Ciência eTecnologia w no Brasil
RAÇAS NACIONAIS FORTALECEM A PECUÁRIA O OLHAR POLÍTICO BRASILEIRO SOBRE O MUNDO
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Sintonize 700 kHz Sábados, às 12K30 Reprise aos sábados às 19h30 e aos domingos às 14h ■ Se preferir, ouça o programa no site da revista Apresentação Tatiana Ferraz Comentários Mariluce Moura Diretora de redação de Pesquisa FAPESP
Pesquisa Brasil ciência Toda semana, em meia hora, você tem: ■ Novidades de ciência e tecnologia ■ Entrevistas com pesquisadores ■ Profissão Pesquisa ■ Memória dos grandes momentos da ciência Você ainda pode participar do Pesquisa Responde e concorrer a uma assinatura da revista Pesquisa FAPESP
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Veja aqui alguns destaques dos programas que foram ao ar entre os dias 7 e 21 de outubro
14.10.06 » João Phelipe Santiago Quantas bombas atômicas já foram detonadas e onde? s Emico Okuno, do Instituto de Física da USP - O primeiro teste nuclear aconteceu em 16 de julho de 1945 num deserto dos Estados Unidos, que fizeram 1.054 testes nucleares até 1992, principalmente no deserto de Nevada e nas Ilhas Marshall. A União Soviética fez 715 testes, sobretudo na Sibé-
paz. O jornalista e cientista social Jorge Caldeira criou e dirige o Projeto José Bonifácio: obra completa, que procura reunir tudo o que diz respeito ao Patriarca da Independência, que foi também cientista, administrador, pensador, poeta e político. O site www.obrabonifacio.com.br oferece documentos como o Decreto de 3 de junho de 1822, que convoca a Assembléia Constituinte do Brasil. O projeto começou em 2005 e deve seguir até 2008, revelando as diversas facetas de José Bonifácio e informações sobre o período imperial brasileiro.
nados que fazem dela a unidade da vida. Há ainda atividades complementares à visita, como informações sobre como funciona a célula e como interpretamos o que se vê em microscopia. PROFISSÃO PESQUISA 21.10.06 m Ubiratan de Paula Santos, do Instituto do Coração (InCor) - Desenvolvo projetos relacionados aos efeitos da poluição do ar no organismo. Um deles avalia os batimentos cardíacos e o oxigênio no sangue em fumantes e não-fumantes. Outro
ecnoiogia nas onaas ao raaio > e 1990. A França realizou 210 no atol de Muroroa e em Fangataufa, de 1960 a 1996. Os 45 da Inglaterra foram nas ilhas Christmas, entre 1952 e 1991. A China, 43, entre 1964 e 1996. Em 1998 a índia, que já fizera um teste em 1974, realizou mais três. Em resposta, o Paquistão fez seis. Em 8 de outubro de 2006 a Coréia do Norte fez um teste nuclear subterrâneo. Os testes eram feitos na atmosfera ou no mar até Estados Unidos, Grã-Bretanha e União Soviética assinarem um acordo para impedir testes ao ar livre, em 1963. Eles começaram então a ser realizados no subsolo, evitando a dispersão da poeira radioativa pelo vento. MEMÓRIA 07.10.06 m Tatiana Ferraz, apresentadora - Quase 170 anos após sua morte, José Bonifácio de Andrada e Silva não descansa exatamente
Detalhe da célula gigante: viagem em escala microscópica NOTA COM SONORA
- O que é a "viagem ao interior da célula"? m Eliana Beluzzo Dessen, do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP - Montamos nas escolas uma célula gigante. Quem entra na célula percebe que ela é formada por compartimentos coorde-
envolve mortes de cortadores de cana-de-açúcar que podem ser ligadas à sobrecarga física, à poluição da cana queimada, de pesticidas ou às três coisas. 0 terceiro compara a função pulmonar de crianças em cidades com poluição predominantemente industrial, veicular, mista e ligada ao corte e à queima de cana. Vamos comparar com cidades-controle para avaliar a influência da poluição no desenvolvimento pulmonar.
POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA
50 ZOOBOTANICA
24 DIFUSÃO Acesso livre a artigos científicos ganha força e muda estratégia de editoras
28 POPULARIZAÇÃO Centros como a Estação Ciência ganham recursos e freqüentadores
Análise de polens e de movimentos tectônicos questiona teoria sobre isolamento de plantas e animais
54 TEORIA Equipes brasileiras colaboram no esforço de rever as leis básicas da natureza e unir o infinitamente pequeno ao infinitamente grande
TECNOLOGIA
72 BIOQUÍMICA Compostos químicos sintéticos inspirados na própolis mostram-se eficazes no tratamento de tumores
75 ODONTOLOGIA Placa intra-oral ajuda a reduzir o ronco e melhorar o sono
CIÊNCIA
84 DIPLOMACIA Política externa é hoje motivo de discussão acalorada e séria
SEÇÕES
42 POLUIÇÃO
Alta variabilidade genética permite ao parasita causador da malária driblar as defesas do organismo humano
HUMANIDADES
Morto há três anos, o poeta e ensaísta Sebastião Uchoa Leite ainda espera atenção da crítica
Filme e livro de Al Gore abusam do marketing político para converter os céticos do meio ambiente
MALÁRIA
Programa do IPT funciona, há sete anos, como pronto-socorro tecnológico para micro e pequenas empresas
LITERATURA
AQUECIMENTO GLOBAL
46
ENGENHARIA
90
30
São Paulo, Cidade do México e Santiago economizariam US$ 165 bilhões se melhorassem a qualidade do ar
80
IMAGEM DO MÊS
6
CARTA DA EDITORA
7
CARTAS
59
76
FÍSICA EXPERIMENTAL
ENGENHARIA BIOMÉDICA
Participação em futuros experimentos do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares deve aprimorar formação de físicos brasileiros
Sistema desenvolvido por pequena empresa permite realizar vários exames de pele em um único ambiente
MEMÓRIA
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ESTRATÉGIAS
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LABORATÓRIO
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SCIELO NOTÍCIAS
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UNHA DE PRODUÇÃO
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RESENHA
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LIVROS
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FICÇÃO
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CLASSIFICADOS
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Capa: Mayumi Okuyama Ilustração: Andrés Sandoval e Mariana Zanetti
4 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 129
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O físico Cylon Gonçalves fala de sua experiência na universidade, no governo e na iniciativa privada, e das dificuldades de produzir inovação
PECUÁRIA Embrapa intensifica estudos com raças de animais de criação surgidas no país, que formam patrimônio genético
36 CAPA Estresse prolongado intensifica inflamação cerebral associada à morte de neurônios
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Gêmeos em contraste Layton e Kaydon Richardson, de 3 meses de idade, são gêmeos bivitelinos, ou seja, resultam da fecundação de dois óvulos diferentes. Era de esperar que não fossem idênticos, mas, num caso raro, Kaydon tem a tez escura, herança da mãe de ascendência anglo-nigeriana, enquanto Layton tem a pele e os olhos claros, como o pai, inglês. A carga genética dos óvulos explica por gue as crianças, nascidas em Middlesbrough, Inglaterra, têm a cor da pele diferente. O geneticista britânico Stephen Withers informou que é muito rara a chance de uma mulher de ascendência mista produzir óvulos com carga genética predominantemente para um tipo de pele. "Menor ainda é a de gerar dois filhos ao mesmo tempo com características inversas", afirmou.
6 ■ NOVEMBRO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 129
Carta
da Editora
Pesquisa CARLOS VOGT PRESIDENTE
Menos estresse e mais poesia
MARCOS MACARI VICE-PRESIDENTE CONSELHO SUPERIOR CARLOS VOGT, CELSO LAFER, GIOVANNI GUIDO CERRI. HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, JOSÉ ARANA VARELA, JOSÉ TADEU JORGE. MARCOS MACARI, SEDI HIRANO. SUELY VILELA SAMPAIO. VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO
MARILUCE MOURA
- DIRETORA DE REDAçãO
CONSELHO TÉCNICO-ADM1NISTRATIVO RICARDO RENZO BRENTANi DIRETOR PRESIDENTE CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ DIRETOR CIENTÍFICO JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO PESQUISA FAPESP CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS EDITORES EXECUTIVOS CARLOS FIORAVANT1 (CIÊNCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA) EDITORES ESPECIAIS FABRÍCIO MARQUES. MARCOS PIVETTA (EDIÇÃO ON-LINE), RICARDO ZORZETTO EDITORA ASSISTENTE DINORAH ERENO REVISÃO MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO. MARGÔ NEGRO EDITORA DE ARTE MAYUMI OKUYAMA CHEFE DE ARTE JOSÉ ROBERTO MEDDA DIAGRAMADORES ARTUR VOLTOLINI. MARIA CECÍLIA FELLI CONSULTORIA DE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA FOTÓGRAFOS EDUARDO CÉSAR, MIGUEL BOYAYAN SECRETARIA DA REDAÇÃO ANDRESSA MATIAS TEL: OU 3836-4201 COLABORADORES ANA LIMA. ANORÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), ANDRÉS SANDOVAL, BRAZ. CAIO SILVEIRA RAMOS, DANIEL KON (ESTAGIÁRIO). DANIELLE MACIEL (ESTAGIÁRIA), IRACEMA CORSO. FÁBIO DE CASTRO (ON-LINE). FERNANDO ALMEIDA, FRANCISCO BICUDO. GONÇALO JÚNIOR, LAURABEATRIZ, MARIANA ZANETTI, THIAGO ROMERO (ON-LINE) E YURI VASCONCELOS. COORDENAÇÃO DE MARKETING E PROJETOS ESPECIAIS CLAUDIA IZIOUE (COORDENADORA) TEL. (11) 3838-4272 PAULA ILIADIS (ASSISTENTE) TEL: (11) 3838-4008 e-mail: publicidade@lapesp.br ASSINATURAS TELETARGET TEL. (11) 3038-1434 - FAX: (11) 3038-1418 e-mail: fapesp@teletarget.com.br IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRÁFICA TIRAGEM: 35.700 EXEMPLARES DISTRIBUIÇÃO
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FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
Viver cronicamente estressado não vale mesmo a pena. E não são os variados cultores da chamada vida alternativa que têm feito os alertas mais insistentes a esse respeito. É de dentro de respeitadas instituições de pesquisa científica no mundo inteiro, Brasil inclusive, que nos últimos anos têm saído estudos demonstrando que o estresse por períodos prolongados favorece o surgimento de diabetes, doenças cardiovasculares, ansiedade, depressão, impotência, infertilidade e até mesmo algumas formas de câncer. Agora uma pesquisa desenvolvida por grupos da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) chega a evidências surpreendentes de que o estresse também pode disparar uma inflamação de grande monta nas células nervosas, capaz de provocar a morte de neurônios em duas regiões do cérebro: o hipocampo, que está associado à formação da memória, e o córtex frontal, relacionado ao raciocínio lógico, entre outras competências. Surpreende a muitos a idéia de inflamação nas células nervosas. Mas é disso mesmo que se trata - e vale a pena conferir na primorosa reportagem do editor especial Ricardo Zorzetto, a partir da página 36. Ela certamente fará pensar sobre as razões complexas que levaram o estresse, originalmente um eficiente mecanismo de adaptação a situações novas ou ameaçadoras, a tornar-se, nas sociedades contemporâneas, condição tão nefasta à fruição da vida e à saúde física e mental de homens e mulheres. Boas notícias vindas do campo da pecuária, que, aliás, tem uma certa fartura delas no Brasil: dezenas de raças de animais de criação que se desenvolveram no país, a partir, muitas vezes, de antepassados trazidos da Europa nos primeiros tempos da colonização, compõem hoje um precioso patrimônio genético
que já nos assegura vantagens comparativas na obtenção de animais melhores e mais resistentes e, futuramente, poderá facilitar a produção de animais transgênicos, dos quais se queira, por exemplo, carne mais macia. Com clara visão sobre essas possibilidades comerciais, a Embrapa, relata o editor de tecnologia, Marcos de Oliveira, em uma bela reportagem a partir da página 66, tem intensificado os estudos com essas raças brasileiras de cavalos, bovinos, ovelhas, cabras e suínos. Vale a pena conferir. As discussões sobre a política externa brasileira às vezes são inflamadas. O Itamaraty é historicamente uma instituição muito respeitada no Brasil, e as referências à boa formação dos diplomatas de carreira no país são constantes. No entanto, sobram dúvidas sobre a natureza das reviravoltas, aparentes ou reais, da política externa praticada desde os tempos do Barão do Rio Branco. Assim, num momento em que o tema volta a merecer um debate com certo calor, o que foi facilitado pela campanha eleitoral para a Presidência da República, vale a pena ter elementos para refletir criticamente sobre os paradigmas pelos quais se moveu e se move nossa política externa. E é isso que oferece a consistente reportagem do editor de humanidades, Carlos Haag, a partir da página 84. Mas ainda na seção de humanidades gostaria de fazer um destaque para a reportagem sobre o poeta e ensaísta Sebastião Uchoa Leite, morto há três anos. Digamos que Pesquisa FAPESP integrase aqui ao esforço de algumas pessoas e instituições para que não se cometa uma injustiça com esse personagem valioso das letras nacionais, esquecendo-o. E o faz com um texto belo e comovente elaborado pelo jornalista Gonçalo Júnior (página 90). Que convida a calmas reflexões, contemplações e poesia. PESQUISA FAPESP 129 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ 7
Cartas
Pesquisa As reportagens de Pesquisa FAPESP retratam a construção do conhecimento que será fundamental para o desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução.
Números atrasados Preço atual de capa da revista acrescido do valor de postagem. Tel. (11) 3038-1438 Assinaturas, renovação e mudança de endereço Ligue: (11) 3038-1434 Mande um fax: (11) 3038-1418 Ou envie um e-mail: fapesp@teletarget.com.br Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP Rua Pio XI, 1.500 São Paulo, SP 05468-901 pelo fax (11) 3838-4181 ou pelo e-mail: cartas@fapesp.br Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em inglês e espanhol. Para anunciar Ligue para: (11) 3838-4008
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expliquem ou evidenciem as práticas preconizadas, mas não claramente identificadas. O artigo também possui Admiro e aprecio as reportagens diversas imprecisões, como, por exempublicadas na revista Pesquisa FAplo, a informação de que os preços do PESP. Por se tratar de uma revista de cacau estiveram a US$ 4 mil em 1977, divulgação científica para o público ou seja, 12 anos antes do aparecimenleigo, com a missão de "retratar a consto da doença na Bahia, e atingiram trução do conhecimento", considero US$ 600 apenas em 2000, que distorque as reportagens se baseiam em facem a realidade. Num outro trecho, tos científicos, ou seja, resultam de o artigo afirma informações geraque a enfermidadas e escrutinizade atingiu a fadas baseadas no zenda do agriculmétodo científico, EMPRESA QUE APOIA tor em 1999, ou mas que são transA PESQUISA BRASILEIRA seja, dez anos deformadas em linpois de sua priguagem acessível ao meira detecção em público não espeUruçuca. Essa afircializado. Na edimação indica clação 128, de outuramente que a rebro de 2006, depagião do agricultor rei com a reportaencontra-se muito gem denominada distante dos focos "A vassoura varriiniciais da doença da", que possui o e não como afirmérito de apontar ma o texto "...cheproblemas atuais i TropiN«t.arg gado a sua fazenda cacauicultura da nos arredores baiana e apresende Gandu, munitar fotos belíssicípio próximo a mas. Esse tópico Ilhéus". A distância rodoviária entre as me é muito caro e familiar, por ser fisedes dos municípios é superior a 230 lho de cacauicultor e pesquisador na quilômetros. Esse fato por si só sugeárea de genética do cacaueiro e espére que as condições ambientais locais cies afins com pelo menos 20 anos de do agricultor podem não representar experiência nessa cultura. as principais regiões produtoras (e Infelizmente, considero um equímais tradicionais) do sul da Bahia., voco a revista Pesquisa FAPESPpublicar ou reforçar resultados de um agriANTôNIO FIGUEIRA cultor bem-sucedido, mas que não Centro de Energia Nuclear possui legitimação científica ou expena Agricultura (Cena-USP) rimental, e muito menos econômica, Piracicaba, SP sobre suas práticas. Tendo assistido ao Vassoura-de-bruxa
(}) NO VARTIS
aparecimento de inúmeros "salvadores" da cacauicultura baiana nos últimos 13 anos, inclusive um caso de merchandising explícito por meio da novela Renascer, da Rede Globo, tendo a ser muito cético em relação a esse tipo de redenção. Desconheço a disponibilidade ou existência dos citados artigos científicos que demonstrem, 8 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 129
Santos=Dumont Muito interessante a matéria sobre nosso herói ("Especial sobre Santos-Dumont", edição 128). Gostaria no entanto de poder colocar minha opinião de que no pleito Dumont vs. Wright o importante é o fato por vo-
cês indicado de não terem os Wright testemunhos registrados senão o deles mesmos, e outros incertos. Deveria se deixar de lado a discussão de se o avião que os Wright apresentaram em 1908 precisava ou não de ajuda para decolar. Era um avião muito bom. Se tivesse sido feito em 1903 como eles alegaram, então sim poderia ser considerado. Santos=Dumont (assim assinava ele para igualar sua ascendência francesa com a brasileira) conta seu desencanto no livro que escreveu: O que eu vi, o que nós veremos, editado em 1918 e nunca reeditado até 2000. Afirma que nunca se soube dos Wright terem um avião até bem depois que ele demonstrara o primeiro. O que podemos confirmar pelo conteúdo da notícia que o jornal New York Herald deu em 20 de janeiro de 1907, pois ela não contém menção a precedente algum. As obras de Dumont são de domínio público e o livro citado pode ser obtido pela internet, seja na versão original por reprodução fotográfica de material da Unicamp que tenho disponibilizado, seja por versão modernizada em que a ortografia foi atualizada e os fragmentos em francês traduzidos.
ção ao coração feminino" e o especial 100 anos no ar. Cito apenas alguns, pois toda a revista é repleta do que há de melhor para se ler. Em tempo, a revista Pesquisa FAPESP errou a data no artigo "Lady Macbeth tropical". O Marquês de Marialva tratou do casamento de Leopoldina com D. Pedro I em 1817 e não em 1917.
PROF. JOSé J. LUNAZZI Instituto de Física-Unicamp Campinas, SP
Tenho recebido mensalmente a revista Pesquisa FAPESP através da qual me mantenho atualizada sobre notícias que não encontramos em outras publicações. Gostaria de parabenizá-los pela excelente qualidade da revista e dos temas abordados.
Revista Pesquisa Sou leitor de diversas revistas semanais e mensais, mas nenhuma tem a qualidade de Pesquisa FAPESP. Na edição 128, já totalmente "degustada", fica difícil citar quais os melhores artigos e reportagens. Como adoro a história de Brasil e de Portugal, gostei muito de "O renascimento do patriarca", de Neldson Marcolin, além de "Lady Macbeth tropical" e "Abril Despedaçado", de Carlos Haag. Neste caso, o autor resumiu em uma só página o que foi a Revolução dos Cravos. Muito bom, também, o artigo "Mais aten-
ANTôNIO ARMANDO AMARO
São Paulo, SP
revista me tratou. Afinal de contas, trata-se da publicação das pessoas mais inteligentes do Brasil. JOSé HAMILTON RIBEIRO
São Paulo, SP
Cosmoloqia Li a reportagem "Cosmologia - A ousadia de desafiar Einstein" (edição 127), de Ricardo Zorzetto, que achei de excelente qualidade. Parabéns. HéLIO BARNABé CARAMURU
São Paulo, SP
Correções A segunda foto da página II do Especial sobre os cem anos do vôo do 14-Bis (edição 128) está errada. A foto do balão Brasil (sendo enchido) é a que está abaixo.
MARISA DE CACIA OLIVEIRA
Curitiba, PR
Divulgação científica Andei viajando, então só agora me dirijo a vocês aí da revista Pesquisa FAPESP. Fiquei altamente lisonjeado com a reportagem ("No front da notícia", edição 126), primeiro pela fidelidade das informações que passei, segundo pela generosidade com que a
A foto da gestante à página 53 da edição 128 é de Miguel Boyayan e não de Eduardo César como foi publicado. Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br, pelo fax (11) 3838-4181 ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.
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Juscelino Kubitschek olha caneta dosimétrica na inauguração do então IEA, ao lado de Damy (de gravata-borboleta)
Átomos da paz Ipen completa 50 anos com bons serviços prestados por meio da energia nuclear NELDSON MARCOLIN
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Brasil entrou na era nuclear com pompa e circunstância. O reator nuclear de pesquisas IEA-R1 doado pelos Estados Unidos dentro do programa Átomos para a Paz, que permitia a outros países ingressarem na energia atômica, foi inaugurado em 1958 pelo presidente Juscelino Kubitschek e pelo governador paulista Jânio Quadros. Dois anos antes, um convênio entre a Universidade de São Paulo (USP) e o então Conselho Nacional de Pesquisas (atual CNPq) criava o Instituto de Energia Atômica (IEA), um órgão nacional para pesquisas na área nuclear. A frente dos trabalhos estava Marcello Damy de Souza Santos, um respeitado físico experimental e primeiro superintendente do instituto. Aquela era uma época em que o átomo tinha status de estrela da ciência. Projetos ligados ao setor nuclear tinham mais chance de ganhar verbas governamentais e havia a promessa de se ter energia elétrica abundante. "As perspectivas de quem desejasse entrar nessa área eram maravilhosas", conta a física e historiadora Ana Maria Pinho Leite Gordon, autora de uma tese de doutorado em que analisa a história do Instituto de Pesquisas Energéticas
Reportagem da revista Manchete (acima). Ao lado, núcleo do reator IEA-R1. O efeito azulado deve-se à passagem em meio à água das partículas beta, liberadas pela reação nuclear em cadeia
e Nucleares (Ipen), o nome atual do IEA. "Todas as condições para criar um centro nesse setor no Brasil estavam postas." O instituto começou a ser construído em setembro de 1956. Os laboratórios para pesquisas de física nuclear, física de reatores, radiobiologia e radioquímica foram criados e instalados nos anos seguintes. Ocorreu que, com o passar do tempo, o entusiasmo pela energia nuclear e as verbas foram
minguando, embora os pesquisadores não tivessem sido contaminados pelo desânimo. "Quase tudo aconteceu no Ipen graças à garra dos pesquisadores, que souberam evoluir e se adaptar às condições mesmo quando havia pouco dinheiro para pesquisa", diz Ana Maria. Mesmo com poucas verbas, o Ipen continuou crescendo. Um dos setores que se tornaram mais importantes foi o da produção de radioisótopos
usados na medicina nuclear, em especial para radiodiagnóstico e terapia. A pós-graduação começou em 1975, embora desde o começo houvesse a preocupação em formar quadros altamente especializados. Hoje há 400 alunos na pós. Até os anos 1990 o cliente do Ipen era só o Estado e percebeu-se que a sobrevivência do instituto estava em se abrir para outros setores. A pesquisa com laser, por exemplo, sempre foi direcionada para o enriquecimento de urânio. "Quando a verba para a pesquisa na área do ciclo do combustível diminuiu, passou-se a mirar áreas não
nucleares: crescimento de cristais, desenvolvimento de lasers e suas aplicações na área industrial e na odontologia." Esse redirecionamento valeu também para outras áreas: química ambiental, biotecnologia, energias alternativas e outros. Hoje o Ipen é vinculado ao estado de São Paulo, associado à USP e gerido pela Comissão Nacional de Energia Nuclear, do Ministério da Ciência e Tecnologia. O velho reator IEA-R1 continua em pleno funcionamento produzindo radioisótopos para todo o país. Nesses anos sofreu apenas poucas reformas, visando mais a segurança.
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Físico, político, executivo MARCOS DE OLIVEIRA
Personagem polivalente nos últimos anos no âmbito científico e tecnológico do país, Cylon Gonçalves da Silva tem hoje uma bagagem de conhecimento e vivências que poucos possuem. Passou pela academia, pelo governo federal, criou e dirigiu um instituto de pesquisa e agora trabalha diretamente com a iniciativa privada. Na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) foi professor do Instituto de Física, onde ingressou em 1974 e recebeu o título de professor emérito em 2001. Em 1986 assumiu a coordenação da implantação do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), inaugurado em 1997, em Campinas. Até 2001 foi diretor da Associação Brasileira de Tecnologia Luz Síncrotron (ABTluS), mantenedora do laboratório para todos os pesquisadores brasileiros que estudam as estruturas atômicas de materiais por meio de radiação eletromagnética de alta intensidade. Em 2000, Cylon foi um dos coordenadores da Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, realizada no ano seguinte. Foi o responsável pelo Livro verde, lançado antes do evento para reflexões dos participantes sobre os temas da conferência. Aposentado da Unicamp, Cylon foi consultor do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) na área de nanotecnologia, durante o governo Fernando Henrique. No governo 12 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 129
Lula, dirigiu a Secretaria de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do MCT, onde ficou por quase dois anos. Em 2005, aos 59 anos de idade, assumiu a diretoria de tecnologia do Genius Instituto de Tecnologia, passando, como ele próprio diz, "para o outro lado do balcão". A vida acadêmica começou na graduação, em física, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), estado onde nasceu na cidade de Ijuí. Fez mestrado e doutorado na Universidade da Califórnia, em Berkeley, e foi professor da UFRGS, durante dois anos, antes de entrar na Unicamp. Como acadêmico publicou mais de 70 artigos científicos e livros na sua especialidade, a física da matéria condensada, estudando as propriedades eletrônicas e magnéticas de materiais. Também foi professor visitante da Universidade de Lausanne, na Suíça, entre 1978 e 1980, e da Universidade La Trobe, em Melbourne, na Austrália, entre 1999 e 2001. A entrevista que ele nos concedeu em sua sala no Genius, em São Paulo, vem a seguir, em seus principais momentos. ■ O senhor passou pela academia, criou o LNLS efoi seu diretor, depois passou pelo governo em duas ocasiões e agora está no Genius, um instituto privado de pesquisa. Como está se sentindo neste novo ambiente? — Costumo brincar que estou na minha quarta encarnação. E cada encarnação envolve um parto. E preciso aprender coisas novas, entender culturas institucionais diferen-
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tes. O que me motivou para essa experiência foi o fato de, nas minhas três encarnações anteriores, eu atuar basicamente do lado do balcão que cuida da geração e da oferta de conhecimento. E hoje o grande desafio do Brasil é a inovação. Sabemos perfeitamente como ofertar ciência e tecnologia e que botões apertar para o país produzir mais artigos científicos e produzir mais doutores. Mas nós não sabemos que botões apertar para gerar inovação. Aliás, eu suspeito que nós não tenhamos nem sequer as instituições adequadas para isso. Faltam marcos legais para estimular a inovação, porque muitos dos que existem são inadequados para a tarefa que se coloca a nossa frente. Um exemplo é a legislação brasileira sobre biodiversidade e biotecnologia. Só para dar um exemplo concreto, outro dia eu estava conversando com uma pessoa da Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária] que recebeu a incumbência de montar uma sociedade de propósitos específicos para acelerar a transferência de conhecimento da Embrapa para o setor privado, num modelo de parceria público-privada. Depois de um ano de trabalho, ele não vê como fazer. ■ Quais são as dificuldades? — Hoje a Embrapa, como boa parte de nossas instituições de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) públicas, está completamente engessada. Foram transformadas, por contingências externas à empresa, numa grande repartição pública, no sentido pejorativo dessa expressão. ■ E a Lei de Inovação não veio justamente para suprir essa lacuna? — A Lei de Inovação e também a lei das organizações sociais são muito fracas em relação ao tamanho do problema. Existe no Estado brasileiro uma cultura de que tudo o que é público é ótimo e tudo o que é privado é ruim. Então, duas ou três leis isoladas, como essas, não vencem as barreiras. Elas conflitam com vários outros marcos legais, o que faz a delícia da burocracia que não quer transformar o país e perder os privilégios. Na aplicação da Lei de Inovação, isso vai aparecer cada vez com maior clareza. No caso das organizações sociais, a nossa esperança era elas serem um instrumento institucional para agilizar o setor público de P&D, e o que observamos, ao lon14 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 129
go dos anos, é um engessamento progressivo dessas organizações. ■ Um dos exemplos dessas organizações seria o LNLS? — É um exemplo do modelo em que o Estado contrata uma entidade privada. A organização social é muito específica. Do ponto de vista legal, ela é como o Genius, uma associação civil sem fins lucrativos e de direito privado. Mas ela vai um passo além, é reconhecida como uma organização social por um decreto do presidente da República. A partir desse reconhecimento, ela se qualifica para fazer um contrato de gestão com o governo. A idéia é esse contrato estabelecer metas a serem cumpridas com um sistema de avaliação de resultados, e não de processos administrativos internos. A contrapartida seria uma grande agilidade no uso dos recursos públicos. O que vemos na prática é essa agilidade ser questionada constantemente pelos órgãos de fiscalização. Isso não é apenas um efeito de uma visão esquerdista retrógrada do Estado, mas está na essência da lógica burocrática, não importa qual o governo. As exceções que existem dentro da máquina do Estado perderam, no governo Lula, a capacidade de enfrentar essa questão, inclusive pela resistência da Casa Civil da Presidência. ■ As cobranças não são do jeito que deveriam ser, é isso? — Não. São coisas sutis, para quem não conhece o setor público em detalhes, e extremamente importantes. Por exemplo: o orçamento da União é dividido em dois grandes blocos, um de investimentos e um de custeio. As organizações sociais são financiadas com recursos orçamentários do bloco de custeio. Aí um auditor do Tribunal de Contas da União diz: "Não, a organização social não pode usar esses recursos para fazer investimento". Então, a lei pode ser ótima, mas a forma como o Estado se comporta em relação a essas inovações institucionais é a velha forma. ■ E o que falta para avançarmos no caminho da inovação? — O problema é como transformar o conhecimento em riqueza, ou aquilo que chamamos de inovação. Inovação não é uma coisa simples, é um conjunto complexo de ações e resultados.
■ Mas sempre visando um produto? — Visando colocar alguma coisa no mercado. Se não está no mercado não é uma inovação, não está gerando riqueza. Acho que o teste mais simples é esse. Se não gerar riqueza, levando um novo produto ao mercado, um novo serviço, ou um novo processo, o objetivo da inovação não foi atingido. ■ E, pelo lado das empresas, os passos ainda não estão certos, correto? — Não estão. Mas o setor privado não existe num vácuo, ele existe dentro de um Estado. E os marcos institucionais desse Estado balizam as possibilidades do setor privado. Uma vez perguntei para um empresário, quando eu ainda estava do outro lado do balcão: por que as empresas desenvolvem tão pouca tecnologia no país? A resposta foi a seguinte: "Tecnologia envolve risco, mão-deobra altamente qualificada e muito cara, os encargos são enormes. Então, eu prefiro comprar uma coisa lá fora que já está pronta e testada, em que meu risco diminui, a manter um departamento caro de P&D, onde o risco é elevado". ■ Esse problema não pode ser amenizado por instituições como o Genius e outros institutos independentes? — Aí voltamos então à primeira questão. Por que me interessei por esse desafio? Para nós fazermos a inovação decolar vamos precisar ter P&D pelo lado do setor privado. É aí que vem o atrativo do Genius. Porque é exatamente o que ele e outras instituições similares se propõem a fazer: agilizar o processo de transferência do conhecimento do laboratório para as prateleiras das lojas. ■ Quais seriam essas outras instituições similares? — São o César [Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife] e tantos outros. Em Manaus, existem os institutos da Samsung, da Nokia, além da Fundação Paulo Feitoza e da Fucapi [Fundação Centro de Análise, Pesquisa e Inovação Tecnológica], e outros mantidos pelos recursos da Lei de Informática. ■ O Genius instituto funciona por solicitações de empresas ou vocês desenvolvem pesquisa aqui ou trazem da universidade? — O Genius tem várias modalidades de atuação. A primeira modalidade é a so-
lução de problemas colocados pelas empresas. Elas têm um problema e os recursos próprios para resolver e precisam de uma solução rápida. Por exemplo, em Manaus, o instituto trabalha muito na área de telefonia celular, desenvolvendo softwares. Nesse caso, o objetivo é simples: a empresa lança um modelo novo a cada seis meses e o consumidor precisa, por exemplo, transferir a agenda telefônica do telefone velho para o novo. Nosso trabalho é desenvolver uma série de softwares para servir de interface entre telefone e computador. ■ O Genius ficou com a imagem ligada à Gradiente (empresa que o criou pela Lei de Informática). Hoje também ele presta serviço para a Gradiente? — Nós temos um conjunto de clientes corporativos e um desses clientes é a Gradiente. Às vezes tem um problema num produto da linha Gradiente, que precisa ser resolvido rapidamente, isso vem para cá, o pessoal resolve, devolve, a empresa paga, encerra o assunto. A segunda modalidade que, num certo sentido, a longo prazo traz mais benefícios para o Genius é quando uma empresa quer desenvolver alguma coisa nova, mas o risco tecnológico é muito elevado para ela. Então a empresa se junta a um instituto de pesquisa, por exemplo, o Genius, e juntos fazem o projeto e o levam a um órgão de financiamento como a Finep [Financiadora de Estudos e Projetos]. Qual é a vantagem para a empresa? É que ela entra com uma contrapartida no projeto, mas o restante dos recursos representa custo zero para ela. Com isso, o investimento que ela faz, o de risco, cai. Normalmente são projetos de longo prazo, de um a dois anos. ■ Longo prazo aqui é um ou dois anos? — É. Os outros que eu falava são de três meses. Quando não são de três semanas, para apagar incêndio. Então, por que os projetos de longo prazo são mais interessantes para o Genius? Porque, enquanto na primeira modalidade, se existir alguma propriedade intelectual desenvolvida, ela fica completamente com a empresa, que pagou 100% do projeto, na segunda a propriedade intelectual é negociada tripartite: Finep, Genius, empresa. E aí há uma possibilidade de o Genius ir aos poucos construindo um portfólio de propriedade intelectual. Mas existe uma terceira modalidade de atua-
ção, que é a pesquisa própria. E aqui o forte do instituto é o reconhecimento automático de voz. Estamos investindo, buscando recursos públicos porque o Genius em si não gera lucros. Ele depende, para fazer suas pesquisas, como qualquer outro instituto, de financiamento público. E hoje, depois de alguns anos de investimentos, essa tecnologia já está madura para ir para o mercado. Mas como levá-la para o mercado a partir de um instituto como o Genius? No fundo, não é diferente de qualquer outro instituto de pesquisa. Vai desde licenciar essa tecnologia para parceiros que estão no mercado, adaptá-la às necessidades desses parceiros, até - uma coisa que nós estamos considerando hoje - criar uma empresa para levar essa tecnologia diretamente ao mercado. ■ O senhor falou da necessidade da rapidez de um produto chegar ao mercado. Mas há exemplos demorados como o sistema flex fuel. A Bosch, no Brasil, já tinha esse sistema em 1996, em testes pelas montadoras. Por que alguns produtos demoram tanto para chegarão mercado? — Por isso é que a gente faz a distinção entre o risco tecnológico e o risco comercial. O primeiro é aquele que não
sabemos se o produto vai dar certo do ponto de vista tecnológico. No comercial, o produto pode ser excelente do ponto de vista tecnológico e não vender. A história está cheia de exemplos. Enquanto ferramenta de trabalho, o Macintosh é muito melhor que qualquer PC Windows. Mas quem domina o mercado? O PC Windows. ■ Porque é mais barato? — Porque a estratégia comercial dele foi completamente diferente. A tecnologia do Mac é muito melhor do que a tecnologia do PC Windows, mas a estratégia comercial foi errada. Ou foi certa, depende do ponto de vista. Esse produto pior conquistou o mercado. Lembremos no começo do videocassete, tinha pelo menos dois produtos: o VHS e o Betamax. O Betamax, na parte técnica, era superior ao VHS, mas não sobreviveu. ■ Mesmo pertencendo a uma grande empresa, a Sony, ele não colou. — Não colou por razão de preço ou por estratégia da empresa. A Sony não é uma empresinha qualquer. Então, pergunto, por que o iPod colou e tantos outros produtos similares não têm esse sucesso? Na verdade, ninguém sabe por que uma coisa dá certo no mercado. ■ E o flex fuel? — Nesse caso dá para entender. O Brasil passou por um problema de desabastecimento de álcool. Ninguém queria carro a álcool. O flex fuel permitiria resolver esse problema, como permite hoje. Mas o petróleo e a gasolina estavam baratos. Não valia a pena correr o risco comercial. O risco tecnológico estava sob controle, o produto estava resolvido. Mas na ponta do lápis, para lançar esse produto no mercado, iria custar muito para fazer toda a engenharia final de industrialização. Mais recentemente, veio a crise do petróleo, a gasolina subiu de preço, o álcool baixou, e o flex fuel se tornou atraente para o mercado.
