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), e Carlos Gonçalves, da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), foi identificar espécies de formigas que ocorrem nos domicílios da cidade, relacionando-as ao tempo de urbanização e infra-estrutura dos bairros e ao estado de conservação das residências. Ao todo, foram coletadas 6.227 formigas, distribuídas em 14 espécies, sendo Camponotus, Monomorium e Tapinoma, respectivamente, os gêneros mais freqüentes. O fato de alguns bairros analisados estarem localizados na proximidade de zonas rurais pode ter favorecido o aparecimento de espécies como C. melanoticus, C. rufipes, D. pyranicusalticonise O. baurinas residências, embora não sejam consideradas formigas urbanas. A redução de hábitat e, especialmente, a sua fragmentação em pequenos remanescentes impõem mudanças nas estratégias adaptativas de muitas espécies. "Na cidade de Uberlândia, a diversidade de formigas urbanas no interior das residências foi baixa quando comparada a levantamentos em outros locais, porém apresentou alto índice no número de indivíduos e espécies não caracterizadas como urbanas", apontam os pesquisadores. A estrutura dos bairros e a conservação das residências estão diretamente relacionadas aos hábitos das espécies encontradas em cada local. NEOTROPICAI. ENTOMOLOGY- VOL.
35 - N° 3 - LONDRINA
sultados apoiam a expectativa inicial de que o modo como ocorre a transição para o casamento desempenha um papel importante no planejamento da primeira gravidez", explicam os autores. "Justamente o planejamento da primeira gravidez é que demarca o início desta construção conjunta." As informações foram publicadas no estudo "Ritual de casamento e planejamento do primeiro filho". Segundo os autores, as famílias se desenvolvem com o passar do tempo na medida em que entram e saem de diferentes estágios, cada qual com determinados desafios e tarefas: os jovens solteiros, o novo casal, famílias com filhos pequenos, famílias com filhos adolescentes, o ninho vazio e, finalmente, famílias no estágio tardio de vida. Entre os casais analisados que realizaram algum tipo de ritual de casamento, percebe-se que a maior parte escolheu uma cerimônia religiosa além do casamento civil. Entretanto, é preciso mencionar que o número de casais que não planejaram a gravidez do primeiro filho foi também alto. Este dado é relevante, uma vez que atualmente se conta com uma grande variedade de formas de planejamento familiar e de controle de natalidade. PSICOLOGIA EM ESTUDO JAN./ABR. 2006
- VOL. 11 ■ N° 1 - MARINGá ■
www.scie lo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S141373722006000100007&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
■ Engenharia
Ventilação necessária
- MAI./JUN. 2006 www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid = S1519566X2006000300005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
■ Gravidez
Ciclo de vida familiar Existe uma associação estatisticamente significativa entre o casamento formal e o planejamento da gravidez. Depois de analisarem 47 casais que esperavam seu primeiro filho, entrevistados no último trimestre da gravidez, os pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, César Augusto Piccinini, Rita de Cássia Lopes, Clarissa Menezes e Gisele dos Santos, constataram que a maior parte dos casais (53%) relatou ter casado dentro dos rituais formais e planejou a primeira gravidez, enquanto 25% dos pares não se encaixaram em nenhuma das duas situações. Os casais eram de diferentes níveis socioeconômicos e residiam na Região Metropolitana de Porto Alegre. "Os re-
A proposta do trabalho "Ventilação natural em galpões: o uso de lanternins nas coberturas" é apresentar uma modelagem matemática, associada com o conceito do índice de ventilação natural, para os cálculos da vazão de ar e das áreas das aberturas necessária de uma obra. Os autores do texto são Ana Amélia Mazon, Rodolfo Gonçalves da Silva e Henor Artur de Souza, pesquisadores da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). Por meio de uma abordagem numérica, o estudo analisa o fluxo de ar no interior do galpão e o perfil da temperatura interna resultantes da simulação. Os pesquisadores utilizam como modelo físico um galpão com quatro aberturas (duas inferiores e duas superiores), o exemplo típico de um galpão comercial. A análise pode, no entanto, ser realizada para qualquer número e distribuição de aberturas. "Os resultados numéricos apresentados confirmam que a metodologia proposta mostra-se uma ferramenta importante para as etapas iniciais de projetos arquitetônicos, visto que ela permite saber o tamanho necessário das aberturas dos lanternins para que se tenha uma ventilação natural eficiente e, conseqüentemente, um ambiente confortável." REVISTA ESCOLA DE MINAS PRETO - ABR./JUN. 2006
- VOL. 59 - N° 2 - OURO
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S037044672006000200007&lng=pt&nrm=iso&ting=pt
PESQUISA FAPESP 128 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ 53
O TECNOLOGIA
Luz nos chips O*
■ Laser detecta bactérias Um aparelho para identificar bactérias e que funciona sob o mesmo princípio de um leitor de código de barras acaba de ser desenvolvido por pesquisadores da Universidade de Purdue, nos Estados Unidos. Ele poderá ser usado em aplicações na área médica, alimentícia, farmacêutica e até na segurança de fronteiras. O equipamento opera por meio de um feixe de laser que incide num recipiente contendo as colônias de bactérias. Esses microorganismos crescem conforme um padrão que depende da espécie da bactéria. Os pesquisadores descobriram que a luz laser é espalhada por cada um desses padrões de maneira única. Assim, as partículas de luz incidente sobre a colônia formam um gráfico que é projetado numa tela. Esse gráfico é analisado por softwares que identificam os tipos de bactérias presentes. Enquanto a análise bio-
Semicondutores com laser: maior transmissão de informações
química convencional demoraria dias, a técnica a laser levará algumas horas. •
■ Etanol na China Milho, trigo, mandioca e arroz são os vegetais que a China está plantando para produzir
54 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 128
icquena estrutura semicondutora de silí> capaz de emitir um teixe de laser e a mais nopromessapara a indústria de microcomponen«ançar muitos passos na capacidade de processamento de computadores e demais processadores eletrônicos. A novidade, chamada Híbrido de Silício e Laser, foi apresentada em setembro por pesquisadores da Universidade da Califórnia Santa Bárbara (UCSB) e do Laboratório de Tecnologia Fotônica da Intel. Os pesquisadores combinaram as propriedades de emissão de luz do fosfeto de índio (InP), um material usado na produção de lasers, com as propriedades semiconi dutoras do silício, principal material da indústria de microcomponentes que é barato e abundante em todo o planeta. Esse dispositivo poderá ser usado tanto dentro dos chips como nas comunicações entre eles, levando as informações por meio de feixes de laser, e não entre conectores metálreaíCAs possibilidades técnicas das conexões-aíitais estão se esgotando pela dificuldade em^traosiTiítirem grandes volumes de dados. Ceínxdiaser,a capacidade de transmissão pode^r45úbir pára os terabits, deixando o patamar dos ^gigabits (1 terabit é igual a 1.024 gigabits). •
álcool (etanol) combustível. Eles representam 80% do total porque 10% são extraídos do açúcar de cana, 6% são resultado do processamento de resíduos da polpa de papel e o restante vem do etileno obtido por processos químicos. Mas os chineses querem aumentar a produção, saindo da
participação de menos de 2% de etanol no total de combustíveis usados em veículos para 5% em 2010. A produção deve passar de 1,2 bilhão de litros para cerca de 3 bilhões no final desta década. Eles querem atingir a produção de 13 bilhões de litros de etanol e biodiesel em 2020. Os chineses lançaram seu programa de etanol em 2000 para conter a falta de combustível, combater a poluição do ar e fomentar a economia rural. •
■ Nanotubos com proteínas Uma equipe de pesquisadores da Universidade do Estado do Arizona, nos Estados Unidos, e da Motorola Labs, braço de pesquisa da multinacional da eletrônica, desenvolveu sofis-
ticados sensores baseados em nanotubos de carbono que podem ser usados para vários tipos de aplicação. A novidade é que eles são munidos de peptídeos, pequenas moléculas de proteínas resultantes da união de um ou mais aminoácidos. A invenção é interessante porque reúne as vantagens dos peptídeos, que podem ser usados para reconhecer e detectar várias substâncias químicas com alta sensibilidade e seletividade, à dos nanotubos, estruturas cilíndricas formadas por apenas uma camada de átomos de carbono, cerca de cem vezes mais finas do que um fio de cabelo, conhecidas por suas excelentes propriedades eletrônicas. Segundo o engenheiro elétrico Nongjian Tao, um dos membros do grupo, o sensor foi testado com sucesso na detecção de metais pesados em água, mas poderá ser utilizado também para identificar agentes químicos e biológicos no ar, mesmo em baixíssimas concentrações, ou como biossensor na área médica. •
de profundidade, e suas torres são fixadas diretamente no leito do mar. No projeto de Sclavounos, a torre teria 90 metros de altura e os rotores 140 de diâmetro, dimensões bem maiores do que os conjuntos em operação. Cada turbina teria 5,0 megawatts (MW) de potência, ante 3,6 MW dos geradores eólicos marinhos e 1,5 MW dos conjuntos terrestres existentes. O sistema de flutuação seria similar ao das plataformas de petróleo, sendo que a estrutura seria presa por meio de cabos a blocos de concreto no fundo do mar. Os cabos permitiriam que as plataformas se movessem lateralmente, mas não para cima e para baixo. Como os ventos em alto-mar são mais fortes,
Sclavounos estima que os geradores poderiam produzir o dobro de eletricidade por ano quando comparados às atuais turbinas em operação. •
■ Tecidos luminosos Que tal usar uma camiseta com a imagem luminosa de uma frase ou de um desenho qualquer? Ou deitar-se no sofá de sua casa e ser envolvido por uma tênue luz azul-clara emitida pelo estofamento? Ou ainda poder ler nas cortinas de casa poesias de Fernando Pessoa? Isso tudo deverá ser possível em breve graças a uma tecnologia inédita criada pela Philips e batizada de Lumalive. Apresentada em setem-
bro numa feira eletrônica na Alemanha, ela integra diodos emissores de luz, os chamados LEDs, de Light Emitting Diodes, e tecidos. Segundo a fabricante, com a tecnologia, é possível exibir mensagens, desenhos ou mudar as cores de partes das roupas. Para isso, basta que elas sejam dotadas de painéis de Lumalive, que serão feitos no tamanho de 20 por 20 centímetros. O grande desafio, superado pela Philips, foi desenvolver esse novo material sem comprometer a suavidade e maleabilidade dos tecidos e não deixar à mostra as diminutas baterias. A fabricante está fazendo contatos com a indústria têxtil e prevê que a Lumalive esteja no mercado em 2007. •
■ Energia em alto-mar Um conjunto de geradores eólicos instalados em alto-mar pode se tornar a mais nova alternativa para incrementar a produção de energia elétrica de forma limpa e renovável. O projeto foi criado pelo professor de engenharia mecânica e arquitetura naval Paul Sclavounos, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos, que sugere instalar dezenas de turbinas em plataformas flutuantes a centenas de quilômetros da costa, onde a intensidade dos ventos é maior. Hoje os geradores eólicos existentes no mar estão situados em águas rasas, com cerca de 15 metros PESQUISA FAPESP 128 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ 55
Parceria de ouro Uma vacina anti-rábica para animais será o primeiro medicamento a ser produzido pela parceria firmada entre a empresa Ouro Fino Saúde Animal e o Instituto Butantan. Inaugurado em setembro, o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento de Imunobiológicos Veterinários, instalado dentro do instituto em São Paulo, contou com apoio da FAPESP e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e vai desenvolver soros e vacinas para a saúde animal. A iniciativa é uma das pioneiras na modalidade ParcePreparo de vacina no Butantan
rias Público-Privadas (PPPs) em que um acordo é firmado para projetos de interesse público. A empresa, que é 100% brasileira, tem instalações em Ribeirão Preto e Cravinhos, em São Paulo, e uma filial no México, e produz vários medicamentos para saúde animal. A empresa também firmou uma parceria com a FAPESP que resultou em uma Chamada de Propostas para projetos cooperativos com pesquisadores paulistas na área de saúde animal. Os projetos estão sendo analisados dentro do Programa Parceria para Inovação Tecnológica (Pite), da Fundação. •
Linha de Produção
Brasil
■ Prêmios para inovadores Duas das seis categorias principais do Prêmio Nacional de Empreendimentos Inovadores de 2006, destinado a incubadoras de empresas, parques tecnológicos e empreendimentos inovadores, ficaram com Santa Catarina. O Centro Empresarial para Laboração de Tecnologias Inovadoras (Celta), de Florianópolis, ganhou na categoria Melhor Programa Nacional de Incubação de Empreendimentos Inovadores para o Desenvolvimento de Tecnologia. Uma das empresas que saíram do processo de incubação do Celta ganhou na categoria Empresa Graduada. É a Reivax, especializada na área de controle de processos industriais. O prê-
mio de Empresa Incubada foi para a Meantime, residente no Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (César) e especializada em jogos para telefones celulares. A empresa Lupa, da Incubadora de Base Tecnológica do Centro Regional de Inovação e Transferência Tecnológica (Critt), de Juiz de Fora, Minas Gerais, recebeu o prêmio de Produto Inova-
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dor com um sistema de gerenciamento de energia elétrica. A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) ganhou na categoria Melhor Projeto de Promoção da Cultura do Empreendedorismo Inovador. E na categoria Melhor Programa de Incubação de Empreendimentos Inovadores para o Desenvolvimento Local e Setorial ven-
ceu a Incubadora de Empresas de Base Tecnológica da Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais. A premiação é uma iniciativa da Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreendimentos Inovadores (Anprotec) com incentivo do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e da Microsoft. •
■ Geladeira esquenta água
■ Mestre da engenharia Um dos mestres da engenharia brasileira ganhou uma ampla e detalhada biografia retratada na obra Engenharia da transparência, vida e obra de Lobo Carneiro, escrita pela jornalista Terezinha Costa e editada pelo Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Fernando Luiz Lobo Barboza Carneiro (19132001), que se formou em engenharia na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, na década de 1930, escreveu um estudo que se tornou referência mundial na área da construção civil. Intitulado Um novo método para a determinação da resistência à tração dos concretos, o trabalho foi publicado em 1943 no Brasil e em 1953 na França. Em 1964, o método foi adotado oficialmente na Europa e, no ano seguinte, nos Estados Unidos. Lobo Carneiro também teve atuação política na campanha "O petróleo é nosso" e como deputado federal na década de 1950. Depois ajudou a montar a Coppe, onde esteve ativo até falecer, e colaborou com importantes contribuições para a exploração de petróleo em alto-mar. •
O calor das serpentinas de ferro que ficam na parte traseira da geladeira, área geralmente usada para secar panos de prato e outros utensílios domésticos, tem agora uma nova aplicação. Por meio de um condensador de 30 centímetros de comprimento, um aparelho que realiza troca de calor, a energia produzida por uma geladeira de 360 litros pode ser usada para aquecer até 7 litros de água por hora, com temperatura média de 42°C. O aparelho desenvolvido pelo engenheiro mecânico Paulo Henrique Ferraz do Amaral Filho, sob a orientação do professor Alcides Padilha, da Faculdade de Engenharia Mecânica da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Bauru, substitui as serpentinas. Ele é ligado por tubulação a um reservatório de água externo, por onde entra água fria e sai água morna. Ainda não há previsão para a comercialização do sistema, mas sua aplicação permite uma economia de 46 quilowatts (kW) por hora durante um mês. •
■ Parcerias com a Oxiteno Um convênio de cooperação científica e tecnológica entre a FAPESP e a empresa Oxiteno vai escolher e financiar projetos de pesquisa nas áreas de alcoolquímica e sucroquímica. Todos os pesquisadores vinculados a instituições de ensino superior e pesquisa do estado de São Paulo estão convidados a apresentar pré-projetos que serão analisados pela Oxiteno. Os projetos aprovados deverão ser apreciados dentro das regras do Progra-