Faltam marcos leq para estimular a inovação, porque muitos dos que existem são inadequados
■ Não basta só a tecnologia ser avançada, tem que ter uma situação comercial? — Esse é o problema de trabalhar do outro lado do balcão. Você tem um produto genial que ninguém quer comprar. ■ O senhor foi secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do PESQUISA FAPESP 129 ■ NOVEMBRO DE 2006 • 15
MCT. Como se situou dentro desse cargo e como percebeu o Brasil do ponto de vista das condições de pesquisa científica e até da inovação? — Em relação a P&D, foi mais no sentido acadêmico. Foi uma experiência muito interessante porque a maior parte das áreas de atuação são sobre as quais eu sabia muito pouco antes, porque nessa secretaria as principais áreas são biotecnologia, biodiversidade, mudanças climáticas, meteorologia, recursos do mar. A nanotecnologia, por exemplo, era uma fração nanométrica das minhas atribuições. ■ Naquele momento, o senhor falou que o Brasil tinha condições de se tornar um líder mundial em biotecnologia. — Com certeza. Acho que, de novo, o Brasil empaca na questão institucional. ■ Em que sentido? — Uma coisa que não aprendemos ainda no Brasil é que as instituições precisam ser tão bem projetadas quanto uma ponte. As instituições são coisas abstratas e quando eu falo delas não estou me referindo às organizações. As instituições da democracia, por exemplo, são os três Poderes: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Essas instituições são entidades abstratas de um regime democrático e se materializam na prática por meio de certas organizações. Por exemplo: o Poder Legislativo se materializa em uma organização chamada Congresso Nacional. As instituições são como um projeto de engenharia da ponte. As organizações são a ponte construída e a materialização dessa ponte. Então, quando um projeto é ruim, por melhor que seja o engenheiro, por melhores que sejam os materiais, a ponte não vai parar em pé. Mas se o projeto é bom, pode ter erros de execução. O engenheiro pode ser ruim, em vez de cimento, usar areia, a ponte cai, mas a instituição, o projeto está correto. O problema é consertar a execução do projeto. Na democracia, o Poder Legislativo está correto. A implementação às vezes se revela problemática, mas nem por isso elimina-se o projeto. ■ O que precisamos então? — Para as coisas funcionarem neste país, nós precisamos fazer instituições bem projetadas. A área de biotecnologia, por exemplo, é insana. Ela tem à frente a 16 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 129
CTNBio [Comissão Técnica Nacional de Biossegurança]. Ela pretende ser, simultaneamente, um órgão normativo, executivo, fiscalizador e consultor, tudo ao mesmo tempo. Não pode funcionar! Por melhores que sejam as pessoas que estiverem na comissão, a ponte vai cair. O projeto está errado. ■ Gostaria de falar sobre um tema de que o senhor gosta bastante: a nanotecnologia. Como começou o seu interesse? — O meu interesse pela nanotecnologia começou em 2001, quando nós estávamos preparando o Livro verde e organizando a Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia. O professor Celso de Melo, da Universidade Federal de Pernambuco, era diretor do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], me procurou e disse: "O CNPq deve lançar um edital para redes na área de nanotecnologia". Aí eu disse para ele: "Ótimo. Me envie alguma coisa por escrito sobre isso, que eu encaixo no Livro verde". m O seu trabalho no LNLS e o seu trabalho acadêmico também influenciaram? — Tudo isso tinha a ver com a nanotecnologia. Mas, há dez anos, isso não estava no caminho. Não se chamava nanotecnologia. Mas nos documentos iniciais do LNLS nós queríamos construir um laboratório que disponibilizasse instrumentos capazes de estudar matéria no nível atômico em escala nanométrica. Por isso foi tão fácil desenvolver a nanotecnologia no Brasil. Porque ao longo dos anos o país investiu em laboratórios capazes de fazer nanotecnologia e nanociência, sem usar esse termo. A FAPESP investiu pesadamente, o CNPq e a Finep também. Mas o que chamou a
atenção do mundo para a nanotecnologia foi o programa americano, lançado pelo governo Clinton em 2000. ■ E como ela evolui no Brasil agora? — Olha, eu acho que, de novo, do ponto de vista de pesquisa, vai bem. Do ponto de vista de inovação, poderia ir muito melhor. ■ Falta mais envolvimento das empresas? — Sim. Existem algumas pequenas empresas sendo criadas, algumas poucas grandes começam a se interessar pelo assunto, sobretudo a área de petroquímica, como a Petrobras, por exemplo, e grupos privados também, como a Oxiteno e a Brasken. ■ Sobre a conferência: o senhor foi convidado para fazer o Livro verde, falou com bastante gente neste país. O que aconteceu após aquela conferência que se reflete agora, principalmente na inovação? — Quando o professor Carlos Pacheco foi para o MCT (como secretário executivo), numa certa ocasião, ele disse que o ministério estava interessado em fazer planejamento para ciência e tecnologia no Brasil e citou como exemplo planejamentos anteriores, como os PNDs [Planos Nacionais de Desenvolvimento], que foram feitos nas décadas de 1970, 80. Eu respondi que esse modelo já não era mais adequado para o país, que havia avançado muito, e não adiantava fazer um planejamento como em épocas passadas. Eu disse para ele: "Nós temos que criar um processo de discussão que se perpetue". A partir daí, comecei a tentar imaginar o que poderíamos fazer nesse sentido. Existiam vários esforços de planejamento em curso no ministério. Uma das coisas que eu propus
é que fizéssemos um Livro verde, mobilizássemos as pessoas para a discussão. ■ E a inovação? — Em relação à inovação, que eu saiba, foi a primeira vez que o MCT assumiu tão fortemente o comprometimento com ela porque foi a conferência de ciência, tecnologia e inovação. Mas eu sentia bastante, naquela época, que faltava uma política de Estado que realmente incorporasse essa questão da inovação. E acho que esse passo foi dado no governo Lula, com o lançamento da política industrial, tecnológica e de comércio exterior. Por mais incipiente que ela seja, por mais problemas que ela tenha em se viabilizar completamente, o importante foi o fato de o governo chegar e dizer: "Nós precisamos ter uma política industrial, tecnológica e de comércio exterior". Acho que esse foi o passo que ficou faltando em 2001. Naquele ano se levantou a questão da inovação. Em 2002 se criaram instrumentos importantes, como os fundos setoriais, o Centro de Gestão em Estudos Estratégicos [CGEE], mas não se fez a amarração com a questão industrial e com o comércio exterior. Esse passo foi dado agora. ■ Voltando à nanotecnologia. O senhor tem também uma abordagem filosófica sobre ela. Como é isso? — Eu continuo convencido que a nanotecnologia é um reconhecimento prático de que o mundo é feito de átomos. E isso é uma coisa muito recente na nossa cultura. Os gregos já falavam em átomos 2.500 anos atrás, e essa noção de átomo foi retomada, do ponto de vista científico, no final do século XVIII, e reforçada pelos químicos ao longo do século XIX, e terminou encampada com toda a força pelos físicos e pelos biólogos, com o estudo do DNA, no século XX. Mas a idéia de que tudo o que existe é feito a partir de pequenas partículas invisíveis, extremamente numerosas, que obedecem às leis da natureza, e nós sabemos quais são essas leis, nos situa num processo de, cada vez mais, descobrir coisas novas, sobre quais são as conseqüências dessas leis e entender como o próprio ser humano é constituído a partir dessas estruturas nanoscópicas. Isso poderá ter um impacto enorme sobre a cultura humana. Quanto tempo vai demorar isso, se vai acontecer? Não sei.
■ Outro aspecto da nanotecnologia é o aspecto ambiental. — Em setembro deste ano eu estive numa reunião em Paris, convocada pelo programa de meio ambiente das Nações Unidas. Uma vez por ano eles publicam uma espécie de "O estado do mundo" e nesse livro eles gostam de colocar um capítulo sobre desafios emergentes. E no livro de 2006 esse desafio é a nanotecnologia. Mas o que ficou claro ali é o seguinte: não se sabe o futuro impacto ambiental da nanotecnologia. As pesquisas ainda são muito incipientes. Existem alguns resultados, mas as metodologias são questionáveis. ■ Quais os problemas principais? — Um dos problemas é elementar: o monitoramento. Não existem instrumentos disseminados para você monitorar nanopartículas no meio ambiente. Hoje esses instrumentos estão confinados a laboratórios de pesquisa. As nanopartículas existem na natureza. Elas estão conosco desde que estourou o primeiro vulcão e se acendeu o primeiro fogo. Um dos desafios atuais é aprender a monitorá-las. Existe também a preocupação com as nanopartículas artificiais, ou produzidas industrialmente. Acreditamos que elas são boas para a medicina, por exemplo. Porque tem a possibilidade de direcioná-las para um órgão específico e fazê-las carregar um fármaco e entregar esse fármaco no lugar certo, na hora e na quantidade certas. Mas isso pressupõe que elas possam ir a qualquer lugar do corpo e se acumular em qualquer órgão. Tudo bem quando você faz isso intencionalmente. Mas e sem a intenção de fazer? Quais podem ser as conseqüências? Não sabemos. Mas nós temos também que relativizar tudo isso. O risco hoje é zero. Uma sugestão seria, num futuro não muito remoto, aproximar os órgãos ambientais dos centros de pesquisa onde existe o conhecimento em nanotecnologia para eles aprenderem sobre nanopartículas, inclusive a usar esses instrumentos. ■ Quais foram as motivações para a criação do LNLS? — Foram duas principais motivações: uma muito clara na época, a vontade de dotar o país de um instrumento que estimulasse a pesquisa experimental no país. Eu, como físico teórico, sei como é
importante a pesquisa experimental. A idéia de projetar, construir no país um instrumento científico de grande porte e colocá-lo em operação era realmente um desafio bonito demais para resistir. E a segunda coisa, a minha grande preocupação com a questão institucional. Eu via o Síncrotron como um novo modelo de fazer ciência no país. Um laboratório grande demais para ter dono. ■ O senhor propôs um instituto nacional para a nanotecnologia, mas a idéia foi contestada por pesquisadores contrários à proposta de concentrar investimento em apenas um instituto. Como foi isso? — Há uma diferença de visão. O Brasil opera muito num modo: ou é uma coisa, ou é outra. Ou temos tudo espalhado, ou temos tudo concentrado. A idéia de um sistema que, ao mesmo tempo, tenha um componente abrangente e reúna num local uma grande concentração de instrumentos e de pessoas capazes de alavancar o crescimento mais rápido de uma área não passa pela cabeça da comunidade brasileira. Se olharmos outros países, mais avançados, é assim. Existe uma ecologia institucional do setor de P&D, que vai desde laboratórios universitários espalhados, bem equipados, funcionando adequadamente, até grandes centros onde se concentram as pesquisas. A concentração, por mais que a internet permita trabalhar a distância, é benéfica. Os economistas chamam esse benefício de ganhos crescentes com escala. Acima de um certo limiar, você realmente acelera o desenvolvimento. ■ Por que não aconteceu? — Não houve, até o momento, condições políticas. Quando eu estava no ministério, procurei implementar essa política. O programa que montamos era amplo e incluía até um edital do CNPq para bolsas, auxílios à pesquisa para jovens doutores, com, no máximo, cinco anos de doutorado, para evitar a competição com pesquisadores com 20 anos de carreira. A idéia era criar um novo modelo de financiamento para a solução de problemas. O ministério colocaria quatro ou cinco problemas para solução e identificaria os melhores grupos no tema. Precisamos ter um foco de financiamento. E não apenas o financiamento difuso, um pouquinho para todo mundo. • PESQUISA FAPESP 129 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ 17
O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
Estratégias
Mundo
A hegemonia norte-americana Pesquisadores dos Estados Unidos monopolizaram os três prêmios Nobel da área científica - e também levaram o de Economia. A surpresa foi a conquista do Nobel da Paz por um economista criador de uma rede de microcréditos. O prêmio de Literatura coube a um escritor turco cuja obra explora as diferenças entre Oriente e Ocidente.
Califórnia em Berkeley. O trabalho premiado baseou-se em medições obtidas pelo satélite Cobe (Cosmic Background Explorer). Mather coordenou o programa do satélite, enquanto Smoot foi o responsável por medir variações de temperatura na radiação. A experiência permitiu a identificação das perturbações da radiação cósmica nos segundos que seguiram à explosão que criou o Universo. •
■ Genes desligados
■ Ecos do Big Bang Os astrofísicos norte-americanos John Mather, de 60 anos, e George Smoot, de 61, conquistaram o Nobel de Física em reconhecimento à descoberta da radiação de fundo das microondas cósmicas, também conhecidas como "ecos do Big Bang". Segundo a Academia Real de Ciências da Suécia, a premiação se justifica "pelo olhar para a infância do Universo que ajuda a compreender a origem das galáxias". Mather, do Centro de Vôo Espacial Goddard da Nasa, é o cientista-chefe do grupo responsável pelo telescópio James Webb, que deverá entrar em operação em 2013. Smoot é professor da Universidade da
Andrew Fire, de 47 anos, e Craig Mello, de 45, foram os vencedores do Nobel de Medicina e Fisiologia, graças à descoberta da interferência de RNA, técnica que permite desligar genes. O mecanismo, além de ser uma importante ferramenta de pesquisa, pode ter aplicação no combate a doenças. Fire, professor de genética da Universidade de Stanford, e Mello, da Escola Médica da Universidade de Massachusetts, publicaram o achado em 1998. Na época estudavam como a expressão genética é regulada num verme. Demonstraram que uma for-
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ma peculiar de ácido ribonucleico (RNA) pode silenciar ou desligar genes específicos. •
do o pai, Arthur Kornberg, a Estocolmo, para receber o Nobel de Medicina de 1959 por estudos genéticos. •
■ A economia da paz
■ De pai para filho Roger D. Kornberg, de 59 anos, professor da Escola de Medicina da Universidade Stanford, levou o Nobel de Química. A escolha distinguiu os trabalhos de Kornberg com a síntese de proteínas a partir da transcrição genética, um processo essencial à vida. O norte-americano descreveu como a informação genética é copiada do DNA para o RNA mensageiro que, por sua vez, carrega a informação para fora do núcleo da célula de modo que possa ser usada na construção das proteínas essenciais às células e ao organismo. Se esse processo de transcrição for interrompido, a transferência de informação genética não ocorre e o organismo morre. Kornberg foi o primeiro cientista a montar um modelo de como funciona a transcrição no nível molecular de um grupo de organismos, os eucariontes. A conquista acontece 47 anos depois de Kornberg ter acompanha-
O Banco Grameen (Banco Rural) de Bangladesh e seu fundador, o economista bengali Muhamad Yunus, foram agraciados com o Nobel da Paz de 2006. São responsáveis pela criação de uma rede de microcréditos que ajudou a tirar milhões de pessoas da pobreza. "A paz duradoura não
pode ser alcançada a menos que grandes grupos da população encontrem meios de sair da pobreza. O microcrédito é um desses meios", justificou o comitê do Nobel. O economista de 66 anos ganhou o apelido de "banqueiro dos pobres". Dividirá com o banco que ajudou a fundar o prêmio deUS$ 1,4 milhão. •
■ Expectativa inflacionária Edmund Phelps, de 73 anos, professor da universidade norte-americana de Colúm-
A graça do IgNobel
bia, ganhou o Nobel de Economia. Na década de 1960, ele contestou teorias que apontavam uma inter-relação entre inflação e desemprego. Phelps mostrou que a inflação dependia também das expectativas de empresas e trabalhadores sobre a rapidez da alta dos preços. "Tentei colocar as pessoas de volta ao modelo econômico, de modo a levar em consideração suas expectativas sobre o que outros atores econômicos estão fazendo e o que farão no futuro", disse. •
O Prêmio IgNobel é uma paródia do Nobel concedido todos os anos pela revista humorística Armais oflmprobable Research. São laureados pesquisadores que fizeram descobertas aparentemente inúteis ou absurdas. A premiação de 2007 mostra que o IgNobel continua em grande forma. O destaque mais risível foi o da categoria Medicina. Francis Fesmire, do Colégio de Medicina da Universidade do Tennessee, e uma equipe do Centro Médico de Haifa, Israel, publicaram um estudo intitulado "Término do soluço mediante uma massagem retal digital". Na categoria Matemática, os ganhadores foram Nic Svenson e Piers Barnes, da Organização de Pesquisa Científica da Austrália, que calcularam o número de fotos que precisam ser tiradas para se ter certeza de que todos do grupo apareceram com os olhos
■ Bons ventos na Tunísia
■ Busca da alma melancólica O escritor turco Orhan Pamuk, de 54 anos, recebeu o Nobel de Literatura. A academia sueca justificou sua escolha: "Na busca pela alma melancólica de sua cidade natal, descobriu novos símbolos para o combate e a mistura de culturas". Criticado pelos nacionalistas pela sua defesa das causas armênia e curda, Pamuk é autor de uma obra que descreve as divisões da sociedade turca entre Ocidente e Oriente. Em Meu nome é vermelho, lançado no Brasil em
abertos. Na categoria Biologia, a equipe liderada pelo holandês Bart Knols mostrou que o mosquito transmissor da malária é atraído pelo odor exalado pelos pés humanos. O IgNobel da Paz coube ao galés Howard Stapleton, que inventou um repelente de adolescentes, capaz de produzir um barulho irritante para jovens que não são escutados
2004, Pamuk alia trama policial, amor proibido e reflexões sobre culturas. Constituída por narradores como um cachorro, um cadáver e o pigmento cuja cor batiza o livro, a obra foi considerada pela crítica como uma exaltação do estilo. •
O presidente da Tunísia, Zine El Abidine Bem, assinou o decreto de criação de observatório nacional voltado para coordenar pesquisas em ciência, tecnologia e inovação e promover programas de treinamento científico. Simultaneamente, o primeiro-ministro do país, Mohamed Ghannouchi, anunciou planos de criar 12 parques tecnológicos voltados para fazer a ponte entre a pesquisa acadêmica e as empresas. Para Ahmed Rabei, do Centro de Biotecnologia de Sfax, na Tunísia, as duas novidades ajudarão a resolver
pelos adultos. O prêmio de Acústica foi para Lvnn Halpern, Randolph Blake e James Hillengran, da Universidade Northwestern, de Chicago, autores de uma pesquisa que mostrou por que o barulho produzido pelas unhas no quadro-negro é tão irritante. O de Ornitologia foi concedido a Ivan Schwab e Philip Mai, da Universidade da Califórnia, por mostrar as razões que levam os pássaros carpinteiros a não terem dores de cabeça. A categoria Nutrição foi conquistada pelos kuwaitianos Wasmia alHouty e Faten al-Mussalam. Eles mostraram que os escaravelhos do estrume são, paradoxalmente, animais comensais muito seletivos. "Os prêmios buscam celebrar o estranho e encorajar o interesse das pessoas pela ciência", afirmou Marck Abraham, diretor da Annals of Improbable Research. •
problemas sociais, econômicos e tecnológicos - e a desenvolver uma sociedade baseada no conhecimento no país. "Uma das nossas grandes limitações sempre foi a falta de uma estratégia clara que indicasse que tecnologias podem ser comercializadas e como fazer isso", disse à agência de notícias SciDev.Net. Também no mês passado, Ghannouchi lançou um plano para trazer cientistas tunisianos radicados em outros países para trabalhar em laboratórios nacionais por pelo menos dez meses. O programa busca promover parcerias internacionais em campos como a biotecnologia, a energia e a agricultura. •
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Estratégias
Ciência na web
Mundo
Envie sua sugestão de site científico para cienweb@trieste.fapesp.br Destaques 6o governo
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•Váfi
Fundação Joaquim Nahuco
PRINCIPAL
O francês cético Climatólogos franceses pegaram em armas contra o ex-ministro da Educação e da Ciência do país, o geofísico Claude Allégre. Em sua coluna semanal na revista VExpress, Allégre coloca em dúvida os efeitos do aquecimento global. Rejeita, por exemplo, a idéia de que o monte Kilimanjaro esteja perdendo sua cobertura de gelo em decorrência das mudanças climáticas. Também questionou se tais mudanças atingem todo o planeta e se são mesmo causadas pela ação humana. Cartas de protesto de renomados climatólogos - incluindo Jean Jouzel, diretor do Pierre-Simon Laplace Institute - chegaram à redação da VExpress, à Academia Francesa de Ciências e ao Ministério da Ciência. Elas classificam as declarações de Allégre de irresponsáveis e apontam erros, como a citação de um artigo da revista Nature segundo o qual o degelo do Kilimanjaro nos últimos cem anos é controlado por atividades tectônicas. O estudo, advertem seus detratores, foi publicado na revista
Science e tratava do impacto da atividade tectônica no transporte de sedimentos para o oceano Índico nos últimos milhões de anos. •
http://digitalizacao.fundaj.gov.br/fundaj/ Com a digitalização do acervo da Fundação Joaquim Nabuco, estão disponíveis mais de mil documentos e quase 5 mil arquivos, incluindo livros, cartões-postais e cordéis.
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■ Um casal no espaço?
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A Roscosmos, agência espacial da Rússia, voltou a ter uma mulher em seu time de 36 cosmonautas. Há dois anos, com a aposentadoria de Nadezhda Kuzhelnaya, o time era exclusivamente masculino. Segundo a agência de notícias EFE, a engenheira Elena Serova foi admitida na equipe. Elena, de 30 anos, é mulher de outro cosmonauta, Mark Serow, incorporado ao grupo em 2003 - o que projeta a possibilidade de um casal ir ao espaço. Ela trabalhava na estatal Energia, construtora de naves espaciais. Serova e os outros seis aspirantes a cosmonautas foram aprovados no treinamento de dois anos no Centro de Preparação de Cosmonautas Yuri Gagarin, localizado na Cidade das Estrelas, próximo a Moscou. •
20 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 129
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http://www.nlm.nih.gov/changingthefaceofmedicine/ A exibição virtual da National Library of Medicine, dos Estados Unidos, traz a história de 200 mulheres que promoveram avanços na medicina.
http://spacesounds.com/home/index.html 0 site reúne sons captados em planetas como Júpiter e Saturno, além de registros da comunicação de missões espaciais tripuladas.
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■ Vencedoras do Prêmio Claudia A médica paulista íris Ferrari, de 75 anos, foi a vencedora do Prêmio Claudia 2006 na categoria Ciências. Professora aposentada da Universidade de Brasília, ela criou nos anos 1980 o primeiro serviço de Genética Clínica do Distrito Federal, que já atendeu 5,5 mil famílias gratuitamente. Formada em 1957 na primeira turma da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), íris radicou-se em Brasília em 1986. Hoje, está engajada numa campanha para montar um serviço de transplante de medula em Brasília. A vencedora na área de Cultura foi Isa Grinspum Ferraz - que idealizou o conteúdo do Museu da Língua Portuguesa, em São
O Brasil no sistema Galileo O Brasil negocia com a Europa sua participação no programa Galileo, o primeiro sistema civil de geoposicionamento por satélite. Representantes da Agência Espacial Brasileira (AEB) e da Comissão Européia (CE) reuniram-se em Brasília, no mês passado, para discutir os termos da parceria. Embora o país tenha acesso aos dados do norte-americano GPS (Sistema de Posiciona-
Paulo. Ângela Hirata, responsável pela expansão da marca de sandálias Havaianas no mercado internacional, venceu na categoria Negócios. Cleuza do Nascimento, prefeita de Salgueiro (PE), ganhou na área
mento Global, na sigla em inglês), o programa europeu promete uma cobertura mais ampla, além de informações com resolução bem maior. Países como Arábia Saudita, China, Coréia do Sul, Israel, índia, Marrocos e Ucrânia já aderiram ao projeto, que conta com uma constelação de 30 satélites. Ao contrário do GPS e do russo Glanoss, o Galileo não terá controle militar. Os dados gerados
de Políticas Públicas. Na categoria Trabalho Social a vencedora foi Raquel Barros, criadora da ONG Lua Nova, que trata de mães carentes. O prêmio é oferecido pela revista Claudia, da Editora Abril. •
■ Mil projetos de inovação íris Ferrari: pioneira em aconselhamento | genético em Brasília
Mais de mil propostas foram apresentadas em resposta à primeira chamada pública do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), que oferece recursos não reembolsáveis para projetos de inovação tecnológica em empresas. O dis-
pelos satélites europeus serão utilizados no controle do tráfego aéreo ou no gerenciamento do transporte rodoviário para evitar o roubo de cargas. Mas também irá ajudar a Justiça a controlar a movimentação de suspeitos e criminosos, além de colaborar em missões de salvamento no mar e em terra. Os investimentos no novo sistema giram em torno de € 3,2 bilhões. •
positivo está previsto na nova Lei de Inovação. A chamada em questão oferece R$ 300 milhões em áreas consideradas estratégicas para política industrial e de comércio exterior, como os setores de fármacos, semicondutores e software, bens de capital com foco em biocombustíveis e combustíveis sólidos, entre outras. O resultado da seleção sai em dezembro. A Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), agência do MCT responsável pela seleção, vai considerar as demandas apresentadas pela indústria para planejar as futuras chamadas públicas. •
PESQUISA FAPESP 129 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ 21
A briga continua
■ Vizinhança unida Técnicos da Bolívia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela estiveram na sede do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em São José dos Campos, para fazer um curso de capacitação em monitoramento da cobertura florestal da Amazônia sulamericana. O objetivo do Seminário Panamazônia II, que aconteceu entre os dias 16 e 27 de outubro, foi apresentar aos países amazônicos a metodologia desenvolvida e utilizada pelo Inpe no monitoramento da floresta brasileira. O Projeto Panamazônia II segue um modelo de cooperação regional estabelecido pela Sociedade Latino-americana de Especialistas em Sensoriamento Remoto (Selper). Fará um mapeamento da Amazônia, distinguindo as áreas desmatadas
Teve novo round a briga entre autoridades ambientais e a comunidade científica acerca das normas para a concessão de autorizações relativas à coleta e transporte de material biológico. Os pesquisadores imaginavam que seriam acatados pelo Ibama os consensos obtidos no Comitê de Assessoramento Técnico do Sistema de Autorização e Informação em Biodiversidade (CAT-Sisbio), criado justamente para promover o diálogo com as sociedades científicas. Mas um ofício assinado pelo presidente do Ibama, Marcos Barros, contrariou pelo menos duas recomendações do comitê. Uma delas é a exigência de citação do número da licença e do nome da unidade de conservação na qual foi executada a pesquisa nas publicações científicas resultantes das atividades
do solo já em reflorestamento e a vegetação queimada, usando imagens de satélite. •
■ Intercâmbio Brasil-França A FAPESP e o Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), da França, abriram processo
22 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 129
de seleção pública de projetos de intercâmbio de pesquisadores. Pela FAPESP, poderão se inscrever pesquisadores responsáveis por projetos nas modalidades Auxílio a Pesquisa e Projetos Temáticos ou desenvolvidos no âmbito dos programas Apoio a Jovens Pesquisadores e Centros de Pesquisa,
autorizadas. "O conselho gestor do Ibama entendeu que as citações contribuem para a transparência do processo de concessão de autorizações e evitam constrangimento dos pesquisadores diante dos órgãos fiscalizadores", explicou Rômulo Mello, diretor de Fauna e Recursos Pesqueiros do Ibama. Outro dispositivo proíbe o titular da licença de indicar um membro da equipe para representálo em caso de ausência numa expedição de campo. "O dispositivo proposto pelas sociedades científicas não era condizente com o caráter pessoal e intransferível da licença", afirmou Mello. Para o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Enio Candotti, as alterações introduzidas pelo Ibama comprometem o longo trabalho de entendimento entre a comunidade e os técnicos do instituto. •
Inovação e Difusão (Cepid). Serão considerados projetos nas áreas de astrofísica e astronomia, biologia molecular e genômica, geociências, informática, materiais e nanotecnologia, química, engenharias, fontes renováveis de energia, agrotecnologia, matemática, física, fotônica, óptica, ciências humanas e sociais. As propostas serão recebidas até o dia 16 de novembro. O texto da chamada está no site www.fapesp.br/cnrs2006. Outra seleção pública de projetos de intercâmbio envolve a FAPESP e o Instituto Nacional de Pesquisa em Informática e Automação (Inria), da França. Serão aceitas propostas em qual-
quer área do conhecimento em que haja colaboração científica entre pesquisadores do Inria e pesquisadores do estado de São Paulo. As propostas serão recebidas até 25 de novembro. O texto da chamada está no site www.fapesp. br/inria/2006/chamada. •
■ Divulgação científica As estratégias para a divulgação científica na sociedade do conhecimento foram tema de seminário promovido pelo Centro Franco-brasileiro de Documentação Técnica e Científica (CenDoTec) e a Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de São Paulo, nos dias 19 e 20 de outubro. Os debates contaram com a participação de Baudouin Jordan, professor da Universidade Paris 7; Pierre Fayard, diretor-geral do CenDoTec; Carlos Vogt, presidente da FAPESP, entre outros especialistas. Na avaliação de Jordan, a divulgação científica é uma etapa da própria produção científica. "É um momento essencial na produção do conhecimento", afirmou. Ele não acredita que a divulgação tenha uma função didática. "Aprender ciência por meio dos veículos de comunicação é um itinerário inconcebível", sublinhou. Mas tem uma outra função que ele considera crucial: "Produz efeito sobre a ignorância". Para Fayard, a linguagem da ciência é, ela pró-
pria, um obstáculo à comunicação fora da comunidade científica. "Temos que aproximar a sociedade das comunidades particulares. Ocorre que a divulgação, ao invés de aproximar, as afasta." Vogt lembrou que a divulgação científica deve levar em conta as mudanças nos padrões de consciência - específicas na sociedade do conhecimento - que criam indagações sobre "nossos destinos e papéis no mundo". "Quais são os limites do conhecimento? Esses limites são próprios do conhecimento ou são de ordem ética?", indagou. "Divulgação científica não é suprir o déficit do conhecimento, mas formar espíritos críticos", concluiu. Durante o seminário foi lançado o livro Cultura científica: Desafios, publicado pela Edusp e FAPESP, com artigos de pesquisadores brasileiros e franceses. •
■ Base na Holanda A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) inaugurou na Holanda uma nova representação de seus laboratórios no exterior, os Labex. Pesquisas dentro da área de biologia avançada e genômica estarão em foco no novo laboratório, que resulta de uma parceria da Embrapa com a universidade holandesa de Wageningen, um dos principais pólos europeus de excelência em pesquisa agropecuária para o agronegócio. O
presidente da Embrapa, Silvio Crestana, assinou dois projetos de cooperação técnica com a universidade holandesa. Um é sobre o uso sustentável dos cerrados do Brasil e o outro sobre genômica da banana. Ambos os projetos prevêem treinamentos de pesquisado-
res da Embrapa em nível de doutorado e pós-doutorado. Os Labex buscam estabelecer parcerias internacionais, além de intercâmbio de informações e de pesquisadores. Além da Holanda, os Estados Unidos e a França também sediam laboratórios da Embrapa. •
Prêmio resgatado O Prêmio Almirante Álvaro Alberto de Ciência e Tecnologia voltará a ser concedido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A distinção foi instituída em 1986 para homenagear brasileiros com grandes contribuições à ciência e à tecnologia, mas estava desativada desde 2000. O almirante Álvaro Alberto da Motta e Silva foi idealizador do CNPq, criado em 1951.0 prêmio contará na nova edição com a parceria da Fundação Conrado Wessel. O agraciado receberá R$ 150 mil, uma
medalha e diploma. A primeira área a ser contemplada será a de ciências exatas e da terra e engenharias. A premiação ocorrerá no primeiro semestre de 2007. Nos anos seguintes serão distinguidos pesquisadores nas áreas de ciências humanas e sociais e ciências da vida. Para a indicação dos candidatos, será criada uma comissão multidisciplinar, constituída de pesquisadores designados pelo Ministério da Ciência e Tecnologia e pelo CNPq. Caberá ao conselho deliberativo do CNPq indicar o premiado. •
PESQUISA FAPESP 129 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ 23
POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA DIFUSÃO
Ao alcance de todos Acesso livre a artigos científicos ganha força e muda estratégia de editoras
FABRíCIO MARQUES
Ganha força em ambientes acadêmicos e editoriais do mundo inteiro a idéia de que os artigos científicos, sobretudo os que são produto de investimentos públicos, têm de estar disponíveis em meio eletrônico, sem cobrança de taxas ou direitos autorais. Essa tese remonta aos anos 1990, quando despontaram ações de pesquisadores e instituições em defesa da democratização do conhecimento, mas conquistou os contornos atuais em 2003, com o lançamento da Declaração de Berlim e da Declaração sobre o Acesso aos Dados de Pesquisas com Fundos Públicos, endossadas por organizações como o Instituto Max Planck, da Alemanha, e o Centro Nacional de Pesquisa Científica da França, além de academias de ciências de 70 países. A princípio, a iniciativa parecia utópica e soava de difícil aplicação num sistema de comunicação científica no qual grandes editoras controlam as revistas mais prestigiadas e detêm o copyright sobre os artigos. Afinal, foi a própria comunidade acadêmica internacional que consagrou o modelo no qual cabe às editoras apreciar, por meio da avaliação de pares, o conteúdo dos artigos submetidos a publicação e certificar sua relevância. Com o advento da internet, porém, puderam surgir alternativas a esse modelo. E o acesso aberto revelou-se útil não apenas para os consumidores de informação, mas também para os autores, que conseguem aumentar a visibilidade de seus textos. 24 ■ NOVEMBRO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 129
Várias editoras encontraram meios de se adaptar e, sobretudo, de não perder dinheiro. A editora da Universidade Oxford, por exemplo, criou em julho de 2005 um modelo híbrido em suas publicações, segundo o qual os pesquisadores podem optar por publicar seus artigos segundo o figurino habitual, com acesso restrito a assinantes durante um determinado período de tempo, ou então com acesso imediato na internet, pagando uma quantia extra à editora por isso. A experiência foi aplicada em 36 dos 49 títulos publicados pela editora. "A aceitação foi maior em áreas como as ciências da vida, onde parece haver mais dinheiro para investir em acesso aberto", disse Claire Bird, editora sênior da Oxford Journals, a divisão de publicações científicas da instituição. Três desses títulos, nas áreas de biologia molecular e biologia computacional, chegaram a ter 20% dos artigos publicados em acesso aberto. Em outras áreas, o desempenho foi menos significativo. Em revistas de medicina e saúde pública, 5% dos autores optaram pelo acesso aberto. Nas publicações das áreas de humanidades e ciências sociais, o índice foi de 3%. Na média geral, 10% dos autores optaram pelo esquema aberto. A Universidade Oxford não está convencida de que tal modelo vá tornar-se universal. Mas continuará oferecendo o serviço híbrido. Tanto que os valores das assinaturas e da quantia extra para publicação on-line devem ser reajustados em 2007 nas revistas onde o esquema foi mais procurado, para compensar a redução das receitas.
Hoje já se contam 2,5 mil publicações científicas de acesso aberto no mundo. Apenas cerca de duas centenas delas pertencem à base de dados Thomsom ISI, entidade norte-americana que indexa 8,7 mil periódicos científicos considerados os melhores do mundo e produz indicadores sobre o impacto dessas publicações. A comparação das revistas de acesso aberto com os demais 8,5 mil jornais e revistas revela, em primeiro lugar, que é infundada a idéia de que publicações de acesso aberto, por estarem fora do esquema rigoroso das grandes editoras, seriam necessariamente menos consistentes. "Só entram em nossa base publicações que proporcionam informação de alta qualidade para uso de pesquisadores", disse James Pringle, vice-presidente da Thomsom ISI. "Se publicações de acesso aberto preenchem essa condição, são admitidas. Se não, ficam de fora." Algumas publicações da base Thomsom ISI experimentaram aumento em seu fator de impacto - que eqüivale ao número de citações que seus artigos tiveram em outros periódicos - depois que se tornaram de acesso aberto. Um estudo feito por Rogério Meneghini, professor aposentado do Instituto de Química da Universidade de São Paulo e coordenador científico da SciELO, biblioteca eletrônica brasileira de acesso aberto, 26 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 129
analisou a trajetória de sete títulos que participam tanto da SciELO quanto da base Thomson ISI. Meneghini observou que, entre 1998 e 2004, os fatores de impacto dessas revistas cresceram em média 2,15 vezes. A experiência da SciELO mostra que o acesso aberto também ajuda a dar visibilidade à pesquisa feita no mundo em desenvolvimento. A biblioteca, mantida pelo Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (Bireme), pela FAPESP e pelo CNPq, oferece na internet 158 publicações científicas, a maioria em português, que resultam em cerca de 6 milhões de consultas pela internet por mês. Sua coleção tornou-se uma das dez fontes de informação mais acessadas por usuários do Google Scholar, ferramenta do Google especializada em pesquisa acadêmica. Um conjunto de pesquisadores vem se debruçando sobre a tarefa de comparar o desempenho das publicações de acesso aberto e as franqueadas apenas a assinantes. "Ainda não há conclusões definitivas, mas os dados disponíveis sugerem que há vantagem para o modelo do acesso aberto", explica Rogério Meneghini. As estatísticas mais eloqüentes são de um estudo do britânico Timofhy Brody, professor da Universidade de Sou-
thampton. Ele indica que publicações de acesso aberto sempre têm impacto maior. No caso de artigos na área de biologia, há 49% mais citações no acesso aberto. Já nos de letras e lingüística, chegaria a 1.236%. Os dados foram obtidos com base no impacto de artigos publicados em revistas de acesso aberto ou só para assinantes da base Thomsom ISI. unther Eysenbach, da Universidade de Toronto, Canadá, monitorou o número de vezes que 1.492 artigos publicados no jornal eletrônico Proceedings ofthe National Academy of Sciences foram citados em estudos posteriores. O jornal segue aquele modelo híbrido adotado pela editora de Oxford. O conteúdo é restrito a assinantes. Mas os autores podem tornar seus artigos disponíveis gratuitamente na internet, se pagarem por isso. Do total de artigos estudados, parte tinha acesso aberto e a outra parte não. Eysenbach constatou que os de acesso aberto foram citados duas vezes mais que os outros papers no período de quatro a dez meses após sua divulgação. Já James Testa, diretor editorial da Thomsom ISI, colocou em dúvida a eficiência do acesso livre ao mostrar, com base no desempenho de um conjunto de jornais da área de farmaco-
logia, que os de acesso aberto não foram capazes sequer de ter uma repercussão mais rápida que os demais. Nos dois grupos, a proporção de citações nos três anos seguintes à publicação evoluiu num mesmo ritmo. A promessa de dar mais visibilidade a um artigo científico ou amplificar seu impacto explica apenas em parte o crescimento do modelo de acesso livre. O fato é que o movimento criado em 2003 também vem obtendo importantes vitórias políticas. Nos Estados Unidos, a Casa dos Representantes, como é chamada a Câmara dos Deputados, aprovou recentemente uma lei segundo a qual toda a pesquisa financiada com dinheiro federal no país deve obrigatoriamente ser disponibilizada para o público, seja em periódicos de acesso aberto ou em repositórios de pesquisadores ou instituições. A lei ainda precisa ser chancelada pelo Senado. A pressão incentivou um número crescente de revistas a mudar de modelo. A Plant Physiology, editada desde 1926 pela American Society of Plant Biologists (ASPB), passará a ser de acesso aberto a partir de janeiro de 2007 - e sem cobrar nenhuma taxa adicional dos pesquisadores. Tratase de uma das mais citadas revistas de botânica do planeta. Da mesma forma, o Journal of Nuclear Medicine e o Journal of Nuclear Medicine Technology, pu-
blicados pela Society of Nuclear Medicine, anunciaram em setembro que seus artigos serão disponibilizados gratuitamente, embora apenas 12 meses depois da publicação. Novas publicações em acesso aberto vêm surgindo com grande freqüência. A Public Library of Science (PLoS), organização que já publica os periódicos de acesso aberto PLoS Biology e PLoS Medicine, anunciou em setembro o lançamento de um novo título, voltado exclusivamente para as doenças tropicais negligenciadas pela pesquisa dos grandes laboratórios e dos países desenvolvidos. No Reino Unido, surgiu em agosto o Open Acess Central, que disponibiliza na internet o conteúdo de dezenas de revistas em biomedicina e quimíca. Legitimação - A pesquisadora Suzana Pinheiro Machado Mueller, professora do Departamento de Ciência da Informação da Universidade de Brasília (UnB), observa que as iniciativas de acesso aberto vão trilhando um caminho que as conduz à legitimação. Mas lembra que a expectativa dos precursores do movimento do acesso livre ainda não se concretizou. "Assim como os utopistas da Renascença, alguns sonharam com um novo sistema de comunicação, no qual o acesso a todo o conhecimento científico se tornaria universal e sem
barreiras", escreveu Suzana em seu artigo "A comunicação científica e o movimento de acesso livre ao conhecimento". A gênese do movimento de acesso aberto remonta à chamada crise dos periódicos, em meados dos anos 1980, que eclodiu quando bibliotecas universitárias norte-americanas perderam a capacidade de arcar com os custos crescentes para adquirir periódicos e descontinuaram várias coleções. Nos anos 1990 despontaram as primeiras iniciativas que quebravam a hegemonia das editoras, como o arquivo de artigos na área de física montado no Laboratório Nacional de Los Alamos, no México, em 1991. Os autores enviavam seus artigos para Los Alamos e, simultaneamente, os submetiam às editoras. Diariamente, os usuários do sistema ficavam sabendo que trabalhos tinham sido apresentados e podiam requisitar uma cópia. Também nessa época apareceram os primeiros periódicos de acesso aberto. Hoje o conceito tornou-se bem mais amplo. Engloba formatos como os repositórios de pesquisas mantidos por universidades, o download de artigos nas páginas pessoais dos autores. "Cada um desses formatos colabora para dinamizar a comunicação científica, o que, esperamos, ajudará a acelerar a velocidade das descobertas científicas", afirma Rogério Meneghini. • PESQUISA FAPESP 129 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ 27
O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA POPULARIZAÇÃO
A emoção da descoberta Centros de difusão científica, como a Estação Ciência, ganham recursos e freqüentadores
Estação Ciência, centro de difusão científica e tecnológica vinculado à Universidade de São Paulo, deve encerrar ■ H 2006 com um público ■ H de 450 mil pessoas, um ™ ™ recorde em 19 anos de atividade. Em 2005 esse contingente, que reúne os visitantes de exposições e também pessoas atendidas em outros espaços, além do acesso ao site, alcançou 400 mil pessoas. Em 2004,220 mil. O desempenho crescente é o resultado de uma conjunção de fatores. O governo federal, agências de fomento e fundações têm ampliado os investimentos em espaços de difusão científica como a Estação Ciência, cuja área de 6 mil metros quadrados abriga exposições e experimentos lúdicos e interativos que abordam temas vinculados a áreas como a física, biologia, astronomia, matemática, meteorologia, urbanismo e geologia, entre outros. Mas a estrutura e a reputação do centro foram vitais para atrair tais oportunidades. "É um momento favorável", 28 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 129
diz o diretor da Estação Ciência, Wilson Teixeira, professor titular do Instituto de Geociências da USP. "A divulgação científica vem conquistando mais recursos e temos sido procurados por empresas e instituições para fazer projetos em parceria. Isso atrai a atenção da mídia e faz o público aumentar." A Estação Ciência foi criada pelo CNPq em 1987 num galpão onde funcionou uma fábrica junto à estação de trens metropolitanos do bairro paulistano da Lapa. O espaço foi incorporado, em 1990, pela Universidade de São Paulo. Com estabilidade orçamentária, criouse o caminho para a idéia florescer. Hoje a Estação Ciência tem um orçamento de R$ 750 mil anuais para investimento em infra-estrutura, custeio e manutenção - o que não inclui o salário dos funcionários e despesas como luz e água, que também são pagos pela USP. Mas recebe contribuições de todo tipo. A Petrobras, por exemplo, investiu R$ 980 mil numa nova exposição sobre o planeta Terra e o meio ambiente, além de apoiar há vários anos o projeto de ressocialização Clicar,
que leva crianças e adolescentes em situação de rua aos experimentos do centro. Muitas das atrações temporárias não têm nenhum custo para a Estação. No mês passado, a programação da Semana de Ciência e Tecnologia incluiu a exposição de uma réplica do avião Demoiselle, criado em 1907 por Santos-Dumont e confeccionado pelo aviador Ruy de Azevedo Sodré Sobrinho. "Também fomos procurados pelo astronauta Marcos Pontes, que se ofereceu para dar uma palestra gratuita", diz Wilson Teixeira. A Fundação Vitae até recentemente destinou verbas que permitiram reformar o espaço. Há três anos, a Estação Ciência decidiu cobrar ingresso. "Era necessário requalificar o espaço e deu certo. O público aumentou depois que passamos a cobrar ingresso", afirma Teixeira. Os recursos advindos dos ingressos são reinvestidos na infra-estrutura e nas exposições. Mas em um sábado e em um domingo por mês a entrada é franca. A Estação Ciência conta com 32 funcionários e 115 estagiários - estudantes universitários que recebem bolsas para trabalhar como monitores.
A réplica do Demoiselle, na Estação Ciência: o desafio é atingir jovens sem afinidade com temas científicos
O exemplo e o desempenho da Estação Ciência não são um dado isolado. Na década de 1990 surgiram no país dezenas de centros de difusão científica, entre eles o Museu da Vida, da Fundação Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro, ou o Espaço Ciência, entre as cidades de Olinda e Recife, em Pernambuco. A Associação Brasileira de Centros e Museus de Ciências (ABCMC) tem um cadastro de mais de cem instituições, em geral pequenas e fundadas há menos de 15 anos. O advento da Semana de Ciência e Tecnologia, criada pelo governo federal, também evidencia um público crescente atingido pela divulgação científica. Em 2004, a primeira edição da semana reuniu 1.840 eventos. Na mais recente, realizada no mês passado e que teve como tema o centenário do vôo do 14-Bis, o número de eventos chegou a 9 mil. A questão que se coloca é o impacto que iniciativas como esta estão obtendo no despertar de crianças e jovens para a ciência. A resposta não é simples. "Em comparação com o passado avançou-se muito. Mas os museus de ciên-
cia ainda atingem uma fração muito pequena do público que precisaria ser abordado", diz Ernst Hamburger, professor do Instituto de Física da USP, exdiretor da Estação Ciência e ainda um colaborador nas atividades do centro. É possível que a experiência de visitar um museu lúdico e interativo crie uma referência na vida de jovens estudantes e, eventualmente, até os ajudem a definir sua carreira - embora não existam estudos no país que dimensionem esse fenômeno. Mas a maioria dos freqüentadores desses centros é de estudantes que já demonstram algum interesse por assuntos científicos. O desafio, observa Ernst Hamburger, é atingir estudantes que não apresentam afinidade com a ciência e, para isso, a existência de um centro de difusão não é suficiente. A Estação Ciência busca enfrentar essa questão indo às escolas. O projeto ABC na Educação Científica Mão na Massa, coordenado pela Estação Ciência em parceria com a Academia Brasileira de Ciências, busca suprir essa lacuna com a capacitação de professores
das redes estadual e municipal de ensino de São Paulo e atinge mais de 500 mil alunos. Nos dias 9 e 10 de outubro foram apresentadas em São Carlos (SP) dezenas de experiências ligadas ao programa, desde a observação de fenômenos naturais, como a transformação do girino em sapo e da lagarta em borboleta, até a construção de protótipos de foguetes usando sucata. O Museu de Ciências e Tecnologia da PUC de Porto Alegre deu outra solução para este problema. Montou um museu itinerante. Trata-se de um caminhão que percorre cidades levando 60 kits de experimentos lúdicos. "Perguntamos às crianças o que elas querem ser antes e depois de visitarem o museu", diz Jeter Bertoletti, diretor do museu. "É gratificante ver respostas como a de uma menina da cidade de Novo Hamburgo que, na entrada, disse que gostaria de trabalhar na indústria de sapatos como os pais e, na saída, informou que havia resolvido ser professora", afirma. • FABRíCIO MARQUES PESQUISA FAPESP 129 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ 29
O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA AQUECIMENTO GLOBAL
A cruzada de Al Gore Filme do ex-vice-presidente dos Estados Unidos abusa do marketing político para converter céticos à defesa do meio ambiente MARILUCE MOURA
Üs preocupações com as mudanças climáticas globais e em especial com o aquecimento do planeta pareceram atingir nas últimas semanas, no país, uma ressonância só comparável à que cerca grandes eventos ligados a esses temas, a considerar os reflexos colhidos na mídia. Seria possível atribuir tanta visibilidade ao encontro internacional sobre mudança climática programado para o final de novembro em Nairóbi, Quênia, quando o Brasil deve propor a criação de um fundo global para compensar os países pobres que diminuírem o desmatamento nas florestas tropicais e, dessa forma, contribuírem para a redução do efeito estufa. Aliás, a proposta tem de saída apoio do Banco Mundial (Bird), que em relatório divulgado na segunda-feira, 23 de outubro, apontou o carbono resultante do controle do desmatamento como uma grande "oportunidade inexplorada" pelo planeta para simultaneamente reduzir a pobreza, conservar a biodiversidade e ajudar a resolver a questão do clima. Tudo indica, contudo, ainda que alguma influência Nairóbi tenha exercido, que o primeiro responsável pela atenção redobrada dos meios de comunicação à séria questão ambiental foi Albert Gore Jr., ou simplesmente Al Gore, político dos mais reluzentes do Partido Democrata e tido, por muitos anos, como ele mesmo diz com uma ponta de ironia, como o fu30 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 129
turo presidente dos Estados Unidos. Em uma ruidosa passagem por São Paulo, em 17 de outubro, Gore trouxe a tiracolo seu livro e filme do mesmo nome, Uma verdade inconveniente, que vem produzindo calorosas discussões mundo afora em seu esforço de sensibilizar platéias contra o aquecimento global. Num ambiente sensibilizado pelo exvice-presidente norte-americano antes mesmo que ele aqui aportasse, a revista semanal Época, por exemplo, vestiu-se literalmente de verde em sua edição de 16 de outubro e recomendou aos leitores, na capa um tanto estranha com essa cor: "Pense verde: o que você pode fazer para salvar o planeta". Na reportagem especial sobre o assunto, ofereceu três páginas para um artigo assinado pelo próprio Gore, com o mesmo título do livro e do filme. A Folha de S. Paulo, em entrevista do editor de ciência, Cláudio Ângelo, em 18 de outubro, deixou que um certo otimismo de Al Gore transbordasse, relativamente à convicção de que seu país mudará finalmente a política de clima. E ainda rasgou elogios ao documentário estrelado por ele. É verdade que sobrou espaço também para o retorno midiático de vozes extremamente alarmistas no debate sobre o futuro do planeta, como a do inglês James Lovelock, 87 anos. Das páginas amarelas da revista Veja, na edição de 25 de outubro, Lovelock, o controvertido autor de A vingança de Gaia - e que no passado ofereceu contribuições efetivas para a proibição de uso, em boa parte do mundo, do pesticida DDT e do gás CFC, utilizado em aerossóis e aparelhos eletrodo-
mésticos como os refrigeradores -, voltou a anunciar a total irreversibilidade do aquecimento global em curso e vaticinou, sem sombra de pudor pela falta de evidências científicas a suas afirmações, o provável desaparecimento de 80% da humanidade até o ano de 2100. Em seu tour paulistano Al Gore participou de um evento na Câmara Americana de Comércio, foi uma das estrelas na festa de premiação de empresas brasileiras que se distinguiram entre 2005 e 2006 por suas ações de proteção ao meio ambiente e, principalmente, garantiu uma forte promoção a seu livro e ao filme, programado para entrar em cartaz no país em 3 de novembro. Não resta muita dúvida de que o filme trata com grande competência técnica questões já vistas quase consensualmente como essenciais para um esforço mundial pela preservação da Terra, nos próximos séculos, com as características ambientais próximas das que existem hoje. Elas assegurariam a sobrevivência de parte considerável da atual biodiversidade do planeta, e da espécie humana em particular, em razoáveis condições. O filme também consegue explicar com clareza como e por que se deu e se dá o aquecimento do planeta, e questões espinhosas como o registro climático dos últimos 650 mil anos da Terra, obtido a partir do exame acurado dos testemunhos de gelo da Antártida. "Tecnicamente o filme é maravilhoso, com seus efeitos à Steven Spielberg. Explica muito bem o efeito estufa e as conseqüências globais do aquecimento. Toda a parte histórica é cientificamente muito
Aumento de temperatura duplicou a velocidade de derretimento das geleiras da Groenlândia
boa", comentou o secretário de Meio Ambiente do estado de São Paulo, José Goldemberg, que na quarta-feira, 18 de outubro, assistia à pré-estréia. "O problema é que, ao tratar do presente e do futuro, mistura fatos com hipóteses, e aí ganha um tom alarmista, cataclísmico", acrescenta. O problema também é a desagradável estridência do marketing que atravessa o filme inteiro. E esse tom só parece adequado, quase perfeito, se o filme for tomado como peça central para uma nova campanha de Al Gore à Presidência dos Estados Unidos, intenção que ele até aqui nega enfaticamente. Fora disso, toda a linguagem padece de excesso propagandístico num documentário elaborado, em princípio, para sensibilizar milhões de pessoas, no mundo todo, ao combate pela proteção do meio ambiente. O pesado tom doutrinário, a despeito de alguns bons momentos de ironia, a explanação melodramática das razões político-morais que conduziram o político Al Gore a essa cruzada em favor do meio ambiente, dificilmente sensibilizam ou criam emparia em relação às dores do planeta em quem já não está previamente preocupado com os problemas do aquecimento global. É claro que as coisas são diferentes se a intenção do filme, no qual muitas vezes não se sabe se o personagem central é Al Gore ou as mudanças climáticas globais, é atingir o norte-americano médio por razões político-eleitorais. De qualquer sorte, no curso do mês de novembro se poderá ter uma idéia mais clara de como o filme repercutirá entre o público brasileiro. • PESQUISA FAPESP129 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ 31
CIÊNCIA
Para os homens perderem a pressa
■ Exercícios com efeito duvidoso Fazer exercícios ajuda a viver mais, certo? Não é o que diz a teoria científica em vigor, que vê os animais com um estoque finito de energia. Se for verdade, os que gastam mais energia devem ter vida mais curta. Agora um experimento feito na Universidade de Groningen, Holanda, põe em dúvida ambas as visões. Três grupos de camundongos foram acompanhados por três anos: um era de corredores que adoravam se exercitar nas rodas postas em suas gaiolas, outro era de corredores que não tinham acesso a rodas e o terceiro era de camundongos comuns que tinham uma roda para correrem quando quisessem. De acordo com esse estudo, apresentado em outubro no encontro anual da Sociedade Americana de Fisiologia, os corredo-
Pode ter surgido uma alternativa para tratar um problema do qual os homens evitam até mesmo falar - a ejaculação precoce, que afeta entre 21% e 33% dos homens em algum momento de suas vidas. Jon Pryor e uma equipe de médicos da Universidade Minnesota, Estados Unidos, publicaram um estudo na Lancetde 9 de setembro mostrando a segurança e eficácia do uso de um antidepressivo chamado dapoxetina contra essa que é considerada uma das mais comuns disfunções sexuais masculinas. Nesse teste, 870 homens tomaram placebo e 874 com ejaculação precoce
moderada ou severa tomaram esse medicamento de uma a três horas antes da relação sexual, em duas dosagens diferentes. Antes, 62% dos participantes do estudo ejaculavam em menos de um minuto depois da pene-
tração. Três meses depois, o tempo de ejaculação passou para 1,75 minuto em média para os que haviam tomado placebo e para 2,78 minutos para os que haviam recebido 30 miligramas de dapoxetina e para 3,32 minutos para os que tomaram 60 miligramas. Segundo os pesquisadores, o medicamento foi bem tolerado, embora alguns homens tenham relatado náusea, diarréia, dor de cabeça ou tontura. A FDA, a agência dos Estados Unidos que delibera sobre alimentos e medicamentos, negou no ano passado a liberação de uso desse medicamento contra ejaculação precoce. •
res que tinham acesso às rodas gastavam 25% mais energia ao longo da vida que os dois outros grupos, mas tiveram longevidade igual aos corredores sedentários - cerca de 90 dias menos que os animais comuns. Os pesquisadores acreditam que os ratos corredores que gastavam mais energia podem ter compensado os danos do estresse oxidativo que resulta do exercício físico intenso com uma maior produção de antioxidantes, mas não encontraram diferenças nos níveis dessas substâncias entre os
dois grupos. Por enquanto, continua a corrida para descobrir o que faz os animais envelhecer e morrer. •
elemento 118. O número indica a quantidade de nêutrons em seu núcleo - é o que define seu peso. Na mesma ocasião foi também descoberto o elemento 116, subproduto da decomposição do 118. Os pesquisadores estão ainda cautelosos, pois para ser aceito o novo elemento tem de ser produzido também em outros laboratórios. A tabela periódica por enquanto continua igual. Se o novo elemento algum dia vier a integrá-la, entrará abaixo do radônio, na categoria dos gases nobres. •
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■ Mais pesado, com vida curta Durante um milésimo de segundo os aparelhos de físicos russos e norte-americanos abrigaram três átomos do elemento químico mais pesado já criado. Mas esse tempo não bastou para fazer análises nem batizar o recém-nascido. Ele fica por ora conhecido como
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Pólo sul da Lua: contrário à teoria
■ Muito frio, mas sem água O pólo sul da Lua tornou-se mais conhecido por meio de imagens de radar de alta resolução de dois telescópios, um em Porto Pdco e outro nos Estados Unidos, que penetravam vários metros além da superfície e delimitavam áreas pequenas, de 300 metros (Nature, 19 de outubro). Os astrofísicos de um grupo de universidades associadas em um projeto financiado pela National Science Foundation (NSF), dos Estados Unidos, esperavam encontrar água nas crateras do pólo sul que se encontram sob a permanente sombra do Sol. Há 40 anos as teorias sugeriam que poderia haver gelo nessas regiões escuras e muito frias, com temperaturas constantes de 233° Celsius negativos. Em 1992, telescópios terrestres localizaram depósitos de gelo nos pólos de Mercúrio e mais tarde um satélite identificou hidrogênio nos pólos da Lua.
Só faltava encontrar água. Não encontraram. Mas a esperança de encontrar água na Lua ainda não evaporou por completo. Pode haver gelo na Lua sob a forma de grãos espalhados ou em finas camadas sob a superfície rochosa. •
■ Terapia qênica para os olhos A terapia gênica traz esperanças para portadores da amaurose congênita de Leber, doença hereditária detectada em 10 a 20% das crianças cegas. Uma equipe de pesquisadores liderada pelas francesas Guylène le Meur e Fabienne Rolling, do Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica (Inserm) de Nantes, inseriu o promotor de um dos genes responsáveis diretamente nas células da retina de cães portadores da doença. Todos os sete animais tratados entre 8 e 11 meses de idade recuperaram a atividade elétrica na retina e demonstraram melhor desem-
penho visual em um percurso com obstáculos. Os resultados sugerem que a técnica pode ser segura e, se for aplicada antes que a atrofia da retina se torne irreversível, eficaz - o que faz dela uma candidata a ser testada em humanos nos próximos anos. Se bem-sucedida, a pesquisa pode dar origem à cura para uma doença que até agora deixa no escuro milhares de crianças. •
■ Mar poluído na América do Sul Mares e oceanos ainda correm perigo, em especial na América Latina. Um estudo do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) divulgado em outubro registrou uma evolução irregular nos nove parâmetros usados para avaliar a situação dos mares. Os maiores problemas que não só persistem mas mostram tendência a piorar são esgotos, nutrientes, lixo no mar e alteração física e destruição de hábitats. O crescimento populacional e a urbanização acelerada nas regiões em desenvolvimento são responsáveis pelos principais prejuízos: descarga ampliada de esgoto não tratado e destruição de pântanos, manguezais, praias e recifes de coral. A extração e o transporte de óleo na América do Sul agravam a poluição das águas. Os impactos reduzem a biodiversidade e a atividade pesqueira. •
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Os patos selvagens do Marajó Biólogos da Universidade de São Paulo (USP) percorreram o norte do Pará por 20 dias, em julho, depois atravessaram o rio Amazonas e passaram outros dez dias na Ilha do Marajó. Coletaram sangue e secreção cloacal de frangos criados em granjas e de patos selvagens e de galinhas criados soltos nas proximidades de casas suspensas, as palafitas, em busca de vírus que possam abalar a saúde dos seres humanos. Nas análises feitas em laboratório nos últimos meses não encontraram nenhum vírus. O sangue dos patos selvagens do Marajó, porém, apresentava anticorpos contra alguns tipos de ví-
rus de gripe - ou influenza aviaria, indicando que os animais já haviam tido contato com esses microorganismos. Não foi encontrado nenhum sinal do vírus de influenza do subtipo H5N1, uma variedade perigosa que causou a morte de milhares de aves e de pessoas no Sudeste da Ásia. Como as aves estavam sadias, é possível que os patos tivessem tido contato com o H5N2, uma variedade de vírus da família H5 que não causa doença, segundo o virologista Edison Luiz Durigon, professor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e coordenador da expedição. É um bom sinal: pa-
rece que o H5N1 não chegou ao Brasil (as amostras recentes de material colhidas de patos do sul do Brasil também não revelaram nem anticorpos contra essa variedade). Mas é também um mau sinal: caso apareça, poderá inicialmente passar despercebido entre os patos que já têm anticorpos contra vírus da família H5. Os patos, compara Durigon, serviriam como sentinelas: a morte deles revelaria o H5N1. "Sem esses sen tinelas", diz ele, "só perce beremos se os animais de granja morrerem".
Visitante do norte: já imune a vírus como o da gripe aviaria
Laboratório
Brasil
Biografia de um museu
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Hoje extintos, os índios que viviam nas proximidades do rio Cunani, atual estado do Amapá, faziam urnas funerárias como essa ao lado. Suas cerâmicas e com elas um pouco de sua cultura afloraram em 1895 por meio de escavações arqueológicas realizadas por uma equipe do Museu Paraense Emílio Goeldi, fundado em 1866. Mas sua história, agora contada em As origens do Museu Paraense Emílio Goeldi: aspectos históricos e iconográficos (Editora Paka Tatu), começa em 1860. Foi quando ganhou força a idéia de
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construir um centro de pesquisa e de divulgação da fauna, flora e etnografia amazônicas, já que então passavam por Belém quase todos os naturalistas estrangeiros que vinham estudar a região. O livro - organizado por Luís Carlos Bassalo Crispino, Peter Mann de Toledo e Vera Burlamaqui Bastos traz um rico acervo histórico, lindamente üustrado com imagens cedidas por diversas instituições de pesquisa, bibliotecas e coleções particulares. É mais do que a biografia de um museu. É um passeio pela história de uma instituição que se tornou essencial para o conhecimento da natureza amazônica e se integrou à vida dos moradores da capital paraense. O museu faz parte de um imenso parque - um pedaço
da Amazônia - em plena área urbana, onde cutias e bichospreguiça vivem à vontade. •
■ Uma liga que absorve calor Um grupo de físicos da Universidade de Campinas (Unicamp) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) se valeu de uma de liga de manganês e de arsênio, sob influência de um campo magnético, para retirar quantidades elevadas de calor do ambiente. Esse fenômeno, chamado efeito magnetocalórico colossal, descoberto por essa mesma equipe, só tinha sido observado sob pressão bastante alta, de 2.300 atmosferas. A adição de ferro à liga original permitiu agora reproduzir esse efeito à pressão am-
biente, de acordo com o estudo publicado em outubro na revista Nature Materials. Esse resultado pode ajudar no desenvolvimento de uma nova geração de sistemas de refrigeração, que utilizaria ímãs no lugar de gases. Mas ainda há alguns impedimentos. O principal deles é uma diferença entre as temperaturas de início e fim do processo, que reduz a sua eficiência. Antes de pensar em construir um refrigerador magnético, é preciso eliminar essa diferença, conhecida como histerese térmica. "Tivemos bons resultados substituindo parte do arsênio por antimônio, mas nada de conclusivo ainda", comenta Sérgio Gama, pesquisador do Instituto de Física da Unicamp, que coordenou esse estudo. •
■ Marcas da vida social Capazes de dançar antes do acasalamento e de viver em uma sociedade de castas regidas por uma rainha, as abelhas Apis mellifera guardam nos próprios genes, abrigados no núcleo de cada célula, os registros da transformação de seu estilo de vida, antes solitária. Ainda que tão diferentes entre si, as duas castas - a nobreza formada pela rainha e por suas herdeiras e o equivalente à plebe de operárias que constróem os ninhos e defendem as colônias - resultam de um mesmo genoma, seqüenciado por um consórcio de centros de pesquisa que incluiu três unidades da Universidade de São Paulo (USP), duas em Pdbeirão Preto e a terceira na capital. Segundo esse trabalho, publicado na Nature de 26 de outubro, esse inseto - o terceiro a ser seqüenciado, depois da mosca-dasfrutas e do Anopheles - originou-se na África e espalhou-se
pela Europa e pela Ásia em duas ondas migratórias distintas. A espécie africana, Apis mellifera scutellata, chegou ao Brasil em 1956 e quase substituiu a abelha européia, mais dócil porém menos produtiva. •
■ Contaminação rio abaixo A contaminação causada pela mineração no Quadrilátero Ferrífero (MG) pode estenderse por até 400 quilômetros de distância, de acordo com um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e do Centro de Desenvolvimento de Tecnologia Nuclear (CDTN). Substâncias tóxicas como alumínio, arsênio, cromo e mercúrio são carregadas pelo rio das Velhas até regiões planas onde se concentra a atividade agropecuária. O estudo, publicado em junho na EnvironTnental Monitoring and Assessment, procurou determinar a concentração de 25 elementos químicos em amostras de peixes, vegetação e sedimentos. A contaminação chegou a valores mais de cem vezes maiores do que o normal, como no caso do cromo encontrado em plantas. "Partimos da mortandade de peixes e do gado, trazida até O tiziu fêmea prefere os machos que pulam mais
nós pela Escola de Veterinária da UFMG", comenta Maria Adelaide Veado, uma das autoras. No futuro, ela pretende estender as análises à população dessa região, que os pesquisadores estudam há cerca de dez anos. "Queremos dimensionar o impacto dessa contaminação na saúde da população." •
■ Vale tudo para atrair as fêmeas É tempo de chuva no Cerrado. Entre um aguaceiro e outro, os tizius (Volatinia jacarina) competem por visitas femininas. Em áreas exclusivas mas contíguas, cada um dá saltos em que mostra manchas brancas debaixo das asas e solta gritos. Mas o que parece fazer sucesso entre as fêmeas não
é a beleza das penas pretas azuladas, e sim o empenho do pretendente, de acordo com o biólogo Carlos Vieira de Carvalho, da Universidade de Brasília (UnB). O artigo que ele, Regina Macedo e Jeffrey Graves publicaram na The Condor mostra que os tizius que pulam mais e mais alto têm maiores chances de atrair uma parceira, que põe os ovos no território do eleito. Mesmo após todo o esforço, ele não tem a garantia de criar seus próprios filhos: dois terços das fêmeas buscam machos fora do ninho. O tiziu não corresponde à fama de fidelidade de que gozam os passarinhos tropicais, mas não é questão de virtude. Essas aves do Cerrado têm de se reproduzir todas ao mesmo tempo, enquanto há chuva. E competição. •
perigoso Estresse prolongado intensifica inflamação cerebral ligada à morte de neurônios
CAPA
As longas horas desperdiçadas no trânsito das grandes cidades e a insegurança generalizada que faz as pessoas se trancarem em casas cercadas por grades ou se esconderem atrás dos vidros escuros dos carros geram mais do que a simples irritação e o medo passageiros. Somadas ao excesso de trabalho comum dos tempos atuais, essas situações corriqueiras nas metrópoles brasileiras levam a tensão ao limite do suportável, com efeitos nocivos para a saúde. Nos últimos anos estudos conduzidos na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil mostraram que o estresse por períodos prolongados favorece o surgimento de diabetes, doenças cardiovasculares, ansiedade, depressão, impotência, infertilidade e até mesmo algumas formas de câncer. Agora uma pesquisa conduzida por equipes de duas universidades paulistas - a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) - revela outro possível efeito devastador do estresse. Essa reação natural do organismo que facilita a adaptação a situações novas ou ameaçadoras também potencializa processos inflamatórios que podem culminar na morte de células nervosas (neurônios) em duas regiões específicas do cérebro: o hipocampo, associado à formação da memória, e o córtex frontal, responsável pelo raciocínio complexo. "O estresse, em si, é um mecanismo natural de adaptação, não uma doença", diz o neurofarmacologista Cristoforo Scavone, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, coordenador da equipe paulista. "O problema surge quando se perde o controle sobre o nível de estresse." Os resultados desse trabalho, publicados em abril deste ano no Journal of Neuroscience, põem por terra uma crença antiga entre os neurologistas: de que o sistema nervoso era um conjunto de órgãos privilegiados, não-suscetíveis à inflamação. "Uma membrana que recobre o sistema nervoso central, a chamada barreira hematoencefálica, impede a chegada de várias substâncias e agentes agressores a esse órgão, razão pela qual se acre38 • NOVEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 129
ditava que o encéfalo estivesse livre das inflamações", diz Scavone. Infelizmente, não é bem assim. Scavone e a farmacologista Carolina Demarchi Munhoz, que embarcou no final de outubro para um segundo período de pesquisas no laboratório do neurocientista Robert Sapolsky, na Universidade de Stanford, Estados Unidos, constataram uma dupla função do cortisol, hormônio liberado em situações de estresse por glândulas situadas sobre os rins. O susto provocado tanto por uma ameaça real, como um cachorro que salta ao portão de uma casa latindo para quem passa na calçada, quanto por uma imaginária, a exemplo do medo de ser assaltado ao parar o carro no próximo sinal fechado, levam à produção desse hormônio do estresse. Há muito se sabia que em doses relativamente baixas o cortisol é um potente composto capaz de conter a inflamação - a cadeia de reações do sistema de defesa do organismo destinada a combater microorganismos invasores, a exemplo de vírus, fungos e bactérias. No artigo do Journal of Neuroscience, Carolina e Scavone provaram também que o cortisol em quantidades elevadas e por longos períodos pode causar o efeito contrário, em especial no cérebro. É também o que se observa quando os médicos receitam o uso de compostos derivados do cortisol para controlar o sistema imunológico que se volta contra o próprio corpo e provoca as chamadas enfermidades auto-imunes, como a inflamação das articulações (artrite) ou casos graves de vermelhidão e descamação intensa da pele (psoríase).
Participação das MAP quinases, proteínas de choque térmico e da via de apoptose nos efeitos adversos dos glicocorticóides no sistema nervoso central MODALIDADE Linha Regular de Auxílio à Pesquisa
COORDENADOR CRISTOFORO SCAVONE
- USP
INVESTIMENTO R$ 251.175,22 (FAPESP)
"Esse trabalho tem uma provável relevância clínica por sugerir que o uso de versões sintéticas do hormônio associado ao estresse, o cortisol, pode agravar a inflamação no cérebro", diz Sapolsky, à Pesquisa FAPESP. No entanto, isso não significa que as pessoas devam se rebelar contra os médicos e interromper o tratamento, uma vez que, lembra Carolina, "geralmente avalia-se a relação entre os custos e os benefícios de um medicamento antes de prescrevê-lo". Mas, na opinião de Scavone, é hora de prestar atenção a esses efeitos e iniciar uma busca de alternativas que não produzam esses efeitos indesejáveis. Scavone e Carolina observaram a ação nociva do cortisol sobre o cérebro em um extenso trabalho no Laboratório de Neurofarmacologia Molecular da USP no qual submeteram um grupo de ratos saudáveis a diferentes situações que provocam estresse semelhante ao que as pessoas vivem no dia-a-dia. Maratona no laboratório - Ao longo de duas semanas eles selecionaram roedores aleatoriamente para deixar o conforto de suas caixas e passar por alguma atividade que os tirava da rotina, obrigando o organismo a se adaptar às novas condições. Em um dia, por exemplo, Carolina os colocava em um tanque para nadar sem descanso por quinze minutos. No outro, os ratos ficavam uma hora e meia em um ambiente alguns graus mais frio que o habitual. Também tiveram de permanecer imóveis durante uma hora ou ficar meio dia sem comida e água. Os animais experimentaram ainda o desconforto de uma noite com as luzes acesas ou de um período diurno no escuro - uma inversão total de hábitos, uma vez que os ratos são animais noturnos e saem à procura de comida à noite e descansam durante o dia. Esse desarranjo todo, chamado pelos biólogos de estresse imprevisível prolongado, não é muito diferente do que se experimenta em períodos conturbados nos quais é preciso abrir mão de algumas horas de sono para dar conta do trabalho extra e até substituir uma dieta equilibrada por lanches ou salgados com o objetivo de fazer sobrar um tempinho para acertar a conta que só pode ser paga no banco ou finalmente realizar aquela visita ao dentista adiada por meses.