ma Parceria para Inovação Tecnológica (Pite), da Fundação, para a viabilidade de financiamento. •
■ Secagem com nanotecnologia Nanopartículas de dióxido de titânio incorporadas a um secador de cabelo de uso profissional reduzem bactérias e fungos presentes no ar, resultando em um jato de ar mais
puro e cabelos mais limpos. A novidade presente no secador Taiff Titanium foi desenvolvida pela empresa Nanox em parceria com o Centro Multidisciplinar de Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos, formado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara e pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). O Nanox clean, nome do novo material, é transparente e de fácil aplicação. •
PESQUISA FAPESP 128 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ 57
CAPA
Sertãozinho, usina de inovações Cidade no centro da indústria sucroalcooleira se torna pólo de novos produtos e processos para o setor DlNORAH ERENO
s antigas usinas de produção de açúcar e álcool do interior paulista, com suas altíssimas chaminés de tijolos, cederam lugar a modernas empresas antenadas com as novas tecnologias que resultam em maior produtividade no campo e ganhos no processo industrial. Sertãozinho, cidade com menos de 100 mil habitantes situada no nordeste do estado de São Paulo, a 320 quilômetros da capital, traduz bem as transformações ocorridas ao longo das últimas décadas no setor sucroalcooleiro. A cidade possui sete usinas produtoras de açúcar e álcool e 500 empresas espalhadas por quatro distritos industriais, 90% das quais voltadas para o setor sucroalcooleiro, mas com atuação também nas áreas de papel e celulose, alimentícia e outras. A cidade é líder na geração de empregos no setor industrial paulista, segundo dados do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (Ciesp). Apenas neste ano, até o mês de agosto, a variação positiva foi de 20,4%, com a contratação de 6.300 trabalhadores. A vocação industrial da cidade, vizinha a Ribeirão Preto, teve início na década de 1970, com a crise do petróleo e o incentivo governamental ao Proálcool. Na época áurea do programa, a empresa Zanini, fabricante de equipamentos industriais, chegou a ter 7 mil fim
m
Rotor da turbina fabricada pela empresa TGM
cionários trabalhando durante 24 horas. Com o fim do programa governamental e conseqüentes fusões de empresas e demissões de funcionários, muitos engenheiros e operários começaram a prestar serviços de manutenção para o setor sucroalcooleiro e outros setores. Hoje muitos desses negócios embrionários transformaram-se em empresas exportadoras de alta tecnologia. E essa é uma tendência em alta no município. "Exportamos US$ 74 milhões em 2003, US$ 120 milhões em 2004 e US$ 135 milhões em 2005", diz Marcelo Pelegrini, secretário da Indústria e Comércio de Sertãozinho, com base nos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Para chegar a esse patamar as empresas se diferenciaram apostando em inovações de produtos e processos produtivos. E os exemplos não são poucos. Um processo de desidratação do etanol conhecido como destilação extrativa, que responde atualmente por cerca de 35% de todo o álcool anidro produzido no Brasil, só chegou ao mercado porque dois empresários de Sertãozinho, o projetista Valter Felipe Sicchieri e o en60 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 128
genheiro químico Paulo Barci, vislumbraram estar diante de uma metodologia inovadora ao folhear uma revista durante visita a um cliente. O que atraiu a atenção dos dois sócios foi um trabalho sobre destilação extrativa com o etilenoglicol, produto orgânico da família dos álcoois, que mostrava a possibilidade de produzir álcool anidro (usado como aditivo na gasolina) com a mesma qualidade e menor consumo de energia, do professor Antônio José Almeida Meirelles, da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O trabalho publicado em 1991, um resumo da tese de doutorado de Meirelles, havia recebido o prêmio Jovem Cientista de 1989 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Interessados em tecnologias novas, os empresários entraram em contato com o pesquisador na Unicamp. "Nessa conversa firmamos um compromisso verbal", diz Sicchieri. Na volta a Sertãozinho, o empresário procurou a
Usina Santa Elisa para negociar a utilização de uma planta piloto que havia sido desativada na época. Feitas algumas adaptações na planta, a tecnologia começou a ser testada na safra de 1998 com a destilação de 50 mil litros de álcool anidro por dia. Na entressafra, os resultados foram avaliados. "Nessa etapa, começamos a usar o nosso conhecimento de engenharia e processos para fazer algumas modificações na tecnologia básica", diz Sicchieri. Planta piloto - Na safra do ano seguinte, com pequenas mudanças incorporadas ao processo, foram feitos os testes finais na planta piloto. Alguns clientes foram convidados para conhecer o novo processo em funcionamento na usina. Imediatamente foram vendidas sete plantas industriais (conjunto de equipamentos), entre novas e adaptadas ao processo de produção das usinas. A grande vantagem do processo etileno glicol em comparação com o do ciclo hexano, um hidrocarboneto saturado usado como solvente, produto volátil e altamente inflamável bastante utilizado atualmente,
Transmissão de pressão da Smar é usado em porta-aviões
é que com o mesmo consumo total de vapor (fonte de energia utilizada) dá para produzir o dobro de álcool anidro. Além disso, o processo consome menos água do que os tradicionais. Os dois sócios possuem duas empresas, a B&S, encarregada de projetar os equipamentos, e a JW, responsável pela construção. Hoje são 34 as usinas no Brasil que adotaram o processo de destilação extrativa do álcool e uma em El Salvador, na América Central, que pertence ao grupo Cargill, com capacidade de desidratar 700 mil litros de álcool anidro. Diferentemente das brasileiras, a planta industrial de El Salvador foi montada apenas para desidratar o álcool importado, que depois de pronto é enviado para os Estados Unidos. Até o início do mês de setembro, mais quatro unidades, previstas para entrar em operação até 2008, haviam sido vendidas para usinas brasileiras. A trajetória do processo de destilação extrativa é, sem dúvida, uma história de sucesso. Para que isso ocorresse, foi decisivo o interesse de uma indústria de engenharia e equipamentos. "Eles conseguiram transformar o conhecimento
acadêmico em um equipamento real e funcional de acordo com os requisitos que a usina estabelece, mantendo a qualidade do álcool", diz Meirelles. Automação industrial - Foi esse mesmo espírito de trilhar caminhos inovadores que levou um grupo de engenheiros, em 1978, a transformar a empresa Smar Equipamentos Industriais, de Sertãozinho, criada em 1974, na maior fabricante de instrumentos para controle eletrônico de processos industriais no Brasil. Antes, ela prestava serviços de manutenção de turbinas a vapor da indústria açucareira. Atualmente desenvolve e produz sobretudo sensores e transmissores de processos de automação. São equipamentos recheados de tecnologia, essenciais para quase todos os processos industriais. No início eram dez sócios e três funcionários. Hoje são quase mil funcionários, dos quais 150, oriundos das principais universidades brasileiras, fazem parte da equipe de pesquisa e desenvolvimento da empresa.
No ano passado, a empresa faturou US$ 80 milhões e as vendas para o mercado externo, composto por mais de 60 países, representaram 50% desse montante. O investimento em pesquisa e desenvolvimento (P8cD) fica anualmente em torno de 10% a 12% do faturamento e mostra números alentadores. Nos Estados Unidos, a empresa tem 20 patentes concedidas e mais de 30 em andamento. "A Smar é a empresa privada brasileira com mais patentes nos Estados Unidos", diz César Cassiolato, engenheiro eletrônico e diretor de marketing da empresa. O primeiro desenvolvimento da Smar foi a automação de uma esteira de alimentação de cana para a moenda de uma usina no município de Pontal, no interior de São Paulo. O sistema, que controlava a quantidade de cana que deveria ser usada para alimentar os cortadores e as moendas, resultou em um aumento de 20% na produção e abriu caminho para outras inovações. Na década de 1980, a Smar desenvolveu o transmissor de pressão com célula capacitiva, equipamento projetado para medir e controlar a pressão, o nível e a vazão das caldeiras das usinas de açúcar e álcool. Carro-chefe da empresa até hoje, o transmissor ganhou outros mercados. "Esse mesmo sensor é utilizado pelas indústrias de óleo e gás e até nos portaaviões da Marinha norte-americana", diz Cassiolato. Um novo modelo do produto com alta performance e exatidão foi lançado no final de setembro na Fenasucro & Agrocana 2006 (veja quadro na página 63), uma feira internacional de negócios e tecnologia realizada há 14 anos em Sertãozinho. Outro produto da Smar apresentado na feira que ganhou melhorias é um sistema para manutenção e diagnóstico de processo industrial chamado de gerenciamento de ativos. De qualquer lugar do mundo, a qualquer hora, é possível checar como está a situação da produção. A empresa que no final da década de 1970 contava com apenas três funcionários tem hoje dez subsidiárias e mais de 80 representantes espalhados por vários países para poder atender ao mercado mundial. Para atingir esse nível de PESQUISA FAPESP 128 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ 61
excelência, o diferencial foi a aposta dos sócios em ter uma empresa movida a tecnologia, mesmo quando essa idéia era distante da realidade e da vocação industrial brasileira. A palavra inovação tecnológica está incorporada ao vocabulário da indústria sertanezina. Mesmo quando a empresa não tem uma equipe de P&D própria, ela recorre a parcerias de exclusividade para o desenvolvimento dos projetos. É o caso da Sermatec, fabricante de equipamentos para usinas de açúcar e álcool. Os carros-chefes da empresa são difusores, utilizados na extração do caldo de cana-de-açúcar, e caldeiras, dois equipamentos desenvolvidos, respectivamente, com as empresas Uni-Systems e HPB Engenharia, ambas de Sertãozinho. Os difusores são uma alternativa à utilização da moenda, que reinou absoluta até a metade da década de 1980. De lá para cá, várias inovações garantiram maior eficiência ao processo de difusão, fazendo com que se tornasse uma excelente opção para a produção de álcool. "Na moenda, a extração do caldo chega no máximo a 96,5%, com o difusor atingimos 98,5%, o que significa no final de uma safra alguns milhões de dólares de sacarose", diz Daniel Moraes Filho, gerente comercial da Sermatec. "Outra vantagem do difusor está no menor consumo de vapor, o que possibilita o aumento da energia co-gerada (para produção de energia elétrica e venda para as concessionárias)." A principal diferença entre os dois processos está na maneira de extrair a sacarose. A moenda esmaga a cana, enquanto o difusor retira o caldo com água quente.
formam caldo ana em álcool em Sertãozinho
Energia do bagaço - As caldeiras de alta pressão fabricadas pela Sermatec e projetadas pela HPB Engenharia têm entre principais mercados os setores sucroalcooleiro, de papel e celulose, mineração e outros. Essenciais para o funcionamento de usinas de açúcar e álcool, as caldeiras movidas com o vapor oriundo da queima do bagaço de cana geram o vapor que produz a energia necessária para o funcionamento da planta industrial. O excedente, chamado de co-geração, pode ser vendido para a rede de concessionárias da rede elétrica nos lei-
lões promovidos pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Por isso, inovações são sempre bem-vindas para melhorar a eficiência energética das usinas e oferecer maiores alternativas para a matriz energética brasileira. "A caldeira de alta pressão favorece a co-geração", diz Moraes Filho. Sermatec, que tem 700 funcionários, estima para este ano um faturamento da ordem de R$ 400 a R$ 500 milhões. "A empresa está vivendo um momento muito bom do setor, com grande demanda", diz o gerente comercial. Vários projetos em andamento têm como parceiros investidores estrangeiros. Novas unidades para produção de açúcar e álcool estão sendo construídas no Mato Grosso do Sul, no sul de Goiás, norte do estado de São Paulo e no Triângulo Mineiro. Os números da venda de difusores ilustram bem a tendência de expansão do setor. Em 20 anos, a Sermatec comercializou quatro difusores. E só neste ano já foram vendidos nove, com a perspectiva de serem vendidos mais cinco até o final do ano. O crescimento do setor, com cerca de 90 projetos de expansão e ampliação de usinas no Brasil, tem estimulado a diversificação dos negócios das empresas de Sertãozinho. A indústria Caldema, produtora de caldeiras de alta pressão para co-geração de energia, vai investir em parceria com o Grupo Balbo, também sertanezino e produtor de açúcar e álcool, R$ 120 milhões em uma usina de açúcar e álcool em Uberaba, Minas Gerais. Fundada na década de 1970, a empresa tem seu principal foco no setor de açúcar e álcool, mas atende também outros setores, como o de papel e celulose, mineração, químico e petroquímico. O desenvolvimento tecnológico das caldeiras da Caldema é feito em parceria com empresas nacionais e internacionais. No Brasil, o principal parceiro da empresa é a Thermocal Engenharia, de Piracicaba. O mais recente desenvolvimento é uma nova concepção de caldeira com um único tubulão, um grande cilindro de aço onde circula a água na caldeira a vapor. Caldeiras com essa tecnologia, chamada de MonoDrum, já operam no Brasil nas indústrias de papel e celulose, petroquímica e em termelétricas. O no-
vo modelo da empresa, batizado de AMD - Aquatubular MonoDrum, foi desenvolvido especialmente para atender à necessidade de co-geração do setor sucroalcooleiro. "O novo modelo surgiu porque as usinas, com a maior eficiência das turbinas, começaram a ter maior capacidade de produção de vapor por hora e aumento de pressão e, como conseqüência, houve necessidade de desenvolver uma caldeira mais possante", diz Alexandre Martinelli, diretor de marketing da empresa. A procura por caldeiras mais eficientes do ponto de vista energético reflete uma mudança no setor sucroalcooleiro impulsionada pela crise do setor energético brasileiro de 2001, mais conhecida como "crise do apagão". Hoje o produtor pensa em produzir não só o açúcar e o álcool, mas também energia a partir do bagaço da cana. Uma das primeiras a vender a energia excedente para a Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL), que atende o interior de São Paulo, foi a Companhia Energética Santa Elisa, antiga Usina Santa Elisa, também de Sertãozinho, que desde 1940 já gerava energia para consumo próprio. "Temos uma capacidade instalada de 58 megawatts (MW) por hora, dos quais 30 MW são vendidos para a CPFL", diz Henrique Gomes, diretor de administração da empresa. A energia total produzida é suficiente para abastecer diariamente uma cidade de 500 mil habitantes. Uma das maiores empresas do setor sucroalcooleiro, a Santa Elisa fatura R$ 650 milhões por
ano, responde por cerca de 50 mil empregos diretos, produz 40 milhões de litros de álcool por ano e 10 milhões de sacas de açúcar de 50 quilos. Mesmo na entressafra, a usina não pára de produzir energia. "Com a caldeira de alta pressão que usamos temos sobra de bagaço durante a safra", diz Gomes. A venda da energia excedente, proveniente de fonte renovável, para o sistema de energia elétrica habilita a empresa a vender no mercado internacional seus créditos de carbono, o chamado Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) resultante do Protocolo de Kyoto. "Até 2012 já vendemos 50% de nossos créditos de carbono para uma agência sueca", diz Gomes. Aumento de demanda - O movimento de expansão das usinas também teve reflexos no aumento da demanda de turbinas de alta pressão e alta temperatura projetadas para atender aos processos de co-geração de energia, fabricadas pela empresa TGM de Sertãozinho. "Durante todo o ano passado vendemos 60 turbinas. Este ano já vendemos 75, mas devemos chegar a 80", diz o engenheiro mecânico Waldemar Manfrin Júnior, diretor da empresa. Em razão do grande volume de encomendas, o prazo de entrega, que era de seis meses, passou para 15 meses. A empresa, que foi fundada há apenas 15 anos, hoje tem 800 funcionários e exporta para 26 países. A trajetória da TGM é similar à de muitas outras empresas que compõem o pólo industrial de alta tecnologia de Sertãozinho.