A primeira conseqüência de tantas mudanças foi detectada no sangue. Um dia após a bateria de testes os níveis de corticosterona - o correspondente nos ratos ao cortisol humano - continuavam elevados, em uma concentração que variava de 25 a 30 microgramas por decilitro de sangue. "Esses valores são de cinco a seis vezes mais altos que o normal, semelhantes aos que se observa no organismo de pessoas sob tratamento para suprimir a atividade do sistema de defesa e evitar a rejeição a um transplante", explica Carolina. Os efeitos do estresse, porém, são ainda mais amplos e envolvem uma complicada rede de interações entre o sistema nervoso central e o resto do corpo. Tão logo surge uma situação ameaçadora ou que altere a rotina, o hipotálamo aciona a produção do hormônio adrenocorticotrofina (ACTH) na glândula pituitária, na base do cérebro. Em instantes o nível de ACTH no sangue aumenta e aciona as glândulas localizadas sobre os rins (supra-renais), que iniciam a fabricação de cortisol. No sangue esse hormônio bloqueia as reações químicas características da inflamação e reduz a atividade do sistema de defesa, razão por que se imaginava que funcionasse principalmente como antiinflamatório quando utilizado por semanas ou, no máximo, uns poucos meses - embora seu uso por mais tempo provoque uma série de efeitos indesejáveis como aumento da pressão sangüínea, depressão, diabetes, insuficiência cardíaca, além de facilitar o surgimento de infecções, já que deixa o sistema de defesa desarmado diante de bactérias e fungos. Em parceria com a farmacologista Maria Christina Werneck Avellar, da Unifesp, Scavone e Carolina constataram que esse hormônio, por caminhos ainda não totalmente compreendidos, aciona no interior dos neurônios uma proteína chamada fator de transcrição kappa B, que é fabricada em processos inflamatórios. Esse fator de transcrição, por sua vez, ativa pelo menos três genes responsáveis pela produção de proteínas - a interleucina 1-B, o fator de necrose tumoral alfa e a oxido nítrico sintase induzida - associadas à inflamação e à toxicidade celular. Em concentrações baixas essas moléculas geram 40 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 129
um efeito benéfico e ajudam a combater microorganismos invasores. Em excesso, porém, parecem destruir as células que deveriam proteger. O próprio Sapolsky, um dos mais respeitados estudiosos dos efeitos do estresse sobre o sistema nervoso central, surpreendeu-se com os resultados parciais desse trabalho há cerca de dois anos, durante a primeira temporada de Carolina em seu laboratório em Stanford. A descoberta da ação inflamatória do estresse sobre o sistema nervoso central ajudava a completar o quebra-cabeça que Sapolsky havia começado a montar dez anos antes. Embora tenha se dedicado por um longo período a analisar os efeitos do estresse crônico gerado por disputas sociais entre babuínos do Quênia, animais que vivem em sociedade com relações de poder um tanto complexas, foi em ratos que Sapolsky demonstrou que o estresse prolongado intoxicava os neurônios por aumentar os níveis de glutamato no hipotálamo. arolina comprovou duplo efeito do cortisol ao comparar o nível de inflamação cerebral em ratos submetidos a estresse duradouro com o observado em roedores saudáveis. Depois de induzir uma inflamação generalizada no organismo dos animais por meio de uma injeção de partículas de bactéria no sangue, ela analisou a ação dos três genes inflamatórios no sistema nervoso central. Os ratos livres do estresse apresentaram uma inflamação leve em todo o encéfalo, como havia observado três anos antes outro neurofarmacologista da equipe da USP, Isaías Glezer, atualmente em período de especialização na Universidade Lavai, no Canadá. Essa inflamação, no entanto, foi mais intensa no hipocampo e no córtex frontal dos roedores cronicamente estressados. Resultados preliminares de outro teste ainda em andamento sugerem que de fato é essa inflamação a responsável pela morte dos neurônios nos animais debilitados pelo estresse. "É possível que o cérebro de uma pessoa que vive sob estresse seja mais suscetível a esses danos", comenta Carolina. Embora tenham sido feitos com ratos, esses experimentos fornecem uma boa pista do que deve ocorrer também com os seres humanos, altamente propensos a so-
frer uma forma de estresse associada ao estilo de vida ocidental: o estresse psicológico provocado pela antecipação. Diferentemente de uma ameaça real à vida, a antecipação é uma espécie de estresse imaginário. O simples pensar em uma situação que pode ocorrer ou não, como o medo de sofrer seqüestro relâmpago toda vez que se vai a um caixa eletrônico, já é suficiente para acionar os mecanismos bioquímicos relacionados ao estresse, que, estima-se, atinge entre 10% e 20% da população nos países desenvolvidos. Mais leveza - O preço dessa adaptação não é só o corpo que paga, uma vez que doenças provocadas pelo estresse consomem uma parte das verbas do sistema público de saúde. No ano passado as pesquisadoras Sophie Béjean e Hélène SultanTáieb, da Universidade de Burgundy, na França, apresentaram no European Journal of Health Economics um exemplo claro desse custo social do estresse: calcularam os gastos com o tratamento de três doenças (cardiovasculares, musculares e mentais) decorrentes, ao menos em parte, do estresse associado às condições de trabalho. Dos 24,5 milhões de pessoas em idade produtiva em 2000 na França, de 300 mil a 400 mil tiveram problemas de saúde relacionados ao estresse por causa do trabalho - e entre 2.300 e 3.600 morreram. Os gastos com tratamentos e perda de dias de serviço custaram de € 1,2 bilhão a € 2 bilhões, valores que correspondem de 14% a 24% do que o sistema público de saúde francês consome com doenças ocupacionais. Enquanto não se descobre uma cura para o estresse - se é que algum dia haverá, uma vez que não se trata propriamente de uma doença -, uma saída é prevenir, levando a vida de forma mais leve e realizando atividades físicas, aconselha Sapolsky, um estressado confesso. "Temos de ser mais superficiais", desafiou o neurocientista de Stanford em uma entrevista publicada em abril pela Folha de S.Paulo. "Por mais superficiais quero dizer menos cerebrais. Conseguimos isso, paradoxalmente, sendo mais cerebrais. Explico. Se você conseguir raciocinar científica e constantemente, conseguirá discernir se o que o está estressando é uma realidade, digamos, física ou apenas psicossocial. Se for física, pode se estressar. Se for psicossocial, esqueça." •
CIÊNCIA
POLUIÇÃO
São Paulo, Cidade do México e Santiago economizariam US$ 165 bilhões gastos em atendimento médico se melhorassem a qualidade do ar
m um dos consultórios do pronto-socorro infantil do Hospital das Clínicas de São Paulo, João Vitor, 1 ano e 5 meses, acabou de passar por uma inalação. Estava gripado e ainda tossia bastante, mas a respiração já se acalmara. "Moramos em uma casa com pouca ventilação, só uma janela, e o ar fica viciado", contou sua mãe, Maria da Conceição da Silva Araújo. Mais tranqüila, saiu com o filho e a sala ficou vazia. É um cenário bem diferente dos agitados meses de maio, quando o pronto-socorro registrou uma média de 211 consultas por dia, ou de junho, com quase 200 por dia. A procura por inalações foi intensa, já que 70% das reclamações estavam relacionadas a dificuldades respiratórias, provocadas em grande parte pelo tempo 42 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 129
seco do inverno, quando os níveis de poluição também aumentam. Apesar dos avanços obtidos na última década no controle da emissão de gases e partículas poluentes, respirar o ar de São Paulo continua sendo um ato de heroísmo, e não apenas para as crianças. Estima-se que nove pessoas ainda morram por dia na cidade, vítimas de problemas cardiovasculares, respiratórios ou cânceres de pulmão, direta ou indiretamente associados à poluição atmosférica. A cada ano, a poluição é responsável pela morte de cerca de 3.500 moradores da cidade de São Paulo. Se considerados apenas os impactos econômicos, a perda dessas vidas representa um custo total de US$ 350 milhões, levando em conta os anos de vida potencialmente produtivos que foram perdidos ou a perspectiva de conviver com doenças crônicas, que reduzem a capacidade de trabalho, de acordo com um estudo coordenado por Paulo Saldiva, professor da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Nelson Gouveia, que também leciona na Faculdade de Medicina da USP, publicou em março na revista Environmental Research um trabalho mostrando que São Paulo, Cidade do México e Santiago, no Chile, poderiam evitar 150 mil mortes, 4 milhões de crises de asma, 300 mil internações de crianças e 48 mil casos de bronquite crônica em um período de 20 anos e gerar uma economia de US$ 165 bilhões se reduzissem os níveis de poluição aos parâmetros indicados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Outras pesquisas recentes revelam que o ar poluído pode ser bastante prejudicial a dois grupos da população. O primeiro são as gestantes, fazendo com que os bebês nasçam com menos peso e mesmo interferindo no sexo dos bebês: em regiões mais poluídas nascem mais meninas que meninos. O outro grupo são os fiscais de trânsito, cujo organismo so-
FRANCISCO BICUDO
FOTOS MIGUEL BOYAYAN
e alterações tão intensas sob o ar da rua ponto de liberar no sangue substâncias associadas ao infarto. Os veículos ainda são os principais responsáveis pelas camadas de fumaça grossas e cinzentas que se formam no céu de São Paulo. Podem ser observadas com nitidez no horizonte em especial no inverno. É quando a inversão térmica a formação de uma tampa de ar quente próxima à superfície que impede a subida do ar mais frio - dificulta a dispersão de gases e de partículas tóxicas. As partículas não se diluem e se tornam maiores com menos umidade. As vias respiratórias do corpo humano produzem menos muco que filtra as impurezas do ar, que assim entram no organismo mais facilmente, atacam as células de defesa do organismo e diminuem a capacidade de resistência. A garganta arranha, os olhos cocam. "Sem cuidados, o quadro pode se agravar e abrir caminho para inflamações de ouvido, crises de asma e
pneumonias", observa Roberto Tozze, médico assistente do Instituto da Criança do HC paulista. Avanços - Os poluentes se originam essencialmente dos escapamentos dos 7,6 milhões de veículos que trafegam pela maior cidade brasileira. O Programa de Controle de Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve), gerenciado pela Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb) de São Paulo e implantado a partir de 1996, minimizou o problema ao exigir que os carros saiam de fábrica já com catalisadores e injeção eletrônica, que controlam a emissão de poluentes. O' limite máximo de concentração de monóxido de carbono foi ultrapassado 65 vezes em 1997, mas apenas uma vez em 2005. De acordo com o estudo de Saldiva, que avaliou a década de 1996 a 2005, O Proconve também reduziu os impactos econômicos da poluição, evi-
tando 1.500 mortes por ano, o que representa uma economia anual, em termos de produtividade, de US$ 150 milhões. "Melhoramos, mas ainda estamos pagando uma conta extremamente alta", comenta Saldiva. O Proconve parece ter chegado a um limite. O dilema é de difícil solução: a fiscalização periódica dos veículos, embora prevista pela legislação, não acontece na prática. Se o catalisador deixa de funcionar, não há como garantir que será consertado. "Não ficou definido como a manutenção seria realizada, de que forma e quando os motoristas seriam convocados e quem arcaria com os custos", diz Jesuíno Romano, gerente da divisão de tecnologia de avaliação da qualidade do ar da Cetesb. A idade média da frota paulistana é outro obstáculo. Segundo o Departamento Estadual de Trânsito (Detran) de São Paulo, metade dos carros que circulavam pela cidade em junho de 2006 tinha mais de dez anos. PESQUISA FAPESP129 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ 43
I ITT
TT
Se os níveis de monóxido de carbono atingiram patamares aceitáveis, as emissões de ozônio e de material particulado, a exemplo de zinco, manganês, níquel e chumbo, ainda superam os limites estabelecidos pela legislação brasileira. "Qualquer veículo, mesmo com a tecnologia mais moderna, emite elementos precursores do ozônio, ainda que de forma reduzida", comenta Simone Georges El Khouri Miraglia, professora do Centro Universitário Senac e pesquisadora do Laboratório de Poluição Atmosférica da USP. O controle das partículas também não é nada simples. São emitidas basicamente pelos escapamentos dos caminhões, movidos a diesel, que constituem uma frota ainda mais antiga: quase 70% dos caminhões paulistanos saíram da fábrica há mais de dez anos. Além disso, a cidade de São Paulo é uma passagem para caminhões que vêm de outras regiões do país. 44 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 129
Quem sofre bastante com essa poluição são os fiscais de trânsito. "Os gases sufocam e deixam o rosto preto", conta Waldir Bravo, que durante anos trabalhou no cruzamento das avenidas do Estado e Mercúrio, no centro de São Paulo, antes de se tornar representante dos funcionários no Conselho de Administração da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET). Risco de infarto - "Eu ficava seis horas em pé, de frente para a Marginal, em cima da ponte das Bandeiras, com caminhões e carros passando dos dois lados, sugando toda aquela fumaça concentrada, sem ter para onde fugir", descreve Venceslau Coimbra, técnico de trânsito que participou de um estudo coordenado por Ubiratan de Paula Guimarães, médico do Instituto do Coração (InCor). Em um trabalho publicado no European Heart Journal, Guimarães avaliou 50 trabalhadores da CET - os mar-
ronzinhos, por causa da cor do uniforme que usam - que atuavam nas marginais do Tietê e do Pinheiros. Nos meses de inverno, que registram as maiores concentrações de poluentes, os trabalhadores apresentaram pressão alta, diminuição na variação da freqüência cardíaca (o coração fica mais rígido, o que pode ocasionar morte súbita) e inflamação dos brônquios, que acabava por liberar para o sangue uma quantidade elevada de substâncias associadas ao infarto, como a proteína C reativa. "Sugeri à empresa um acompanhamento de longo prazo, para pensar em medidas de prevenção", afirma Guimarães. "A intenção é aproveitar o trabalho para modificar a legislação e classificar nossa atividade como penosa", afirma Luiz Antônio Queiroz, presidente do Sindviários, entidade que representa os trabalhadores da CET. Os efeitos da poluição atmosférica sobre a gestação também são perigosos.
Gouveia verificou que a exposição a níveis elevados de poluição (10 microgramas diárias de monóxido de carbono além dos padrões aceitáveis, por exemplo) durante o primeiro trimestre de gravidez pode contribuir para que os bebês nasçam com peso reduzido - 20 gramas a menos, em média. O estudo, publicado no Journal Epidemiology Community Health, comparou os dados do Sistema de Informações de Nascidos Vivos (Sinasc) com os registros de poluição anotados pelas estações medidoras da Cetesb nos diferentes meses do ano. "O monóxido de carbono provoca baixa oxigenação do sangue e o material particulado prejudica a vascularização da placenta", explica Gouveia. A poluição em excesso parece interferir também na definição do sexo dos bebês. Em regiões de São Paulo mais atingidas pelos poluentes, há 2% mais meninas recém-nascidas do que meninos; em áreas de poluição menos inten-
sa, o placar se inverte e nascem 3% a mais de garotos. "Reproduzimos a situação em laboratório, com camundongos, e os resultados foram semelhantes", reforça Saldiva, autor do trabalho, que
O PROJETO O impacto das exposições intra-uterina e nas fases iniciais do desenvolvimento pós-natal aos poluentes atmosféricos no desenvolvimento de alterações adversas na vida adulta MODALIDADE Projeto Temático
COORDENADOR PAULO SALDIVA
- USP
INVESTIMENTO R$ 361.802,28 US$ 188.272,68 (FAPESP)
será publicado na Fertility and Sterility. Os gases e as partículas tóxicas devem afetar os testículos. O cromossomo Y, que define o sexo masculino, seria mais suscetível a lesões, permitindo uma relativa hegemonia do cromossomo X, responsável pelo sexo feminino. Os especialistas concordam: a poluição atmosférica seria uma fonte a menos de preocupações para os paulistanos caso algumas medidas elementares fossem implementadas. E a implantação de transporte público em quantidade e com qualidade, a criação de mais corredores de ônibus e a ampliação das linhas do metrô, a modernização da frota de caminhões movida a diesel e a aplicação efetiva do programa de fiscalização veicular somada à educação ambiental. "Falhamos no diálogo com as administrações", observa Saldiva. "Produzimos muitos e bons estudos, mas está na hora de transformar esses trabalhos em políticas públicas." • PESQUISA FAPESP 129 • NOVEMBRO DE 2006 ■ 45
O CIÊNCIA
| MALÁRIA
Variabilidade genética permite ao Plasmodium driblar as defesas do organismo humano CARLOS FIORAVANTI
46 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 129
Ecomo se tivesse mil roupas e máscaras. A cada dois dias, quando se reproduz no interior das células vermelhas do sangue, o protozoário causador da malária consegue gerar novas combinações de seu material genético e assim produzir proteínas extremamente diversificadas que lhe permitem escapar das defesas do organismo humano. Essa capacidade de recombinação genética, demonstrada por um grupo de pesquisa da Universidade de São Paulo (USP), tem sérias implicações para o desenvolvimento de vacinas contra essa doença, porque as torna um desafio ainda maior. Também faz com que os sintomas possam variar de pessoa para pessoa, ainda que de modo sutil, mas o bastante para fazer com que essa enfermidade típica de países pobres passe sem ser detectada num primeiro momento. Os levantamentos de campo que complementam as pesquisas feitas em laboratório indicam que as pessoas podem se tornar resistentes a algumas dessas variações, mas sensíveis a outras, sujeitando-se a contrair novas malárias com a mesma intensidade da primeira vez. Em um dos laboratórios do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, a bióloga Erika Hoffmann dimensionou essa variabilidade genética estudando a MSP-2, uma proteína abundante da membrana de superfície do Plasmodium falciparum, parasita causador das formas mais graves de malária, com convulsões e perda de consciência além da febre intensa. Seu estudo, publicado em julho na revista Gene, baseou-se nas amostras de sangue colhidas de oito moradores de Ariquemes, município de Rondônia em que essa doença era bastante comum. Como ela verificou, esses homens estavam infectados com pelo menos 44 variantes ou cepas diferentes de Plasmodium falciparum, que traziam nove diferentes versões da proteína MSP-2. Um
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deles portava nove cepas, tão diferentes entre si a ponto de se comportarem como parasitas diferentes. Era uma indicação de que tanto esse indivíduo como os outros, em menor intensidade, haviam sido infectados com Plasmodium falciparum geneticamente bastante diferentes entre si, ainda que encontrados em uma área com níveis de transmissão bastante baixa. A MSP-1, outra proteína comum na superfície do Plasmodium que é uma das principais candidatas a integrar uma vacina contra a malária, também se modifica bastante e assim deixa de ser reconhecida pelo organismo. É como se o labirinto, por si só perturbador, se ramificasse mais e mais, sem fio de Ariadne que leve a uma saída. Algumas cepas do parasita podem ser mais agressivas que outras, produzindo uma doença de gravidade variável ou com sintomas diferentes. Pode surgir apenas dor de cabeça, diarréia e tontura em vez dos calafrios e da febre intensa que reaparece a cada 48 horas. "Pelo menos uma parte da resposta do organismo depende do tipo específico da cepa do parasita", comenta o médico Marcelo Urbano Ferreira, coordenador desse grupo do ICB. Se uma pessoa nunca tiver tido contato com uma cepa, especialmente as mais raras, a doença tende a ser mais grave; se aparecer uma variação já familiar ao organismo, a malária pode se desenvolver - os parasitas se reproduzindo inicialmente no fígado e depois nas células vermelhas do sangue -, mas sem nenhum sintoma. "A possibilidade de surgirem infecções sem sintomas ou somente com alguns sintomas, não necessariamente os mais típicos, pode dificultar bastante o diagnóstico e o tratamento da malária", diz Ferreira. Outra razão pela qual a enfermidade poderá mais facilmente se alastrar em silêncio é que normalmente são as próprias pessoas que procuram os serviços médicos quando aparecem os sintomas; sem sintomas, não irão aos postos de saúde e portanto não receberão tratamento, mas permanecerão infectadas. Por essa razão, poderão infec-
Atrás do protozoário esquivo: o auxiliar de pesquisa Adamílson Luís de Souza coleta sanque de Mercedes Andreatto da Silva, professora de uma comunidade rural de Acrelândia
PESQUISA FAPESP 129 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ 47
Ein CQiitíito conn
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Médicos sem fronteiras: pesquisadores visitam moradores de comunidades rurais e coletam amostras de sangue onde for..
tar os mosquitos que podem transmitir a malária caso as piquem, em busca de sangue, e depois piquem outra pessoa. Em um artigo de revisão publicado em maio, José Rodrigues Coura e sua equipe do Instituto Oswaldo Cruz, do Rio de Janeiro, estimaram que um em cada quatro casos de malária na Amazônia seja assintomático e, por essa razão, dificulte o controle dessa enfermidade. Estima-se que 40% da população mundial, o equivalente a 2,4 bilhões de pessoas, esteja exposta à infecção, principalmente nas regiões tropicais e subtropicais do planeta. Todo ano surgem de 300 milhões a 500 milhões de casos novos de malária, a mais disseminada das doenças provocadas por parasita, que causam pelo menos 1,5 milhão de mortes, principalmente de crianças com menos de 5 anos na África, o continente mais atingido. No Brasil, o total de casos novos passou de 50 mil por ano há
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três décadas para o patamar, que se mantém até hoje, de 600 mil casos por ano. Esse salto se deve à abertura de estradas, da construção de hidrelétricas, das migrações internas, da formação de assentamentos rurais e do crescimento das cidades, que expressam os esforços em povoar o território nacional. Por essa razão é que a malária é hoje rara nos grandes centros urbanos e concentra-se na Amazônia, que responde por mais de 90% dos casos registrados na América do Sul. Respostas variadas - Das pesquisas dessa equipe do ICB emergiu mais uma complicação: o organismo humano pode acionar mecanismos de defesa diferentes em resposta a uma cepa ou outra. A médica Mônica da Silva Nunes, do grupo de Ferreira, avaliou como um tipo de células de defesa, os linfócitos T, extraídos de amostras de sangue de moradores da zona rural de Acrelândia, mu\
OS PROJETOS
Aproximação genômica e pós-genômica ao estudo das malárias humanas por Plasmodium vivax e P. falciparum na Amazônia brasileira MODALIDADE
Aquis ição de imunidade contra P. viv ax: estudo longitudinal em comu nidade rural da Amazônia MODALIDADE
Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa
Projeto Temático COORDENADOR HERNANDO DEL PORTILLO - ICB/USP INVESTIMENTO
R$ 3.087.101,23 (FAPESP)
48 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 129
COORDENADOR MARCELO URBANO FERREIRA
R$12 4.145,18 (FAPESP) e R$2( 1000,00 (CNPq)
- ICB/USP
nicípio do Acre, reconhecia seis variantes de MSP-1 do P. vivax, a espécie que atualmente responde pela maioria dos casos de malária registrados no Brasil e no sul e sudeste da Ásia. Em paralelo, Melissa da Silva Bastos, sob a orientação de Sandra Moraes-Ávila, do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, investigava se as variantes da MSP-1 induziam a produção de anticorpos, que representam outra forma de defesa contra microorganismos. Comparando os resultados, elas concluíram que as regiões mais variáveis da MSP-1 são as que acionam as respostas mais intensas do organismo, produzindo mais células de defesa ou mais anticorpos. As regiões mais estáveis dessa proteína foram as que menos mobilizaram os linfócitos T Já os estudos em andamento com a MSP-2 de Plasmodium falciparum, feitos em conjunto com Kézia Scopel e Erika Braga, da Universidade Federal de Minas Gerais, sugerem que o fato de o organismo ter produzido anticorpos contra uma cepa dessa proteína não significa, necessariamente, que ele conseguirá se proteger contra essa cepa nas outras vezes em que ela aparecer. Outra verificação é que o sistema de defesa reconhece algumas variantes, mas quase não dá atenção a outras. "Muitas vezes uma pessoa simplesmente deixa de reconhecer a variante do parasita que a infecta", diz Ferreira. "Portanto, somente uma parte do vasto repertório de variantes de MSP2 é reconhecida pelo sistema imune de indivíduos expostos à malária no Brasil." E assim, produzindo mais células de defesa ou mais anticorpos, o organismo reagirá com maior ou menor rapidez na
preciso, até mesmo na mata. Só param o percurso, muitas vezes feito de moto, quando surgem as queimadas
tentativa de conter o parasita, que chega ao fígado 30 minutos depois da picada do mosquito transmissor. Ali, no maior órgão interno do corpo humano, depois de dez dias, cada célula gera 40 mil outras e invadem as células vermelhas que circulam pelas veias e artérias. Durante a reprodução assexuada do parasita, que se passa no interior dessas células do sangue, a molécula de DNA, que carrega os genes, cria outra cópia de si mesma. Porém a molécula que está se formando e deveria ser idêntica à original pode se rebelar e formar uma alça, que fará com que alguns trechos de DNA sejam adicionados ou perdidos. Desse modo, as cópias de DNA saem maiores ou menores que a versão original. E assim se forma uma diversidade genética ainda maior que a que pode surgir durante a reprodução sexual, que se passa no mosquito. A cada dois dias cada célula do Plasmodium forma de oito a 32 células, que rompem as membranas das células vermelhas - é quando surgem os picos de febre alta. Uma das peculiaridades desse trabalho é a estreita vinculação da atividade de laboratório com o campo. Mônica acompanhou as reações das células e dos anticorpos à MSP-1 trabalhando em um laboratório construído no Centro de Saúde de Acrelândia, município formado a partir de assentamentos rurais. Ela se mudou para lá em fevereiro de 2004 e até junho de 2005 estudou a malária trazida ou adquirida pelos 467 moradores de uma área rural a 50 quilômetros da cidade. Durante sua permanência nes-
sa e em outras regiões da Amazônia, 63% dos habitantes já tinham tido malária causada pelo Plasmodium vivax e 45,8% pelo P. falciparum. odo dia Mônica percorria os postos de saúde atrás de casos recentes de febre, que também poderia ser um sintoma de outras doenças, como dengue. Logo depois da época das chuvas, quando os rios baixam e se formam as poças que servem de criadouro para os mosquitos transmissores, ela colhia sangue de 10 a 15 pessoas por dia - cada infecção, como se veria pouco depois, causada por parasitas geneticamente diferentes entre si. Marcelo Ferreira, que coordena o grupo e morou em Rondônia por dois anos, faz o possível para seus alunos conhecerem a malária de perto. "Podemos ir muito mais longe no trabalho científico se não tomarmos a malária apenas como objeto de estudo, mas como algo que causa sofrimento humano", diz. Para ele, é o trabalho de campo que poderia também permitir mais avanços originais e uma maior competitividade aos grupos de pesquisa brasileiros, já que o Plasmodium falciparum, mais comum na África, já está adaptado à vida de laboratório, enquanto o Plasmodium vivax, predominante no Brasil, ainda não pode ser cultivado in vitro. Desde agosto de 2005 é o acreano Natal Santos da Silva, médico infectologista formado em São Paulo, quem representa a equipe da USP em Acrelândia. Ele percorre de moto de 150 a 200
quilômetros por dia, a maior parte em estradas de terra, para encontrar os moradores da zona rural de Acrelândia que contraíram malária. Tão logo os encontra, faz exames e coleta amostras de sangue ao longo de um mês com o propósito de avaliar a eficácia da cloroquina e da primaquina, os dois medicamentos mais usados contra o Plasmodium vivax, e entender por que a doença reaparece depois do tratamento, às vezes no mesmo mês. Dos 78 moradores de quem já reuniu material para estudo, 14 tiveram até quatro recaídas em um ano; uma criança de 2 anos, que não entrou no estudo mas que ele atendeu, já teve quatro malárias. "Se conseguirmos mostrar um padrão de resistência do Plasmodium vivax podemos propor mudanças na forma de tratamento ou mesmo nas medicações", comenta o médico, que trabalha com o apoio de uma equipe de controle da malária da Secretaria de Estado da Saúde do Acre. "Pode ser que os remédios não estejam mais funcionando da forma adequada, principalmente nas áreas de alto risco de transmissão." No Brasil, lembra ele, a dosagem padrão de primaquina - usado para combater as formas iniciais do Plasmodium ainda no fígado em conjunto com a cloroquina, que elimina o parasita nas células do sangue - é a metade da recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Silva chegou para ficar um ano, mas deve continuar muito mais e ajudar a criar uma base permanente de pesquisa, consolidando os vínculos com os moradores e o atendimento médico nesse município. • PESQUISA FAPESP 129 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ 49
CIÊNCIA
Refúgios abalados Análise de polens e de movimentos tectônicos questiona teoria sobre isolamento de plantas e animais
o auge da última glaciação vivida pelo planeta, entre 18 mil e 14 mil anos atrás, os cerrados, as savanas e as caatingas, vegetações mais abertas e típicas de clima seco, dominaram a América do Sul. Graças às adversidades naturais, as imponentes florestas tropicais e suas árvores gigantescas recuaram e viram-se obrigadas a ocupar áreas extremamente reduzidas. Chamados de refúgios, esses espaços limitados representaram uma alternativa de sobrevivência para plantas e animais acostumados ao tempo úmido, que aproveitaram essa proteção e se reproduziram mais intensamente. Quando a Terra voltou a esquentar, as florestas novamente se expandiram e espécies de diferentes refúgios acabaram se encontrando. A riqueza biológica da Amazônia seria uma das conseqüências dessa mistura. Proposto inicialmente pelo zoólogo Paulo Vanzolini, mas formulado conceitualmente pelo alemão Jürgen Haffer em 1969 e aplicado à realidade brasileira pelo geógrafo Aziz Ab'Sáber, esse cenário - conhecido como Teoria dos Refúgios - representou durante pe50 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 129
lo menos três décadas a visão mais aceita da porção sul do continente americano, incluindo o Brasil, em tempos gelados mais recentes. O consenso, no entanto, faz parte do passado. Sustentados pela análise do pólen de plantas que existiram nos últimos 20 mil anos, hoje de nascimento dos rios e das bacias hidrográficas do país, estudos brasileiros e internacionais criticam duramente - e até mesmo negam - a idéia dos refúgios. "Não é possível defender uma versão climática monolítica para uma época tão instável e complexa globalmente, ainda mais em um país com o tamanho do Brasil", afirma Paulo Eduardo de Oliveira, engenheiro agrônomo com doutorado em botânica e ecologia e professor da Universidade Guarulhos. Ainda não há outras teorias para explicar a diversidade de animais e plantas no Brasil da última glaciação, apenas descobertas que não se encaixam no antigo modelo. "Temos registros daquela época glacial que revelam diversas regiões de clima úmido e frio e florestas bem maiores do que as que corresponderiam aos refúgios." Oliveira e o norte-americano Mark Bush, do Instituto de Tecnologia da Flórida, publicaram na edição de janeiro a abril de 2006 da revista Biota Neotropica um artigo
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Ninfa de uma cigarrinha da família Cicadellidae: exemplo de espécie peculiar da Amazônia
que examina uma série de trabalhos que testam a validade da hipótese dos refúgios. As pesquisas sugerem, por exemplo, a existência de densas florestas no pé da cordilheira dos Andes, onde a temperatura teria resfriado cinco graus Celsius durante a última glaciação. Na mesma época, vegetação semelhante seria encontrada na porção oriental da Amazônia brasileira, enquanto na região amazônica central o clima de fato deve ter sido um pouco mais seco, mas não o suficiente para eliminar as formações florestais. "Sempre havia quem se apressasse em dizer que havíamos justamente encontrado uma área de refúgio quando apontávamos a existência de florestas relacionadas à umidade e ao frio", conta Oliveira. Nessas situações, o pólen pode carregar informações valiosas: como representa o órgão reprodutivo de plantas com flores, pode ser pensado como uma estrutura de identificação das espécies. A análise morfológica de sua estrutura indica a que família a planta pertence. A saída para o impasse foi concebida pelo australiano Simon Haberle, da Universidade Nacional da Austrália, em 1997. Haberle coletou sedimentos depositados no delta do rio Amazonas, uma área estratégica, justamente por reunir pólen originário de distintas áreas da bacia hidrográfica. Ele aproveitou esse potencial do pólen de informações sobre plantas, que já havia sido demonstrado em 1979 pela botânica brasileira Maria Lúcia Absy em seu doutorado na Universidade de Amsterdã, na Holanda, e confirmou: em grande parte, eram as florestas, e não as savanas, que definiam os contornos da paisagem amazônica durante a glaciação mais recente. Haberle analisou dados relativos a uma área gigantesca e, segundo Oliveira, seria uma contradição sustentar que se tratava de mais um refúgio. Oliveira, Bush e Paul Colinvaux, do Woods Hole Marine Biological Laboratory, de Massachusetts, Estados Unidos, foram os primeiros a contestar a idéia dos refúgios em um estudo publicado em 1996 na revista Science. Por meio da análise de grãos de pólen coletados em lagos da região do alto rio Negro, no Parque Nacional do Pico da Neblina, rechaçaram a possibilidade, levantada pela Teoria dos Refúgios, de existência de savana ou de qualquer outro tipo de vegetação de clima seco naquela área, nos 52 ■ NOVEMBRO DE 2006
PESQUISA FAPESP 129
últimos 40 mil anos. Anos depois, em 2003, Peter Wilf, da Universidade Estadual da Pensilvânia, Estados Unidos, com base na análise de folhas fossilizadas de 102 diferentes espécies de plantas da Patagônia argentina com pelo menos 52 milhões de anos, confirmou que antes da última glaciação já havia uma enorme variedade de espécies de plantas e de animais. De acordo com a Teoria dos Refúgios, essa biodiversidade teria surgido no final da glaciação, quando as poucas áreas verdes teriam voltado a se expandir. A bióloga Fátima Praxedes Leite, depois de analisar sedimentos amazônicos com idade entre 23 milhões e 6 milhões de anos, já havia detectado em 1997 essa diversidade, revelando o que Oliveira classifica de "uma grande estabilidade ecológica". Tectonismo - Além do pólen e dos sedimentos, a formação das bacias hidrográficas brasileiras e a origem dos rios oferecem outros argumentos para a contestação da Teoria dos Refúgios. O biólogo Alexandre Cunha Ribeiro, atualmente na Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto, mostra na edição de abril a junho de 2006 da Neotropical Ichthyology que a história evolutiva e a distribuição geográfica de uma elevada diversidade de espécies de peixes que habitam os rios do país estão diretamente associadas aos movimentos tectônicos e ao deslocamento de blocos de rochas superficiais. No caso do Brasil, extensas zonas de fraturas das rochas que constituem o embasamento continental - mais suscetíveis a rupturas - coincidem com os limites de separação entre as bacias. Quando os movimentos continentais se intensificam, reabrem-se antigas fraturas, fazendo movimentarem-se os blocos de rocha, que podem subir ou descer. O resultado final dessas movimentações são mudanças leves ou bruscas nos cursos dos rios, literalmente lançados em outras direções, diferentes de suas trajetórias originais. Em outro trabalho, publicado em junho na Ichthyological Exploration ofFreshwaters, Flávio Lima, Cláudio Riccomini, Naércio Menezes e Ribeiro demonstram como o alto curso do rio Guaratuba, antigo afluente do Tietê, conquistou vida própria e se transformou em um dos rios
litorâneos independentes da região entre Santos e Ubatuba. "Antigas falhas geológicas, reativadas entre 60 e 10 mil anos atrás no alto da serra do Mar, capturaram o rio, que desviou de sua trajetória rumo ao Tietê", comenta. arregadas por essas mudanças de rotas, as espécies de peixes se espalham ou se isolam e populações de uma mesma espécie podem ser encontradas em rios de bacias hidrográficas distintas. "A arquitetura geral de grandes bacias hidrográficas brasileiras, como a do Paraná, São Francisco e Uruguai, já devia estar formada há pouco mais de 100 milhões de anos, quando o Brasil se separava da África", lembra Ribeiro. Depois vieram os ajustes finos, impulsionados por processos tectônicos mais recentes - bacias hidrográficas e conseqüentemente sua fauna de peixes não respeitam os limites de qualquer refúgio e invadem cerrados, caatingas e florestas. No entanto, essa dispersão depende também da capacidade de adaptação de cada espécie às condições naturais de cada ambiente. A Piabina argentea, por exemplo, um lambari de até 5 centímetros de comprimento, pode ser encontrada em águas turvas, limpas e pedregosas, em afluentes das bacias do Paraná, São Francisco, Paraíba do Sul e alguns outros rios costeiros do Sudeste brasileiro, embora estudos comparativos sugiram que o ancestral comum a essas populações tenha se originado na bacia do rio Paraná. Já o lambari Glandulocauda melanogenys, também de poucos centímetros, é um peixe endêmico de águas frias e limpas, encontrado somente nos afluentes do alto curso do rio Tietê, além do alto curso do rio Guaratuba, que era afluente do Tietê antes dos movimentos tectônicos que levaram à sua captura. "Espécies diferentes reagem de forma distinta aos mesmos movimentos tectônicos", diz Ribeiro. "O fato de uma determinada espécie de peixe possuir ampla distribuição ou estar restrita a uma pequena área de uma bacia depende de suas características biológicas. Espécies com baixa capacidade de deslocamento ou muito exigentes do ponto de vista ambiental podem ser restritas a uma pequena área onde existam tais condições. Portanto,
apesar das bacias hidrográficas repetidamente misturarem suas faunas por processos de capturas de rios e riachos pela atividade tectônica, nem todas as espécies terão distribuição geográfica equivalente. Como a mistura de fauna pelo processo tectônico é contínua no tempo, o resultado é uma história muito complexa envolvendo populações ancestrais e seus descendentes nas grandes bacias hidrográficas sul-americanas." Registros fósseis de peixes também indicam que a diversidade de espécies com características da fauna moderna já era grande no período Terciário, há cerca de 50 milhões de anos, momento bem anterior ao que seria contemplado pelos refúgios. São do Terciário os fósseis do peixe Corydoras revelatus, do mesmo gênero que inclui o limpa-fundo ou tamboatá, atualmente comum em todo o Brasil. A fauna fóssil da bacia de Taubaté, com 23 milhões a 35 milhões de anos, conta com gêneros ainda hoje encontrados em rios e riachos brasileiros, como o grande bagre Steindachneridion, a piraputanga Brycon, o curimbatazinho Cyphocharax e o lambari Lignobrycon.
Aos pés do Aconcágua, no Chile: Andes já abrigaram vastas florestas
"A ciência é feita de acertos e de erros e é importante que paradigmas passem por avaliações críticas, especialmente quando surgem novas tecnologias", diz Oliveira. Para ele, à época em que foi concebida, e diante das limitações técnicas, a Teoria dos Refúgios baseou-se no que chama de evidências indiretas - associações entre paisagens geográficas semelhantes e analogias entre rochas parecidas, além da análise de plantas, anfíbios e borboletas de espécies próximas encontrados em locais distantes. Atualmente, além da análise do pólen, é possível trabalhar com sofisticados testes de DNA e com datações de urânio, carbono e isótopos de outros elementos químicos. Atento às contradições da teoria, Oliveira também questiona como as plantas e os animais poderiam ter se diversificado se ficaram confinados a ambientes restritos e extremamente competitivos. "Não faz sentido. Na verdade, por conta da luta pela sobrevivência, os refúgios deveriam
ter provocado uma redução no número de espécies", avalia. Outro problema não resolvido pelos refúgios diz respeito às temperaturas. Caatingas e savanas são ambientes de clima quente; seriam incompatíveis com a era da glaciação, ainda que o Brasil só tenha sofrido indiretamente os efeitos do resfriamento global, mais intenso no hemisfério Norte. "A teoria levou em consideração apenas umidade e chuvas", diz Oliveira. "Ou a idéia dos redutos se reformula, ou será abandonada", afirma. Vanzolini rebate as críticas e lembra que na Amazônia a fauna não é uniforme. "Os refúgios continuam valendo como explicação consistente para essa diversidade animal. Até agora, ninguém conseguiu apresentar outra proposta sustentada para substituir essa teoria." Ab'Sáber também rechaça as dúvidas. Para ele, as informações que levaram os críticos a pensar que a teoria não funciona estão relacionadas a acontecimentos mais recentes, que não correspondem à época da glaciação: "Os fundamentos da teoria dos redutos continuam absolutamente intocados". • FRANCISCO BICUDO PESQUISA FAPESP 129 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ 53
©CIÊNCIA TEORIA
Equipes brasileiras colaboram no esforço de reunir a física do infinitamente pequeno à do infinitamente grande
Hentado diante de uma mesa repleta de papéis com fórmulas matemáticas, o físico Élcio Abdalla apanha duas canetas esferográficas e bate levemente uma contra a outra, causando um estalo. "Um choque com esse nível de energia provoca deformações nas canetas que conseguimos descrever com as leis de Newton", afirma Abdalla, referindo-se às expressões matemáticas formuladas há quase 300 anos pelo inglês Isaac Newton para explicar o movimento dos corpos na superfície do planeta ou mesmo no espaço. No entanto, continua Abdalla, seria necessário recorrer aos conceitos de
temperatura bilhões de vezes mais elevada que a do interior do Sol. É que só nesse nível de energia os componentes mais elementares da matéria conseguem superar as quatro forças da natureza - a gravidade e as forças eletromagnética, nuclear fraca e nuclear forte - que os mantêm unidos no núcleo dos átomos. Tamanha energia, claro, não se encontra em um canto qualquer do cosmo. Só deve existir em situações muito específicas, como os primeiros instantes após o Big Bang, a gigantesca explosão ocorrida que teria originado o Universo e até mesmo o tempo há 13,7 bilhões de anos ou ainda em regiões próximas a poderosos buracos negros, os maiores devoradores de matéria e energia do cosmo. Investigando essas situações pouco comuns, Abdalla e outros físicos de São
alicerces da física moderna - a Mecânica Quântica e a Relatividade Geral, que, respectivamente, tratam do mundo das partículas e do comportamento de estrelas, planetas e galáxias - simplesmente param de funcionar. E até o momento os físicos não conceberam uma teoria completa e consistente, aceita pela maioria deles, capaz de explicar o que deve ter ocorrido em um período muito antes do primeiro segundo de vida do cosmo, no qual toda a matéria e energia que existem hoje já estiveram comprimidas em um espaço trilhões de vezes menor que a ponta de uma agulha. "Nessa escala se observa a confluência da física de partículas de altíssimas energias e da cosmologia, porque ela guarda a história dos tempos em que o hoje infinitamente grande era infinitamente pequeno", comenta o físico Luiz Carlos de Menezes, da USP, que no livro A matéria - uma aventura do espírito: fundamentos e fronteiras do conhecimento físico define a física como um jogo no qual se tenta identificar a totalidade onde só se vêem fragmentos, procurar a permanência onde só se percebem transformações e abranger o maior número de fenômenos com o menor número de princípios. Nesse ambiente especial medem-se as principais grandezas físicas (tempo, massa, energia e comprimento) em uma escala específica, a chamada escala de Planck - referência às unidades de medida definidas no início do século passado pelo físico alemão Max Planck, o criador da física quântica. A partir de três grandezas constantes do Universo, Planck conseguiu estabelecer uma espécie de métrica da natureza, em que as unidades de medida não variam de um país para outro, como acontece com o metro, usado no Brasil, ou a milha, adotada para medir comprimento nos países anglo-saxões. Alberto Vasquez Saa, físico teórico da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), classifica de extremos os fe-
A cidade proibida uma área mais recente da física - a Mecânica Quântica, criada no início do século passado - para justificar as transformações que ocorreriam nessas canetas caso uma fosse lançada contra a outra com uma energia alta o suficiente para fazê-las em pedaços ou mesmo fundi-las. Agora, se fosse possível arremessar uma caneta contra a outra com uma energia elevada a ponto de o impacto pulverizar os átomos das canetas em seus componentes mais elementares, os quarks, os físicos não teriam a menor idéia do que ocorreria em seguida. "As teorias de que dispomos não conseguem prever o comportamento da matéria nesse nível de energia", diz Abdalla, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP). Calcula-se que para isolar os quarks formadores de uma partícula é necessário aquecê-la a uns 2 trilhões de graus, 54 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 129
Paulo, Campinas, São Carlos e Belém, no Pará, vêm nos últimos cinco anos desvendando fenômenos que ajudam a caracterizar melhor os buracos negros e o comportamento da própria natureza ao redor desses potentes aspiradores cósmicos dos quais nem a luz escapa. Assim, tentam aproximar a física do infinitamente pequeno à do infinitamente grande. Obviamente, ainda está longe de terminar esse trabalho de construção de outra forma de pensar a origem e o destino do Universo. De acordo com a teoria do Big Bang, à medida que se recua no tempo rumo a essa explosão primordial, encontra-se um Universo mais e mais quente e denso, com a matéria concentrada em um espaço cada vez menor. Mas a partir de determinado grau de condensação as duas teorias que melhor descrevem os fenômenos da natureza e são consideradas os
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À procura de frestas na muralha: para encontrar leis únicas que expliquem partículas e buracos negros
Albert Einstein, com a Mecânica Quântica, proposta inicialmente por Planck e desenvolvida nas três primeiras décadas do século passado por físicos como Niels Bohr, Paul Dirac, Werner Heisenberg e Erwin Schrõdinger, entre outros. Os últimos 50 anos mostraram que não é tão simples assim superar esse desafio porque há uma incompatibilidade conceituai entre a Relatividade Geral, que trata dos fenômenos do mundo macroscópico em que a gravidade assume um papel relevante, e a Mecânica Quântica, a física do mundo submicroscópico, governado pelas outras três forças da natureza. A diferença mais importante entre elas é que a primeira considera o espaço uma grandeza que se mede em valores contínuos - pode assumir qualquer valor que se possa imaginar entre dois números naturais, assim como entre os números 2 e 3 há o 2,2 ou o 2,742. Já a Mecânica Quântica descreve os fenômenos medidos em valores discretos, determinados somente pelos números naturais. nômenos da escala de Planck."São extremamente rápidos, extremamente energéticos e se passam em espaços extremamente diminutos", diz. Apenas para se ter uma idéia de quão extremos são esses fenômenos, nessa escala a energia de uma única partícula atômica como o elétron corresponderia à de um carro viajando à incrível velocidade de 7 mil quilômetros por hora - se esse carro existisse, daria a volta no planeta em menos de seis horas. O interesse dos físicos por algo tão complexo vai muito além do prazer de passar várias horas fazendo e refazendo cálculos que tentam traduzir em números os fenômenos da natureza. "Se realmente existe a intenção de compreender por que o Universo é como o conhecemos hoje, é necessário investigar o que ocorreu próximo ao Big Bang e, nesse caso, temos de saber lidar com essa escala de energia", afirma o físico Daniel Vanzella, do Instituto de Física da USP em São Carlos, interior paulista. Como a serpente que morde a própria cauda, essa escala de energia une o princípio ao
da não existe uma teoria única, consistente e aceita pela maioria dos físicos, capaz dessa façanha. Uma das candidatas mais populares nos últimos anos é a Teoria das Cordas, considerada elegante do ponto de vista matemático, mas vista com ressalva por boa parte dos físicos porque nenhuma de suas previsões foi comprovada até o momento. Quem suspeita que esse não seja o caminho aposta em uma saída aparentemente mais simples: a união de duas teorias físicas já consagradas: a Relatividade Geral, formulada há 90 anos por
1. Teoria Quântica de Campos em Espaços-tempos Curvos 2. Perturbações em relatividade geral MODALIDADE 1. Projeto Temático 2. Projeto Temático
COORDENADORES
comum tanto ao Big Bang quanto aos buracos negros, em especial na fase final de sua existência. A grande dificuldade é que para esclarecer os fenômenos da escala de Planck é necessário levar em considera-
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1. GEORGE AVRAAM MATSAS (Unesp) e ALBERTO VASOUEZ SAA (Unicamp) 2. ÉLCIO ABDALLA (USP) INVESTIMENTO 1. R$ 104.000,00 (FAPESP) 2. R$ 131.000,00 (FAPESP)
imaginando cada uma dessas teorias como caminhos que levam do chão a uma passarela sobre uma avenida. Enquanto o primeiro caminho seria uma rampa, em que se sobe gradual e continuamente, o segundo seria uma escada, em que se ganha altura aos saltos, degrau por degrau. Por causa dessa incompatibilidade, ainda hoje a Teoria do Tudo é para a física o que a Cidade Proibida, no coração de Pequim, foi para a população chinesa, na opinião de George Avraam Matsas, do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Projunto de palácios onde vivia o imperador permaneceu por séculos interditado à maioria dos chineses, até mesmo aos familiares do monarca. "Como ainda não encontramos meios de atravessar essas muralhas, tentamos imaginar o que se passa na Cidade Proibida a partir do que é possível ver por frestas nesse muro", compara Matsas. alguns físicos - bem poucos, é verdade descobriram rachaduras nesse muro e vislumbraram o que ocorre do lado de lá. Não conseguiram a união completa da Mecânica Quântica com a Relatividade Geral, mas produziram uma teoria híbrida que incorpora parte de ambas e é conhecida como Teoria Quântica de
Campos em Espaços-tempos Curvos, um nome complicado para definir a área da partículas em regiões do espaço em que a concentração de matéria ou energia é muito elevada, como os buracos negros - segundo a Relatividade Geral, a concentração de matéria ou energia não gera uma força gravitacional, como afirmava paço-tempo semelhante à que uma bola de boliche causa em uma cama elástica. Um dos precursores da Teoria Quântica de Campos em Espaços-tempos Curvos, o físico norte-americano Leonard Parker, da Universidade deWisconsin em Milwaukee, começou a ver conexões ende Geral ainda durante seu doutorado, há pouco mais de 40 anos, e descobriu que em regiões com campo gravitacional muito intenso, como os buracos negros ou o Big Bang, haveria também criação de partículas. Fábrica de partículas - Boa parte da fama pela descoberta de que os buracos negros não eram apenas sorvedouros de matéria e energia, mas também produtores de partículas de volta para o espaço, ficou com outro físico: o inglês Stephen Hawking, herdeiro da cadeira que de Cambridge. Nessa mesma época Hawemitiam uma radiação especial - hoje chamada radiação Hawking - na forma de calor, evaporando lentamente, e publicou esses resultados em 1974 na Nature."Antes dessa descoberta se acreditava que a Relatividade Geral fosse suficienraco negro", comenta George Matsas, da Unesp. "Hawking mostrou que só temos uma idéia precisa de como esses objetos obscuros do cosmo funcionam quando se acrescentam esses ingredientes quânticos [produção de partículas]", diz. Analisando os cálculos que haviam levado Hawking a identificar esse efeito, o físico canadense William Unruh descobriu um outro fenômeno do mundo microscópico que independe dos buracos negros, mas também pode ser apliHawking, Unruh verificou que o espaço vazio (vácuo) pode, na realidade, não ser tão vazio assim e estar repleto de partículas elementares, dependendo de co-
mo se movimenta quem observa essa região. Esse fenômeno, conhecido como efeito Unruh, decorre diretamente da Mecânica Quântica. Segundo essa teoria, o vácuo não é vazio, como em geral se imagina, mas repleto de pares de partículas que surgem e se aniquilam tão rapidamente que não podem ser detectadas. Mas em regiões do espaço em que a densidade de matéria e energia é alta o suficiente para criar fronteiras de não-retorno, como em um buraco negro, tudo muda: uma partícula ou outra poderiam es-
rem-se reais. Unruh previu que um astronauta que estivesse caindo em um buraco negro - ou seja, estivesse livre da ação de forças - não veria nada além de esvesse com os propulsores ligados, contrabalançando a tendência de cair em direção ao buraco negro, esse mesmo astronauta enxergaria nuvens de partículas elementares. "Esse é um efeimaneceu escondido durante quase 50 anos de uma legião de físicos dos melhores laboratórios do mundo", diz Matsas. Estranho? Certamente. Tanto que fosse possível partículas elementares existirem para observadores em uma determinada condição, mas não em outra. Às vezes, porém, é preciso deixar os preconceitos de lado para acompanhar o raciocínio dos físicos e tentar entender como a natureza possivelmente funciona. Uma vez que não é possível enviar uma nave a um buraco negro para avaliar esse efeito, Matsas e Daniel Vanzella dispuseramse a verificá-lo de outra forma: propuseram, como geralmente se faz na física, um experimento imaginário que comAlicerces do espaço: buracos negros como o representado pelo ponto azul (no alto), no centro de Andrômeda, mantêm a estrutura do Universo, ainda que absorvam matéria e energia da vizinhança
provasse que sem o efeito Unruh a namos. Testes em aceleradores de partículas já haviam demonstrado que o próton - partícula de carga elétrica positiva que integra o núcleo dos átomos - é estável
transforma em nêutron, a partícula sem carga elétrica do núcleo atômico, quando é submetido a uma força que o faça
partir de uma série de cálculos publicados em 2001 na Physical Review D, Matsas e Vanzella demonstraram que um próton sob orça muito intensa, como a que o faz ficar parado e impede que caia em um buraco negro, existiria por um período muito curto antes de se transformar em um nêutron. Esse comportamento seria óbvio vre rumo ao buraco negro que visse o próton parado nas proximidades desse pedisse o próton de ser sugado. Era preciso descobrir o que encontraria um astronauta parado em relação ao próton. Em princípio, o astronauta não veria o próton se desintegrar, uma vez que Mas haveria aí um paradoxo porque alguém em queda livre observaria o próton, parado fora do buraco negro, se transformar em nêutron. E o que de fato acontece, uma vez que na natureza o próton não pode ao mesmo tempo se desintegrar e permanecer íntegro? Matsas e Vanzella comprovaram que também mo intervalo de tempo que haviam previsto em trabalho anterior, originando
Fim estrondoso: explosão próxima a buraco negro (no centro) mantém aquecido o núcleo de Perseu
ferente. Como conseqüência do efeito Unruh, um astronauta parado com o próton observa à sua volta aquela nuvem de partículas predita por Hawking. Essas partículas, então, poderiam interagir com o próton e levar ao surgimento do nêutron. Como a dupla afirmou em um artigo na Physical Review Letters em 2001, o efeito Unruh é fundamental para que esse paradoxo não ocorra. "Esse resultado ajuda a conhecer melhor não apenas o comportamento dos buracos negros, mas também das próprias partículas elementares", comenta Matsas. Em colaboração com Jorge Castineiras e Luís Crispino, da Universidade Federal do Pará, Alberto Saa, da Unicamp, e Atsushi Higuchi, da Universidade de York, Inglaterra, Matsas continua testando os limites da Teoria Quântica de Campos em Espaços-tempos Curvos, com o objetivo de saber até que ponto ela representa bem os fenômenos da natureza sem violar outras leis físicas já comprovadas. Recentemente, ele e André Rocha da Silva confirmaram que essas transformações sofridas por partículas nas proximidades dos buracos negros não contrariam, por 58 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 129
exemplo, as leis da termodinâmica formuladas no século XIX, que ainda hoje explicam as transformações de diferentes formas de energia e as trocas de calor observadas na natureza. Sineiro ceqo - Trabalhando com a segunda lei da termodinâmica, segundo a um sistema sempre aumenta com o tempo, Abdalla e os físicos Bertha CuadroMelgar, Roman Konoplya e Carlos Molina tentam quantificar como essa desordem varia em um buraco negro. Recentemente ele descobriu uma forma de calcular as dimensões de um buraco negro a partir das ondas gravitacionais geradas em resposta à perturbação causada por um objeto tragado para seu interior. "É algo como estimar o tamanho de um lago a partir das ondas que se formam em sua superfície", compara Abdalla, "ou ainda, como um cego que consegue saber o tamanho de um sino a partir do som de uma badalada". Em princípio, as ondas gravitacionais produzidas pela perturbação poderiam ser identificadas por experimentos como o Detector de Ondas
Gravitacionais Mario Schemberg, que começou a funcionar no país em setembro. Como todos esses efeitos ainda precisam ser comprovados, Unruh propôs em 2005 uma estratégia que talvez permita reproduzir em laboratório efeitos similares aos que, acredita-se, devem ocorrer próximo aos buracos negros, como a radiação Hawking. Unruh não planeja, claro, reproduzir um buraco negro nos centros de estudos de física, mas um fenômeno análogo, chamado buraco sônico. Convidado em 1982 para dar um curso de hidrodinâmica, especialidade que lhe era pouco familiar, Unruh imaginou que uma estrutura capaz de absorver um fluido com velocidade maior que a do som - por exemplo, o super-ralo de uma piscina - impediria que qualquer barulho em seu interior ultrapassasse as fronteiras do ralo e escapasse para o exterior, de modo semelhante ao que ocorre com a luz que cai em um buraco negro. "A produção de um análogo de buraco negro pode nos fornecer mais pistas sobre a existência da radiação Hawking", diz Matsas, que também investiga outros modelos de análogos de buracos negros. Em São Carlos, Vanzella se dedica agora a aplicar a Teoria Quântica de Campos em Espaços-tempos Curvos na investigação de outro fenômeno cósmico: a atual fase de expansão acelerada do Universo, em que estrelas e galáxias se afastam cada vez mais rapidamente umas das outras. Em colaboração com Leonard Parker, Vanzella desenvolve a parte conceituai desse modelo, segundo o qual o próprio vácuo produziria no processo de criação e aniquilação de partículas virtuais a força que supera a gravidade e faz os astros se afastarem uns dos outros de modo acelerado. Se o modelo estiver correto, Parker pode ter achado a origem da chamada energia escura, correspondente a dois terços de tudo o que existe no cosmo. "Estamos buscando uma forma de calcular a energia do vácuo", diz Vanzella. Uma tarefa nada fácil, pois é preciso fazer várias aproximações que podem ser justificáveis ou não do ponto de vista da física. "Se forem justificáveis", prossegue Vanzella, "esse modelo se encaixaria na mesma categoria da radiação Hawking: qualquer teoria que se candidatasse à Teoria do Tudo teria de prever a existência desses dois fenômenos". • RICARDO ZORZETTO
O CIÊNCIA FÍSICA EXPERIMENTAL
Pé no acelerador Participação em futuros experimentos do CERN deve aprimorar formação de físicos brasileiros e beneficiar a indústria
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financiamento autorizado para a empreitada científica de inserir os físicos brasileiros nas experiências internacionais que terão o grande acelerador de partículas do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN) como locus privilegiado "é um pouco menos da metade do que pretendiam os seis grupos de pesquisadores envolvidos na empreitada", capitaneados pelo respeitado professor Roberto Salmeron, ou seja, US$ 1 milhão por ano, ao longo de cinco anos. Mas certamente o total de aproximadamente R$ 2,4 milhões concedidos pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) será um suporte da maior importância para dar velocidade e mais densidade ao desenvolvimento da pesquisa contemporânea em partículas elementares no país e, ao mesmo tempo, assegurar o crescimento da participação nacional na investigação comprometida com o avanço dessa área da física. Em mais detalhes, o que está em foco aqui são seis projetos de pesquisa experimental e um projeto teórico, "propostas maravilhosas todas", segundo Salmeron, cujo financiamento continuado era fundamental para viabilizar a presença brasileira nas experiências no acelerador de partículas de 27 quilômetros de extensão, instalado em Genebra, Suíça, que começará a operar em fins de 2007. O acelerador, que começou a ser planejado no fim da década de 1980, é, por razões óbvias, a menina dos olhos da comunidade de físicos
de partículas. "O conhecimento sobre propriedades da estrutura da matéria, das partículas que a compõem, deve avançar de modo extraordinário com as enormes experiências no acelerador", comenta Salmeron, 84 anos, que viajou algumas vezes da França para o Brasil no último ano para atuar na coordenação desses projetos e em sua apresentação e defesa junto às agências de financiamento. Aposentado de suas atividades na Escola Politécnica de Paris, Salmeron continua trabalhando firmemente com consultorias, de forma especial para o Brasil. Os grupos envolvidos nesse projeto são da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), da Universidade Fede-
Salmeron: expectativa de melhor compreender as partículas elementares
ral do Rio de Janeiro (UFRJ), do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Estadual Paulista (Unesp). "A maioria é mesmo do Rio de Janeiro. São grupos de pesquisadores muito bons, muitos deles com formação no Fermilab e no CERN", observa Salmeron. A expectativa do professor, que deixou o Brasil nos anos 1960 em decorrência direta das perseguições da ditadura militar (veja detalhes na excelente entrevista que ele concedeu à Pesquisa FAPESP, edição número 100), é de que todos esses projetos tenham impacto na formação de novos físicos de excelente nível no Brasil. "Com a ciência da computação, os progressos na física de partículas elementares fazem-se astronômicos. Por exemplo, um programa de uma nova geração chamada Grid torna possível o acesso imediato aos dados gerados no CERN, desde o momento em que colidem dois prótons e saem as primeiras partículas secundárias", conta ele. Esse compartilhamento de dados em tempo real, em sua visão, tem influência decisiva no avanço das pesquisas. Salmeron, que vê a pós-graduação nas áreas de física, química e engenharia muito bem no país, enquanto a graduação permanece a imensa distância do padrão que se tem nos países mais desenvolvidos, observa que para o Brasil é muito vantajoso entrar em grandes programas científicos numa área em que toda a tecnologia é de vanguarda. "Isso acontece na área de partículas elementares, o que significa que mesmo a indústria brasileira pode se beneficiar diretamente desses novos financiamentos para a pesquisa." • PESQUISA FAPESP 129 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ 59
Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org
Notícias A coleção SciELO Saúde Pública foi lançada no ano 2000 e é a principal coleção internacional de periódicos em acesso aberto na área de saúde pública. Atualmente inclui oito títulos indexados no Medline e publicados nos países ibero-americanos, além dos boletins da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e da Organização Mundial da Saúde (OMS). A cobertura da coleção foi ampliada de modo a incluir os periódicos de saúde pública que já pertencem a uma coleção SciELO nacional certificada. Esta decisão facilitará a inclusão de novos títulos já nos próximos meses e estimulará maior atividade de citações entre os periódicos. A sua condição de publicação em acesso aberto foi também reafirmada. Estas foram as principais conclusões da reunião do Comitê Consultivo da Coleção SciELO Saúde Pública, no Rio de Janeiro (RJ) em 21 de agosto de 2006. A reunião foi um dos eventos prévios ao 8o Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva e 11° Congresso Mundial de Saúde Pública.
■ Saúde mental
Inventário de habilidades
■ Ecologia
Biodiversidade perdida
O abuso e a dependência de álcool já atingem de 10 a 15% dos adultos do Ocidente, sendo a principal causa de mortes violentas. No Brasil, estima-se que esta substância seja consumida por mais de 70% dos adultos e que um quarto deste total desenvolva abuso ou dependência em alguma época da vida. Os dados estão no artigo "Estudo comparativo das habilidades sociais de dependentes e não dependentes de álcool", de autoria de Poliana Aliane, Lélio Lourenço e Teimo Ronzani, pesquisadores da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), que teve como objetivo avaliar e comparar diferenças nas habilidades sociais (HS) de dependentes e não dependentes de álcool. Segundo os autores, a dependência é o resultado de uma interação entre os efeitos das substâncias psicoativas no cérebro e o que o usuário interpreta daquela situação. O trabalho avaliou 80 sujeitos, entre dependentes e não dependentes. Foram usados dois instrumentos para coleta dos dados: Inventário de Habilidades Sociais (IHS) e Audit (Alcohol Use Disorder Identification Test). Foi realizado ainda um estudo comparativo das habilidades sociais entre os grupos de dependentes e não dependentes de álcool e álcool e outras drogas (AOD). Os resultados mostraram não existir diferença no escore do inventário de habilidades sociais entre dependentes e não dependentes. Os homens obtiveram maior média nas habilidades de conversação e desenvoltura social e autocontrole da agressividade que as mulheres. "Embora já existam evidências na literatura que relacionem a dependência de substâncias psicoativas às habilidades sociais, este estudo não confirmou esta hipótese", dizem os pesquisadores.
A estimativa de perda de floresta na Amazônia é divulgada todos os anos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Em 2004, a taxa de desflorestamento na região foi de aproximadamente 26.130 quilômetros quadrados. O que não se conhece, no entanto, é a quantidade de recursos naturais que se perde a cada quilômetro quadrado de floresta destruída. O trabalho "Estratégias para evitar a perda de biodiversidade na Amazônia" apresenta um panorama geral dessa perda, baseado em estudos sobre a densidade de plantas e de grupos de animais na Amazônia. "A produção científica sobre o conhecimento dos vários aspectos da diversidade biológica da Amazônia brasileira vem crescendo de maneira exponencial na última década. Essas ações são movidas pelo objetivo comum da necessidade de um avanço rápido do conhecimento sobre a composição e a ecologia das espécies", afirmam os autores do trabalho. São eles: Peter Mann de Toledo, diretor e pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), José Maria Cardoso da Silva, vice-presidente de Ciência da Conservação Internacional Brasil, e Ima Célia Vieira, coordenadora de Pesquisa e Pós-Graduação do MPEG. O artigo aponta que um dos maiores desafios científicos brasileiros é planejar um sistema de gestão territorial para a Amazônia que leve em conta tanto a conservação dos seus recursos naturais como a promoção do desenvolvimento social e econômico dos quase 20 milhões de habitantes que vivem nessa região. Com base nisso, os pesquisadores defendem a idéia de que não há necessidade de se ampliar o desflorestamento na região e que, portanto, qualquer licença de desmatamento deveria ser proibida na Amazônia. "Sempre é possível evitar a erosão dos solos e recuperar corpos d'água e ciclagem de nutrientes utilizando sistemas ecológicos simplificados, mas é impossível trazer de volta espécies extintas", descrevem.
PSICOLOGIA EM ESTUDO - VOL. 11-N°1- MARINGá - IAN./ABR. 2006
ESTUDOS AVANçADOS PAULO - AGO. 2005
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- N° 54 - SãO
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0037-
http://www.scielo.br/scielo.php?scrípt=sci_arttext&pid=S01
86822006000300010Stlng=pt&nrm=iso&tlng=pt
03-40142005000200009&lng=pt&nrm=iso
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■ Materiais
Microondas científico O uso de microondas no processamento e obtenção de materiais tem adquirido crescente interesse por parte de áreas do conhecimento como a química e a engenharia de materiais, aponta o estudo "Síntese e processamento de cerâmicas em forno de microondas doméstico". Nesse sentido, aparatos especialmente projetados têm sido descritos na literatura, como reatores e câmaras de processamento a microondas, com aplicação na pesquisa e na indústria. O trabalho é assinado por pesquisadores do Centro Multidisciplinar de Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos (CMDMC), que funciona na Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Araraquara, e na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Cientistas do Laboratório de Ensino de Ciências Exatas e da Natureza, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), e do Departamento de Química da University of the Sciences in Philadelphia (EUA) também participaram das pesquisas. O artigo mostra como o uso de microondas em atividades científicas avança devido a novas aplicações, simplicidade e baixo custo. "O forno de microondas tem deixado cada vez mais de ser visto como um mero eletrodoméstico e passado a figurar entre os equipamentos laboratoriais de utilidade na pesquisa científica", apontam. A aplicação de microondas em áreas da química e ciências afins tem decorrido da redução do número de etapas em muitas sínteses, melhoria de propriedades físicas em cerâmicas tecnológicas e economia de energia e tempo alcançada no processamento de materiais. Os autores apresentam um dispositivo capaz de efetuar tanto a síntese quanto o tratamento de sólidos, mesmo quando os materiais em questão não possuem susceptibilidade às microondas. O dispositivo consiste de um forno doméstico modificado, que contém uma célula radiossuscetível inserida em sua cavidade. CERâMICA - VOL. 52-N°321- SãO PAULO -IAN./MAR.
2006
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S036669132006000100007&lng=pt&nrm=isoSttlng=pt
■ Ambiente
Emissões sob análise O trabalho "Uso de combustíveis e emissões de C02 no Brasil: um modelo inter-regional de insumo-produto" quantifica as emissões de C02 decorrentes do uso energético de gás natural, álcool e derivados de petróleo em seis regiões brasileiras, além de avaliar os impactos de
eventuais políticas de controle de emissões. Os autores são Emerson Hilgemberg, professor do Departamento de Economia da Universidade Estadual de Ponta Grossa, e Joaquim Guilhoto, professor da Faculdade de Economia, Administração e Ciências Contábeis (FEA), da Universidade de São Paulo (USP). "Com as negociações internacionais para a restrição das emissões, dependeremos cada vez mais de combustíveis fósseis, particularmente o gás natural", justificam Hilgemberg e Guilhoto. Em anos recentes, mostra o artigo, o Brasil apresenta taxas de crescimento de emissões significativas, que parecem estar ligadas ao aumento do uso do gás natural e à queda relativa na utilização do álcool. "Este trabalho contribui na direção de mapear a intensidade de carbono na economia brasileira, identificando os setores alvo para eventuais políticas e, ao mesmo tempo, quantificando o impacto no produto e no emprego de algumas alternativas de controle de emissões", dizem os autores. NOVA ECONOMIA JAN./ABR.
- VOL.16 - N° 1 - BELO HORIZONTE -
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http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010363512006000100002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
■ Psicologia
Subjetivação no acampamento Uma discussão acerca dos processos de subjetivação em trabalhadores do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST). Essa é a proposta do artigo "Subjetividade em movimento: o MST no Rio Grande do Norte", de Jáder Ferreira Leite e Magda Dimenstein, ambos pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Os autores elegeram como dispositivos de subjetivação a vivência cotidiana do acampamento e o discurso político do MST, com o qual os trabalhadores acampados passam a ter contato através das ações dos militantes e coordenadores do movimento. Foram utilizadas entrevistas semi-estruturadas com 16 trabalhadores e observações das práticas cotidianas do grupo. "O MST está sendo entendido enquanto um movimento social que, ao defender um modelo de organização coletiva da sociedade e das subjetividades, coloca-se como um agente de subjetivação, com o qual os trabalhadores acampados passam a ser afetados por meio de falas, rituais, programações e mobilizações no cotidiano do acampamento", diz o estudo. Os resultados evidenciam a emergência de produções subjetivas articuladas ao projeto coletivista político-ideológico do MST, bem como modos singulares de subjetivação que implicam a criação de espaços de ruptura que se chocam com a perspectiva macropolítica desse movimento social. & SOCIEDADE - VOL. 18 - N° 1 - PORTO - JAN./ABR. 2006
PSICOLOGIA ALEGRE
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010271822006000100004&lng=pt&nrm=iso&ting=pt
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O TECNOLOGIA
*CO:E
Leitura confortável com papel eletrônico
■ Córnea à base de hidrogel Uma esperança para quem sofre de problemas de visão e precisa de um transplante para voltar a enxergar é a córnea artificial feita com hidrogel biomimético, um tipo de polímero que absorve muita água, característica essencial nesse órgão do corpo, criada por pesquisadores da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. Segundo o engenheiro químico Curtis Frank, líder do grupo, o material, batizado de Duoptix, é biocompatível, transparente e permeável a nutrientes, incluindo a glicose, o "alimento" favorito da córnea. A córnea artificial é composta por duas redes entrelaçadas de hidrogel. Uma delas, feita de moléculas de polietileno glicol (PEG), resiste à acumulação de proteínas em sua superfície e à inflamação. A outra é construída com moléculas de ácido poliacrílico, um material superabsorvente similar ao utilizado em fraldas descartáveis. Os pes-
No futuro próximo, jornais e revistas deixarão de ser impressos em papel e irão incorporar uma nova tecnologia conhecida hoje como papel digital ou e-paper. No formato de um display leve, fino e flexível, o e-paper utilizará milhões de cápsulas microscópicas preenchidas por pigmentos claros e escuros que se tornam visíveis quando ativados por uma corrente elétrica. Bem mais resistente do que os atuais monitores de cristal líquido (LCD)
quisadores calculam que cerca de 10 milhões de cegos ao redor do mundo possam ser beneficiados com a descoberta, que também poderá ser utilizada na fabricação de lentes de contato. Atualmente os transplantes de córnea são feitos com córneas retiradas de cadáveres e a taxa de rejeição é de 20%. •
■ Proteína barra hemorragia Um líquido biodegradável, composto de fragmentos de proteínas chamados peptídeos, conseguiu em poucos segun-
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usados em notebooks, o jornal do futuro apresentará a vantagem de atualizar constantemente as informações para o leitor. Uma das companhias mais avançadas no desenvolvimento dessa nova tecnologia é a britânica Plastic Logic, uma spin-off da Universidade de Cambridge, que organizou recentemente um concurso com o tema Life isflexible (A vida é flexível). O grande vencedor foi o projeto Turnover, um display digital de apenas duas
dos estancar hemorragias, desenvolvimento que poderá ter significativo impacto na medicina e em emergências. Quando o líquido, sintetizado por pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e da Universidade de Hong Kong, é aplicado em ferimentos abertos, os peptídeos se auto-estruturam em escala nanométrica, transformandose em um gel que forma uma barreira protetora, vedando o ferimento e estancando a hemorragia. Quando o ferimento cicatriza, o gel não-tóxico é quebrado em moléculas que as
Jornais e livros lidos com toque na tela
páginas cujas pontas podem ser dobradas, e as páginas podem ser constantemente mudadas. Com um simples toque na tela, é possível avançar ou retroceder as páginas de um livro, revista ou jornal - uma das vantagens do e-paper sobre os monitores de LCD, destacou o designer Timothy Yeoh, criador desse sistema, durante a apresentação do novo papel. Outra vantagem do e-paper é que ele proporciona uma leitura mais confortável. •
células podem usar como blocos para reparar o tecido. "Nós descobrimos um caminho para estancar uma hemorragia em menos de 15 segundos", disse o pesquisador Rutledge Ellis-Behnke, do Departamento de Cérebro e Ciências Cognitivas do MIT e coordenador do estudo, em comunicado da instituição. Nos experimentos realizados com camundongos e hamsters, os pesquisadores aplicaram o líquido contendo pequenos peptídeos em diferentes tipos de tecidos, do cérebro, da pele, da medula espinhal e do intestino. •
■ Energia dos gêiseres
V.