Inicialmente, a empresa prestava serviços de manutenção de turbinas, todas importadas. A mudança de rota ocorreu quando a empresa começou a absorver funcionários de uma empresa brasileira que fabricava turbinas com tecnologia alemã, que se mudou de Sertãozinho para Osasco após ser incorporada por uma multinacional. Muitos funcionários qualificados não queriam mudar de cidade. Com isso, de sete funcionários a empresa passou para 50. E o caminho natural foi passar de prestadora de serviços a fabricante de turbinas com tecnologia própria. A primeira foi desenvolvida em 1995. "Todas as turbinas que vendemos são desenvolvidas pela nossa equipe de engenheiros, desde a pequena de 20 quilowatts até a maior, de 70 megawatts", diz Manfrin. São 42 engenheiros trabalhando no projeto de turbinas, porque cada usina requer um projeto diferente. Depois da crise do apagão, os negócios deslancharam com as encomendas das usinas. As contratações também. De 140 funcionários a empresa passou a contar com 280. A empresa, que faturou R$ 200 milhões no ano passado, estima faturar R$ 300 milhões este ano. Os três sócios possuem ainda 50% da empresa TGM Cannes, sediada na Alemanha. Os quatro sócios alemães, que controlam os 50% restantes, trabalhavam anteriormente na alemã Siemens. Hoje as turbinas fabricadas em Sertãozinho, as únicas com tecnologia nacional, são compradas pela TGM Cannes, que se encarrega da montagem. •
Feiras de negócios Dois eventos ligados ao setor sucroalcooleiro, realizados simultaneamente em Sertãozinho, entre os dias 19 e 22 de setembro, reuniram cerca de 55 mil pessoas, 10% a mais do que o previsto inicialmente. Em uma área afastada do centro da cidade, cerca de 40 mil metros quadrados foram reservados para 550 expositores nacionais e estrangeiros que participaram da XIV Feira Internacional da Indústria Sucroalcooleira (Fenasucro) e da IV Feira de Negócios e Tecnologia da Agricultura da Cana-de-
Açúcar (Agrocana), no Centro de Eventos Zanini. Equipamentos, produtos e serviços necessários para todo o plantio e a colheita da cana, além da produção de açúcar e álcool, podiam ser vistos e negociados. A expectativa é que o volume de negócios gerado pela feira e nos três meses subseqüentes atinja cerca de R$ 1,5 bilhão. A Rodada Internacional de Negócios, realizada nos dias 20 e 21, deve resultar em uma movimentação de R$ 7,5 milhões. Foram dois dias de negociações entre dez compradores, sendo três es-
trangeiros - Equador, México e Tanzânia - e 60 vendedores. O montante a ser negociado em função da rodada é calculado com base na avaliação feita pelos compradores ao final de cada reunião com o vendedor. Vários eventos simultâneos ocorreram durante a realização das feiras, como o Fórum Internacional de Álcool e Etanol, que contou com a presença de várias lideranças do setor, além de palestras e do seminário "O caminho do sucesso na redução de vapor na fábrica de açúcar". •
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TECNOLOGIA BEBIDA
A cachaça revelada Estudos aumentam o conhecimento sobre a aguardente e contribuem para a qualidade da bebida MARCOS DE OLIVEIRA
Oque você estuda? Cachaça. O quê? Ah, então você é cachaceiro." Esse tipo de diálogo zombeteiro em resposta a uma pergunta comum nos meios científicos é recebido com certa complacência pelos pesquisadores do Laboratório para o Desenvolvimento da Química da Aguardente (LDQA), do Instituto de Química de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP). Eles sabem da importância dos estudos que fazem para analisar a qualidade e tipificar as várias nuances dessa bebida genuinamente nacional, reconhecida no exterior, quase como o futebol ou a música brasileira, principalmente na famosa caipirinha. O país produz cerca de 2 bilhões de litros e as exportações atingem 11 milhões de litros, números que transformam a pinga na terceira bebida destilada mais consumida no mundo, atrás da coreana soju, feita de arroz, trigo e batata-doce, também conhecida como shochu no Japão, e da vodca. Criado há 12 anos pelo professor Douglas Wagner Franco, o laboratório procura esquadrinhar a cachaça quimicamente. O grupo colaborou para a comprovação química na diferenciação entre o rum e a cachaça nos Estados Unidos, em 2004. Teimosamente, as duas be-
k
bidas feitas de cana-de-açúcar, mas por processos e com aromas e gostos diferentes, eram consideradas a mesma coisa naquele país. A situação mudou com um trabalho apresentado no Journal ofAgricultural and Food Chemistry, importante publicação da área de alimentos. A partir daí a cachaça pode ostentar no rótulo que é uma bebida tipicamente brasileira. Depois, os pesquisadores continuaram a trabalhar para conhecer melhor a composição orgânica e mineral da cachaça. Agora eles desenvolvem métodos e sistemas para tipificar e colaborar para a contínua melhora da bebida. Além de saber o que existe numa amostra de cachaça, conhecendo todos os fenômenos relacionados com a produção e o envelhecimento, os pesquisadores desenvolvem técnicas que indicam, por exemplo, se a bebida foi produzida em alambiques ou numa indústria, se a cana utilizada foi queimada ou não, porque, se queimada, o resultado pode indicar a presença de componentes prejudiciais à saúde do consumidor. "Também analisamos a quantidade mínima de componentes exigidos pela legislação e informamos aos fabricantes, ajudando principalmente o pequeno produtor que planta a cana, colhe, fermenta o caldo, destila e engarrafa", diz o pós-doutorando Daniel Rodrigues Cardoso. Muitas associações e cooperativas
de produtores buscam a qualidade a partir das análises do laboratório. Dentro de um projeto de políticas públicas financiado pela FAPESP, e sem custos para o produtor, eles fazem análises, indicam soluções e complementam o trabalho com palestras de membros do grupo. Componentes especiais - "A legislação mudou muito para os produtores no Brasil, impondo limites de minerais e compostos químicos. Recentemente, Canadá e Alemanha passaram a exigir laudos sobre a presença de vários componentes, entre eles o carbamato de etila, uma substância cancerígena que também pode ser encontrada em alimentos, além de teores de metanol e de outros tipos de álcoois", diz Franco. A presença de cobre, uma preocupação antiga, deixou de ser importante, embora ele contribua para a formação do carbamato. "Os níveis de cobre em nossa cachaça estão, geralmente, dentro dos parâmetros exigidos pela legislação", diz Franco. Em 2005, numa análise de 108 amostras coletadas no estado de São Paulo, o maior produtor nacional, 75% das cachaças estavam em conformidade com a legislação, com teores abaixo de 5 miligramas por litro. Em 2003, em análise semelhante, o índice atingiu 60%. Em relação ao carbamato, nesse mesmo ano, a análise mostrou que 51% das PESQUISA FAPESP 128 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ 65
Cachaças de alambique possuem características químicas diferentes
amostras estavam abaixo do limite estipulado pela legislação. Amostras coletadas em 2005 indicam que 70% possuem teores abaixo do limite. "Esses dados mostram uma crescente preocupação dos produtores em melhorar a qualidade da bebida", diz Cardoso. Embora alguns componentes presentes na cachaça possam trazer preocupação, eles não podem ser eliminados no processo de produção. "O problema é que se alguns componentes forem eliminados a personalidade da bebida desaparece também", diz Franco. Colaborar principalmente com a qualidade da bebida dos pequenos produtores é um trabalho extenso e a longo prazo. "Apesar de termos gerado um grande banco de dados, ainda estamos engatinhando na análise e são poucos os laboratórios no Brasil que fazem esse tipo de estudo", diz Cardoso. Mesmo o Ministério da Agricultura, possuidor da função de fiscalizar as aguardentes nacionais, não tem infra-estrutura para todas as análises que a legislação e os importadores exigem. "Nós fazemos as análises, mas não temos o poder de vetar e dizer 'não venda', apenas aconselhamos e fazemos sugestões para a regulamentação dos padrões de qualidade", diz Franco. 66 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 128
Muitos dos estudos e métodos desenvolvidos nos laboratórios, passíveis de ser utilizados por produtores, cooperativas e associações, serão publicados em revistas voltadas para o setor e em periódicos científicos. São métodos que devem contribuir para um melhor desempenho dos cerca de 30 mil produtores de aguardente no país, segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, responsáveis por mais de 5 mil marcas, muitas delas ingressando num mercado competitivo e exigente de sofisticados bares e restaurantes brasileiros e do exterior. Variáveis da pinga - Grande parte dos estudos realizados pelo grupo partiu das coletas de cachaça nos próprios produtores realizadas em 2005 no estado de São Paulo, em que, das 108 amostras, apenas 27 eram de grandes produtores. "Analisamos 35 variáveis, como a presença de cobre, ferro, metanol, cetona, aldeído e ácido acético." O objetivo foi estabelecer um perfil químico da aguardente e um banco de dados que ao serem transpostos para softwares específicos, chamado de quimiometria, resultam em gráficos que distinguem as amostras de pingas ar-
tesanais de alambiques, com destiladores de cobre, e as de coluna, presentes nas indústrias, com equipamentos de aço inox. Segundo o mestrando Roni Vicente Reche, no gráfico fica evidente que as aguardentes destiladas em coluna são mais semelhantes entre si em relação às de alambique, com menor variação em sua composição química. Elas se posicionam próximas umas das outras em relação aos componentes e raramente ultrapassam os níveis exigidos pela legislação. A partir dessa análise, eles concluíram que o carbamato de etila e o benzaldeído são os compostos mais importantes no grupo das cachaças industriais. Nas aguardentes de alambique a variação nos compostos químicos é maior. Os mais importantes são o formaldeído, o 5-hidroxi-metil-furfural (5HMF), ácido acético e propionaldeído. O 5HMF é encontrado em baixas concentrações, mas, se estiver num nível alto, significa que pedacinhos da cana estavam presentes no processo de destilação. Com esses dados em mãos, os pesquisadores elaboraram um modelo para distinção entre cachaças de alambique e de coluna com 97% de acerto. Outros componentes, que estão sob o foco dos pesquisadores, ainda não são
controlados pela legislação brasileira. São os hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPAs), presentes principalmente quando a cana foi queimada antes da colheita. Trabalhos científicos já relataram a presença desses compostos no uísque, no rum e na grapa, por exemplo. Compostos de hidrocarbonetos como benzoapireno e antraceno possuem potencial cancerígeno até superior ao do carbamato de etila. Para identificar a presença desses compostos nas cachaças, os pesquisadores utilizaram as amostras coletadas e apresentaram um questionário aos produtores para saber se eles queimavam ou não a cana. Depois de examinar 136 amostras num processo de cromatografia, de análise molecular, os pesquisadores traçaram um perfil da cachaça oriunda da cana queimada e da não queimada. O trabalho mostrou que a bebida de cana queimada tinha teores médios de 21 microgramas por litro de HPAs, enquanto as não queimadas apresentavam teores dez vezes menores. Das 136 amostras, 28 foram produzidas com cana queimada e 108 não queimada. Como resultado desses estudos, os pesquisadores desenvolveram uma metodologia para diferenciar a cachaça produzida com os dois tipos. "A porcentagem de acerto é de 95%", diz o pesquisador Carlos Alexandre Galinaro. Um dos estudos que ainda vai tomar muito tempo dos pesquisadores é a análise de madeiras brasileiras úteis na construção de barris para o envelhecimen-
to da cachaça no lugar dos tradicionais produzidos com o carvalho, árvore originária do hemisfério Norte. Ao ficar estocada por longos períodos para envelhecer - mais de um ano na legislação brasileira -, a bebida encorpa, ganha aroma, sabor e coloração mais atraente. As cachaças envelhecidas possuem tonalidades amareladas enquanto as não envelhecidas são transparentes. identificação de substâncias extraídas nesse processo levou ao desenvolvimento de um método analítico para quantificar e determinar os compostos químicos naturais de diferentes madeiras que são incorporados pela cachaça, sempre em comparação com o carvalho {Quercus sp.), árvore usada largamente em todo o mundo para envelhecer bebidas alcoólicas como uísque, vinho e conhaque. Em razão do elevado custo, esses barris são utilizados por produtores brasileiros de aguardente, muitas vezes depois de descartados por produtores de uísque na Escócia, por exemplo. Em São Carlos, de 15 a 20 espécies de madeira estão sendo comparadas com o carvalho. Munidos de um espectrômetro de massas de múltiplo estágio, capaz de verificar, por exemplo, a estrutura e o peso molecular de compostos químicos, os pesquisadores estão analisando substâncias chamadas de polifenóis extraídas da madeira pela bebida. "Polifenóis como a catequina são benéficos para a saúde", diz Cardoso. Eles
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A OS PROJETOS Aspectos físico-químicos da cachaça: formação de flocos, carbamato de etila, envelhecimento e potenc ial
Melhor ia da qualidade da agu ardente e prepc isição de padrão de qualidade MODALIDADES
MODALIDADES
Linha Regular de Auxílio à Pesquisa
COORDENADOR
COORDENADOR DOUGLAS WAGNER FRANCO
Programa de Pesquisas em Políticas Públicas
- USP
INVESTIMENTO
R$ 145.633,75 e US$ 170.885,72 (FAPESP)
DOUGLAS WAGNER FRANCO
- USP
INVESTIMENTO
R$ 113.076,00 e US$ 21.300,00 (FAPESP)
contribuem para inibir o processo de deposição de gordura nas artérias. Cardoso aponta como melhor opção, até agora, para a construção de barris, a árvore-amendoim (Pterogyne sp.), originária da Mata Atlântica, que atinge de 10 a 15 metros de altura e chega a ter entre 40 e 60 centímetros de diâmetro. "Ela tem propriedades sensoriais (gosto, aroma, cor) semelhantes ao carvalho e possui atividade antioxidante superior." Acredita-se que os compostos polifenólicos estão ligados aos mecanismos de defesa celular da madeira, e a presença deles depende da origem geográfica e de fatores climáticos. Para realizar os estudos, os pesquisadores requisitaram madeiras certificadas, fornecidas pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e pelo Laboratório de Estruturas de Madeiras da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da USP. O carvalho, que serve para comparação, foi fornecido pela Universidade de Strathclyde, da Escócia, com procedência tcheca, polonesa, francesa e escocesa. "Queremos identificar marcadores químicos para a espécie de madeira e para o tempo de envelhecimento", diz Cardoso. Uma das madeiras analisadas pelo grupo, a canela-sassafrás (Ocotea pretiosa), se mostrou problemática. "A madeira dessa árvore possui compostos cancerígenos como o safrol e apresentou características pró-oxidantes, acelerando o processo de aterosclerose." Outras madeiras brasileiras que estão em estudo são a castanheira (Castanea sp.), o ipê (Tabebuia chrysotricaha), o jatobá (Hymenaea courbaril) e o louro-canela (Aniba paruiflora). "O trabalho de tipificação que estamos finalizando vai ser importante daqui a alguns anos com o refinamento e o objetivo de melhorar a qualidade da bebida", diz Franco. "Isso acontecerá principalmente no âmbito das exportações, porque os importadores estão cada vez mais exigentes. Há dez anos, não se falava sobre o carbamato de etila." Segundo Franco, apenas o professor Fernando Valadarez Novaes, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP, estudava e discutia o tema. "Hoje é necessário mostrar que a cachaça (até em testes realizados como contraprova no país importador) não possui essa substância em níveis superiores ao estabelecido pela legislação." • PESQUISA FAPESP 128 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ 67