Milhões de pessoas ainda vivem sem acesso à eletricidade no mundo, principalmente nas nações mais pobres, embora muitas vivam em regiões próximas a gêiseres e fontes de águas termais que, em tese, poderiam ser utilizadas para mover geradores elétricos. Métodos para gerar energia dessas fontes alternativas têm sido tentados em vários países, mas sem resultados concretos. A novidade promissora, segundo a revista Science (6 de outubro), é formada por um equipamento semelhante a uma célula a combustível, que transforma hidrogênio em eletricidade. No caso desse aparelho, desenvolvido pelo químico Roman Boulatov, da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, a célula pode ser recarregada com o calor oriundo de gêiseres e fontes termais. O calor seria responsável pela geração de corrente elétrica na célula, batizada de Thermally Regenerative Solution Concentration Cell, ou célula de solução concentrada regenerada com calor. Segundo Boulatov, um sistema com dezenas de células funcionando em conjunto poderia prover energia para geladeiras e televisores em lugares desprovidos de eletricidade. •
■ Maçã produz carbono ativo A polpa da maçã descartada nos processos de fabricação de sucos e da sidra, bebida fermentada feita com a fruta, é a matéria-prima utilizada para a fabricação de carbono ativo com fins industriais. Os carbonos ativos são materiais com boas propriedades para a adsorção (fixação de moléculas de uma substância na superfície de outra substância) tanto de gases como de líquidos. Por
Novos usos para polpa da fruta
isso são amplamente utilizados em muitos setores industriais, como indústrias farmacêuticas, alimentícias, de cigarros, têxteis e outras. O processo de obtenção do produto foi patenteado pelo Instituto Nacional de Carbono do Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC), de Madri, na Espanha, que realizou a pesquisa em parceria com um instituto suíço. O método desenvolvido permite a preparação em escala industrial de carvão ativo com distintas texturas porosas a baixo custo. Para produzir esse material a partir da polpa de maçã utiliza-se vapor de água como agente ativador, mais econômico e menos corrosivo que os agentes químicos empregados habitualmente para obtenção do produto a partir de resíduos lignocelulósicos, como carvão mineral e madeira. •
■ Celulose no plástico Um novo processo, que pode deixar o plástico até 3 mil vezes mais resistente, foi desenvolvido por pesquisadores da Faculdade de Ciência Ambiental e Florestal da Universidade de Nova York, nos Estados Unidos. A chave é misturar ao plástico nanocristais de celulose de materiais naturais, como madeira de reflorestamento, bagaço de laranja, de cana e resíduos de processamento de outros vegetais. Além de reforçar materiais plásticos, o novo material poderá ser usado em cerâmicas e aplicações biomédicas, como articulações artificiais e equipamentos médicos descartáveis. Para obter os nanocristais, o primeiro passo é purificar a celulose, com a remoção de cera e da lignina presentes na biomassa. A celulose é então misturada e moída sob
alta pressão, produzindo cristais com dimensões nanométricas (medidas equivalentes a 1 milímetro dividido por 1 milhão de vezes). •
■ Guardanapo com biossensor Detectar bactérias, vírus e outras substâncias perigosas em hospitais, aviões e outros lugares passíveis de contaminação poderá ser, em breve, tão simples como limpar uma superfície suja com papel-toalha. Um guardanapo biodegradável que funciona como um biossensor foi desenvolvido na Universidade Cornell, dos Estados Unidos. Nanofibras com elementos ativos compostos de biotina, uma parte da vitamina do complexo B, e uma proteína chamada estreptavidina que contêm anticorpos para vários agentes biológicos e químicos são a matéria-prima do produto. Quando localiza um material contaminado, o guardanapo, feito de uma trama de fibras de não-tecido (usado em toucas e aventais hospitalares) e alumínio, poderá avisar do risco mudando de cor ou produzindo outro efeito. •
PESQUISA FAPESP129 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ 63
Mamona em teto verde A resina de mamona (Ricinus communis) ganhou uma nova aplicação, desta vez como camada impermeabilizante do telhado verde, cobertura que melhora o comportamento térmico das construções, mantendo o ambiente aquecido no inverno e resfriado no verão. A aplicação da resina é feita sobre o forro da construção. Sobre ela é colocada uma geomanta com estrutura plástica que drena e conduz a água com rápido escoamento. No final, uma camada de terra comum ou vegetal serve de substrato para o plantio de espécies vegetais na cobertura. "A mamona é atóxica e ecologicamente cor-
■ Teste para anemia eqüina Um novo teste para detectar a anemia infecciosa eqüina, doença grave e incurável que atinge cavalos, jumentos, mulas e burros, é a nona patente internacional concedida à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O exame, desenvolvido pelo Instituto de Ciências Biológicas (ICB) e pela Escola de Veterinária da instituição, consiste na aplicação da proteína GP-90 no soro do animal. Ela é capaz de detectar em poucas horas a existência de anticorpos que comprovam se o animal tem a doença. O novo exame foi desenvolvido pela técnica do DNA recombinante. Por meio dela, uma bactéria passa a produzir um antígeno em grande quantidade,
reta, não agride no momento da aplicação e nem o futuro morador", diz o professor Francisco Vecchia, da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da Universidade de São Paulo, que coordenou a pesquisa da Cobertura Verde Leve (CVL)."0 telhado verde é capaz de retardar o escoamento e contribui para evitar enchentes", diz o pesquisador. O impermeabilizante à base de resina de mamona é uma das vertentes da pesquisa iniciada pelo professor Gilberto Chierice, do Instituto de Química de São Carlos, também da USP (veja revista Pesquisa FAPESP n°91). •
nesse caso, a proteína da camada externa do vírus que causa a anemia. Uma amostra do soro do animal é colocada em contato com a proteína, para verificar a existência de anticorpos contra o antígeno e comprovar se o animal é portador da doença. O teste Elisa, que funciona pela detecção de antígenos, é bastante utilizado para outros diagnósticos, mas
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Cobertura vegetal e camadas para drenagem
é a primeira vez que é usado para detectar a anemia eqüina. O professor Paulo César Peregrino, coordenador da pesquisa no ICB, conta que a próxima etapa será a autorização do Ministério da Agricultura, mas acrescenta que duas empresas mineiras, Viriontech e Quibasa, já se mostraram interessadas em comercializar o produto. As principais vantagens do
novo teste são a rapidez e a segurança, fundamentais para os criadores que precisam transportar eqüinos, já que o teste negativo é obrigatório para o trânsito de animais. •
■ Biocombustível no Itaim Paulista Uma nova mistura de biocombustível, que prevê a substituição de 30% de diesel mineral (do petróleo), a partir de outubro, por biodiesel, será colocada nos tanques de 1.800 dos mais de 7 mil ônibus da frota urbana da empresa Viação Itaim Paulista, que opera na cidade de São Paulo. A mistura B30, composta de biodiesel, diesel e álcool, foi desenvolvida em parceria entre o Instituto Nacional de Tecnologia (INT), do Ministério da Ciên-
vi LLiü í cia e Tecnologia, a BI00 Participações e a BR Distribuidora. A seleção da mistura de 30%, valor muito superior aos 2% determinados pelo governo, é resultado de experiências realizadas pelo Instituto de Tecnologia utilizando diferentes porcentuais de biodiesel. Periodicamente serão realizados testes laboratoriais e nos próprios veículos, para avaliar consumo, desempenho, emissões e durabilidade, além da qualidade do combustível. •
■ Ganhos na produção da CSN Inovações que otimizam a produção e garantem mais segurança no processo de fabricação do aço resultaram em ganhos de R$ 1,3 milhão por ano para a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). Para melhorar o desempenho do carro-torpedo que transporta gusa líquido em temperaturas de até 1.500 graus Celsius dos altos-fornos para os conversores, onde são transformados em aço (veja Pesquisa FAPESP n° 78 e n° 88), foram desenvolvidos materiais mais resistentes, à base de alumina e magnésio, utilizados no revestimento refratário. Com isso a quantidade de gusa transportada aumentou de 360 mil para 500 mil toneladas. As inovações são fruto de parceria entre a CSN e o Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos, um dos Centros de Pesquisa,
Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP, que tem a participação da Universidade Estadual Paulista de Araraquara e da Universidade Federal de São Carlos. "Foi implantada ainda uma tecnologia de termografia on-line, que permite avaliar em tempo real o perfil térmico do revestimento refratário evitando desgastes, além de aumentar a vida média dos equipamentos", diz Elson Longo, diretor do Centro de Materiais Cerâmicos. •
■ Bioinformática em Portugal A Scylla Bioinformática, de Campinas, fechou contrato com a empresa portuguesa Stab Vida, que desenvolve produtos na área de biologia molecular e de biotecnologia, para dar suporte bioinformático no seqüenciamento do genoma da bactéria Desulfovibrio gigas. As bactérias do gênero Desulfovibrio são redutoras de sulfato e estão envolvidas em processos
como biocorrosão e metabolismo de metais. Com base em estudos genéticos e bioquímicos, foram caracterizadas algumas propriedades dessa bactéria com potencial para aplicações nas áreas ambiental e farmacêutica. A identificação de novos genes poderá levar ao desenvolvimento de novos fármacos e tecnologias. No setor ambiental, os resultados do projeto poderão ser usados em processos de eliminação de metais de lixos contaminados. "O contrato abre novas perspectivas para a Scylla, empresa que surgiu como resultado dos projetos genoma e já está oferecendo serviços para fora do país", diz João Meidanis, diretor da empresa criada em 2002 por pesquisadores que participaram do seqüenciamento das bactérias Xylella fastidiosa e Xanthomonas citri. •
Biodiesel do sertão A semente do pinhão-manso {Jatropha curcas), arbusto que mede cerca de 2 a 3 metros de altura e pode alcançar até 5 metros ou mais em condições especiais, mostrou em testes produzir um óleo semelhante ao diesel extraído do petróleo, o que o torna um forte candidato a integrar o time de plantas oleaginosas que irão fazer parte do programa de combustível vegetal na região seca do Nordeste. Os ensaios com a planta que pertence à família das euforbiáceas, a mesma da mamona e da mandioca, foram realizados pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa)
Pinhão-manso: resistente a longas estiagens Semi-Árido, de Petrolina, Pernambuco. O regime irregular de chuvas do sertão nordestino confere ao pinhão-manso uma grande vantagem em relação às outras plantas oleaginosas. É a única com ciclo produtivo que se estende por mais de 40 anos. A mamona, que produz um óleo essencial
com uso em mais de 400 produtos da indústria química, precisa ser replantada a cada um ou dois anos, dependendo da quantidade de chuvas. Além de se adaptar em solos de pouca fertilidade, o arbusto tem elevada resistência a longas estiagens. •
PESQUISA FAPESP 129 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ 65
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TECNOLOGIA PECUÁRIA
Bem brasileiros Embrapa intensifica estudos com raças surgidas no país que formam um rico patrimônio genético MARCOS DE OLIVEIRA
ezenas de raças de cavalos, bovinos, ovelhas, cabras e suínos formadas ao longo de muitos anos no Brasil compõem uma riqueza pouco conhecida pela maioria dos brasileiros. São grupos de animais muitas vezes com antepassados vindos ainda no início da colonização, que se perpetuaram de forma aleatória no campo ou ainda dirigida empiricamente pelo homem - que podem ser considerados um tesouro genético. Eles possuem características como rusticidade e excelente adaptação ao ambiente em relação às raças comerciais mais comuns. Bovinos, como curraleiro e caracu, ou cavalos, como o pantaneiro, podem ser incluídos dentro da biodiversidade de animais brasileiros e são passíveis de uso em larga escala ou em cruzamentos com raças comerciais e ainda ser usados, no futuro, na produção de animais transgênicos, em que a transferência de material genético de uma raça para outra poderá trazer benefícios como maior maciez da carne ou resistência a doenças. Para proteger essas raças, fomentar o seu crescimento e livrá-las da extinção, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) está utilizando avançadas técnicas de caracterização genética, clonagem, e estabelecendo núcleos de conservação, para agrupar e estudar os animais. Na Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, em Brasília, unidade que coordena as pesquisas, também estão conservados em botijões de nitrogênio líquido, a - 196°C, 56 mil doses de sêmen, além de cerca de 200 embriões de raças naturalizadas. "A formação dessas raças aconteceu a partir de raças ibéricas, da Espanha e de Portugal, principalmente sob o efeito da seleção natural, em que os animais mais aptos e resistentes foram se perpetuando por meio de cruzamentos em nichos específicos", PESQUISA FAPESP 129 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ 67
Crioulo laqeano: carne macia e selo de certificação de origem na região mais fria do país
diz o pesquisador Arthur Mariante, coordenador do projeto Conservação e Uso de Recursos Genéticos Animais da Embrapa. Com o passar do tempo, os animais foram se diferenciando nas características fenotípicas, aquelas referentes aos traços físicos herdados dos pais e determinadas pelo ambiente. Também pesaram para a formação das raças fatores como clima, parasitas, dieta, doenças e as avaliações e escolhas do homem, como ter ou não animais com chifres e aptidão para leite, por exemplo. Para as características herdadas não se perderem é fundamental que os acasalamentos sejam feitos entre indivíduos da mesma raça. Para garantir a pureza e verificar as origens de cada uma e o parentesco entre as raças, vários estudos genéticos foram ou estão sendo realizados. Uma visão geral desses estudos está presente, de forma bem ilustrada, na segunda edição do livro Animais do descobrimento, lançado em agosto e editado pela Embrapa, com autoria de Mariante e da professora Neusa Cavalcante, da Universidade de Brasília (UnB). 68 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 129
s conclusões de alguns estudos de análises genéticas feitas em bovinos de raças naturalizadas indicaram que todas são originárias das raças ibéricas. Apesar desse passado semelhante, as raças brasileiras de bovinos podem ser consideradas geneticamente distintas enquanto grupamentos raciais. Também se constatou uma grande variabilidade genética dentro da maioria das raças, fator que demonstra o potencial para expansão e cruzamentos entre elas. Os pesquisadores estão estudando também a carne das raças formadas no Brasil. Muitas delas possuem carnes mais macias que a nelore, a principal raça de corte do país que domina grande parte do rebanho nacional. A nelore pertence ao grupamento de animais zebuínos, originários da índia, bem adaptados ao clima tropical, e facilmente identificados pelo cupim, um tipo de saliência característica no dorso do animal. A maior maciez da carne das raças ibéricas deve-se ao fato de apresentarem freqüências alélicas - agrupamentos de genes que se repetem ao longo das gera-
ções - diferentes das apresentadas por raças zebuínas, em relação a genes associados a características de qualidade de carne que são estudadas pela Embrapa. Quando se fala em maior maciez da carne fala-se também em melhor qualidade e maior valor agregado ao produto. "Os criadores da raça crioulo lageano estão empenhados em desenvolver uma estratégia que permita colocar no mercado a carne macia desse gado, com selo de certificação de origem controlada como é feito em Portugal com algumas de suas raças nativas", diz Mariante. Originária da região mais fria do país, onde estão situadas as cidades de Lages, daí o nome da raça, e São Joaquim, a crioulo lageano descende provavelmente de bovinos hamíticos, de chifres longos, oriundos da região norte-africana, introduzidos na península Ibérica e trazidos para cá por portugueses e espanhóis. "Ele se adaptou muito bem na região. Lá o nelore não agüenta o frio e o charolês (um gado europeu) não é rústico e não suporta as pastagens pobres do lugar", diz Mariante. É uma das poucas raças naturalizadas que não correm perigo de extinção, com plantei de mais mil animais.
Vaca curraleiro (à esquerda): rusticidade no semi-árido. Acima, touro caracu, livre da extinção
Porém a caracterização genética por marcadores moleculares indicou que a população jovem desse animal apresenta maior similaridade genética, o que pode ser, provavelmente, relacionado à consangüinidade, com cruzamentos muito próximos entre parentes. A raça bovina nacional mais presente na produção de carne e já livre da extinção é a caracu. Mais conhecida como uma marca de cerveja, a caracu é criada em todo o centro-sul brasileiro, de forma comercial, principalmente nos estados do Paraná, São Paulo e Minas Gerais. Ela esteve ameaçada até 1980, mas um trabalho pioneiro desenvolvido pelos pesquisadores José Benedito Trovo e Alexander Razook, do Instituto de Zootecnia de São Paulo (IZ), em Sertãozinho, e dos pesquisadores do Instituto Agronômico do Paraná (Iapar) salvou a raça caracu da extinção e da miscigenação. A miscigenação controlada e sustentável, no entanto, é um dos fatores de sucesso e de perpetuação dessa raça que serve como exemplo para outras. Os pecuaristas perceberam as vantagens da heterose, o chamado choque de sangue, em cruzar animais caracus com zebuí-
nos, resultando em animais mais pesados, com carne mais macia e animais mais rústicos. "O interesse dos criadores pela caracu foi tamanho que, há alguns anos, chegou a existir uma fila de espera por sêmen dessa raça nas Centrais de Inseminação Artificial", diz Mariante. Pé-duro resistente - Além da caracu e da lageano, outras quatro raças brasileiras de bovinos estão sendo estudadas pela Embrapa e por outras instituições de pesquisa do país. A primeira é a curraleiro, provavelmente a primeira raça surgida no Brasil que se adaptou a diversos ecossistemas do país. Talvez por isso seja chamada também de pé-duro. "Ela está presente e é indicada principalmente para a região do semi-árido, porque é uma raça de animais pequenos, de baixo peso, extremamente rústicos, que vivem com pouca alimentação e são resistentes a doenças e a parasitas", diz Mariante. "A fêmea curraleiro adulta atinge 250 quilos e é saudável, enquanto a fêmea nelore, com 250 quilos, está subnutrida. Além disso, nas condições do semi-árido, as fêmeas curraleiros produzem um bezerro a cada ano e, em alguns
casos, continuam produzindo bezerros mesmo após atingirem 20 anos de idade. É a raça que melhor se adapta à caatinga nordestina, embora tenha se originado de raças européias." O bovino curraleiro é muito parecido com a raça mirandesa de Portugal. "Estamos elaborando um projeto internacional com os portugueses que vai estudar mais a fundo as duas raças. Se concluirmos que são muito semelhantes, poderemos sondar a possibilidade de trazer sangue novo ou mesmo levar para lá." A carne do gado curraleiro é, entre todas as raças antigas, segundo especialistas, a mais saborosa e macia, segundo os pesquisadores. Essa afirmativa será testada em painéis de degustação a ser realizados pela Embrapa. Uma das raças de bovinos mais ameaçadas é a pantaneiro, de aspecto físico muito parecido com a curraleiro. Os estudos constataram maior presença de genes zebuínos nessa raça. A introdução de zebus a partir do século XX, principalmente o nelore na região do Pantanal, e sua boa adaptabilidade resultaram em cruzamentos ou desinteresse na criação, levando à quase perda da rusticidado pantaneiro, um gado que vive bem em PESQUISA FAPESP 129 • NOVEMBRO DE 2006 ■ 69
Ovelha crioulo M lanado: originária i de raças ibéricas e com lã indicada | para peças fl^É de artesanato
áreas alagadiças e possui taxa de natalidade imbatível na região. A esperança está por conta do trabalho da Embrapa Pantanal, instalada em Corumbá, Mato Grosso do Sul. O programa de conservação da raça, existente desde os anos 1980, detectou, por meio de análise da freqüência alélica, que são agrupamentos de genes que se repetem ao longo das gerações, que os descendentes atuais da pantaneiro possuem valores de diversidade genética superiores aos adultos com menos interferência de genes zebuínos. Alguns animais pantaneiros estudados também apresentaram introdução de sangue de mocho nacional, uma raça que no final do século XIX existia em grande parte do país, principalmente na região de Goiás, embora a sua criação tenha se iniciado em São Paulo. A mocho nacional é considerada uma caracu sem chifres, embora apresente diferenças genéticas. Para esse tipo de diferenciação entre raças é importante o uso de uma ferramenta para conservação animal que está sendo muito utilizada. É a caracterização genética (marcadores moleculares do tipo microssatélite) que utiliza o DNA, extraído do sangue, do 70 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 129
sêmen ou até mesmo de pêlos dos animais. Os resultados obtidos têm servido para nortear a escolha de doadores de sêmen, óvulos ou até mesmo para eliminar material genético de animais que tenham sido incluídos no Banco de Germoplasma, em BrasíJ lia, onde está acondicionado o material genético, pelo seu fenótipo, mas que a caracterização apontou para uma introdução de outras raças. Outra técnica que começa a ser usada é a clonagem de animais. Os primeiros dois clones bovinos de uma raça naturalizada são duas bezerrinhas chamadas Porã e Potira, nascidas em 2005. Elas são uma esperança para salvar a raça Junqueira da extinção. Hoje a raça conta com cerca de cem indivíduos. Sua história começa no interior paulista entre os séculos XVIII e XIX. As duas irmãs nasceram a partir de um pedaço da orelha de uma fêmea Junqueira conservada nos currais do Campo Experimental Sucupira, da Embrapa, em Brasília. Porã e Potira nasceram de duas vacas de aluguel, das 35 que receberam embriões.
O projeto foi desenvolvido pela equipe de reprodução animal, coordenada pelo pesquisador Rodolfo Rumpf, da Embrapa, e teve a participação de estudantes de pós-graduação da UnB. clonagem é uma ferramenta que podemos usar, mas ela é restritiva em trabalhos de conservação animal, porque reduz a variabilidade genética. A idéia é que esses clones recebam, futuramente, sêmen de diferentes touros da raça Junqueira para que os filhotes apresentem diferenças genéticas." Para Mariante, quando as técnicas transgênicas estiverem mais avançadas em animais, poderão ser usadas no melhoramento de animais. "Aí, certamente, nosso Banco de Germoplasma será muito procurado. Consideramos esse banco como um legado para as gerações futuras." Enquanto as técnicas biotecnológicas mais avançadas não estão disponíveis, é preciso preservar as raças, principalmente nos locais em que elas estão mais aclimatadas. É o caso da mais recente identificação de uma raça natura-
Variedade de cores da pelagem da crioulo lanado. Porco nilo: presunto de futuro
lizada, feita em 2005, no Maranhão, que já possui um núcleo de conservação na cidade de Pinheiro. Alertado por dois professores da Universidade Estadual do Maranhão (Uema), Francisco Carneiro Lima e Osvaldo Serra, Mariante foi até a Baixada Maranhense, região situada ao norte da capital São Luís, e confirmou a existência do cavalo baixadeiro. Por suas características fenotípicas e comportamentais, além das informações dos dois professores e dos usuários do cavalo na cidade de Pinheiro, Mariante incluiu essa raça entre aquelas estudadas e conservadas pela Embrapa. Tolerante à anemia - Outro cavalo, o pantaneiro, representa um exemplo claro dos benefícios dessas raças. Ele é tolerante à anemia infecciosa eqüina porque mesmo infectado pelo vírus não fica doente e não apresenta os sintomas da doença. Ele é o único animal que agüenta o solo pantaneiro, que em grande parte do tempo fica alagado. "Por isso, formamos um núcleo de conservação do cavalo pantaneiro, no Pantanal. É uma raça que possui mais de cem anos, formada por cavalos com cascos
mais resistentes à umidade, por viverem constantemente em áreas alagadiças." Nas ovelhas, a estrela das raças brasileiras é a crioulo lanado, também originada de espécimes ibéricos. Ela possui lã áspera, longa e naturalmente colorida, alternando do branco ao preto, com todas as variações de cinza e bege. Essa lã, mais grossa, não é tão indicada para fazer roupas, mas tem sido utilizada em artesanato, na produção de tapetes e pelegos (para uso sobre a sela de montaria). Um programa da Fundação Gaúcha do Trabalho chegou a treinar cerca de 300 jovens, que aprenderam a fiar e a tecer, utilizando esse tipo de lã. Esse fato aumentou a demanda e também o número de criadores que hoje superam as três dezenas, distribuídos nos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Lã semelhante, produzida por uma raça nativa da Inglaterra, chega a atingir o preço de cerca de R$ 20 o quilo. Uma das mais curiosas esperanças nessa área está no porco da raça nilo, também conhecida como nilo-canastra, encontrado nas regiões Sul e Sudeste. São rústicos e bons para pastoreio. Suas características físicas são muito seme-
lhantes às do porco ibérico, presente em Portugal e na Espanha, que produz o famoso presunto Pata Negra, com preços de até € 100 o quilo. O segredo do sabor especial desse presunto está na fruta do carvalho, chamada de bolota em Portugal, que é facilmente identificada nos desenhos animados com os esquilos Tico e Teco e, mais recentemente, na animação de A era do gelo, em que um esquilo pré-histórico faz de tudo para levála para casa. "Em Portugal, o porco ibérico é criado com uma ração que não o deixa ultrapassar os 100 quilos de peso vivo no momento em que as bolotas estejam prontas para o consumo. A partir daí, em um período que varia entre 60 e 90 dias, ganham cerca de 60 quilos, atingindo 160 quilos, que é considerado o peso ideal para o abate. O resultado é um presunto com pouca gordura e com o sabor diferenciado, conferido pela bolota, que o tornou mundialmente conhecido." O porco nilo entra na história porque, de todas as raças naturalizadas de suínos, é a que mais se assemelha aos porcos ibéricos. Criadores da Região Sul, principalmente de Santa Catarina, relatam que porcos de raças naturalizadas comiam muito pinhão, da árvore araucária, e poderia ser criado um sistema de produção semelhante ao do porco ibérico, onde a bolota seria substituída por essa semente. "É preciso que se avalie se o pinhão confere algum sabor característico ao presunto", diz Mariante. Para isso precisamos arranjar parceiros para fazer esse experimento. A espécie suína, aliás, é a mais ameaçada, porque a criação comercial hoje se baseia em granjas com raças comerciais, para produção de carne, em que os porcos são criados confinados, sem ir ao pasto, enquanto as nove raças naturalizadas são todas para produção de banha. Mas existe uma tendência, principalmente na Europa, de os consumidores se preocuparem com o bem-estar do animal. Esse bem-estar significa que eles devem ficar longe do confinamento e criados soltos, pastando naturalmente num campo, como são, de uma maneira geral, criadas todas as raças naturalizadas no Brasil. "Essa preocupação com o bem-estar animal abre uma grande perspectiva para as raças brasileiras, porque os importadores passarão a ser mais exigentes para atender à demanda dos consumidores." • PESQUISA FAPESP 129 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ 71
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TECNOLOGIA BIOQUÍMICA
Própolis "a câncer Compostos sintéticos inspirados na resina de abelhas são eficazes no tratamento de tumores YURI VASCONCELOS
capacidade da própolis, uma resina produzida pelas abelhas, em vedar e esterilizar colméias já é bem conhecida da ciência. Vários estudos também apontam que a substância tem poder antisséptico, cicatrizante, antimicrobiano, antiinflamatório e antioxidante, entre outros. Ciente disso, uma equipe de pesquisadores brasileiros, liderados pelo químico cubano José Agustín Pablo Quincoces Suárez, professor da Universidade Bandeirante de São Paulo (Uniban), sintetizou em laboratório compostos químicos semelhantes aos encontrados na própolis com o objetivo de estudá-los e, no futuro, usá-los na formulação de medicamentos. A pesquisa, iniciada há sete anos, comprovou ser promissora e os primeiros resultados começam a aparecer. Uma família de compostos mostrou-se altamente eficaz no tratamento de células cancerígenas humanas em testes in vitro e com animais de laboratório. "Os resultados são animadores e mostram que estamos no caminho certo. Já depositamos duas patentes referentes aos métodos de obtenção das substâncias, aos compostos em si e suas aplicações", destaca Quincoces. Chegar a esse estágio da pesquisa, no entanto, não foi nada fácil. O primeiro desafio foi exatamente conseguir produzir compostos similares aos existentes na própolis. Para isso, os pesquisadores usaram como matéria-prima insumos químicos empregados pelas indústrias de alimentos e de fármacos. Após muita experimentação, cinco famílias de compostos - batizadas pelas letras HB, L, Q, V e HMF - deram sinais de serem promissoras. Mas cabe uma pergunta: se essas substâncias são encontradas na naturePESQUISA FAPESP 129 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ 73
za, por que sintetizá-las em laboratório? A resposta é simples. Como esses compostos estão presentes em concentrações muito baixas na própolis, da ordem de microgramas ou miligramas, eles seriam insuficientes para a realização de estudos farmacológicos e, dependendo dos resultados, para a produção de medicamentos. Além disso, ao serem produzidas em laboratório, essas substâncias podem ter suas propriedades melhoradas por meio de técnicas de modelagem computacional. "Em alguns casos, alteramos a estrutura original delas para chegar a uma molécula mais eficiente, seja no aumento de sua atividade biológica ou na redução de sua toxicidade", explica a farmacêutica Daniela Gonçales Rando, pesquisadora do grupo na Uniban. O passo seguinte depois da síntese em laboratório foi iniciar os testes com os diferentes compostos a fim de aferir suas atividades terapêuticas. Para isso, o grupo estabeleceu parceria com diversas instituições de pesquisa no Brasil e no exterior. Os primeiros ensaios com a família de compostos HB tiveram início em 2001 no Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas (CPQBA) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "Foram realizados, com sucesso, testes in vitro antitumorais e antimicrobianos e testes toxicológicos in vivo, em animais. No ano seguinte, pesquisadores do Laboratório de Imunologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) começaram a fazer ensaios antitumorais com compostos da família V", relata Quincoces, que
é coordenador do Laboratório de Síntese Orgânica da Uniban. Naquele mesmo ano, o imunologista Durvanei Augusto Maria, do Instituto Butantan, em São Paulo, uniu-se ao grupo e começou a realizar uma bateria de testes antitumorais e de toxicidade de compostos da família HB. Esses testes mostraram que a substância foi capaz de impedir a progressão de tumores de um tipo de melanoma, um tipo de câncer de pele, em camundongos. boa notícia é que os resultados foram positivos mesmo quando a dose injetada foi em quantidade bem inferior à utilizada por drogas antitumorais disponíveis no mercado. Outro aspecto foi que a substância inibiu a ocorrência de metástase. "Temos evidências, ainda não comprovadas, de que o composto induz a morte celular por apoptose, o chamado 'suicídio celular'", diz Quincoces. "Além disso, percebemos que as células cancerígenas foram eliminadas sem dano às células sadias, ao contrário do que ocorre com a maioria dos medicamentos para tratamento de câncer." Esses fatos foram comprovados por meio de estudos histopatológicos (análise de lesões) de órgãos e tecidos realizados pelo professor Paulo Pardi, da Uniban. Outra linha da pesquisa é conduzida pela biomédica Clizete Sbravate Martins, pesquisadora independente e excoordenadora do curso de biomedicina na Uniban. Ela se encarregou dos testes antiparasitários com os compostos fenólicos da família HB, que começaram a ser executados nos laboratórios de pes-
f
7\ OS PROJETOS 1. Síntese de heterociclos prei lilados a partir de produtos naturais 2. Propriedades antiparasitái ias da 1,5-bis (4-hidroxi-3-metoxi- fenil)derivados. 3. Propriedades antitumorais da 1,5-bis (4-hidroxi-3-metoxi-fenil)penta-1,4-dien-3-ona e seus derivados. MODALIDADE
1. Linha Regular de Auxílio à Pesquisa
74 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 129
2. Pr< igrama Prop 'iedade 3. Pn jgrama Prop ■iedade
de Apoio à Intelectual (Papi) de Apoio à Intelectual (Papi)
COORDENADOR JOSé AGUSTíN QUINCOCES SUáREZ
INVESTIMENTO
1. R$ 95.804,46 e IK$ ?? 3R0 94 (FAPFSPI 2. R$ 9.500,00 (FAPESP) 3. R$ 58.261,39 (FAPESP)
- Uniban
quisa da Uniban e posteriormente no Departamento de Parasitologia do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP. "O parasita testado foi o causador da leishmaniose, uma doença grave com importante ocorrência em países pobres. Realizamos ensaios in vitro e in vivo e constatamos um efeito bastante acentuado do composto. Enquanto nos camundongos infectados não tratados existiu um aumento de 80% do tamanho da lesão cutânea - uma das manifestações da doença -, nos animais tratados não foi registrada progressão da lesão", diz a pesquisadora. Esses resultados são importantes porque os únicos medicamentos aprovados para o tratamento da leishmaniose são tóxicos. Testes antitumorais - O trabalho também conta com a cooperação de pesquisadores da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), responsáveis pelos ensaios in vivo relativos às propriedades analgésicas e antiinflamatórias dos compostos. Nessa vertente da pesquisa excelentes resultados estão sendo observados. No Instituto Ludwig Boltzmann de Oncologia Clínica da Universidade de Viena, na Áustria, o professor Gerhard Hamilton desenvolve testes antitumorais com os compostos das famílias L, Q e HMF. "Eles já obtiveram ótimos resultados em estudos in vitro para vários tipos de tumor, com cânceres de cabeça e de pâncreas, que são fatais", afirma Quincoces. Apesar dos bons resultados obtidos até agora, um longo caminho ainda precisa ser percorrido para que a substância se transforme num medicamento. A equipe precisa concluir os estudos farmacocinéticos, relativos à absorção do composto pelo organismo e à forma de administração, que são estudos de formulação dirigida, desvendar o mecanismo exato de ação do composto pelo organismo e realizar testes em outras espécies animais. O grupo estima que dentro de dois ou três anos essas etapas serão concluídas e poderão ser iniciados os testes em humanos, outro estágio fundamental da pesquisa. "Estamos em conversações com um fabricante nacional de medicamentos e com um instituto de pesquisa, cujos nomes não podemos revelar, que se interessaram pela realização de testes clínicos e pela produção do medicamento", diz Quincoces. •
O TECNOLOGIA ODONTOLOGIA
Respirar sem barreiras Placa intra-oral é uma alternativa para evitar o ronco e melhorar o sono
e a musculatura da região da úvula - aquela bolinha no fundo da garganta, conhecida como campainha - fica mais flácida e as amígdalas maiores, a respiração durante o sono se complica. O ar tem dificuldade de entrar e, quando a pessoa força a respiração, o resultado é aquele barulho desagradável que todos conhecem, o ronco. Além de incomodar quem está por perto, ele é sinal de má qualidade de sono. Quando ocorre o esforço respiratório e o ar não passa, porque a via aérea encontra-se fechada, sobrevém a apnéia, eventos que duram mais de 10 segundos, sendo considerados anormais ao ultrapassarem a freqüência de cinco ocorrências por hora. "Roncar é, no mínimo, sintoma de apnéia do sono", explica o odontólogo Eduardo Rollo Duarte. Em seu projeto de doutorado na Universidade de São Paulo (USP), ele desenvolveu um tipo de placa intraoral para ser colocada no interior da boca à noite e reduzir a apnéia e o ronco. Os distúrbios do sono causam uma série de problemas como sonolência diurna, dificuldade de memorização e dor de cabeça. E, muitas vezes, uma apnéia mais amena pode ser facilmente controlada. A obstrução na região da faringe pode ser provocada por diversos fatores. Desde anormalidades anatômicas e fatores genéticos, o hipotireoidismo, o envelhecimento, que deixa a musculatura flácida, a obesidade, até o consumo de cigarro, bebida alcoólica e sedativos que deixam a musculatura excessivamente relaxada, impedindo a passagem do ar.
A função da placa intra-oral, feita à base de resina acrílica, é desobstruir esse caminho. Depois de produzida, ela foi testada em 15 pacientes com a idade média de 49 anos que apresentavam apnéia moderada e leve (de 5 a 30 interrupções por hora de sono). Antes do tratamento, os pacientes fizeram uma polissonografia, exame para uma avaliação completa do sono dos pacientes, realizada na Clí-
O PROJETO Tratamento da síndrome de apnéia e hipopnéia obstrutiva do sono e do ronco com placa reposicionadora da mandíbula MODALIDADE
Linha Regular de Auxílio à Pesquisa COORDENADORA MARIA LUIZA MOREIRA ARANTES FRIGERIO - USP INVESTIMENTO
R$ 11.841,25 (FAPESP)
nica de Distúrbios do Sono, em Bauru. Novo teste foi repetido um ano após o uso da placa e mostrou que 93% dos pacientes tiveram uma redução de 77%, em média, na freqüência de apnéia. Radiografias digitalizadas também indicaram aumento nas dimensões da via aérea superior e os próprios pacientes relataram que a sonolência diurna diminuiu. "Uma das vantagens do aparelho é controlar o problema, evitando uma intervenção cirúrgica", diz a professora da Faculdade de Odontologia da USP, Maria Luiza Arantes Frigerio, orientadora de Duarte. O uso de placas intra-orais já é uma prática bem difundida no exterior. Por volta da década de 1980, as primeiras placas produzidas nos Estados Unidos não permitiam ajustes e, por isso, podiam provocar problemas na articulação mandibular. Hoje a agência responsável pela análise e liberação de medicamentos naquele país, a FDA na sigla em inglês, já possui cerca de 20 tipos de placa aprovados para uso. A primeira brasileira vai ficar mais barata que a importada. A simplicidade do design e a resina acrílica permitem que ela seja feita por um cirurgião-dentista especialista em prótese dental. Outra vantagem é que, por ser ajustável, como outros modelos mais modernos, a placa tem uma chave que controla a abertura, ou o avanço da mandíbula. Apesar das facilidades, Duarte enfatiza que não faz sentido pensar no material desenvolvido de maneira isolada. "O uso da placa só é eficaz quando associado a um tratamento do distúrbio do sono, que deve ser realizado por uma equipe multidisciplinar formada por médicos e dentistas da área de sono." • IRACEMA CORSO PESQUISA FAPESP 129 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ 75
% TECNOLOGIA ENGENHARIA BIOMEDICA
Luze imagem Sistema desenvolvido por pequena empresa permite realizar vários exames de pele em um único ambiente DlNORAH ERENO
entro de um único ambiente padronizado, formado por uma câmera acoplada a microscópio para visualização da pele, conjunto chamado de videodermatoscópio, computador, iluminação adequada e um minivestiário, é possível realizar vários exames, como avaliações periódicas de lesões suspeitas de pele, acompanhar a evolução do tratamento de vitiligo e icterícia, além de tirar medidas do crânio e da face, necessárias nos casos de deformações. Todos esses exames podem ser feitos pelo sistema Unidade de Biometria e Mapeamento Corporal (Biomap), desenvolvido pela empresa Atonus, da cidade paulista de São José dos Campos. O sistema para avaliação de lesão de pele foi instalado este ano em uma clínica de cirurgia plástica do município e tem sido utilizado para examinar os pacientes. Duas outras unidades serão colocadas em um laboratório no Pará, parceiro de longa data da empresa, e no Instituto de Oncologia do Vale, de São José dos Campos, que pretende fazer, durante o próximo verão, uma campanha nas praias de prevenção do câncer de pele. 76 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 129
"As lesões de pele são classificadas com base em características como diâmetro, assimetria e irregularidade das bordas, o que permite uma avaliação mais objetiva", diz Antônio Francisco Júnior, sócio-diretor da Atonus, responsável pelo desenvolvimento do sistema que permite acompanhar o aparecimento e o crescimento de manchas na pele ao longo do tempo pela justaposição de imagens captadas em datas diferentes. "Não existe um procedimento instituído no Brasil para documentação fotográfica da pele", diz o pesquisador. Isso significa que os métodos em uso atualmente não levam em conta parâmetros como iluminação e posicionamento do paciente para que a mesma lesão possa ser analisada hoje, daqui a dois meses ou daqui a dois anos. "O exame tem a vantagem de permitir o diagnóstico precoce de melanoma, um tipo de câncer de pele", diz Antônio Francisco. Tanto a cura para o melanoma como o aumento de sobrevida do paciente dependem da detecção precoce da doença. Sistema computadorizado - O Biomap não se resume apenas a uma microcâmera digital que filma a lesão. Ele engloba a iluminação, local demarcado onde o paciente deve se posicionar para a captação de imagens e técnico treina-
do para realizar a aquisição, o armazenamento e a transferência de dados e imagens da epiderme humana por meio de um sistema computadorizado. Funciona de forma semelhante a um laboratório que se encarrega da realização dos exames e da emissão dos laudos, analisados posteriormente por um médico especialista. Antes de desenvolver o videodermatoscópio, que teve apoio da FAPESP por meio do Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe), Antônio Francisco já havia desenvolvido um sistema automático para análise de sêmen humano. Na verdade, o interesse do pesquisador, engenheiro eletrônico de formação, pelo desenvolvimento de equipamentos para aplicação na área biomédica teve forte influência das suas relações familiares. Além do pai médico, três dos seus quatro irmãos também seguiram a mesma carreira. Antônio Francisco trabalhava no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) desde 1982, projetando sistemas eletrônicos e de computação, quando desenvolveu o sistema de análise de sêmen. "Como na época não existiam placas de captura de imagens no Brasil, pedi para o pessoal de desenvolvimento criar uma placa (circuito eletrônico) para ler a partir de uma câmera de vídeo, conectada
a uma placa de armazenamento de imagem de satélite com o objetivo de pegar imagem do sêmen humano no microscópio", conta. O primeiro produto desenvolvido foi vendido para uma clínica de fertilidade em São Paulo. Visão computacional - O interesse pela área de processamento de imagem aumentou após essa primeira experiência bem-sucedida. No final da década de 1980, o pesquisador conseguiu uma bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para trabalhar em um laboratório de robótica na Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos. De lá seguiu para o Royal Institute of Technology, em Estocolmo, na Suécia, onde ganhou uma bolsa do governo sueco para fazer o doutorado na área de visão computacional. Voltou para o Brasil em 1993 e criou a Atonus em 1995, abrigada na Fundação Polovale, em São José dos Campos, hoje extinta. "A idéia inicial era trabalhar com sistemas de análise de imagens", diz Antônio Francisco. Por um período, o pesquisador cumpriu dupla jornada. Só em 1999, quando teve aprovado o projeto Pipe para o desenvolvimento de um software de análise de lesões de pele, deixou o Inpe para dedicar-se em tempo integral à empresa.
Câmera acoplada a microscópio avalia lesões de pele
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Cromossomos são colocados em pares automaticamente pelo sistema, que também avalia lesões de pele
Mesmo após vender dezenas de unidades do videodermatoscópio, Antônio Francisco avaliou que não teve o retorno esperado, porque o equipamento era utilizado apenas por médicos especialistas. A saída foi encontrar um novo modelo de negócios para o mesmo produto. Em vez de atingir apenas 2% do mercado, representado pelo médico especialista que faz o exame com o equipamento, o objetivo era chegar a 30%. Foi necessário repensar o produto e mudar o foco. "Uma pessoa treinada poderia operar o videodermatoscópio, em vez do médico, que analisaria os dados obtidos pelo sistema", diz Antônio Francisco. O novo modelo de negócio foi aprovado pelo Programa de Apoio à Pesquisa em Empresas (Pappe), uma parceria entre a FAPESP e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), do Ministério da Ciência e Tecnologia, para levar ao mercado os resultados dos projetos Pipe.