O TECNOLOGIA Os minúsculos ácaros presentes na poeira doméstica são responsáveis por mais de 80% dos casos de pacientes que apresentam alergia respiratória, principalmente asma e rinite alérgica. Duas proteínas, a Der p 1 e a Der p 2, presentes nesse aracmdeo chamado Dermatophagoides pteronyssinus, parente das aranhas e dos carrapatos, são apontadas pelos especialistas como as principais responsáveis por acionar as células de defesa do organismo e provocar a inflamação do nariz, da garganta e dos pulmões. Um dos tratamentos utilizados para combater a alergia respiratória é a imunoterapia com alérgenos, substâncias que provocam reação alérgica em algumas pessoas e são utilizadas em concentrações crescentes até atingir a dose de manutenção em vacinas. "Atualmente, os especialistas que tratam os seus pacientes com esse tipo de imuno-
IMUNOTERAPIA
Kit de diagnóstico inovador monitora a evolução da alergia respiratória
68 • OUTUBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 128
terapia seguem como parâmetro a melhora dos sintomas clínicos", diz o professor Ernesto Akio Taketomi, do Laboratório de Alergia e Imunologia Clínica da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), em Minas Gerais, coordenador de uma pesquisa que resultou no desenvolvimento de uma série de testes inovadores para diagnosticar a alergia e monitorar pacientes em tratamento. Isso significa que todas as etapas da manifestação alérgica podem ser acompanhadas minuciosamente com avaliação laboratorial. Pela nova técnica, com um simples exame de sangue é possível detectar se anticorpos específicos induzidos por proteínas da mesma espécie de ácaro pertencem principalmente ao grupo 1, a Der p 1, ou ao grupo 2, a Der p 2. Os tratamentos realizados hoje não levam em consideração se o paciente é alérgico à proteína do grupo 1 ou 2 desse ácaro. "Estamos tratando igualmente pacientes diferentes", diz o pesquisador. O método também é capaz de apontar a fase em que se encontra a doença,
por meio da detecção do nível de três anticorpos específicos para essas proteínas, o IgE, uma classe de anticorpos que indicam a manifestação da alergia, o IgGl e o IgG4, duas outras classes de anticorpos que proporcionam defesa e são produzidos pelo organismo naturalmente ou induzidos ao longo do tratamento. No início da doença, quando os sintomas alérgicos se manifestam intensamente, devem existir anticorpos IgE elevados e IgGl e IgG4 baixos. Durante o tratamento, se o paciente responde bem clinicamente, essa relação deve ser invertida. A avaliação com os kits permite, com exames de sangue, acompanhar em detalhes a resposta do paciente ao tratamento. Sensível e específico - O sistema utilizado para detectar os anticorpos produzidos pelo organismo, específicos para as proteínas do ácaro, é o ensaio imunoenzimático reverso, ou Elisa reverso, uma metodologia que utiliza anticorpos monoclonais, moléculas produzidas em laboratório e que reagem especificamente com a proteína do áca-
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ro. "Em comparação com a metodologia convencional, é mais sensível e específica", diz Taketomi. A pesquisa que resultou no kit de diagnóstico teve início em 1999. Em junho de 2001, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), que financia o projeto, fez o depósito da patente referente à técnica para detecção de anticorpos IgE. Depois dois estudos foram feitos para avaliar a eficácia do método proposto. Em um deles participaram 47 pacientes selecionados no Setor de Alergia Clínica do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia. Os resultados apontaram que 27 indivíduos, correspondentes a 57,5% dos pacientes, apresentaram anticorpos para as proteínas do grupo 1 e 2. Enquanto os 42,5% restantes responderam apenas à proteína do grupo 1 (3 pacientes, ou 6,4%), à proteína do grupo 2 (4, ou 8,5%) e a nenhuma das duas proteínas (13, ou 27,6%). O estudo foi publicado no Journal of Investigational Allergology and Clinicai Immunology, da Espanha,
em abril deste ano. O outro foi realizado com 73 pacientes de Itumbiara, Goiás, pela médica pediatra Meimei Queirós em sua dissertação de mestrado defendida em 2005, orientada por Taketomi. Os resultados foram semelhantes aos encontrados em Uberlândia. A expectativa é que os kits de diagnóstico sejam distribuídos aos laboratórios de análises clínicas a partir do próximo ano. A produção inicial estimada é de 20 unidades de cada um dos nove diferentes kits para avaliar os tipos de anticorpos específicos para as proteínas do ácaro, totalizando a produção mensal de 180 conjuntos de teste. Como cada unidade poderá ser utilizada para a realização de 40 testes, com a produção mensal prevista será possível realizar 7.200 exames. A produção e a venda dos kits serão feitas pela empresa Laboratório de Investigação em Alergia (Alergolab), criada por Taketomi e instalada no Centro de Incubação de Atividades Empreendedoras da universidade mineira. • DlNORAH ERENO
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TECNOLOGIA FARMACOLOGIA
Esperanças biotecnológicas Empresa prepara imunoterápico para tratar câncer e uma vacina contra carrapatos YURI VASCONCELOS
Se tudo correr como os pesquisadores da empresa paulista Nanocore Biotecnologia esperam, a companhia deverá colocar no mercado, no prazo de três anos, o primeiro medicamento imunoterápico feito de DNA recombinante inteiramente desenvolvido no Brasil. Para que esse objetivo se concretize, a empresa, com sede em Campinas, precisa construir uma área certificada ultralimpa para a fabricação do produto e torcer para que os testes clínicos com a droga, já em andamento, atinjam os resultados almejados. "Estamos bastante otimistas", diz o farmacêutico mineiro José Maciel Rodrigues Júnior, diretor-executivo da Nanocore. "Já fomos bem sucedidos tecnologicamente nas etapas de produção, purificação e controle de qualidade. O imunoterápico de DNA está sendo usado em um estudo clínico com pacientes acometidos de câncer de cabeça e de pescoço e já conseguimos uma formulação em dose única." Medicamentos de DNA recombinante, também conhecidos como vacinas gênicas ou de DNA plasmidial, são uma nova esperança para várias doenças que não apresentam tratamento ou métodos profiláticos mais eficazes. Ao contrário da maioria das vacinas tradicionais, que são desenvolvidas a partir de microorganismos - vírus ou bactérias causadores da doença em sua forma atenuada ou inativa, portanto sem atividade patogênica, os imunoterápicos de DNA baseiam-se apenas no fragmento - normalmente uma proteína - do microorga70 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 128
nismo que desencadeia no organismo humano a resposta imunológica protetora contra a tal enfermidade. Outra diferença é que, no caso das vacinas gênicas, o indivíduo não recebe a vacina pronta mas apenas a mensagem de produção. Assim o próprio DNA passa a produzir a vacina no organismo. Esses medicamentos apresentam potencial para melhorar a resposta do organismo contra determinadas infecções e alguns tipos de tumores. Para o sucesso dessa terapia, é essencial a produção de material gênico e proteína recombinante com grau de pureza que atenda às exigências dos órgãos reguladores, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no Brasil e o Food and Drug Administration (FDA), dos Estados Unidos, responsável pela análise e liberação de medicamentos naquele país. No mundo todo, vários grupos de pesquisa se esforçam para viabilizar esses tratamentos. "Existem, pelo menos, 300 estudos clínicos em andamento", informa Maciel. Mas, segundo o pesquisador, exceto uma vacina de DNA de uso animal para proteger eqüinos do vírus da febre do Oeste do Nilo, nenhuma outra vacina foi lançada comercialmente. Além dos riscos que envolvem os tratamentos que utilizam drogas formuladas a partir da manipulação genética - no passado, alguns pacientes submetidos a tratamentos experimentais com diferentes modalidades de terapia gênica morreram ou desenvolveram câncer -, a dificuldade em tornar realidade esse tratamento reside na complexidade de seu desenvolvimento. O primeiro passo consiste na identificação de uma proteína do mi-
Material composto por microesferas capazes de conduzir prote铆nas no organismo humano e propiciar resposta imunol贸gica
croorganismo causador da doença ou de um tumor, que possa servir como alvo contra o qual a vacinação induzirá proteção imunológica. Essa proteína é conhecida como antígeno, uma molécula que aciona as respostas do sistema imunológico. Em seguida, os pesquisadores precisam encontrar, por meio de um processo de seqüenciamento genético, o gene que codifica essa proteína. "Uma vez identificado o gene, precisamos cloná-lo para multiplicar o número de suas cópias. Para isso, inserimos o gene num plasmídeo, um fragmento de DNA em forma de anel. Esse plasmídeo é colocado numa bactéria não patogênica que, por sua vez, é inserida num meio de cultura. Por um processo de fermentação, essas bactérias se multiplicam e o mesmo ocorre com os plasmídeos, gerando, assim, uma grande quantidade de cópias do gene que será usado na vacina", explica a biomédica Sandra Aparecida dos Santos, responsável pela Divisão de Biotecnologia da Nanocore. A última etapa do processo é a purificação, que se dá com o rompimento das bactérias e o isolamento do plasmídeo. Ele, então, é colocado em microesferas, com diâmetro superior a 1 micrômetro (1 milímetro dividido por mil vezes), formadas por um biopolímero que se degrada lentamente no organismo humano. Essas microesferas, também fabricadas pela Nanocore, são constituídas de um sistema matricial, no qual o DNA se encontra disperso internamente, e apresentam grande aplicação no campo da imunização e da liberação controlada de fármacos no organismo.
bricação. O local precisa ser um ambiente extremamente asséptico, com menos partículas no ar do que uma sala de cirurgia, possuir rígido controle de fluxo de produção e ser dotado de um sistema de destinação adequada de efluentes. Segundo Maciel, já existe uma negociação avançada com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para obtenção de financiamento para o projeto, orçado em alguns milhões de reais.
Negócios clínicos - Localizada no Techno Park Campinas, um condomínio empresarial às margens da rodovia Anhangüera, a cem quilômetros da capital paulista, a Nanocore, criada há três anos, recebe financiamento do Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe) e já fez depósito de patente da formulação do medicamento. A empresa espera agora fechar negócios com investidores para dar seqüência aos estudos clínicos em humanos e iniciar a produção da vacina em larga escala. Ela precisa ampliar suas instalações e construir uma área certificada com as chamadas condições GMP, good manufacturing practices ou boas práticas de fa-
utro desafio para a concretização da primeira vacina de DNA recombinante nacional é exatamente o sucesso dos testes clínicos. A vacina foi usada em um estudo clínico para avaliação de segurança em 22 pacientes terminais acometidos de câncer de cabeça e pescoço. O teste, concluído em outubro do ano passado, foi conduzido por pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). "Por causa de um acordo de confidencialidade, os resultados não podem, por enquanto, ser divulgados, mas posso adiantar que foram promissores", diz Maciel, ex-professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coor-
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Microscopia eletrônica de microesferas. Compostas por biopolímeros, elas se degradam lentamente no organismo
denador da Coordenadoria de Transferência e Inovação Tecnológica daquela universidade, entre 1998 e 2001. Contra carrapato - Além da vacina gênica para tratamento imunoterápico, a Nanocore trabalha em outras linhas de pesquisa biotecnológica. "Já que dominamos a tecnologia de engenharia de proteína recombinante, decidimos nos dedicar ao desenvolvimento de outros bioprodutos, como o hormônio folículo estimulante (FSH) para uso humano e animal, um kit de diagnóstico para hantavírus, a produção de análogos de amilina - substância secretada pelas mesmas glândulas que produzem a insulina no pâncreas —, usados no tratamento de diabetes, e uma vacina para controlar carrapatos. Essa última está em estágio mais avançado e, se tudo der certo, deve estar no mercado no próximo ano", diz Maciel. Esses projetos são desenvolvidos em colaboração com os professores Mari Sogayar e Luiz Tadeu Figueiredo, ambos da USP. Já existem no mercado vacinas similares para controle do carrapato Boophilus microplus, mas, segundo Maciel, elas são problemáticas porque precisam ser administradas em três a cinco doses no primeiro ano da vacinação com reforço a cada seis meses, acarretando um sério
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problema de manejo. A vacina da Nanocore será aplicada em dose única. "Outro problema é que as vacinas existentes não conferem proteção efetiva ao rebanho nacional, uma vez que existem diferentes cepas de carrapato no mundo e as vacinas comerciais são produzidas a partir de cepas de carrapatos não predominantes no Brasil", ressalta a farmacêutica Karla de Melo Lima, responsável pela Divisão de Desenvolvimento Analítico da Nanocore. "Trabalhamos na produção da mesma proteína usada nas vacinas de DNA estrangeiras, mas clonada a partir de cepas brasileiras", diz ela. As vacinas comercialmente disponíveis contra o carrapato são baseadas numa proteína recombinante, a Bm86 — um antígeno encontrado na membrana intestinal do carrapato -, que permanece inacessível ao sistema imune do bovino, não permitindo, de maneira natural, o desenvolvimento da imunidade. Os anticorpos contra esse antígeno nos animais vacinados, junto com outros componentes do plasma, são ingeridos pelo carrapato com o sangue, possibilitando que os anticorpos específicos formados se unam à proteína intestinal, provocando dano no intestino do carrapato. O objetivo final da vacinação não é a morte direta desse aracnídeo, mas o controle
progressivo do número desses pequenos animais em gerações sucessivas, por meio da redução de sua capacidade reprodutiva. "Não queremos exterminar o carrapato porque, indiretamente, ele é responsável por conferir ao gado imunidade a outras doenças. O ideal é manter um nível mínimo de infestação que não cause perdas econômicas", afirma Karla.
OS PROJETOS 1. Produção de DNA plasmidial purificado e proteínas recombinantes, em grande escala, para uso em vacinas e diagnósticos 2. Vacina de dose única contra carrapato bovino MODALIDADE
Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe) COORDENADOR JOSé MACIEL RODRIGUES JúNIOR
Nanocore INVESTIMENTO
1. R$ 363.454,41 e US$ 21.000,00 (FAPESP) 2. R$ 469.080,00 e US$ 12.000,00 (FAPESP)
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A conclusão do estudo de eficácia da vacina, que está sendo desenvolvida em parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) unidade Gado de Corte e com a UFMG, deve acontecer até o final deste ano. Os testes no campo são realizados com cerca de cem animais de diferentes fazendas. "Essa é a última etapa para fins de registro da vacina no Ministério da Agricultura. Nossa idéia é começar a produzi-la no próximo ano", diz Maciel. O desenvolvimento do produto vai obedecer a três fases. Num primeiro momento, a vacina de dose única será formulada com as cepas estrangeiras. A partir do próximo ano, a intenção da Nanocore é passar a usar as cepas brasileiras. "Em um terceiro momento, queremos associar um segundo antígeno à vacina, que seja eficaz também na fase larval do carrapato. O antígeno atual só atua na fase adulta", esclarece Karla. "Queremos que a vacina impeça a fixação da larva, não permitindo que o carrapato complete seu ciclo de vida e se reproduza, gerando outros descendentes." Caso as pesquisas da Nanocore sejam bem-sucedidas, os pecuaristas brasileiros ganharão um forte aliado no combate a uma infestação que, estima-se, causa perdas econômicas de US$ 1 bilhão ao país. • PESQUISA FAPESP 128 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ 73
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HUMANIDADES ÉTICA
Entre a
Virtude e a Fortuna Como analisar a ética da política sem se perder no moralismo CARLOS HAAG
Tm A sereníssima república, conto de Machado de Assis, o bondoso cônego Vargas conta como conseguiu reunir 490 aranhas falantes e decidiu dar aos aracnídeos, bons selvagens políticos, "um governo idôneo". Aproveitando-se do talento dos pupilos em criar teias, deu-lhes um sistema que "exclui os desvarios da paixão, os desazos da inépcia, o congresso da corrupção e da cobiça": um saco em que se colocariam bolas com nomes dos candidatos, que, escolhidos, estavam aptos para a carreira política. Tudo começou bem, mas o "sistema imune a fraudes" logo se viu logrado pela esperteza de várias aranhas. Por fim, desistem da busca da perfeição ética e uma delas anuncia às fiandeiras do saco: "Vós sois a Penélope de nossa república. Tendes a mesma paciência e castidade. Refazei o saco até que Ulisses, cansado de dar às pernas, venha tomar entre nós o lugar que lhe cabe. Ele é a sapiência". Os aracnídeos machadianos descobriram cedo o que ainda nos faz bater cabeças: política e ética são uma mistura complexa, insondável, e resta à sociedade ter a paciência de Penélope e esperar que eleitores, políticos e instituições amadureçam. A ética na política, ou a falta dela, atualmente, é a obsessão nacional, embora uma pesquisa recente feita pelo Ibope revele o celebrado "dilema brasileiro", como preconizado pelo antropólogo Rober76 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP128
to Da Matta: "Corrupção na política: eleitor vítima ou cúmplice?" Os resultados mostraram que o eleitor é muito crítico em relação às suas lideranças políticas em termos de ética e corrupção, mas 75% dos entrevistados confessam que cometeriam os mesmos pecados se tivessem as mesmas oportunidades dos políticos. "Quanto mais ilegalidades o eleitor cometer ou aceitar no seu cotidiano, mais tolerante ele tende a ser com os atos de corrupção dos governantes e dos parlamentares. As pessoas não vêem a ética como um valor absoluto, mas com gradações, em que é possível ser mais ou menos ético", explica Silvia Cervellini, que fez a pesquisa. "É curioso que a mídia, que cumpre um papel de mediador entre a classe dirigente e a sociedade, demonstre tanta indignação com os casos de corrupção se, mostra a pesquisa, os dois extremos da relação não lhe dão tanta importância. Mas a opinião pública aceita e até espera esse discurso por parte da mídia", observa. Assim, dizem os números (que, é claro, podem ser contestados), o eleitor não é vítima, mas cúmplice e se identifica com boa parte das transgressões cometidas pelos políticos. Há bem mais do que 490 aranhas pelo Brasil e pelo globo, já que, embora se preconize a falta de ética política como um fenômeno nacional, ela é detectada em muitos outros países. "A grande política é sempre percebida como amoral pela grande maioria das pessoas porque em sociedades modernas e complexas a barganha política é sempre realizada de forma intransparente para a maioria. O que parece peculiarmente brasileiro é a mani-
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pulação populista da corrupção como tema central do debate político, num país tão carente de discussões públicas de fundo sobre escolhas coletivas fundamentais", argumenta Jessé Souza, sociólogo da Universidade Federal de Juiz de Fora. Nojo - "Todo político é ladrão", é a frase mais ouvida na nossa não tão sereníssima república e o "nojo" pela política parece ter se transformado em virtude, sem falar nos que, como nota o psicanalista Jurandir Freire Costa, preconizam que "num país em que a lei foi posta em descrédito, qualquer promessa de lei, por mais draconiana que seja, pode comportar um poder de sedução irresistível, trazendo a ilusão do eu era feliz e não sabia'". É o famoso "banzo" dos regimes militares, que, para muitos, seriam incorruptíveis, quando, em verdade, "os ciclos autoritários brasileiros forneceram combustível para a corrupção, pois quanto mais fechado um sistema, mais ele tende a respirar seus próprios gases tóxicos", nas palavras de Marco Aurélio Nogueira, cientista político da Unesp e autor de Em defesa da política. Afinal, a democracia não permite segredos, forçando a transparência sobre as práticas de corrupção na política. Mas é preciso tomar cuidado para que não se transforme em verdade a hipótese levantada por Theodore Lowi, da Cornell University, para quem "a transformação da corrupção em questão política tem menos a ver com os níveis de corrupção do que com o nível de conflito entre as elites e com a existência de elites dispostas a usar esse instrumento na luta contra outras". A teia da ética é densa. Para Freire Costa, o pecado capital da questão ética na política é fruto da própria modernidade, com sua "ideologia do bem-estar, que se opõe, quase ponto por ponto, à cultura humanista, democrática e pluralista". Acima de tudo, ela é antipolítica. O modo de vida burguês, nota, sempre definiu o culto do privado como superior ao compromisso público. O político era desprezado por não produzir riqueza: políticos eram os que queriam ter dinheiro sem trabalhar e viviam no terreno da mentira, da falta de valores éticos. Esses estariam trancados no mundo privado, berço dos sentimentos honrados, da honestidade. "Mas a atividade política, menosprezada por razões que os agentes considera78 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 128
vam moralmente elevadas, não atingia o núcleo da idéia do sujeito moral. Mesmo a hipocrisia tinha compromissos com a decência", escreve Freire. O apoliticismo do ethos atual é de outra lavra, já que não se cultivam mais virtudes públicas ou privadas. "Na ideologia do bem-estar, o que conta não é a virtude, mas o sucesso. Não se pede mais que se pense em qual é a melhor escolha para ele e para outro, pedese que calcule qual a melhor tática para ser bem-sucedido." O psicanalista lembra que, em sociedades subdesenvolvidas como a nossa, a apatia política, normalmente exigida nos sistemas capitalistas, se acentua. "Na estabilidade, o apoliticismo da sociedade é compensado pela adesão à ordem existente e pela crença na autoridade dominante. Nas crises, estes pilares desmoronam e o homem comum, habituado a delegar à classe dirigente o poder e a iniciativa de decidir, perde a confiança na Justiça, na política e nas instituições." Reduzido ao "mínimo-eu", nas palavras de Christopher Lasch, é o indivíduo que pensa apenas no seu bem-estar, gerando a chamada "razão cínica". É possível existir ética política nesse estado de coisas? "As sociedades se despolitizam, buscando refugio no mercado e virando as costas para o Estado, aprofundando o divórcio entre este e a população, entre partidos e cidadãos, entre classe política e eleitor. Assim, os políticos ficam cada vez mais distantes dos fins superiores da política (a realização do bem comum) e cada vez mais enredados em seus meios. Cresce o risco de inoperância e de corrupção e diminui o impacto ético-político da política", analisa Nogueira. Para exigir e obter ética é preciso participar da vida política. "A ameaça que ronda nossas sociedades democráticas é a combinação de dois traços que, tomados separadamente, não parecem constituir um perigo radical: a constituição de uma sociedade de consumidores passivos e a crescente solidão dos indivíduos", observou Newton Bignotto, filósofo da UFMG, em Uma sociedade sem virtudes?, palestra que faz parte do ciclo de debates "O esquecimento da política", organizado por Adauto Novaes. Segundo ele, o cidadão se torna impotente para compreender o que
se passa em seu próprio país. "De maneira radical podemos nos perguntar se ainda faz sentido falar de virtudes públicas, ética política, no mundo em que vivemos", avalia Bignotto. ssim, até o século XV a pergunta sobre a virtude e a vida em comum era invariavelmente respondida pelo recurso à idéia de que o bom governante e o bom cidadão dependiam de uma prática virtuosa, e a fórmula de uma sociedade sem virtudes não fazia sentido para o mundo antigo e o medieval. "Com Maquiavel nasce a suspeita de que as virtudes que eram exigidas dos governantes cristãos não eram necessariamente qualidades que poderiam garantir o sucesso e o respeito irrestrito aos conselhos da tradição, e poderiam até ser uma fonte de ruína para os que governam", lembra o filósofo. Sem vulgarizar o conceito de maquiavelismo, pode-se pensar que, a partir de então, a política passou a definir um território diferente daquele da ética. "Não se preconizava o abandono das virtudes morais, mas conseguir manter o poder, derrotar os inimigos, vira também um ponto importante numa sociedade que passa a valorizar o indivíduo e o sucesso nas carreiras." Abria-se a porta para a modernidade que passou a separar virtude moral e virtude política. No mesmo instante, inaugurou-se a suspeita moderna sobre a virtude e a ética nas associações políticas. Rousseau e a Revolução Francesa, cada um a seu modo, tentaram mudar esse estado de coisas. Para o filósofo suíço, era preciso exaltar a ética, a virtude, colocar o bem comum acima dos interesses particulares. Robespierre levaria esse preceito ao extremo e o resultado de "tanta bondade" descambou no Terror, quando, nota Bignotto, "a virtude serve para construir a figura do inimigo e justificar a exclusão dos adversários da cena pública, mais do que para guiar o comportamento dos cidadãos". Entrava em cena o pior acompanhante da ética na política, o moralismo (apelidado entre nós, desde os anos 1940, de udenismo ou lacerdismo, em "homenagem" ao partido que advertia que "de nada valem as formas de governo se é má a qualidade dos homens que nos governam"). Num polêmico artigo escrito em 2001, o filóso-
fo José Arthur Gianotti avisava que "mais do que moral, acusar de imoral publicamente uma pessoa pública é um ato político". Segundo ele, "não há política entre santos" e existiria uma "zona cinzenta da amoralidade": "As leis guardiãs das leis que regem a polis, para serem praticadas, requerem uma zona de amoralidade sem a qual não poderiam funcionar". Giannotti usa uma imagem de Wittgenstein: se o êmbulo fosse rigorosamente ajustado ao oco do pistão, não haveria movimento possível. Essa "necessária zona de indefinição", avalia o filósofo, se abolida, resultaria na ditadura ou no jacobinismo. Mais: "Ser democrático é conviver com esse risco. É preciso diferenciar o juízo moral na esfera pública do juízo moral na intimidade, pois ambos são diferentes zonas de indefinição." Para o jurista Fábio Konder Comparato, autor do recémlançado Ética, "no Brasil, a noção de ética continua em geral ligada à vida privada. Condenamos o governante ou parlamentar ladrão, porque a sua conduta não difere, substancialmente, do ato do particular que mete a mão no bolso alheio. Mas temos enorme dificuldade em perceber que uma política de privatização do Estado, ou de endividamento público, é infinitamente mais danosa para a sociedade atual e o futuro do país do que a prática do peculato", analisa. "Para a grande massa da população, o reino da política nada tem a ver com o da ética: naquele prevalece o princípio do poder, neste o do respeito ao próximo. Essa mentalidade é, em grande parte, fruto da escravidão, que separava o gênero humano em superiores e inferiores." Gilberto Freyre já antecipara a questão. Estado - Segundo o antropólogo, para os brasileiros a culpa de tudo estava sempre no Estado, que era preciso ser modificado, imaginando, com ingenuidade, que os políticos responsáveis por essa transformação não fizessem parte da sociedade que essas reformas objetivariam modificar. "Numa sociedade onde os seguidores da lei são classificados como otários, o 'gato' e o assalto aos bens públicos são correntes. O crime contra o Estado não é desvio, é oportunidade", observou Da Matta em Encontros entre meios efins. "Hoje lamentamos a ausência da ética, quando de fato todo nosso mal-estar com a modernidade que consPESQUISAFAPESP128 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ 79
truímos no Brasil tem tudo a ver não com a ausência, mas com a presença instável e contraditória de muitas éticas. Adotamos valores modernos (isonomia legal, sufrágio universal, lógica de mercado etc.) sem a transformação ou discussão dos valores tradicionais. Adotamos moedas novas, sem nos desfazermos das antigas, e pior ainda, sem dizer à sociedade que tais moedas não valem coisa alguma." O antropólogo cita como exemplo a tendência dos políticos em "tomar posse" dos seus cargos ou, para empregar a sua definição de "ética dupla", ora se tomam decisões seguindo valores modernos e impessoais, ora se age em função da família, das simpatias pessoais e das relações que consideram o caso de "João" ou "José" diferente, porque eles são amigos e estão acima da lei. "A ética como instrumento de gestão lança luz na complexa e difícil dialética entre o princípio da compaixão (para os 'nossos') e da justiça (para os outros')", anota. Na promiscuidade entre o velho e o novo, como conciliar igualdade política e hierarquia "familística" e social?, pergunta Da Matta. "A resposta nua e crua é a da corrupção, a da tara de origem e do atraso histórico. A mais sutil é da mentira, da malandragem e dos vários populismos que prometem melhorar a vida de todos, sem tirar de ninguém", diz ele. Ou, nas palavras de Oliveira Vianna: "Sou capaz de todas as coragens, menos da coragem de resistir aos amigos". A pesquisa do Ibope faz eco a essas palavras que demonstram, continua Vianna, a nossa incapacidade moral de resistir às sugestões da amizade, para sobrepor às contingências do personalismo os grandes interesses sociais. É preciso tecer muito ainda para reunir ética e política. Apesar dessa ciência, preferimos abdicar da política sem delongas, como se ela se tivesse efetivamente transformado no espaço weberiano do desencantamento. A tentativa de galvanizar esse encanto nem sempre é saudável. "Essa espécie de rejeição ética da política configura a profunda contradição em que estamos enredados. Pois se definimos o indivíduo como social, então a separação entre ética e política configura a ruptura entre indivíduo e sociedade, o que no limite significa 80 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 128
ruptura do indivíduo com ele mesmo", afirmou o filósofo Franklin Leopoldo e Silva em sua palestra "A banalização da ética", também do ciclo "O esquecimento da política". "Nessas condições, a ética ganha uma autonomia de caráter ideológico, na medida em que aparece como a ilusão da preservação de uma subjetividade que já não encontra no plano social as possibilidades de realização, uma vez que a instância do social, precisamente por ter se tornado apenas o lugar de manifestação do interesse privado, mostra-se despida de qualquer caráter político-comunitário." teia se retorce. "A questão central não está na inadequação que consistiria em julgar ações públicas com critérios privados; o fundamental é que as ações ocorrem de modo caracteristicamente privado nas suas causas e conseqüências, embora mascaradas pela forma de ação pública, e são julgadas de modo privado no contexto de um espetáculo público", observa Franklin. Para ele, se a vida política é autêntica (no sentido arendtiano da Antigüidade, em que se entrecruzavam opiniões políticas diversas), a sua moralização é desnecessária, pois o verdadeiro sentido da vida pública está na reciprocidade entre ética e política. Quando essa vida não é autêntica, sua moralização é inútil, porque a quebra de reciprocidade desde logo compromete o sentido dos dois elementos e de sua vinculação intrínseca. "Quando falamos de coisa pública (sua deterioração como experiência real), a falência simultânea da política e da ética torna o discurso moralizante, ou a tentativa de substituição da política pela ética, um procedimento de banalização e uma estratégia de cinismo." Isso se reflete na decisão de voto. Para Marco Aurélio Nogueira, o brasileiro tem votado e participado politicamente para se defender, não para tomar a iniciativa e atacar. "Uma cultura de desencantamento, somada a uma visão minimalista da democracia (reduzida ao rito eleitoral, visto como via-crúcis, estranha à participação substantiva) ajuda a expropriar as pessoas da capacidade de decidir. A incerteza passa a prevalecer sobre a hipótese mesma da regulação, ou seja, do equilíbrio e da sensatez."