Novos sensores - A mudança no foco do produto resultou em modificações conceituais e deu origem ao sistema Biomap. O preço, de R$ 38 mil, é uma das vantagens do sistema em relação a um videodermatoscópio com software importado da Alemanha, que custa R$ 60 mil. Outra vantagem é que ele permite que outras funções, sensores, componentes e softwares possam ser agregados ao sistema, utilizando a mesma unidade, o mesmo treinamento, acondicionamento físico e estrutura financeira. Para a avaliação do vitiligo e da icterícia, as mudanças contemplam inclusive a fonte de iluminação para a câmera de vídeo, que deve ser ultravioleta para identificar a densidade de mancha na pele antes, durante e depois do tratamento. O módulo para exame de deformação craniofacial deverá ser desenvolvido em parceria com o Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da
OS PROJETOS Unidade de Biometria e Captura Eletrônica de L esões
Um sisi ema computacional para análise de cromossomos humanos MODALIDADE
MODALIDADE
Programa de Apoio à Pesquisa em Empresas (Pappe) COORDENADOR ANTôNIO FRANCISCO JúNIOR
- Atonus
INVESTIMENTO
R$ 476.160,00 (Finep)
78 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 129
Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe) COORDENADOR ANTôNIO FRANCISCO JúNIOR INVESTIMENTO
R$ 106.447,80 (FAPESP
- Atonus
Universidade de São Paulo, de Bauru, interior de São Paulo, conhecido como Centrinho. As medições de diversos parâmetros de forma, feitas manualmente, serão realizadas pelo sistema, em todas as etapas do tratamento, utilizando o mesmo princípio desenvolvido para a análise de lesões de pele, com algumas modificações. Outras funções que também estão previstas para fazer parte do sistema são a análise de marcha e a medição de partes do corpo humano, necessárias, por exemplo, para a padronização de modelagem de roupas. Quase ao mesmo tempo que iniciou o projeto para avaliação de lesões de pele, Antônio Francisco começou a trabalhar no desenvolvimento do sistema para análise do cromossomo humano, também apoiado pelo Pipe. Para a realização do exame é necessário colher amostra biológica, como o sangue do paciente. O sistema faz automaticamente o pareamento, ou seja, a geração da representação dos cromossomos em pares, conhecida como cariótipo, e a avaliação citogenética pela técnica de hibridização in situ fluorescente. A técnica faz uso de "sondas cromossômicas" luminescentes que se encaixam em parte da cadeia do DNA do cromossomo emitindo luz em certos comprimentos de onda. Com esse exame, é possível determinar algumas doenças e também o sexo de um embrião. Hoje o sistema já se encontra em vários laboratórios de referência no Brasil, entre os quais na Universidade Federal de São Paulo e no Centrinho de Bauru. •
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O TECNOLOGIA ENGENHARIA
Socorro técnico Há sete anos, programa do IPT atende micro e pequenas empresas
80 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP129
m dos graves problemas enfrentados por micro e pequenas empresas de base tecnológica é a falta de recursos para investir no desenvolvimento de novos produtos e no aprimoramento de seus processos. Esses obstáculos, que impedem o crescimento dos negócios e a expansão empresarial, recebem, há sete anos, a atenção do Projeto Unidades Móveis (Prumo) do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) de São Paulo. O programa, uma espécie de prontosocorro tecnológico, leva às indústrias um laboratório móvel, dentro de um furgão, com instrumentos e equipamentos para testes, análises e realização de experimentos úteis para as empresas. Operadas por um especialista da área e um assistente, as unidades móveis identificam e implementam soluções no local para problemas relacionados à matéria-prima, ao processo de produção e até ao produto acabado. Desde que foi criado, em março de 1999, o Prumo já atendeu cerca de 1.600 empresas. Essa transferência de conhecimento tecnológico, destaca o engenheiro Vicente Mazzarella, do IPT, criador e coorde-
nador-geral do Prumo, trouxe muitos benefícios para o parque industrial brasileiro. "Além de melhorar a qualidade dos produtos e reduzir custos de fabricação, há casos de empresas conseguirem aumentar a produtividade em até 200%", diz ele. O projeto atende empresas de cinco setores industriais: plástico, tratamento de superfícies, couro e calçados, borracha e madeiras e móveis. Fruto de uma parceria entre o IPT e o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas de São Paulo (Sebrae-SP), o programa tem o apoio da FAPESP, que financiou a aquisição de 10 das 13 unidades móveis do projeto. As outras três foram compradas com recursos da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). O Sebrae é responsável por subsidiar 80% de cada serviço prestado, que custa R$ 3 mil. Os 20% restantes, equivalentes a R$ 600, são a contrapartida das empresas. Mas, por meio de uma parceria feita com a Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia de São Paulo, o primeiro atendimento é totalmente gratuito e a contrapartida paga pelo governo do estado. "As empresas só pagam a contrapartida se requisitarem outras vezes o serviço", diz Mazzarella. "Com a estrutura atual do programa, é possível atender 120 empresas por mês."
A metodologia do projeto é relativamente simples. Depois que o empresário requisita o serviço, um especialista visita a fábrica e faz o diagnóstico do problema. Uma semana depois, em média, os técnicos vão à empresa com a unidade móvel para realizar o atendimento. "Nessa visita, que pode durar até dois dias, eles solucionam problemas técnicos relacionados à formulação do produto, à eficiência no processo, à operação de equipamentos ou à escolha da matéria-prima, entre outros", explica o engenheiro Silas Derenzo, coordenador dos setores de plástico e borracha. Mercado de plástico - As indústrias transformadoras de plástico foram as primeiras a contar com os serviços do Prumo e são aquelas que mais requisitam os técnicos do IPT. Somente em 2005 foram feitos 325 atendimentos quase a metade do total do ano, que foi de 670. As cinco unidades móveis aparelhadas para atender as empresas desse mercado contam com equipamentos capazes de realizar 13 diferentes tipos de ensaios e testes. Em razão do elevado custo, muitos desses testes são inacessíveis para indústrias de menor porte. No setor de transformação de borracha, outro com forte demanda (144 empresas em 2005), o serviço pro-
cura detectar problemas como mistura de matérias-primas, formulações etc. Foi para tentar recuperar o refugo gerado na produção de peças de borracha para vedação industrial que Robinson Campos, dono da Meritor, de São Paulo, requisitou a ajuda do Prumo. "Depois que a borracha era vulcanizada, a rebarba era descartada gerando uma grande quantidade de resíduo", recorda Campos. Os técnicos do IPT apresentaram uma metodologia para reaproveitar parte do refugo, que voltou ao processo produtivo. Isso representou uma economia de 20% na aquisição da matéria-prima,
O PROJETO Prumo - Projeto unidades móveis de atendimento tecnológico às micro e pequenas empresas do setor industrial de transformação de plásticos MODALIDADE
Programa Parceria para Inovação Tecnológica (Pite) COORDENADOR SILAS DERENZO
■ IPT
INVESTIMENTO
que custa US$ 60 o quilo, e um ganho ambiental, com a redução de descarte. Um apanhado dos 450 atendimentos realizados entre agosto de 2005 e março deste ano dá uma dimensão do alcance e dos resultados do Prumo. Quase 95% dos empresários declararam que seus problemas técnicos foram resolvidos com a assistência do programa e 61% conseguiram aprimorar o produto. Cerca de um terço aumentou a produção e 28% reduziram as perdas que ocorriam no processo. Com tantas vantagens, mais da metade das empresas atendidas (52%) ampliaram sua fatia de mercado, conquistando novos clientes, e 94% declararam que chamariam, se necessário, novamente o Prumo. Um termômetro da aceitação do programa é o fato de ele ter extrapolado as fronteiras do estado de São Paulo. O projeto já foi levado para micro e pequenos empresários do Paraná, Ceará, Paraíba, Pernambuco e Bahia. Foi uma experiência piloto com recursos da Finep e, nos estados nordestinos, com contrapartida financiada pelo Banco do Nordeste, além da Secretaria de Ciência e Tecnologia paranaense. Agora, com o apoio do MCT, o Prumo está se tornando um programa nacional. •
R$ 709.066,39 (FAPESP) YURI VASCONCELOS PESQUISA FAPESP 129 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ 81
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HUMANIDADES DIPLOMACIA
Os ossos do Barão Política externa é hoje motivo de discussão acalorada e séria
CARLOS HAAG
om a morte do Barão/ tivemos dois carnavá/ Ai que bom, ai que gostoso/ Se morresse o Marechá" (no caso, o presidente, marechal Hermes da Fonseca), dizia uma marchinha de 1912. Naquele ano, a morte do Barão do Rio Branco, em pleno Carnaval, fez com que as autoridades cancelassem a festa e a mudassem para abril. Sem sucesso, pois o povo, sem ligar muito para o passamento do "pai da diplomacia brasileira", aproveitou e brincou nos dois meses. Apesar da sua notória importância, as relações externas nacionais, com raras exceções, não povoam o imaginário popular. Curiosamente, nos últimos anos e, em especial, nessa última eleição, o tema passou a ser debatido com entusiasmo, colocando a "Casa de Rio Branco", o Itamaraty, de volta à cena. Mas a paixão das discussões nem sempre leva em conta a realidade da diplomacia, muitas vezes confundida com a política interna de um governo e julgada da mesma maneira. "A política exterior não se situa, necessariamente, no domínio da racionalidade da história e não esgota sua explicação na dicotomia de causas e efeitos. Muitas vezes, a política que o Estado estabelece externamente tem por finalidade quebrar estruturas internas e superá-las", avalia Amado Luiz Cervo, professor de relações internacionais da Universidade de Brasília (UnB), editor da Revista Brasileira de Política Internacional (RBPI) e autor de História da política exterior do Brasil Segundo ele, a diplomacia brasileira moveu-se em quatro paradigmas: o liberal-conservador, que se estende da Independência até 1930; o desenvolvimentista, entre 1930 e 1989; o neoliberal ou o Estado normal, característico das experiências latino-americanas da década de 1990; e, mais recentemente, o logístico. "Os mesmos componentes que caracteri-
zam um dado paradigma levam à compreensão de seu declínio, mutação ou substituição." Ao mesmo tempo, o presente do país se explica em muito pelo seu passado diplomático. O sucesso do liberalismo conservador, que preconizava que o Brasil se mantivesse como sociedade primária, agroexportadora, abrindo mão da modernização capitalista com o mercado de manufaturados, iniciado com o processo de reconhecimento da Independência (e condição imposta pela Inglaterra para que ele ocorresse), continuou a vigorar, após um tímido debate, durante o Segundo Reinado. "Nenhum país das Américas cedeu tanto quanto o Brasil, como nenhum foi tão firme em nada ceder como os Estados Unidos", observa Amado Cervo. Esse processo, para ele, manteve o país na "infância social", uma sociedade que abriu mão da modernização pela expansão da atividade industrial, um erro mantido e aprofundado com a República, que confundia os interesses da elite dirigente, ligada ao setor exportador de café, com a política externa nacional. Daí a aproximação com os Estados Unidos, nosso grande mercado consumidor e nosso "grande irmão" iniciada no Império, mas concretizada no período republicano. Curiosamente, os grandes articuladores dessa união serão dois monarquistas ferrenhos que se mantiveram no poder, apesar da mudança de regime: Rio Branco e loaquim Nabuco (nosso primeiro embaixador em Washington). Nutrindo profundo desprezo pelos "irmãos hispânicos", o barão e o abolicionista perceberam, com agudo realismo, a emergência dos EUA como pólo de poder. "Rio Branco receava a agressividade européia e fez com que ele valorizasse o caráter defensivo da Doutrina Monroe e a entendesse como aplicável às questões de limites entre as nações latino-americanas e as potências européias, que ainda tinham colônias no continente", avalia Clodoaldo Bueno, professor de história da Universidade de São Paulo (USP). PESQUISA FAPESP 129
NOVEMBRO DE 2006 ■ 85
Rio Branco via com olhos otimistas o ideal da "América para os americanos", mesmo acrescido com o apêndice da política do bigstick, de Theodore Roosevelt, e, não acreditando na possibilidade de se estabelecer um bloco de cooperação com os países hispânicos (ainda que tivesse ensaiado o chamado ABC, que reunia Argentina, Brasil e Chile), levou a nossa política exterior para os braços fortes e protetores da América, sem ressalvas ou medos. Admirador do "grande irmão", Rio Branco queria que o Brasil tivesse, na América do Sul, o mesmo papel preponderante, dominador e intervencionista ("no caso de problemas nos pequenos vizinhos, instáveis e caóticos"), foco de "civilização em meio à barbárie". Para o barão, o diplomata e o soldado eram "sócios" e a visão de política internacional brasileira seria sinônimo, por décadas, de um suposto "prestígio internacional". Morreu decepcionado com o parceiro ianque. A modernidade surgia no país. E, com ela, o desejo popular e das elites de romper o ciclo agroexportador, que seria substituído, com a Revolução de 30, pelo nacionalismo desenvolvimentista. Foi com Vargas que o país aprendeu a usar a política externa como apoio ao crescimento econômico interno, um instrumento estratégico para conseguir a industrialização necessária. Ao mesmo tempo, e cada vez mais, a diplomacia passa a ser um componente da formação da nacionalidade. "O Brasil é um dos poucos países da história que deve a sua origem a um ato de diplomacia pura, o Tratado de Tordesilhas", lembra o diplomata Sérgio Danese, autor de Diplomacia presidencial. "A diplomacia é uma atividade do Estado por excelência. Seu desenvolvimento não ajuda apenas a garantir e promover os interesses externos, mas a fortalecer o aparelho de Estado dentro do próprio país. Daí o novo papel da política exterior, que passou a assumir a condição de instrumento de desenvolvimento nacional." Os dois grandes protagonistas desta virada foram Oswaldo Aranha e João Neves da Fontoura, os chanceleres de Vargas em seus dois mandatos. Em ambos os casos prevalece o espírito americanista de Rio Branco, agora revestido com caráter mais pragmático, em que há espaço para o uso da política de 86 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 129
boa vizinhança como barganha para a entrada de insumos e tecnologia, necessários para se fazer a industrialização. Ainda assim, na sua segunda Presidência, Vargas ensaiará uma malsucedida tentativa de multilateralismo e fará ataques "antiimperialistas" aos EUA. O problema é que, no pós-guerra, era difícil achar parceiros com a Europa e o Japão ainda se reerguendo. Mas o pequeno ditador dará suas agulhadas: "O imperialismo é a falta de investimento dos países ricos nos pobres, impedindo o desenvolvimento", dirá em discurso de 1953, na contramão do conceito leninista de imperialismo e mostrando que o nacionalismo não era hostil ao capital estrangeiro, mas à falta dele. "A tentativa precoce de promover uma diplomacia não linearmente subordinada a Washington se apoiava em fatores objetivos, e não apenas na vontade política de um líder populista. O nacionalismo desempenhou um papel fundamental como fator de mobilização e coesão política interna, necessária à estabilidade do projeto desenvolvimentista. Isso marcou uma nova fase nas relações externas nacionais, cujo amadurecimento se deu com a política externa independente (PEI)", analisa o historiador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Paulo Fagundes Vizentini. pesquisador observa que a PEI é uma prova "de que não existe uma relação linear entre política externa e interna", pois foi implementada pelo governo Jânio Quadros, tendo como chanceler o udenista Afonso Arinos. A nova diplomacia defendia exportações para todos os países, inclusive os socialistas, defendia o princípio da autodeterminação dos povos e apoiava a descolonização. A ousadia no governo JQ se limitou ao discurso, mas no governo Goulart, com San Tiago Dantas como ministro das Relações Exteriores, a PEI saiu do papel: foram reatadas as relações diplomáticas com a URSS e se fez uma rígida defesa da não-intervenção americana em Cuba. Pela primeira vez, desde Rio Branco, se colocava uma alternativa ao americanismo. A parceria com os EUA não é a única saída e outras possíveis alianças devem ser pautadas mais por imperativos do interesse nacional e menos por alinhamentos político-estraté-
gicos apriorísticos. Entra na agenda externa brasileira o multilateralismo e, apoiado no pensamento da Cepal, se prepara o discurso da construção de uma identidade econômica entre os países latino-americanos, unificando-os em suas especificidades nacionais e os diferenciando dos países desenvolvidos. Autonomia - O que antes afastava o Brasil dos vizinhos agora reúne os países subdesenvolvidos, que passam a se articular para impor a sua visão da conjuntura nacional, apoiarem-se uns aos outros e promover a bipolaridade, a chamada "convivência competitiva". Dantas já vislumbrava um mercado comum entre Brasil e Argentina como núcleo de um futuro mercado regional, ao qual se somariam os demais países latino-americanos. O Mercosul não é invenção recente. O sucessor de Dantas, Araújo Castro, irá profissionalizar o Itamaraty, o que, teoricamente, traria uma relativa autonomia da política externa das variações internas. Com o seu discurso dos "três dês" (desenvolvimento, descolonização e desarmamento), feito na Assembléia da ONU, Castro conseguiu, nota Vizentini, despolitizar a PEI, concentrando-se nos assuntos econômicos. Essa burocratização terá um caráter paradoxalmente positivo. A de Rio Branco servirá, mais tarde, como "último baluarte" de defesa dos interesses nacionais, reunindo um grupo de diplomatas críticos ao encampamento extremado do neoliberalismo na década de 1990. No momento histórico do fim do governo Jango e do golpe militar, essa hierarquização da instituição será um bom escudo contra a influência dos militares, que viam os diplomatas com o respeito dos "sócios", como nos tempos de Rio Branco. O paradoxo se inverte no positivo: durante o regime militar, apesar do ensaio ideológico do governo Castello Branco (que assumia o discurso da Escola Superior de Guerra, da Segurança Nacional, e entrava com gosto no espírito da Guerra Fria), "no regime militar sobreviveu a noção do projeto nacional de desenvolvimento e da busca da autonomia internacional", nas palavras de Vizentini. Se a PEI foi de cara rejeitada em nome do "servilismo" aos EUA e a uma política de "subimperialismo" brasileiro sobre os vizinhos, aos poucos o Itamaraty, com certa dose de liberdade, adotará uma política externa bem semelhante à de Dantas.
Surge a diplomacia da prosperidade, do chanceler Magalhães Pinto, que definia o Brasil como nação do Terceiro Mundo, e não do Ocidente, quebrando a dualidade entre "mundo livre" e "cortina de ferro", preconizada por Washington. "Enquanto o discurso diplomático produzia grande atrito com os EUA, o Brasil buscava retomar a cooperação tecnológiconuclear com outros países, bem como aprofundar as relações comerciais com países socialistas", lembra Vizentini. E ao interregno do "Brasil potência", de Mediei, seguiu-se o pragmatismo responsável e ecumênico do governo Geisel, com o reatamento das relações com a China e o acordo nuclear com a Alemanha. A Casa Branca irou-se. "O pragmatismo despertou a ferrenha oposição dos EUA, bem como de segmentos conservadores da política brasileira", analisa Vizentini. Mas uma ressalva. "O terceiro-mundismo somente tinha de ideológica a crítica que lhe fazia a tradicional opinião conservadora nacional. De fato, era operacional, porque o Norte criava barreiras à entrada de ma-
nufaturados brasileiros, abria os mercados do Sul a esses manufaturados e favorecia a nossa capacidade de negociação diplomática nos foros multilaterais e nas iniciativas bilaterais", nota Amado Cervo. A Nova República de Sarney, com Olavo Setúbal como chanceler, colocou à prova o Itamaraty. "A visão era de que o Brasil deveria maximizar suas oportunidades individuais, em cooperação com Washington, para chegar ao Primeiro Mundo e a ênfase foi de afastamento do Terceiro Mundo. O Itamaraty reagiu a essa nova orientação que se assemelhava à diplomacia de Castello Branco", conta o pesquisador da UFRGS. O desenvolvimentismo de tons nacionalistas, ainda que em nova paleta, tinha na "Casa de Rio Branco" uma linha de defesa. Estado normal - Em 1989 cai o Muro de Berlim. Em 1990 Fernando Collor toma posse. Em 1991 desaparece a URSS. A política externa não passou ilesa. "Objetivamente, a fidelidade ao Ocidente, que poderia, no contexto da Guerra Fria, ser explicada como a necessária opção políti-
ca por um dos dois centros do poder, perde a sua justificativa. Em tese, a nova situação ensejava nova autonomia na condução da nossa política externa, mas o pensamento dominante nacional tendia a levar o país ao alinhamento com a potência hegemônica", escreve o embaixador Luiz Souto Maior em Desafios de uma política externa assertiva. "Internamente, o papel até então exercido pelo Estado na promoção do desenvolvimento passa a ser questionado. A política externa perdeu seus pontos de referência sem que surgisse algo que os substituísse." Nesse contexto de globalização e neoliberalismo, a política externa brasileira passa a adotar, em um grão de sal, o que os argentinos batizaram de Estado normal. "Ser normal era se sujeitar aos padrões de inserção econômica internacional do chamado Consenso de Washington. A transição do Estado desenvolvimentista ao normal significou, nos anos 1990, a adoção de um processo de modernização concebido pelo centro em substituição à formulação cepalina da inteligência local", nota Amado Cervo, para quem o paPES0UISAFAPESP129 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ 87
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radigma de 60 anos se tornara, para alguns, sinônimo de atraso e inadequação. Vizentini lembra que, no governo Collor, o Itamaraty começou a ser esvaziado de muitas de suas atribuições, pois era foco de resistência ao projeto governamental de abertura comercial unilateral sem reciprocidade dos parceiros externos. "A noção de soberania também foi deixada de lado, em nome da adesão à globalização, aceita como inevitável e desejável." As altas taxas de juros americanas durante a gestão Reagan elevaram em muito o endividamento latinoamericano nos anos 1980, convertendo os países da região em, palavras de Amado Cervo, "grandes esmoleiros internacionais". Junto com a inflação galopante, tudo parecia dar razão à adoção entusiasmada da entrada do Brasil na globalização. O governo Itamar pisaria no freio, mas essa nova realidade iria se segmentar no governo Cardoso. "O comércio exterior, antes instrumento de aceleração de atividade interna, tornou-se simples variável dependente da estabilidade de preços, requerida pela üusão de que por si só provocaria intenso fluxo de capitais internos para o país", acredita o professor da UnB. Ainda, segundo ele, há que se levar em consideração que o choque de abertura teria despertado os empresários do setor público e privado que foram forçados a modernizar suas plantas e métodos. Multilateralismo - As prerrogativas de negociação comercial internacionais do Itamaraty passam a ser geridas nos ministérios da Economia e do Planejamento. Estabelece-se o que ficou conhecida como a "diplomacia presidencial", ou seja, o próprio Cardoso passa a ser a força-motriz das relações externas, encaradas de "forma realista". "O governo FHC foi caracterizado por um multilateralismo moderado, mas evidenciou uma aceitação tácita do princípio dos 'mais iguais', isto é, a existência de grandes potências e seu papel no sistema internacional", avalia o cientista social e diplomata Paulo Roberto de Almeida, atualmente assessor especial no Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, autor de um bem fundamentado estudo comparativo entre as políticas internacionais de Cardoso e as atuais do presi-
dente Lula, a quem ele vê como um player mais "interessado num forte multilateralismo, defendendo a soberania e a igualdade de todos os países com maior ênfase retórica do que a administração anterior". Assim, para Almeida, se FHC dedicou-se ao diálogo, mas não a uma real coordenação com os países do Sul, isso é uma prioridade para Lula, evidenciada pelo G-3, com a África do Sul e índia. uanto à globalização, inicialmente vista como um novo Renascimento para Cardoso, é preciso ressaltar que, no seu segundo mandato, descontente com os resultados da adesão ao neoliberalismo internacional, o ex-presidente passou a adotar uma visão de "globalização assimétrica", de viés mais crítico e cauteloso. Para FHC, a assunção de qualquer papel do Brasil como líder teria que ser o resultado da gradual preeminência do país e em princípio seria limitado à região. Para Lula, o espectro seria maior e sua política externa não coloca limitações estruturais a uma pretensão de liderança do Brasil entre as potências. O presidente também tem apreço especial pelo projeto do Mercosul (1991), uma das prioridades diplomáticas brasileiras desde o governo Sarney. Para Cardoso, era uma base possível para a integração com o mundo. Para Lula, continua Almeida, seria uma fortaleza defensiva contra as investidas do império, em especial uma alternativa à Alça, proposta que não recebia o entusiasmo da administração FHC e que é abominada pela atual Presidência, que passou a barganhar de forma ainda mais intensa a participação brasileira nessa área de comércio. "Conformismo e voluntarismo talvez sejam expressões muito fortes, e certamente maniqueístas, mas elas traduzem uma postura de 'aceitar o mundo como ele é', no caso de FHC, e outra de 'mudar o mundo', como preconizado por Lula. FHC estimulava a integração do Brasil ao mundo globalizado, enquanto o presidente, embora não faça objeções a isso, quer que tudo aconteça com plena preservação da soberania nacional", completa o diplomata, que nota ainda que Cardoso optou pela diplomacia tradicional, vendo a política externa como tendo um papel acessório no processo de desenvolvimento, ao contrário de Lula, que a vê co-
mo tendo um papel substantivo na conformação de um projeto nacional. "Tudo está mais na linha da continuidade do que da ruptura", avalia Almeida. Ainda assim, alguns críticos da diplomacia do governo Lula avaliam que sua política exterior não estaria preparada para lidar com os desafios de uma ordem internacional em transição, fruto dos atentados de 11 de setembro que levaram os EUA a adotar uma radicalização unilateral. Há também quem acredite serem exagerados os esforços do governo para conseguir um assento no Conselho de Segurança da ONU e veja matizes ideológicos na relação do Brasil com países como a Venezuela e, em especial, leniência com a Bolívia. "Não foi o atual governo que adotou uma política de subordinação energética a países de um região instável e da qual não tinham conhecimento. Mas há que se reconhecer que houve um plebiscito na Bolívia e 90% da população foi favorável ao processo de nacionalização. Não concordamos com a pirotecnia do processo feito pelo governo boliviano, mas a ação corresponde ao interesse nacional deles", explica Marco Aurélio Garcia, ex-assessor de assuntos internacionais da Presidência da República. "A nossa política externa não se sujeita a critérios ideológicos, como se pode verificar pela nossa inserção no G-20, que reúne os países mais diferentes. Somos pela inserção global, mas com salvaguardas. Para usar a expressão do chanceler Celso Amorim, 'a diplomacia ativa, porém altiva'." Ainda é cedo para avaliar resultados? "O presidente Lula, seus colaboradores no Itamaraty e sua assessoria no Planalto anunciaram, desde o primeiro momento, algo radicalmente diferente: o entusiasmado início de uma nova era. Proclamaram o marco zero da diplomacia brasileira", escreveu o ex-chanceler Celso Lafer em artigo recente. "Mas na condução de uma política externa é preciso evitar dois riscos opostos: subestimar o que um país representa para os outros e superestimar seu peso, pois isso deságua na inconseqüência e, às vezes, na insensatez." Para Lafer, o manejo diplomático do governo Lula não produziu, "para recorrer a outra expressão do ministro Amorim, 'eventos sísmicos'." O importante é que a política exterior hoje é motivo de discussões, e não de marchinhas de Carnaval. • PESQUISA FAPESP 129 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ 89
O HUMANIDADES LITERATURA
Obsessão concreta GONçALO JúNIOR
Uavia um tempo em que a crítica literária era intensa, conflituosa. Apaixonada, muitas vezes. Lia-se o livro com a profundidade de um perito criminalista, buscavam-se e apontavam-se referências, influências, em ensaios de uma página de jornal. Não se fazia a ofensa gratuita, mas a desconstrução fundamentada, estruturada a partir de uma metodologia de análise. O crítico parecia zelar pela instituição do livro e de seus gêneros - poesia, prosa, ensaio etc. O resultado jogava mais luzes no conteúdo da obra e podia transformar seu autor num respeitado livro. Ou destruir reputações. A imprensa brasileira teve pelo menos dois momentos claros nesse sentido: com o florescimento do jornal diário, na segunda metade do século XIX, que abriu espaço para polêmicas literárias ainda restritas aos rodapés, mais passionais, representadas por Machado de Assis e José de Alencar, entre outros. E a era dos suplementos literários semanais, mais profissional e extensa, iniciada em 1925 com o Correio da Manhã, seguiu até a década de 1970 e consagrou nomes como Brito Broca, Otto Maria Carpeaux e muitos outros. Coincidência ou não, nessas fases a literatura nacional viu surgir o que se tornaria o melhor de sua produção. Um dos grandes nomes da literatura brasileira contemporânea, o poeta, tradutor e ensaísta pernambucano Sebastião Uchoa Leite (1935-2003) estava entre os que viam assim a crítica literária. Respeitado pela nata da intelectualidade brasileira ligada à literatura, ele desempenhou os três ofícios com a mesma desenvoltura. Morto há três anos, Sebastião, como chamavam os amigos, ainda espera o reconhecimento do legado de sua contribuição para a poesia e para a crítica literária. Parte do esforço nesse sentido tem sido feita pelo ex-aluno Augusto Massi, professor de literatura brasileira da USP e editor da Cosac Naify Depois de organizar os volumes Obras em dobras, 1960-1988 (1988) e Crítica de ouvido (2003) ele antecipa que pensa em publicar uma segunda edição da sua poesia reunida como parte da coleção "Ás de colete", coordenada por Carlito Azevedo. Sebastião era um perfeccionista que escolhia os autores que gostaria de traduzir. Às vezes, precedia o texto com 90 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 129
um ensaio sobre o autor ou a obra, como fez em Alice no país das maravilhas e Alice através do espelho, de Lewis Carroll, um de seus autores preferidos. Foi ele o primeiro a fazê-lo para o público adulto. Traduziu também Crônicas italianas, de Stendhal; Signos em rotação, de Octavio Paz; e O momento futurista, de Marjorie Perloff. Em 2001 ganhou o Prêmio Jabuti de Tradução, pelo livro Poesia, de François Villon. Como autor, escreveu 13 volumes de poesia e ensaios. Sua obra poética, de tendências contemporâneas, teve pelo menos três volumes representativos: Isso não é aquilo (1982), Obra em dobras, 1960-1988 (1988) e A espreita (2000). Em 1980 ganhou o Prêmio Jabuti de Poesia, pelo livro Antilogia. Publicou também as coletâneas de ensaios Participação da palavra poética (1966), Crítica clandestina (1986) e Jogos e enganos (1995). Sebastião Uchoa Leite fez parte de uma geração de notáveis de Pernambuco que migrou para o Rio de Janeiro e São Paulo e deu um novo vigor à crítica literária - tanto na imprensa quanto na academia. Uma turma que se manteria unida por toda a vida graças à paixão pela poesia. Entre outros, participavam João Alexandre Barbosa - morto em agosto deste ano -, José Laurênio de Mello, Jorge Wanderley, Orlando da Costa Ferreira, Gastão de Holanda, Gadiel Perruci e Luiz Costa Lima. Somente o último está vivo. Ariano Suassuna também estava presente nos primeiros anos. Eram tempos em que se consagrava o também poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto. A estréia literária se deu com o livro Dez sonetos sem matéria (1960), publicado na capital pernambucana pela lendária editora artesanal O Gráfico Amador. Em 1962 formou-se bacharel em direito e filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco. Nos anos seguintes foi professor da Escola de Biblioteconomia da UFPE e orientador do Suplemento Literário do Jornal do Comércio. Em 1965 mudou-se para o Rio de Janeiro. De lá teve contato com os concretistas de São Paulo. Nos anos 1970 trabalhou com Otto Maria Carpeaux e Antônio Houaiss na Enciclopédia Mirador e na revista Manchete. Tornou-se parceiro inseparável do primeiro, com quem adorava tomar sorvete de café. Aos poucos, consolidou em seus poemas o que o crítico Davi Arrigucci Jr. descreveu como "uma variedade de temas e modos de tratamento com um fôlego que configura seu amplo universo
Morto há três anos, o poeta e ensaísta Sebastião Uchoa Leite ainda espera atenção da crítica, enquanto a editora Cosac Naify planeja reedição de sua poesia
Sebastião Uchoa Leite: crítico jogava mais luzes no conteúdo da obra
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de leitura": poesia, cinema, história em quadrinhos, ensaio e fotografia. Davi, amigo constante por quase 40 anos, conheceu-o na década de 1960. Os dois se tornaram amigos muito próximos por toda a vida. Sempre se visitavam e se hospedavam na casa do outro. Foram apresentados por João Alexandre Barbosa. Ele observa que o Sebastião ensaísta tinha um gosto muito apurado pelo livro como objeto estético. Trabalhava com ordem e disciplina intelectual, embora tenha dado poucas aulas e não fosse um pesquisador acadêmico. "Era uma pessoa de senso crítico muito aguçado e revelava isso em todas as esferas de seus relacionamentos. Não deixava de expressar um peculiar senso de humor, porém sério. Características marcantes em suas poesias e artigos." Fascinava-o, observa ele, a coisa do oculto, do disfarce e da ironia. Algo que aparece quase explícito em A regra secreta, um dos últimos trabalhos publicados, em 2002. No ensaio O guardador de segredos, Davi comenta A espreita, no qual acabou por fazer uma síntese da obra do amigo: "Livro esquivo, com força e complexidade, mas cuja oculta poesia se furta à vista. Livro de recusas, que prefere o viés, a sombra, o fascínio difícil. Atraído pelo sorvedouro de águas secretas, pelo 92 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP129
O crítico: um contestador que adorava ler histórias em quadrinhos
que espreita nas trevas e remói em segredo. Excêntrico, escondido entre parênteses, sibilino nas alusões, o Eu que pouco nos fala, em vez de exprimir-se, prefere a mera observação ou o registro do olhar, sem temer, dentro ou fora, cantos escuros e esquisitices, mas sem se mostrar, preferindo velar-se". Valentina - A antropóloga Guacira Waldeck, com quem Sebastião viveu junto por 16 anos, descreve-o como uma pessoa de personalidade discreta, despojada. Um contestador não aberto, interessava-se por tudo. Adorava ler histórias em quadrinhos - principalmente seus personagens preferidos Crazy Kat (ao qual dedicou um longo ensaio), Valentina e o underground de Robert Crumb. Embora de geração diferente, percebeu o potencial da banda de rock Titãs e prenunciou o talento poético de Arnaldo Antunes. Convivia com pessoas jovens, correspondia-se com poetas em formação, dava-lhes atenção necessária para acertar os versos. Considerava-se um preguiçoso, trabalhava sem disciplina, rigidamente anárquico, porém, pois o resultado era sempre rigoroso.