Para o cientista político Alberto Carlos de Almeida, pode-se dividir o eleitor em dois tipos, característicos de sua visão sobre o que deve ser a relação entre ética e política: o cidadão delegativo e seu oposto, o não-delegativo. O primeiro é uma pessoa que ou não tem noção de direitos, ou, se a tem, não a considera importante já que ninguém os cumpre ou os faz cumprir. Ele espera que os outros ajam corretamente (do ponto de vista de ética única) e encontra justificativa para que ele também não aja corretamente. Não vê problemas em se utilizar do público como se fosse privado e seu tipo de político é alguém que resolva os seus problemas, mesmo que de forma autoritária, e cuide do que é público, já que ele não quer se preocupar com isso. Assim, não exige um comportamento reto do político, desde que, é claro, ele resolva seus problemas. O tipo não-delegativo conhece e exige seus direitos e apoia uma ética única, considerando o "jeitinho" brasileiro uma forma de corrupção. Há um porém. Como lembra o cientista político Yan de Souza Carreirão, o eleitor que não se prende ao aspecto ético o faz seguindo um raciocínio todo seu que lhe diz não haver inocentes na política, do ponto de vista ético, especialmente considerando os partidos mais relevantes no cenário político nacional. Não se pode colocar sobre eles, de forma atabalhoada, a célebre crítica brechtiana de que "primeiro vem a barriga e só depois vem a moral". "A crise moral acompanha a crise política, econômica e social", avisa Freire Costa. A cultura narcísica que se estabelece, nutrida pela decadência social e pelo descrédito da justiça e da lei, leva a um desejo de fruição imediata do presente, a submissão ao status quo e a oposição sistemática e metódica a qualquer projeto de mudança que implique cooperação social e negociação não violenta de interesses particulares. A moral vira banal. Frouxidão - Acompanhando esse movimento surge a frouxidão da relação entre ética e política, que traz muitas vezes o chamado "voto econômico", em que o eleitor valoriza sobretudo os resultados e menos a questão de saber quem os produz ou quais são e como serão removidos os eventuais obstáculos. "É um voto pragmático, que julga o can-
didato não pela sua ética ou pela identificação do eleitor com sua ideologia ou personalidade, mas por seu potencial de realizações", observa Elizabeth Balbachevsky em Identidade, oposição e pragmatismo, uma análise do conteúdo estratégico da decisão eleitoral em 13 anos de eleições (1989, 1994, 1998 e 2002). Pelos resultados, não é de hoje que o eleitor se deixa levar mais pelo que espera ganhar do que pela retidão de caráter do seu governante ou por uma eventual identificação ideológica. Collor e FHC, antes de Lula, se beneficiaram dessa projeção do eleitor sobre eles como "realizadores futuros". Apenas quando Lula conseguiu reunir esse quesito à identificação entre ele e o eleitor é que conseguiu vencer uma eleição. O futuro, então, parece não nos reservar surpresas melhores. "Hannah Arendt afirmou certa vez, quando questionada se a política ainda fazia sentido, que não deveríamos nos esquecer que originalmente o sentido da política era a liberdade, e que isso continuava a ser válido, se quiséssemos manter a nossa crença nos valores que aprendemos a defender como o mais alto ideal da vida em comum", acredita Bignotto. Segundo o filósofo, se para falarmos em virtudes nas sociedades de hoje não podemos apelar para o comportamento heróico de seus cidadãos, nem por isso precisamos relegar a busca pela virtude a um passado impossível de ser recuperado. "As virtudes republicanas possíveis em nosso tempo talvez não sejam tão espetaculares quanto as que aprendemos a admirar em personagens do passado, mas em sua modéstia poderão apontar para a manutenção do espaço da política como aquele no qual nossas potencialidades possam ir além do fato de sermos consumidores." Caso contrário, adverte, estaremos condenados a viver numa sociedade sem virtudes, presa fácil dos processos e vivendo "solitários no meio de homens solitários". Ou, nas palavras de Da Matta: "Chamar tudo de 'mar de lama' é reiterar um moralismo interesseiro e quase sempre autoflagelatório e ler a política com olhos implacáveis de uma virgem em noviciado". Uma democracia jovem, recém-saída do autoritarismo, precisa, como as 490 aranhas do cônego Vargas, a paciência de esperar o regresso da sabedoria de Ulisses. • PESQUISA FAPESP 128 ■ OUTUBRO DE 2006 • 81
O HUMANIDADES SOCIOLOGIA
O exorcismo da internet Psicólogos e advogados defendem moderação em críticas à rede e dizem que mídia virtual apenas exterioriza distúrbios do mundo real GONçALO JúNIOR
ma série de fatos negativos ligados ao comportamento humano, ao que parece, dificilmente aconteceria fora da internet. Será essa uma verdade? A ausência física e do contato de voz, a falta de indicativos mais claros sobre quem é o interlocutor e a dificuldade de encontrar pistas sobre a origem de mensagens e conteúdos ajudam a fundamentar essa idéia. Descrita como a mais anárquica e livre forma de manifestação criada pelo homem, a rede mundial de computadores se popularizou em parte pela facilidade de comunicação e pelo preço do serviço. Ao contrário de outras mídias - cinema, rádio, televisão etc. -, entretanto, não é algo acabado. Reinventa-se a cada dia e suas possibilidades continuam não dimensionáveis. Diversas formas de relações - pessoais, profissionais ou comerciais - são travadas via computador por um número expressivo de usuários - nada menos que 694 milhões em todo o mundo, segundo estudo da empresa ComScore Networks divulgado em junho deste ano. A vulnerabilidade para se enganar pessoas, porém, ainda é um problema usado pela própria mídia contra si mesma. Por isso, fascina e assusta. Fronteiras físicas e ideológicas construídas ao longo de milhares de anos de civilização parecem ter ruído num piscar de olhos. Um mundo de idéias, imagens e informações que literalmente se abre na tela faz, por outro lado, com que internautas fiquem cada vez mais diante do equipamento, mudem sua rotina e a forma de se comunicar. Para o bem e para o mal. Se falar com o vizinho sempre foi um problema, o mesmo não acontece pela rede entre alguém que vive em São Paulo e em Paris ou Tóquio. Embora a maioria da população use o sistema de modo saudável, em alguns casos torna-se problema de po82 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 128
lícia ou de comportamento. Os adolescentes, ao que parece, são os mais vulneráveis. Muitos iniciam namoros sérios ou passam muitas horas em salas de conversa e sites que abordam temas como sexo e violência. Atitudes assim fazem com que a imprensa traga discussões, queixas e denúncias. Surgem mitos, alardes e, de certo modo, a "demonização" da rede. Até que ponto, no entanto, devem se preocupar pais, educadores e a polícia? Pelo menos três áreas em especial parecem mais atraídas para esse debate: a psicologia, o direito e a sociologia, que já estuda as comunidades virtuais. Na psicologia, não é difícil encontrar profissionais que estão se especializando no tema. Mas o desconhecimento ainda é predominante. E o preconceito também. Em São Paulo, um dos pioneiros em estudar a Web é o Núcleo de Pesquisas em Psicologia e Informática (NPPI), da PUC-SP, fundado em 1995, quando o uso da internet era ainda muito restrito aos ambientes acadêmicos. A unidade surgiu da percepção quanto ao caráter extremamente ágil e versátil que a interatividade propiciada pela informatização poderia imprimir ao diálogo clínica/comunidade. Rosa Maria Farah, uma das coordenadoras do NPPI, observa que a Web não faz com que as pessoas tenham desvio de padrão. "Talvez a formulação mais adequada para essa questão seja por que algumas pessoas se valem da internet para revelar seu lado mais sombrio?" A professora lembra que a rede, por si mesma e enquanto uma ferramenta, não é capaz de nenhuma "ação". Ou seja, não é ela quem revela, mas os sujeitos que, eventualmente, mostram-se por esse meio. "No espaço virtual são as pessoas que agem e se utilizam das ferramentas oferecidas pela rede, de acordo com a forma como são capazes: para expressar tanto seus aspectos luminosos quanto os mais sombrios." A psicóloga explica que, pela visão da psicologia analítica, o que diferencia um do outro é a forma na qual cada usuário lida com esses aspectos menos reconheci-
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dos da personalidade, ou ainda tidos como menos "nobres". A Web pode apenas ser percebida como um meio mais ou menos adequado para a expressão dos seus potenciais, nesta ou naquela direção. No caso de atos ilícitos ou ilegais, tanto o "anonimato" quanto a aparente impunidade - condições supostamente implícitas a esse ambiente de navegação - poderiam ser tão estimulantes quanto "uma rua escura" possa ser estímulo para alguém se tornar um assaltante. Os problemas mais freqüentes que psicólogos, psicanalistas ou mesmo psiquiatras têm tratado são usos abusivos da rede com diferentes versões - chats, jogos on-line, sexo virtual (vivido de modo exclusivo), invasão de privacidade e infidelidade virtual. Dentre os casos que muito chamaram a atenção de Rosa Maria estão aqueles que, via rede, revelam as dificuldades latentes dos relacionamentos. Especialmente nas relações amorosas. Estes vêm à tona a partir das vivências e no mundo virtual. "A internet não cria 'novos' problemas de relacionamento familiar, mas novas 'formas de expressão' para tais problemas ou dificuldades", observa. Professor do Instituto de Psicologia Comportamental de São Carlos e especializado em internet, psicoterapia e comunicação mediada pelo computador, Oliver Zancul Prado explica que a maneira como o usuário interage com o mundo fica evidente na internet por duas razões principais. Primeira, na rede as coisas ficam registradas. Ou seja, se alguém em um encontro casual num bar diz ter 32 anos e na verdade tem 35, isso não aparece ou não tem maiores repercussões, pois é considerada apenas uma "mentira". Pelo computador, o que se fala ou publica fica registrado e é possível verificar e ler novamente. A segunda razão, a principal, é o fato de que a comunicação se dá a distância, o falante está fisicamente longe do ouvinte. Implica que as conseqüências do que se fala não necessariamente serão as mesmas caso se estivesse face a face. "Por isso, torna-se mais fácil inventar ou manipular informações e características sem que se perceba alguma conseqüência significativa em curto prazo." Prado destaca ainda que a criação de personagens é algo que sempre foi incorporado à vida humana. Antes, porém, estava restrito ao teatro e às obras artísticas. Agora isso é feito no dia-a-dia pelo computador. "Não existe nada de anormal nisso, poderia ser considerado uma patologia, caso um indivíduo tivesse prejuízos concretos em sua vida em decorrência desses comportamentos." Prado sugere que se separem as coisas. Os usuários precisam sim utilizar mecanismos para evitar comportamentos criminosos na internet. Também é necessário que reflitam sobre o tipo de informação que deixam sobre si. "Existe todo um contexto que envolve a perda e a desvalorização da privacidade que deve ser considerado." Diferente é ter medo excessivo ou considerar que a Web é um local de pessoas psicóticas, sombrias ou nefastas e que não se deve conhecer, comunicar-se ou se 84 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 128
envolver com pessoas via internet. "Isso seria mais um medo sem fundamento, pois os psicóticos, sombrios e nefastos são pessoas e estão vivendo em nossas sociedades e podem ser encontrados também fora da internet." s psicólogos reconhecem o dilema que envolve a privacidade e o controle da internet. Lembram, no entanto, que, se criminosos planejam crimes ou pedófilos trocam fotos via internet com facilidade, a polícia também tem cada vez mais mecanismos para localizá-los, uma vez que muitos desses crimes ficam registrados, com autor. "A questão é muito complexa para ser pensada sem uma discussão e reflexão maior, sem pensar nas implicações sociais e futuras", avalia Prado. Por enquanto, trata-se apenas de crimes graves, mas e quanto a cópias de músicas? E quando isso se tratar de opiniões, críticas ou crimes ideológicos ou a privacidade de figuras públicas? Para ele, analisar isso do ponto de vista da personalidade ou da censura é ver o problema de uma maneira muito simplista e não considerar uma diversidade de implicações disso tudo. Uma oportunidade para quem quer aprofundar na discussão será a realização, entre 15 e 16 de novembro próximos, do III Seminário Brasileiro de Psicologia e Informática (Psicoinfo), organizado pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. O fórum pretende, entre outros objetivos, incentivar a formação de grupos, organizar psicólogos que trabalham na área e incluir profissionais de tecnologia que fazem trabalhos que têm interface com a psicologia, mas ainda não interagem com os psicólogos. Serão apresentados trabalhos de psicólogos aplicados à informática, serviços via internet, uso da informática na prática profissional, subjetividade e impacto da internet e da tecnologia etc. Direito - Na área jurídica, crimes de toda espécie na internet são hoje desafios não apenas para os legisladores como para juizes e advogados. "Os profissionais da área jurídica ainda não se encontram, na sua maioria, identificados com o direito e as novas tecnologias. Por ser dinâmica, a legislação necessita da agilidade de todos os atores nas mais diversas searas", afirma José Carlos de Araújo Almeida Filho, uma das maiores autoridades do país no setor. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico e professor no curso de pós-graduação em direito da informática da ESA-SP (OAB), é autor do livro A responsabilidade civil do juiz e manual de informática jurídica e direito da informática (Forense, 2005). Para ele, há crimes já tipificados como pedofilia e estelionato que não necessitam de norma porque o que muda é o modus operandi. O que mudou foi o objeto, a forma de praticá-lo. "Todos os profissionais envolvidos devem estar atentos às mudanças, desde o aparelhamento da polícia até a magistratura, na hora de aplicar a pena." E recomenda que o tópico da perícia forense seja bem examinado, sob pena de se ter crimes sem qualquer solução, ou, quando os tem, correr o risco de
denúncias deficientes e sentenças sem eficácia. "O direito está 'pronto' para o desafio. A questão é saber se os operadores também estão." Crimes próprios de informática são poucos, como invasão de computadores e responsabilidade criminal dos blogs e outros sites com informações jornalísticas, uma vez que não se pode aplicar a legislação de imprensa nestes casos. "A invasão não é um crime em nosso sistema, daí as condenações serem mais brandas. Seria necessário que o Congresso estivesse atento a essas novas modalidades, estabelecer previsão expressa no texto legal sobre a negativa de informação em casos de crimes." A lentidão dos legisladores para fazer ajustes é um dos entraves para o Judiciário brasileiro. O código de processo eletrônico tramita há mais de cinco anos e até o momento nem sequer foi a plenário para votação. Há diversos projetos de lei tramitando no Congresso, mas a morosidade é excessiva. Os prazos não são cumpridos. "É preciso que a comunidade científica fiscalize a ação do Legislativo nesse sentido. Projetos de lei existem aos montes, no que diz respeito à informática e ao direito, mas não vêm sendo tratados como deveriam", alerta o professor de direito da informática. O doutor em direito do Estado e mestre em ciências penais Túlio Lima Vianna também acredita que os principais desafios do direito são os velhos de sem-
pre. Ou seja, as novas tecnologias apenas refletem os velhos dilemas. "Calúnia, difamação e injúria, por exemplo, podem ser praticadas por meio de um jornal impresso, mas também por um jornal on-line. A internet mudou os meios, mas a estrutura jurídica continua a mesma." Viana é autor do livro Fundamentos de direito penal informático (Forense, 2003), no qual conceitua e classifica delitos informáticos, aspectos criminológicos de hackers e crackers e analisa a legislação de mais de dez países, entre outros temas. Para modernizar a lei, sugere ele, seria preciso criar um grupo de juristas para fazer um anteprojeto mais técnico que aquele que aguarda votação. Lamenta que não há interesse político para isso. Como a internet, por sua própria arquitetura, não pode ser controlada, o que se pode fazer, sugere ele, é criar dificuldades para potenciais criminosos. "Mas quem estiver mal-intencionado sempre poderá buscar refúgio em um provedor em um país com legislação menos rígida." Por outro lado, alfineta o advogado, a internet em regra é bem mais segura que a maioria das grandes cidades. "É preciso, porém, ter as mínimas cautelas inerentes quando se trava contato com pessoas desconhecidas. O que não pode haver é paranóia. Os cuidados com contatos por computador são os mesmos que se tem quando se conhece alguém no metrô. •
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O HUMANIDADES HISTORIA
Lady Macbeth tropical Cartas de dona Leopoldina revelam articuladora política que odiava a democracia
A imperatriz dona Leopoldina, por Debret
ão confio em tua natureza. Gostarias de ser grande, pois não te falta ambição. Mas, aquilo que desejas ardentemente, tu o desejas santamente. Não gostarias de roubar no jogo, mas não te importarias de ganhar ilegitimamente. Sentes mais medo de fazê-lo do que desejo de não poder fazê-lo. Vem aqui para que eu possa derramar minha coragem em teu ouvido." Lady Macbeth, como boa mulher, conhece o seu marido. "O Príncipe está decidido, mas não tanto quanto eu desejaria. Muito me tem custado alcançar tudo isto e só desejaria insuflar uma decisão mais firme", escreveu Leopoldina, em janeiro de 1822, a um amigo austríaco mostrando também conhecer o seu, dom Pedro I, algo claudicante entre ficar no Brasil e desafiar a aristocracia lusitana, que o queria de volta a Portugal. Por ela, ele ficou. "Aqui tudo é confusão e por toda parte dominam os princípios novos da afamada liberdade e independência. Estão trabalhando para formar uma Confederação dos Povos, no sistema democrático, como nos Estados livres da América do Norte. O meu marido, que, infelizmente, ama tudo que é novidade, está entusiasmado e terá, no fim, que espiar tudo", reclamou Leopoldina em carta ao pai, o imperador austríaco Francisco I, em junho do mesmo ano. Longe de um sistema democrático, o Brasil virou um Império autocrático, "mantendo a glória da Casa austríaca, preservando a monarquia em terras portuguesas e afastando o espírito popular das idéias republicanas", orgulhou-se a futura impera-
triz do Brasil em outra missiva ao papai monarca. Longe da jovem gorducha de olhos azuis, ora descrita como sonsa, ora como a "articuladora da independência do Brasil", surge agora um novo retrato de Leopoldina Josefa Carolina Francisca Fernanda Beatriz de Habsburgo-Lorena (acrescentou, por conta própria, um Maria ao nome quilométrico, para agradar aos Bragança), nascida em Viena em 1797 e morta no Rio em 1826. O mérito é do livro Cartas de uma imperatriz, recém-lançado pela Estação Liberdade, reunião de 315 cartas escritas por Leopoldina, da juventude austríaca à morte no Brasil. Num mundo historiográfico como o nacional, que tem dificuldades em lidar com figuras individuais, preferindo concentrar-se nas superestruturas, deixando os protagonistas da história nas mãos de aventureiros, que os endeusam ou ridicularizam, Leopoldina, pouco estudada, foi "recuperada" há pouco como uma peça importante no processo da criação do Império Brasileiro, em especial por sua ligação com José Bonifácio. Suas cartas, lidas separadamente, podem mesmo dar essa impressão. Mas o conjunto da obra revela uma digna filha do Congresso de Viena, acostumada ao jogo político e ao "sacrifício" exigido das princesas em nome de alianças. Jovem, em Viena, passou anos ouvindo os pais falarem de Napoleão como o "corso maldito" apenas para, depois, ver o imperador entregar a mão de sua irmã mais próxima, Maria Luísa, ao francês. Não cabe a visão, aburguesada, da mulher Leopoldina solitária num país selvagem e com um marido infiel. Isso é enredo de romance romântico. "Se tomássemos Leopoldina apenas como mulher, podíamos perder, à luz da história, a complexidade que envolveu sua função de princesa, a qual ela PESQUISA FAPESP 128 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ 87
aprendeu e aceitou, numa sociedade que era regulada por ritos do Antigo Regime", observa Andréa Slemian, historiadora da USP e responsável por um dos cinco ensaios que acompanham a seleção das cartas da imperatriz. Nesse contexto, Pedro e sua mulher são um arremedo tropical dos Macbeth, cheios de palavras nobres e ações nem tanto. "É preciso que volte com a maior brevidade, esteja persuadido que não é o amor, amizade, que me faz desejar, mais do que nunca, sua pronta presença, mas sim as críticas circunstâncias em que se acha o amado Brasil", escreveu ao marido, em agosto de 1822, deixando claro sua vontade de derramar coragem em seu ouvido. Ou ainda: "Eis uma verdadeira sorte que tenha sido decidida a nossa permanência no Brasil (o Fico) e, pensando em política, esse é o único meio de evitar a perda total da monarquia portuguesa", asseverou ao Marquês de Marialva, nobre português que tratou da aliança de seu casamento, em 1917, com o filho de dom João VI. Em cada carta, o tom certo e adequado ao destinatário. A Bonifácio, chega a renegar sua origem: "Neste instante vem-me o d. Francisco 88 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 128
dizer que também na casa do Albano se ajuntam esses malvados chamados patriotas europeus; nós brasileiros os desprezamos como devemos". Curiosamente, ao escrever ao "Caríssimo papai!", o tom é outro: "A grandeza do Brasil é de supremo interesse para as potências européias, especialmente do ponto de vista comercial, e o maior desejo das Cortes aqui reunidas é fechar contratos comerciais com as possessões austríacas na Itália e estabelecer seu monopólio comercial em seus portos, o que seria extremamente vantajoso para minha querida pátria, pela riqueza extraordinária do Brasil". Qual a verdadeira Leopoldina? "Embora o senhor sempre tenha proibido meu coração e mente, amantes apenas da verdade, de falar abertamente, não posso desta vez de tentar minha sorte", diz ao pai, assinando "sua filha mui obediente". "Leopoldina, para além da clareza que demonstrava quanto à força política da palavra impressa, sabia que era uma peça importante como pivô da Santa Aliança no Brasil, na construção de alternativas ao Império Português", observa Andréa. "Ao contrário de frisar apenas a escolha pessoal da princesa pela defesa da Inde-
pendência, sua opção deve ser pensada em meio a uma luta política em que os grupos do Centro-Sul do Brasil levaram adiante essa alternativa pela necessidade de manter a supremacia do Rio sobre o resto da América portuguesa; por outro, deve-se levar em conta sua atuação como articuladora política que manteve muito claramente uma posição firme em relação a suas convicções dinásticas, para evitar que princípios democráticos se instalassem na capital da colônia." A pátria brasileira revela-se pródiga em mulheres. Carlota Joaquina, a sogra detestada de Leopoldina (que a via como devassa e abominava seu hábito de comer lagartos), também foi uma força importante na disputa dinástica, pressionando dom João VI por interesses espanhóis. A educação pragmática dos Habsburgos gerou um ser inteligente e politicamente consciente, apesar da paixão da imperatriz pelas ciências naturais, em particular pela mineralogia. No auge da crise pré-Independência, alertou o pai em carta que, "se tudo por aqui andar mal e tomar a feição de revolução francesa, irei com meus filhos para minha pátria, pois, quanto ao meu marido, es-
Aclamação de dom Pedro I como imperador do Brasil Na página ao lado, vista do Rio de Janeiro por Thomas Ender
tou convencida, com pesar, que a venda da cegueira não lhe sairá dos olhos; espero que me dareis a colocação de Diretor de Mineralogia, que uma vez me prometeste por pilhéria ao jantar". Teve o cuidado de estudar o Brasil antes de vir para cá e aprendeu bem o português. Mas não era a primeira opção de dom João para o seu herdeiro, que escolheu a austríaca pelo prestígio do império de seu pai, que colocaria Portugal na Santa Aliança e aliviaria um pouco a pressão inglesa sobre a Corte lisboeta. Para Francisco I, o casamento representava a chance de se colocar no Novo Mundo, pleno de riquezas não exploradas. "Leopoldina estava imbuída de uma imagem dos brasileiros como bons selvagens, ainda não corrompidos pela civilização, de acordo com o pensamento de Rousseau", explica Andréa. Casou-se com Pedro I por procuração e chegou ao Rio em 1817, com 20 anos, descrevendo o Brasil ao pai como "a Suíça com o mais lindo e suave céu". Em pouco tempo, as cartas falariam do calor insuportável, da
brutalidade dos parentes e dos brasileiros, da desconfiança generalizada com a Corte exilada, dos muitos macacos que enviou para a Áustria e, principalmente, do seu esforço em civilizar um pouco o marido, a quem chamou, antes de o conhecer, apenas vendo uma imagem num broche, em Viena, dada por Marialva, de "seu Adônis". edro não se impressionou tanto com a moça, de seios fartos, que, nas palavras de um contemporâneo, "era baixa, tinha um rosto pálido e cabelos loiros desbotados; graça e postura também não lhe eram próprias, porque sempre teve aversão a corpete e cinta, tendo os lábios salientes dos Habsburgos e uma expressão séria pouco amável lhe estampava o rosto". Comia, lia compulsivamente e, como boa discípula de Humboldt, saía em caminhadas pelos arredores da cidade, vistas como pouco adequadas a uma dama da Corte. Tampouco era comum a influência que exercia sobre os assuntos de Estado do marido. Em suas cartas, percebe-se que a de-
cisão de permanecer no Brasil de Pedro I foi em boa monta antecipada pela sábia atitude política de Leopoldina de não deixar o país e, com isso, pôr a perder os projetos monárquicos do casal. Era ela, aliás, que estava no comando do reino quando dom Pedro partiu em viagem a São Paulo e foi a jovem austríaca que, despachando no lugar do marido, convocou o Conselho de Estado no dia 2 de setembro de 1822 e decidiu, com os ministros, pela separação entre Brasil e Portugal. Enquanto o marido gritava no Ipiranga, idealizou a bandeira brasileira reunindo o verde, da Casa de Bragança, com o amarelo, da Casa dos Habsburgos, colocando, num losango o brasão monárquico com as armas imperiais, numa inusitada homenagem de dom Pedro I a Bonaparte. Mas toda Lady Macbeth merece um marido ingrato. Encantado pela Marquesa de Santos, Pedro pôs a mulher num cativeiro de luxo, humilhou-a e chegou, dizem, a agredi-la, provocando um aborto. Depressiva, morreu em 1826, aos 30 anos. "Deveria ter morrido mais tarde", teria dito Macbeth. • CARLOS HAAG PESQUISA FAPESP 128 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ 89
Resenha
Abril despedaçado Revolução dos Cravos, até então mal-interpretada, é reconhecida como marco do século
CARLOS HAAG
E
orno quase tudo que se passa no verão, as utopias levantadas pela revolução portuguesa de 25 de abril de 1974 duraram pouco. "Sei que estás em festa, pá/ fico contente/ e enquanto estou ausente/ guarda um cravo para mim", entusiasmou-se Chico Buarque com o que parecia ser a primeira experiência comunista no país da Europa Ocidental desde o início da Guerra Fria. Quatro anos mais tarde, os versos foram alterados para um tom mais nostálgico, embora mais realista: "Foi bonita a festa, pá/ fiquei contente/ e inda guardo renitente/ um velho cravo para mim". Era a Revolução dos Cravos, por causa das flores colocadas por civis nas armas dos militares que derrubaram o que restava da ditadura de Salazar, iniciada em 1932, e continuada, já apodrecida pelos problemas de descolonização, por Marcelo Caetano. As flores murcharam e o movimento caiu no esquecimento, visto por muitos como mais uma "do português". Ledo engano. O império derrotado, do brasilianista Kenneth Maxwell, se não revive os cravos, mostra que os seus protagonistas não usavam ferradura. Mais do que um golpe na "cozinha da Europa", o movimento de 25 de abril provocou ondas (mesmo a Terceira Onda) altas na política internacional e, segundo o pesquisador, pode ter sido responsável pelo fim da Guerra Fria e pela derrocada do império soviético. Nem mesmo os Estados Unidos saíram ilesos do mar de cravos. Pego de surpresa pelo fim da ditadura, o governo americano, em particular por causa de Henry Kissinger, esteve prestes a adotar uma "solução chilena" para o affair lusitano. Mais: com o fim do império português, o sucesso dos soviéticos no apoio aos movimentos nacionalistas do Terceiro Mundo humilharam a administração Carter e obrigaram a América a gastar fortunas em armas como prevenção. O mesmo tipo de gastos foi também, no final das contas, a causa do fim da União Soviética. Igualmente o Sul da África, ao perder o amortecedor proporcionado pelas colônias portuguesas gover-
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O império derrotado Kenneth Maxwell
nadas por brancos, viu o apartheid sendo corroído Companhia das Letras aos poucos até a sua ex336 páginas tinção na África do Sul. O R$ 49, 50 mundo ficou contente, pá, quem diria, com o movimento português, a democratização que foi a primeira de uma onda de democratizações que ocorreram na América Latina, na Europa do Leste, na ex-URSS, bem como serviram de modelo de como não se fazer uma transição, usado pela Espanha alguns anos mais tarde, com o fim da ditadura franquista. Não é pouca coisa. Maxwell defende, com sucesso, a importância da revolução lusa vista, afirma, por muitos, como uma fantasia produzida pela imaginação dos esquerdistas, cujos erros, aliás, ele elenca com precisão. No início de tudo estava o colonialismo, ou melhor, a luta inútil para a sua manutenção. "Portugal foi a última potência européia a se apegar à panóplia da dominação formal, pois, ao contrário de seus colegas da Europa, não tinha condições de pagar pelo neocolonialismo. Sua fraqueza econômica fez com que a intransigência fosse inevitável", escreve Maxwell. Mas os militares estavam cansados e foi o livro de um deles, o general Spínola (com seu monóculo prussiano), chamado Portugal e o futuro, que deu a deixa para a revolução. Na obra, o militar defendia a soberania das colônias. Na vida real, era cauteloso e pregava o fim lento do colonialismo. Os capitães de abril leram o livro com outros olhos e Caetano, acovardado, entregou o governo para Spínola, que, mostra Maxwell, recebeu mais créditos do que devia pelo movimento. No vácuo de poder, a esquerda viu a chance de um Portugal vermelho como os cravos. A ilusão durou o verão de 1975. Acossada pelo Ocidente, que prometia o isolamento de um Portugal "malcomportado", a esquerda perdeu apoio popular, não soube controlar a situação econômica precária com o fim das reservas deixadas pelo salazarismo, esperou demais da União Soviética e, mais grave, usou as instituições decrépitas para governar a nação. No fim, venceu o centro socialista, com Mário Soares. E a democracia.
Livros
DIALOGRAMAS CONCRETOS cleJoaiiCahrai.: Aug«Moiii-laiii|n«
Dialogramas concretos Uma leitura comparativa das poéticas de João Cabral de Melo Neto e Augusto de Campos Helton Gonçalves de Souza Annablume 276 páginas, R$ 35,00
Inspirado na expressão de Décio Pignatari, "Novas condições para novas estruturações da linguagem", Dialogramas propõe-se a envolver o leitor na poética de JCMN e Augusto de Campos, desvendando recursos composicionais como a música, a arquitetura, as artes plásticas e as ciências exatas e demonstrando que as duas obras, embora diferentes, apresentam semelhanças em termos de estrutura, forma e função. Annablume (11) 3031-9727 www.annablume.com.br
Utopia e cidades: proposições Denise Falcão Pessoa Annablume/ FAPESP 196 páginas, R$ 35,00
Cinema e televisão durante a ditadura militar: depoimentos e reflexões Anita Simis (Org.) Cultura Acadêmica Editora 134 páginas, R$ 25,00
Com objetivo de refletir sobre a produção no cinema e na televisão durante a ditadura militar, o livro reúne uma coletânea de artigos e depoimentos que procuram responder às inquietações de estudiosos da cultura brasileira e interessados em geral, relativas às formas de resistência e ao significado do período, reativando um debate que está longe de ter se esgotado como fonte de análise e reflexão. Cultura Acadêmica Editora (16) 3301-6275 laboratorioeditorial@fclar.unesp.br
Cartas a um jovem empreendedor: realize seu sonho. Vale a pena Ozires Silva Campus / Elsevier 130 páginas, R$ 29,90
Partindo da idéia de utopia como a energia que nos move para a ação, Denise Pessoa utiliza o pensamento utópico como instrumento para repensar a arquitetura e o desenho das cidades. O resultado é o desenvolvimento de um projeto utópico para o trecho retificado do rio Tietê que atravessa a região metropolitana de São Paulo.
Ozires Silva compartilha com o leitor os caminhos que percorreu para criar a Embraer. O empreendedor compara a criação de uma empresa com o sonho de voar e baseia seu livro em pontos-chaves como O plano de vôo, A decolagem, Vôo de cruzeiro e O pouso, alertando para a importância do sonho, do valor dos relacionamentos e qualidades como persistência e dedicação.
Annablume (11) 3031-9727 www.annablume.com.br
Campus/Elsevier (Série Cartas a um Jovem...) 0800-265340 www.campus.com.br
Bertha, Sophia e Rachel Isabel Vincent Relume Dumará 248 páginas, R$ 39,90
Oswaldo Goeldi: iluminação, ilustração Priscila Rossinetti Rufinoni Cosac Naify / FAPESP 320 páginas, 76 ilustrações, R$ 35,00
Escrito a partir de documentos históricos, estudos acadêmicos e entrevistas, o livro conta a história de três jovens judias forçadas à escravidão e à prostituição na América do Sul e nos Estados Unidos. Bertha, presidente da Sociedade da Verdade, Sophia, vendida pelo pai aos 13 anos, e Rachel, forçada à prostituição pelo marido, trazem relatos que constituem a representação da história trágica do tráfico das polacas nas Américas.
As ilustrações de Oswaldo Goeldi são analisadas passo a passo por Priscila R. Rufinoni, que convida o leitor para reinterpretar aspectos da trajetória do artista que ilustrava artigos de jornais, periódicos e outras publicações com um espírito inovador. Goeldi é considerado um artista moderno no Brasil pela conquista do plano bidimensional e por uma relação de exclusão com o mercado da arte.
Relume Dumará (21) 3882-8416 www.relumedumara.com.br
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Ficção
Nós quemr cara pálida?
FLORA FAJARDO
les são muitos. Eles estão em toda parte. Eles têm negócios espalhados pelo país, carregam pastas de couro, viajam de avião. Eles têm milhas promocionais e sazonalmente fazem falir empresas sólidas. Eles transformam a falência de empresas sólidas em um negócio rentável. Eles são altamente rentáveis. Eles se fecham em salas de aula e inventam línguas que só eles entendem. Eles escrevem para si mesmos e torcem o nariz para jornais, revistas e publicações mensais. Eles não acreditam no que se vende nas bancas, porque são desconfiados e bem-informados. Ninguém sabe muito bem de onde vem a boa informação deles, que, de qualquer modo, é balizada nas pesquisas mais recentes. Eles freqüentam livrarias e fazem um grande espalhafato disso. Eles falam alto nas bibliotecas, são levemente míopes e usam óculos de aros grossos. Eles dão nomes complicadíssimos para as coisas mais simples (eles recorrem muito ao inglês, depois que superaram o latim e o francês). Mas não vivem só de complexidades: eles simplificam conceitos intrincados e não perdem muito tempo com temas (antes) grandiosos: Deus, o tempo, suas crias, seus medos. Eles julgam o belo e o feio sem jamais ter experimentado a beleza. Eles acham que a feiúra é um bairro distante. Eles rezam escondido e cultuam suvenires. Eles acreditam piamente na nanotecnologia e mantêm uma crença cega no colesterol, nos transgênicos e na engenharia genética. Eles não assumem, mas têm uma lista de ídolos que gostariam de ver clonados. Eles financiam viagens espaciais e falam confortavelmente sobre coisas que não entendem. Eles costumam achar que o que fazem (seja lá o que for) também é um tipo de ciência, e assim justificam suas bolsas de estudo, suas viagens, suas pequenas bibliotecas e suas vidas intelectuais. 92 ■ OUTUBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 128
Eles se alimentam de comida indiana, mas têm um pouco de nojo da índia. Eles têm pena das vacas, mas devoram sanduíches gordos e misturam proteína e carboidrato no selfservice da esquina pra otimizar o tempo. Eles otimizam o tempo. Eles têm bom gosto e torcem o nariz para o mau gosto. Eles gostam muito de falar "mau gosto". De tempos em tempos, eles mergulham no popular e enquadram uma batucada, um acarajé, um golpe de capoeira no seu repertório. Eles têm um olhar estrangeiro para o próprio sangue e se divertem bastante imitando o samba furioso que os outros levantam contra eles. Eles comem feijoada light. Eles prezam o conforto, apartamentos de dois ou três dormitórios (quatro vagas na garagem), shopping centers, clubes e academias de ginástica. Mas eles vão à Bolívia carregando mochilas de trinta quilos para expiar seus pecadilhos pequeno-burgueses (para eles, a expressão "pequenoburgueses"perdeu todo sentido há, pelo menos, trinta anos). Eles passaram do casamento aberto aos condomínios fechados e hoje prezam a tradição, a família e a propriedade, brandamente. Eles naturalizaram a tradição, a família e a propriedade e não se sentem nem um pouco culpados por isso: eles chamam isso de "curso da história". Eles lançam livros profundíssimos e falam bobagens nos coquetéis, inundados de vinho (branco e doce). Eles acham a poesia uma grande bobagem, mas dizem isso como se fosse uma confidencia bem-humorada. Eles aproveitam todas as ocasiões para destilar seu veneno franco, elucidado, crítico. Eles nunca, nunca deixam de ser críticos. Eles são politicamente corretos e coram quando deixam escapar pequenas crueldades. Eles sofrem um pouquinho quando vêem garotos no farol, mas nunca dão trocado. Eles chamam isso de "assistencialismo". Eles se permitem ligeiras crueldades, mas se perdoam, porque têm, afinal, engajamento e consciência política e costumam fazer pe-
quenos escândalos por isso. Eles tratam todos cortesmente, adoram os garçons submissos (chamam isso de "simpatia") e pedem sempre mais um chope depois que a conta está paga. Eles são extremamente generosos. E eles quase sempre deixam o troco. Eles têm a consciência tranqüila, passeiam com seus cães e recolhem suas sujeiras em sacos plásticos recicláveis. Eles não vivem sem produtos recicláveis. Sobretudo, eles acreditam em produtos recicláveis. Eles fazem sua parte para um planeta mais saudável. Eles dormem e acordam cedo, são regrados, exatos e cumprem os horários - na medida do possível. Às sextasfeiras, eles se permitem a vigília até as três horas da manhã e entopem ruas estreitas com seus carros grandes. Eles se vestem bem, são cheirosos e sorriem muito, com seus dentes brancos, nos jantares e bares e boates. Eles dançam de maneira contida, ouvem música inglesa e bebem líquidos coloridos. Eles nunca perdem a pose. Eles têm medo do câncer, da violência urbana, do tráfico de drogas, de acidentes de carro e de assalto a mão armada. Por outro lado, são absolutamente destemidos quanto a doenças sexualmente transmissíveis, revolução armada, autocrítica e animais selvagens. Eles vivem em locais seguros e são limpinhos. Eles vão ao analista de uma a duas vezes por semana, resolveram seus problemas com os pais e hoje se sentem psiquicamente saudáveis. Acreditam na medicina alopática e recorrem a calmantes para um sono tranqüilo. Eles nunca se viciam. Eles se sentem bem nos seus condomínios fechados, constróem torres de vigilância e contratam, a preços módicos, pretensos futuros inimigos, mantendo-os sob controle. Eles se sentem muito bem quando mantêm o controle. Passeiam pelos centros urbanos com desenvoltura, porque confiam, não na polícia (que eles acham corrupta),
mas em si mesmos: eles são fortes, sinceros, e têm o cabelo cortado rente. Eles alugam casas de veraneio, descobrem praias paradisíacas (que o deixarão de ser assim que outros deles também as descobrirem), tiram fotos coloridas e batem palmas para o pôr-do-sol. Eles não deixam lixo na areia e levantam casas integradas à natureza. Eles passam dias tranqüilos, apesar de, de vez em quando, sentirem falta de "pegar um cineminha". Eles não acreditam em distribuição de renda, reforma agrária e igualdade social. Mas eles não têm nada a ver com isso. Eles são asseados, puros e coloridos. Suas roupas não esgarçam e trazem sempre os sapatos lustrados. Eles não têm vergonha de parecer ridículos: eles têm bastante orgulho em ter personalidade. Eles têm bons empregos e uma carreira promissora, imprimem um toque de arte em tudo que fazem e se realizam pessoal e financeiramente. Eles são levemente ambiciosos, mas nunca deixam que o sucesso lhes suba à cabeça. Eles são modestos e pregam certa honestidade, com alguma moderação. Eles são espertos e têm jogo de cintura. Eles fazem sexo seguro, eles não aceitam empecilhos morais, eles respeitam as opções alheias, eles se beijam em portas de banheiro. Quando acasalam, formam pares aceitáveis e procriam seres de nomes simples e sonoros. É assim que ocupam o mundo. Eles estão em toda parte. Eles são muitos. Eles são broncos, eles que se entendam.
é formada pela Faculdade de Letras pela USP, tem 32 anos, e hoje é professora primária.
FLORA FAJARDO
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Até hoje as grandes 7#^ descobertas vêm L><* da navegação.
Área: Geologia INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS - DEPARTAMENTO DE GEOLOGIA E RECURSOS NATURAIS Inscrições 11/8/2006 a 8/11/2006 Publicação DOE, 10/8/2006, pág.: 76 Disciplinas: Geologia Histórica e do Brasil Cargo: Professor Titular Regime RTP Processo: 22-P-24838/2005 Contato (e-mail): furlan@ige.unicamp.br Telefone: (19) 3521-4551
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