Guacira conta que ele pretendia escrever uma série de ensaios sobre o poeta pernambucano Joaquim Cardozo, colaborador de Oscar Niemeyer e um expoente do movimento modernista em seu estado. Como o casal gostava muito de sapos, talvez a última coisa que tenha escrito foi o esboço para o ensaio Batraquiozofia curiosa, um estudo sobre a presença desses animais na literatura. O texto começava assim: "Pois, falando em batráquios, temos destaques para sapos e rãs. Sobretudo sapos. Mas começaremos por uma rã, que diríamos filosófica". Seguia uma relação dos tópicos a serem tratados. O primeiro deles era "A rã filosófica de Lewis Carroll". Em seguida viria análise de um poema de Tristan Corbière e o sapo na poesia de Manuel Bandeira. Ao que parece, uma brincadeira que se tornaria séria. Luiz Henrique Lopes dos Santos, professor de filosofia da USP, que esteve bem próximo de Sebastião em meados dos anos 1990, graças à longa e estreita amizade com Guacira, relembra os jantares que os reuniam, sempre no Lucas, na avenida Atlântica. "Eu comia uma caldeirada, ele canja de galinha. Sempre comparecia com minha edição do Tractatus logico-philosophicus em punho e me inquiria sem trégua sobre as passagens mais
herméticas e abstrusas de meu ensaio introdutório ao livro, num misto de curiosidade e deboche." As perguntas que fazia, segundo Luiz Henrique, mostravam que tinha lido o livro com atenção. "No final, fazia uma cara de fingido desespero e exclamava: 'Não acredito que você entende mesmo essas coisas!'." O primeiro contato entre Augusto Massi e Sebastião aconteceu em 1982, quando ele ainda cursava a graduação em literatura brasileira na USP, para a publicação Arte em Revista. Viajou ao Rio de Janeiro e entrevistou alguns poetas, como Cacaso e o Sebastião Uchoa Leite. Encontrouo num amplo apartamento em Laranjeiras. "Além de jovem estudante metido a pesquisador, eu escrevia poesia e, na época, julgava ter uma boa idéia de quem eles eram, o que representavam, o significado de suas obras. Mas a verdade é que ainda hoje não é possível dimensionar a importância deles. Porém posso garantir que ambos não me decepcionaram." A imagem que guardou foi de um Sebastião mais retraído, desconfiado, dotado de uma ironia fina. "De alguma forma, aprendi que por detrás desse contraste de personalidades - em relação a Cacaso - havia duas concepções de poesia: a poesia marginal [Cacaso] e a poesia concreta [Sebastião]." Anos depois, Massi convidou Sebastião a reunir a sua trajetória poética num único volume. "Ele relutou muito, ponderou que não se reconhecia no livro de estréia, que outros dois livros eram quase inéditos mas, mesmo assim, achava melhor não reunir. Eu pensava justamente o contrário. Minha tese era a de que justamente estas idas e vindas da sua trajetória, marcada inicialmente pela influência do concretismo, tinha se matizado através da poética cabralina mas só ganhou fôlego graças à leitura crítica, reativa e original que teve da poesia marginal." Segundo Massi, este choque de tradições, influências e experiências poéticas está bem delineado no volume de poesias reunidas Obra em dobras, 1960-1988, com orelha assinada por João Alexandre Barbosa. Durante a produção do livro, os dois ficaram mais próximos. "O que me agradava no Sebastião era a sua sinceridade, uma forma provocativa de puxar conversa, bem diferente do elogio fácil e do puxa-
saquismo amplo e irrestrito que caracteriza o nosso meio cultural." Para dar um exemplo, sabedor de que o editor admirava a poesia da Orides Fontela, não deixava passar uma oportunidade para externar um ponto de vista contrário. Esse seria um dos traços de sua personalidade. "Criou-se um grande folclore em torno de suas manias, hábitos, idéias fixas. Cavando mais fundo, eu diria que Sebastião cultivava os opostos, levava as coisas até o limite, mantinha tenso o arco da inteligência." ara Massi, ele dava a impressão de ter sido inicialmente um jovem ranzinza e, com o passar dos anos, transformou-se num velho vampiresco, dotado de uma curiosidade quase infantil. "Em outras palavras, ele tanto levava as histórias em quadrinhos a sério quanto desconfiava das digressões metafísicas. Vamos dizer que, sob a capa do anedotário e do folclore da pessoa que é do contra, perpassa uma idéia forte da poesia que os próprios títulos indicam: Antilogia ou Isso não é aquilo." Tudo em Sebastião converge para o exercício da negatividade. "Nossas conversas giravam em torno de poesia e de cinema. No terreno da poesia nossa grande afinidade era a obra poética do João Cabral. Inclusive, quando saiu Obra em dobras, fomos juntos levar um exemplar para o João Cabral. Foi um dia memorável." Equilíbrio - O editor acredita que Sebastião não se considerava um ensaísta, posição que não concorda. "Ele era um ensaísta da maior qualidade. Jogos e enganos [Editora 34,1995] - talvez o seu melhor livro - alcança um patamar bastante alto. É um livro que tem coluna vertebral, onde a noção de mal, mentira e jogo adquire uma densidade raramente alcançada." Além disso, prossegue Massi, nesse livro há um forte equilíbrio de temas e artes e entre o familiar e o estranho. A última vez que Massi viu Sebastião foi em São Paulo, em 2002. Fora visitar os amigos João Alexandre e Frederico Barbosa e lançar o seu último livro de poemas, A regra secreta. "Saímos para almoçar, eu, ele e Davi Arrigucci Jr. Fomos comer num restaurante uruguaio, El Tranvia. Ele andava com muita dificuldade, com bengala e tudo, porém continuava com a língua afiada e o humor bem tem-
perado. Era gostoso conversar com ele, sua voz parecia deslizar, numa antimúsica levemente arrastada, como alguém que fala e, ao mesmo tempo, já está escapando pra fora da conversa." Foi um momento difícil, sofrido. "Ele estava bastante abatido e mentalmente lúcido." Resistiu até o fim na esperança de ver publicado o seu último livro de ensaios: Crítica de ouvido [2003], pela Cosac Naify. "Não sei como ele encontrou forças para corrigir a segunda prova. Mas, infelizmente, eu não consegui dar esta alegria pra ele. O livro só ficou pronto uns 20 dias depois de sua morte, em 27 de novembro de 2003." Guacira relembra que o poeta era bem tranqüilo quanto ao reconhecimento de sua obra poética. Pensava sobretudo que ao tempo cabia definir o que deveria ser lido depois. Ao mesmo tempo, via a poesia como uma seita, algo de interesse restrito, que não interessava ao mundo. Davi Arrigucci Jr. não crê que ele tenha recebido menos consideração da chamada crítica universitária que a maioria dos poetas de sua geração. "Veio dela, creio, o principal reconhecimento. De modo geral, a crítica universitária, dependente dos degraus da carreira com suas dissertações ou teses, acha-se mais presa ao ensaio de interpretação ou reinterpretação de autores do passado, arriscando-se pouco no reconhecimento crítico de escritores contemporâneos. Parece fiar-se antes no juízo do tempo, que nesses assuntos costuma ser melhor conselheiro, e se furta ao presente, o que é de se lamentar." É, afirma ele, o que se observa no cenário brasileiro desde os anos 1940, quando a crítica militante dos rodapés do jornal foi sendo paulatinamente abandonada, com o surgimento do crítico também professor universitário. "Sebastião procede, por sua vez, em sua formação literária, de rodas de professores universitários do Recife - João Alexandre Barbosa e Luiz Costa Lima, por exemplo, foram seus companheiros de geração e estão entre seus principais críticos - antes de que se dedicasse a tarefas de francoatirador das letras, fora do âmbito universitário. Pela riqueza de seus aspectos - poesia, ensaio, tradução - e pela qualidade intrínseca de sua produção, creio que está mais do que na hora de outros críticos universitários se debruçarem sobre sua obra em cujas dobras há de fato muito segredo a ser desvendado." • PESQUISA FAPESP 129 ■ NOVEMBRO DE 2006 • 93
Resenha
Revoluções inevitáveis Em onze ensaios, Thomas Kuhn desenvolve o conceito de ciência como construção social
CARLOS FIORAVANTI
i
■ físico norte-americaI no Thomas Kuhn foi ■ 1 vítima de um sucesso inesperado, inicialmente na Europa e só depois nos Estados Unidos, quando saiu A estrutura das revoluções científicas, em 1962. Leitura obrigatória para quem é ou quer ser cientista, para quem escreve sobre ciência ou mesmo para quem apenas se interessa pelo nascimento e morte das idéias, A estrutura apresenta duas formas de conhecimento científico. A primeira é o normal, linear e cumulativa, representa a ciência do dia-a-dia e contribui com o avanço da civilização humana de modo sutil e modesto, grão a grão. A segunda forma de conhecimento o revolucionário - é o que faz a ciência realmente avançar, desta vez aos saltos, de modo radical; representa os episódios fundamentais do progresso científico e causa as transformações mais profundas - as mudanças de paradigmas, entendidos como os conjuntos de idéias que permitem ver a realidade de um jeito ou de outro, como filtros mentais. O mais emocionante desse livro é ver como os novos paradigmas triunfam - muitas vezes só com a morte dos autores e seguidores dos velhos paradigmas. Sai agora O caminho desde a estrutura (Editora Unesp, com tradução de César Mortari e revisão técnica de Jézio Gutierre), a continuação do livro que é para a história da ciência o que A origem das espécies é para a biologia. Em 11 ensaios, Kuhn desenvolve o conceito de ciência como construção social, explica mais detalhadamente alguns conceitos, como o de mudança revolucionária, ou responde às críticas que recebeu depois da publicação de sua obra-prima. O caminho traz também uma entrevista autobiográfica. Kuhn insiste na necessidade de lances ousados. "O desenvolvimento científico não pode ser inteiramente cumulativo. Não se pode passar do velho ao novo simplesmente por um acréscimo ao que já era conhecido. Nem se pode descrever inteiramente o novo no vocabulário do velho ou vice-versa", escreve em um dos ensaios, recheado com exemplos da história da física. Ele
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0 caminho desde a estrutura Thomas S. Kuhn
mostra como pode ser doloroso e ao mesmo tempo Editora Unesp gratificante abdicar de idéias 408 páginas antigas ao descrever o que se R$ 49,00 passou com ele ao ler a Física, de Aristóteles. Se no início Aristóteles pareceu-lhe "não apenas ignorante da mecânica, mas também um físico terrivelmente ruim", depois que ele deixou as idéias se organizarem de outro modo o pensador grego emergiu como "um físico realmente muito bom, mas de um tipo que eu jamais havia sonhado possível", cujos erros de diluíam em meio a poderoso corpo de conhecimento sobre os princípios do Universo. Uma mudança realmente valiosa, segundo ele, não pode ser experimentada de modo fragmentado, um passo de cada vez: "Ao contrário, ela envolve uma transformação relativamente súbita e não estruturada na qual alguma parte do fluxo da experiência se rearranja de maneira diferente e exibe padrões que antes não eram visíveis". As revoluções científicas, ao explicar de modo novo fenômenos ou situações que permaneciam inexplicáveis, criam um vocabulário novo e alteram a própria linguagem, que pode tanto limitar ou ampliar as interpretações da realidade. Para mostrar o peso dos paradigmas, Kuhn recorre também ao filósofo austríaco Karl Popper, segundo o qual "somos prisioneiros do referencial de nossas teorias, nossas expectativas, nossas experiências passadas, nossas linguagens". Em outro ensaio Kuhn trata de um assunto caro aos cientistas, jornalistas e leitores: as metáforas da ciência, com as quais é bom lidar com muito cuidado. Ainda que essenciais para criar vínculos entre a linguagem científica e o mundo, as metáforas podem ir além de sua função habitual de representar um objeto e sugerir novos significados, nem sempre explícitos ou desejados. Para Kuhn os cientistas devem sempre se livrar das roupas velhas que povoam o guarda-roupa mental, não importa quão inatingível seja essa meta. Porque, cedo ou tarde, as mudanças chegarão - e alguém as fará e publicará. •
Gênese de Deus e o diabo na terra do sol
Diários da floresta Betty Mindlin Editora Terceiro Nome 248 páginas, R$ 38,00
Diários da floresta é o conjunto das anotações de campo das seis primeiras viagens da antropóloga Betty Mindlin ao povo suruí paiter de Rondônia, entre 1979 e 1983. O livro procura desvendar outro modo de ser, partilhando com o leitor o contato com os índios, além das descobertas cotidianas, a análise da sua economia e sociedade e comentários atuais sobre a sua situação. Editora Terceiro Nome (11) 5093-8216 www.terceironome.com.br
blfiVj, pO ÍOh
A partir de documentos como diários, anotações, rascunhos e roteiros, um dos principais propósitos do livro é compreender melhor os processos de criação, encontrando um pensamento de construção que se contrapõe ao mito da máxima glauberiana de idéia na cabeça e câmera na mão. A publicação apresenta ainda os excertos das diferentes versões dos roteiros do filme. Annablume Editora 3031-9727 www.annablume.com.br
Umbanda: mudanças e permanências Uma análise simbólica
Pierre Monbeiq e a geografia humana brasileira: a dinâmica da transformação
Brígida Carla Malandrino Editora PUCSP - Educ / FAPESP 292 páginas, R$ 40,00
Umbanda: mudanças e permanências possibilita uma visão mais ampla da umbanda, dialogando com a psicologia analítica e aprofundando questões referentes à simbologia e rituais. A autora chama a atenção ainda para a complementaridade das religiões e os aspectos psicossociais presentes em trabalhos sobre mudança religiosa, principalmente do catolicismo para a umbanda. Editora PUCSP - Educ (11) 3670-8085 www.pucsp.br/educ
SUPRI TRIBUNAL FEDERAL
Heliana Angotti Salgueiro (Org.) Edusc / FAPESP 342 páginas, R$ 59,50
O livro reúne ensaios de historiadores e geógrafos brasileiros e franceses em torno da obra de Pierre Monbeig, professor de geografia nos anos fundadores da USP. Apoiados em bibliografia atual, estes ensaios trazem inúmeras sugestões de pesquisas, imagens inéditas, além de novos olhares sobre a história e a epistemologia da geografia humana brasileira. Edusc (14) 3235-7111 www.edusc.com.br
e a reconstrução da cidadania
Deus na aldeia: missionários, índios e mediação cultural
Emília Viotti da Costa Editora Unesp 192 páginas, R$ 49,00
Paula Montero (Org.) Editora Globo 582 páginas, R$ 36,00
0 Supremo Tribunal Federal
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Josette Monzani Annablume Editora 332 páginas, R$ 45,00
Com o objetivo de reconhecer o STF como elemento central na estrutura de sustentação dos ideais republicanos no país, Emília Viotti da Costa traz uma reflexão sobre a trajetória histórica do STF, seu funcionamento e seus limites, além de contribuir para a compreensão do processo de construção da cidadania no Brasil, protagonizado pelo Supremo.
A partir de uma perspectiva antropológica e histórica, o livro reúne 11 textos sobre as atividades missionárias junto às comunidades indígenas do Brasil e os problemas interculturais que emergem desse encontro. Deus na aldeia propõe uma releitura crítica da herança das reflexões antropológicas sobre o contato entre missionários e índios.
Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br
Editora Globo (11) 3767-7880 www.globolivros.com.br PESQUISA FAPESP 129 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ 95
Ficção ■5
Conto policial
CAIO SILVEIRA RAMOS
orar em casa de nora é isso que dá: mal posso ver a novela. Não, ver eu posso, não posso é ouvir no volume que gosto, muito alto, eles dizem. Ela diz. Ele concorda, apenas. Mas explica: mamãe está ficando surda, coitada. Acho que é isso que ele fala. Que pouca-vergonha essas novelas de hoje, mostram homem e mulher se permitindo, numa peladeira de dar medo. Olha só, esbórnia no quarto da empregada, enquanto a velha assiste a televisão. Se fosse eu... Comigo não tem disso, não. Mas aonde a Lúcia foi hoje? Nunca sei se saiu. Melhor assim, aumento o volume. Ele está quieto, será que saiu com ela? Que demora, devem estar cheios de mim, esse peso. Eu queria era morrer. Velha. E eduquei sozinha. Marido? Foi cedo, sem despedida, adeus que nada. Ao diabo. Foi tarde. É, eduquei sozinha, botei na escola, me virei para embacharelar meu menino, tão lindo de beca. Professor, doutor, tudo junto, parece. Até que ela chegou, essa aí, me roubou o menino e a novela: alunas... Velha. Eu, ela não. Linda. Mas onde ele se meteu? Ele está cheio de mim, eu sei. Um dia chega, vem trançando da esquina, me dá um tiro na testa. A mando dela. E só assim, porque no fundo meu menino ainda me ama. Mas a Lúcia. A mando dela, o tiro na minha testa, meu menino. Depois ela se arrepende: não deveria manchar a parede com sangue. É o que a moça diz na novela antes de matar o marido. Acho que cochilei. Estou com sede, nem adianta chamar alguém, melhor arrastar o chinelo até a cozinha. Olha ele aí, garanto que bebeu, caído borracho no chão úmido. Parece até que morreu. Mas ele me detesta, está cheio de mim. Melhor voltar pra ver televisão. Não fui eu, claro que não. Eu só ouvi o barulho. Pode ter sido ela, acho que detestava o filho, essas coisas existem.
M
96 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 129
Onde eu estava? No meu quartinho, vendo novela sem som. Precisa nada, a velha liga tão alto. Ouvi o tiro, a dita no sofá dormindo-sei-não, a televisão no máximo, o tiro mais, ele lá. Morto. Eu não fui. Não sei, não vi arma nenhuma, apenas um buraco nele, o som alto da TV. O homem nu atrás da cortina? Namorado? Magina se meu homem é feio assim, doutor. Eu não fui. Dona Lúcia? Não sei, acho que viajou, o moço deve ser amante dela. Ou da velha. Quem sabe do falecido? Ladrão talvez, mas não tem cara de assassino. Como ele nu assim podia matar o patrão? Acho que estava na casa de alguma amante (a vizinha ao lado é uma biscate de quinta), o marido chegou, ele fugiu, encontrou a porta aqui de casa aberta. Coitado, não foi ele não, doutor. Solta o moço, tão assustado. Namorado? Prefiro elegante e educado como o senhor. Posso sim, mas só amanhã. Só faço faxina moço. Hoje vou ter um trabalhão. Com certeza o tiro saiu de dentro da TV: na novela tinha uma discussão, um casal se embolava, veio a mulher, atirou. Certeza. Todo mundo sabe que ela é péssima atriz. E parece também que é ruim de mira: furou a câmera, o tiro saiu da TV, voou pela sala, passou por cima da cabeça da velha e foi matar o homem na cozinha. Se eu bebi? Não, senhor, deve ser o perfume que eu uso. Como eu ia dizendo, acho que o coitado tomava água e morreu afogado. Sim, não conheço essa tal de Lúcia. A empregada? Conheço não. O que eu fazia nu atrás da cortina? Com certeza o tiro saiu da TV. Alívio, acabei de ser morto. Estou aqui, estirado, o peito sangrando: o tiro entrou pelas costas e deve ter se alojado na parede. Ninguém vai querer essa camisa furada, roupa de defunto, mas a parede, sei não, a Lúcia vai ter que chamar um pintor. Mais gastos. Faculdade hoje não paga nada.
Pelas costas, covardia ou querer bem? Talvez quisessem evitar um desgosto derradeiro. Acabar com meus tormentos antes que eu soubesse de tudo. Alívios: vai que tenha sido um amigo, um aluno piedoso, um parente distante, minha velha mãe, a empregada ou até mesmo Lúcia? Onde ela está agora? Ligando para o parente distante? Sabatinando o aluno piedoso? Na casa do amigo ninguém atende. Foi ele, Lúcia! Ele está escondido embaixo da cama, a arma fumegando. Queria me poupar da humilhação de suas traições, Lúcia. Amigos. Ou foi não: vai que ele e Lúcia, sempre juntos. Cúmplices. Agora os dois devem estar no chão da sala, se amando, as roupas rasgadas, ela gozando com meu sangue que escorregou e já lambe fogoso seus pés muito brancos. Não. Quem me matou foi o aluno, que neste instante semeia mil palavras no ventre leitoso de Lúcia esparramada na frente do sofá: minha velha mãe vê tudo e pede que os dois não atrapalhem o som da novela. Não, Lúcia não está. Nem o aluno piedoso que deve ter me matado para que meu amor não estrangulasse Lúcia. Traições? Nunca. Só aquele amor. Quem atrapalha a novela é a empregada e seu amante — talvez o parente distante — que se espalham do quartinho para a sala. Conjecturas. Mamãe vai ter que tapar os olhos e aumentar a TV. A campainha toca, como posso ainda ouvir? Vão me levar ao IML, tirar a bala, vestir o terno, enflorar meu corpo, enterçar minhas mãos. Lúcia chorará, não chore Lúcia, meu amor. Mas não me levam. Não ouço nem o pranto nem o gozo de Lúcia. Só canta no ar a novela da TV: te amo, te amo, porque fui te matar assim? Me responda, não vá agora, te amo, te amo, me perdoe. Na sala, minha mãe chora com a novela. Onde está Lúcia? Por
que não vem me ver ou carpir na minha carne vã? Foi você, não foi, Lúcia? Foi você quem me fez querer assim. Foi você que não suportou tanta querência e disfarçou de egoísmo o seu amar tanto. Me matou para que só em você todo o amor doesse demais. Mas por que fugiu? Por que não vem fechar meus olhos com água salgada? Lúcia ouve o som do tiro e se assusta. Na sala, a sogra dorme em frente à TV. A empregada sai do quarto seminua, o amante corre atrás, mas vendo a patroa da namorada vindo da cozinha se esconde só de camisa atrás da cortina. As três mulheres estão na sala agora: uma ainda dorme, as outras duas se olham. Por fim, a empregada, antes de retornar para o quarto, esquecendo o amante escondido, balança a cabeça num consolo e abre a porta para Lúcia, que sai. A velha acorda, vai para a cozinha, volta e aumenta o som da TV. Na rua, Lúcia caminha apressada e coloca a mão num dos bolsos do casaco. O cano ainda quente da arma queima seus dedos. De dor, ou qualquer outra coisa, ela chora. No chão da cozinha ele morre em paz.
CAIO SILVEIRA RAMOS, natural de Piracicaba (SP), tem 35 anos e é formado em Direito (USP). Vencedor duas vezes dos concursos de contos da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, é autor de "Marginais", que integra o livro Crônicas: São Paulo 450 anos, publicado pela Biblioteca Mário de Andrade. Acaba de concluir Sambexplícito: As vidas desvairadas de Germano Mathias, biografia malandro-sincopada sobre o artista paulistano que, em 2005, gravou o samba Tempo feliz, composto pelo autor. PESQUISA FAPESP129 ■ NOVEMBRO DE 2006 ■ 97
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OS VENCEDORES DO PRêMIO CONRADO WESSEL DE ARTE, CIêNCIA E CULTURA
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CONSELHO CURADOR E DIRETORIA DA FCW
Conselho Curador Presidente Dr. Antônio Bias Bueno Guillon Membros Dr.José Álvaro Fioravanti Dr. José Antônio de Seixas Pereira Neto Dr.José Hermílio Curado Capitão PM Kleber Danúbio Alencar Júnior Dr. Lélio Ravagnani Filho Dr. Reinaldo Antônio Nahas Prof. Stefan Graf Von Galen
DIRETORIA EXECUTIVA
Diretor Presidente Dr. Américo Fialdini Júnior
Diretor Vice-Presidente Dr. Sérgio Roberto de Figueiredo Santos e Marchese
Diretor Financeiro Dr.José Moscogliatto Caricatti
Diretor Administrativo Dr. Adilson Costa Macedo
COORDENAçãO DESTA EDIçãO
Dr.José Moscogliatto Caricatti
FUNDAçãO CONRADO WESSEL
Rua Pará, 50 - 15° andar Higienópolis - 01243-020 São Paulo, SP - Brasil Tel./fax:ll 3237-2590 www.fcw.org.br diretoria@fcw. org. br
ÍNDICE FCW distribui prêmios para arte, ciência e cultura e faz filantropia
4 10 12
Fundação dá a maior premiação do país para vencedores, R$ 100 mil
\
A grande festa na Sala São Paulo, com recital de Arnaldo Cohen Trabalho de Wanderley de Souza é referência no estudo sobre parasitas
Veja quais são as sete instituições parceiras da fundação
f O perfil do inventor, g ~% empresário e benfeitor * 9 Conrado Wessel
14
'José Galizia Tundisi é especialista na análise de recursos hídricos
20
As contribuições de Luiz Carlos Fazuoli para a cafeicultura
23
A luta de AzizAb' Saber para que a ciência não se descole da realidade
29
Fábio Lucas critica a subserviência a modelos literários estrangeiros
32
As fotos publicitárias que ganharam o prêmio de Arte
26
O pesquisador, cardiologista e homem público Adib Jatene
Capa Mayumi Okuyama - Foto da capa: Miguel Boyayan
O IDEAL DE UM PESQUISADOR Fundação Conrado Wessel realiza o sonho de seu idealizador ao premiar a arte, a ciência e a cultura, e ao fazer filantropia
Fundação Conrado Wessel (FCW), ao promover, por meio de uma gestão dinâmica e realizadora, os maiores prêmios nacionais e grandes doações anuais, evidencia a dimensão social inigualável de Ubaldo Conrado Augusto Wessel, que a criou pretendendo uma instituição com "objetivos filantrópicos, beneficentes, educativos, culturais e científicos". No segmento das doações, o orçamento vem crescendo: em 2003, R$ 480 mil; em 2004, R$ 640 mil; em 2005, R$ 720 mil; em 2006, R$ 840 mil. Entre as entidades beneficiadas, por ser oportuno, cabe citar o Corpo de Bombeiros da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Anualmente, sob o patrocínio da FCW, são enviados para o exterior, como neste ano para Hong Kong, na China, mais de 40 integrantes de todas as suas unidades. Lá eles compartilham com outros países das últimas técnicas e equipamentos mais avançados; trazem tais conhecimentos e aparelhos para São Paulo; aqui os aplicam, desenvolvem e, em vários casos, aperfeiçoam. Daí a maravilhosa destreza de
nossos bombeiros com o atendimento cada vez mais eficaz. Além dessa permanente atuação de amplo espectro social, a FCW também beneficia mais de 2.600 jovens, crianças carentes e adultos, com as doações sistemáticas às Aldeias Infantis SOS do Brasil, ao Colégio Benjamin Constant, ao Hospital do Câncer da Fundação Antônio Prudente, à Promoção Social do Exército da Salvação e a outras instituições escolhidas anualmente pela diretoria. Entretanto, o que traduz o ideal de Conrado Wessel é o incremento à arte, à ciência e à cultura, que a fundação concretiza anualmente com a outorga do Prêmio FCW, desde 2002. Trata-se do maior prêmio destinado à arte, à ciência e à cultura no Brasil. Nesta quarta edição o prêmio à Fotografia Publicitária, na categoria Arte, foi distribuído a três fotógrafos, no total de R$ 140 mil líquidos; às respectivas agências foi concedido um diploma de honra ao mérito. Foi realizada ainda, na Sala São Paulo, uma exposição com as cem melhores fotos concorrentes, numa homena-
4 ESPECIAL PRÊMIO CONRADO WESSEL
gem a 64 fotógrafos finalistas. Em Ciência e Cultura, os premiados foram pesquisadores em ciência e tecnologia e um crítico literário. Cada qual ganhou um troféu e R$ 100 mil líquidos — o maior valor para escolhas do gênero no país. Para Ciência e Cultura, o sistema de seleção dos ganhadores contribui significativamente para sua credibilidade entre a comunidade científica. Os nomes provêm de indicações de 140 universidades federais e estaduais, academias, institutos e outras entidades de produção científica e tradição cultural reconhecida. Ao confrontar os grandes nomes enaltecidos pela avaliação de júris formados por representantes do CNPq, Capes, FAPESP, SBPC, ABC, ABL, CTA e FCW, o diagnóstico imediato é de uma contribuição inestimável para o país. Esta edição destina-se a divulgar as ações da fundação para o público interessado — no caso, prováveis candidatos aos prêmios no futuro —contar a história de Conrado Wessel e apresentar os ganhadores do Prêmio FCW de 2005, conhecidos este ano. • PESQUISA FAPESP
Crianças durante atividades em uma das unidades das Aldeias Infantis SOS Brasil, em São Paulo: benefícios a jovens carentes
O INVENTOR WESSEL EM FOCO Conrado Wessel criou a primeira fábrica brasileira de papel fotográfico
onrado Wessel era apaixonado pela ciência e pela arte. Inventor tiato e empreendedor obstinado, criou a primeira fábrica brasileira de papel fotográficol em 1921, utilizando tecnologia e patente próprias, frentou sérios concorrentes estrangeiros, mas conquistou o mercado e formou um patrimônio imobiliário que, obedecendo ao desejo expresso em seu testamento, foi utilizado como lastro para criar uma fundação que apoiasse atividades educativas, culturais e científicas de seis entidades
e incentivasse a arte, a ciência e a cultura por meio de prêmios.A fundação foi instituída em 1994, um ano depois da sua morte, aos 102 anos. Nasceu em Buenos Aires, em 1891, filho de família tradicional de fabricantes de chapéus, em Hamburgo, na Alemanha, que imigrara para a Argentina, em meados do século XIX. No ano seguinte ao seu nascimento, o pai, Guilherme Wessel, migrou para Sorocaba e, posteriormente, para São Paulo, onde se tornou comerciante, além de
6 ESPECIAL PRÊMIO CONRADO WESSEL
professor de Matemática no Seminário Episcopal, no bairro da Luz. Guilherme era um apaixonado pela fotografia e previa um grande futuro para o setor, inclusive no segmento dos clichês. Conrado Wessel herdou do pai essa paixão. Ainda jovem, ganhou dois prêmios em concursos promovidos pela Secretaria da Agricultura. Paralelamente às aulas, seu pai adquiriu uma loja de material fotográfico onde instalou um ateliê de fotografia e clicheria, na rua DiPESQUISA FAPESP
Conrado Wessel com aparelho fotográfico, em foto restaurada: experiências e inovação
reita nc 20. Conrado o auxiliou na gerência da loja. Entretanto, por interesse do pai e seu foi estudar química em 1911, em Viena, na Áustria. Lá aprendeu fotoquímica na K.K. Lehr und Versuchs Antstalt, renomada escola de fotografia, especializando-se em clichês para jornais e revistas. Voltou ao Brasil dois anos depois. Seu projeto era ambicioso: sonhava com a criação de uma fábrica de papel fotográfico nacional. Na época, os fotógrafos do Jardim da Luz, um dos princiPESQUISA FAPESP
pais locais de lazer da cidade, trabalhavam com uma câmera-laboratório: uma caixa de madeira com uma objetiva sobre um tripé.A câmera era dividida em duas partes. A inferior continha os banhos de revelador e fixador utilizados para o processamento químico de filmes e papéis. O papel utilizado era importado de fabricantes como a Kodak, Agfa e Gevaert. Continuando suas pesquisas para descobrir uma fórmula inovadora de banho ao papel e gerar um novo papel
fotográfico, querendo mais "desenvolvimento técnico e comercial", como ele mesmo observou em uma página autobiográfica, tornou-se aluno ouvinte da Escola Politécnica. "Durante quatro anos fiz de tudo ali", contou."Desde a preparação do nitrato de prata até os estudos das diferentes qualidades de gelatinas. Da ação dos halogênios como o bromo, o cloro e o iodo sobre o nitrato de prata. Fiz inúmeras experiências misturando o nitrato de prata ao brometo de potássio, ao cloreto de sódio e ao iodeto de potássio. Cheguei à conclusão de que a mistura de uma pequena dose de iodo ao bromo dava muito melhor resultado, assim como a adição do bromo ao cloro." Depois de muitas experiências, Conrado Wessel chegou a uma fórmula satisfatória para o papel, cujas provas, como ele sublinhou, agradaram muito ao seu pai. A patente de sua invenção, obteve-a em 1921, assinada pelo presidente Epitácio Pessoa. (Veja cópia do documento na página 8.) O próximo desafio era iniciar a produção. Faltavam-lhe máquinas e papel. As máquinas, ele adquiriu "por 8 contos e 500" de um estudante de fotoquímica que, tal como ele, tentara fundar uma fábrica de papel fotográfico. O negócio não tinha dado certo e o equipamento estava disponível. As máquinas foram instaladas num pequeno prédio
ESPECIAL PRÊMIO CONRADO WESSEL 7
de propriedade do pai, na Barra Funda, em 1921. "As fórmulas que eu havia elaborado pareciam boas, mas não poderia assegurar que seriam boas também na fabricação", ele registrou, preocupado. O papel necessário para os testes foi mais difícil, já que no Brasil não havia nenhuma fábrica para fornecer o papel baritado. O material tinha que ser comprado na França, fabricado pela Rivers, ou na Alemanha, pela Scholler. Conrado Wessel saiu à cata de um importador. "Enquanto a encomenda não chegava, estudei como pendurar o papel emulsionado para secar no pequeno espaço de que dispunha", disse. O acaso, ele reconheceu, ajudou-o a encontrar a solução. Conrado Wessel estava na Tapeçaria Schultz, para a qual realizava um serviço de propaganda, quando lhe chamou a atenção o sistema de cortinas que se moviam por cordinhas usadas pelos tapeceiros. Fez um croqui do sistema utilizado na Schultz e imaginou que, empregando método semelhante, poderia secar mais de 100 metros de papel. O papel chegou e a pequena fábrica iniciou sua produção. "Foi um desastre", resumiu Conrado Wessel. Não se aproveitaram mais do que 10 centímetros dos 10 metros de papel emulsionados. Nova tentativa, nova frustração. O papel, ele descreveu, estava quase todo "eivado de pequenas bolhas e outras partículas indesejáveis". Enquanto "matutava" sobre o problema, mais uma vez o acaso — e o olhar arguto — trouxe a solução. Conrado Wessel foi chamado à fábrica das Linhas Correntes, no Ipiranga, para executar um servi-
DIRBCTORIA GERAL
lisüttrio di Agricultora, Indõstrii e Comercio
PROPRIEDADE INDUSTRIAL SECCAO PATENTES DE INVENÇÃO
Certidão de archiTamento e inscripeão de documentos de uso effectivo Em exattfia do despacho lançada na Petifàa de
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Documento sobre novo processo de produção de papel fotográfico. A patente foi conseguida por Conrado Wessel em 1921
ço de clichês. Sozinho no salão de espera, reparou numa pequena máquina utilizada para passar goma no verso das etiquetas. Ele descreveu esse equipamento:"Havia uma cuba e um rolo imerso dentro dela. Com a máquina em movimento, o rolo passava uma certa quantidade da solução, deixando estrias sobre o papel, que também seguia seu curso. Eureca, pensei, meu problema está resolvido". Mais uma vez fez um croqui e adaptou a máquina de emulsionagem ao modelo daquela
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utilizada para gomar etiquetas. E detalhou os resultados: "A máquina se resumia no seguinte: uma cuba de barro vidrado (naquela época não existia o aço inoxidável) cheia de emulsão e um rolo de ebonite que mergulhava nela. O papel passava entre um outro eixo fixo, regulado como o rolo. Dessa maneira, as bolhas ficavam todas na cuba. Mais tarde esse sistema foi melhorado, com mais de um rolo de ebonite, tornando impossível o surgimento de bolhas sobre o papel. Fizemos PESQUISA FAPESP
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Fábrica de papel fotográfico Kodak-Wessel e placa explicativa. Abaixo, folheto com preços
NOVA LISTA DE PREÇOS W TOPAS AS BAROS DOS PAPEIS -WESSgL'
5. Paalo. Settmbro de 1933.
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novas experiências com pleno êxito. Vamos fabricar e vender", comemorou. Nasceu assim a Fábrica Privilegiada de Papéis Photograficos Wessel. ConradoWessel não imaginava, no entanto, que teria que enfrentar ainda a resistência dos fotógrafos, seus potenciais clientes. "Eles experimentaram o material, acharam bons os resultados, mas julgaram melhor continuar com o postal da Ridax, da Gevaert, apesar do preço do meu ser bem menor." Foi nessa época que ele forjou o lema que o PESQUISA FAPESP
acompanharia por toda a vida:"Insista, não desista". Os negócios iam mal até que a sorte — ou talvez a história — reverteu o risco do fracasso. No dia 5 de julho de 1924, Isidoro Dias Lopes deflagrou o movimento conhecido como a Revolução dos Tenentes. São Paulo ficou sitiada, isolada do resto do país. Aos fotógrafos da Luz faltou papel importado. "Numa manhã de um dos primeiros dias de revolução apareceu um deles em minha casa e perguntou se eu tinha postais
para vender", contou Conrado Wessel. A revolução abriulhe o mercado. Ao fim de 29 dias de cerco, os rebeldes se renderam. O fluxo de papel importado foi restabelecido, mas a fábrica de papéis criada por Conrado Wessel já tinha, definitivamente, conquistado a clientela que lhe permaneceu fiel. Os grandes fabricantes estrangeiros, como a Gevaert, tentaram ainda recuperar o mercado oferecendo produtos mais baratos. Conrado Wessel também baixou os preços. "Por incrível que pareça, estes postais mais baratos não foram aceitos pelos ambulantes. Nem os meus, nem os da Gevaert." A produção brasileira cresceu, Conrado Wessel comprou um prédio maior e consolidou sua posição no mercado. Não faltaram propostas de empresas estrangeiras interessadas em parceria com a agora próspera fábrica brasileira de papéis, até que Conrado Wessel firmasse um contrato com a Kodak, garantindo para ela praticamente toda a sua produção. Ficou acertado que a empresa norte-americana construiria uma fábrica nova em Santo Amaro, com maquinado moderno e chamada Kodak-Wessel, administrada por Conrado Wessel. Isso ocorreu em 1949 e durou até 1954.A partir dessa data a patente passou definitivamente à Kodak e o nome da fábrica deixou de ser Kodak-Wessel. Ao longo desse período, com o lucro dos negócios bem administrados, Conrado Wessel comprou imóveis nos bairros de Campos Elíseos, Barra Funda, Santa Cecília e Higienópolis, que, no futuro, se tornariam o patrimônio da Fundação Conrado Wessel. •
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MAIOR PREMIAçãO DO
PAÍS
FCW dá R$ 100 mil líquidos aos vencedores de cada categoria
I
cada edição do Prêmio FCW de Arte, Ciência e Cultura, a fundação vem aperfeiçoando seu formato para torná-lo mais interessante e cobrir eventuais lacunas. Na quarta edição, de 2005, cuja cerimônia de entrega dos prêmios ocorreu em 12 de junho de 2006, na categoria Arte, repetiu-se a homenagem da FCW ao fotógrafo publicitário e às agências de publicidade às quais as fotos se vincularam — um diploma de honra ao mérito às três agências vinculadas aos três primeiros colocados. O Prêmio de Ciência, nas suas cinco modalidades, foi conferido apenas a pessoas naturais, reservando-se para outro exercício a avaliação dos nomes de pessoas jurídicas eventuais indicadas. Nesse sentido não se repetiu o fenômeno de 2004, quando duas instituições receberam prêmio. Na galeria de laureados pelo Prêmio FCW observa-se uma profusão de talentos brasileiros. Na primeira edição, em 2002, os prêmios na área de ciência foram distribuídos
por meio de concurso nas escolas da rede pública de São Paulo. A FCW distribuiu 18 computadores e R$ 150 mil entre as escolas, professores e alunos premiados. Na área de literatura foram premiados três autores inéditos, selecionados por críticos literários entre 94 concorrentes: Noêmia Sartori Ponzeto, Maria Filomena Bouissou Lepecki e Santiago Nazarian. O prêmio foi a edição do livro inédito de cada um, com tiragem de 2 mil exemplares, com noite de autógrafo no Museu da Casa Brasileira, em São Paulo. O prêmio de Arte foi conferido aos fotógrafos Klaus Werner Mitteldorf, Maurício Salomão Nahas Filho, Allard Willen Meindert van Wielink. Na segunda edição, em 2003, a premiação adquiriu novo formato para destacar o trabalho de pesquisadores vinculados a universidades e institutos de pesquisa. O prêmio foi dividido em seis categorias: Ciência Geral (Carlos Henrique de Brito Cruz foi o ganhador), Ciência Aplicada
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ao Meio Ambiente (Philip Martin Fearnside), ao Campo (Jairo Vidal Vieira), ao Mar (Dieter Carl Ernst Heino Muehe), Medicina (Maria Inês Schmidt) e Literatura (Lia Luft). Na categoria Arte ganharam os fotógrafos Bob Wolfenson, Leonardo Martins Vilela e Márcia Ramalho. Para ampliar a participação dos cientistas, a FCW firmou acordo com entidades de fomento à ciência e tecnologia, entre elas a FAPESP, que passou a integrar a comissão de organização e avaliação das candidaturas. Os vencedores de cada categoria recebem um prêmio no valor de R$ 100 mil líquidos — o maior já conferido por uma instituição brasileira — e uma escultura de Vlavianos. A lista com o nome dos indicados foi submetida à avaliação de um júri formado por entidades parceiras da FCW. A partir do apoio da FAPESP, formou-se uma Comissão Julgadora constituída por oito entidades parceiras: ABC, ABL, Capes, CNPq, CTA, FAPESP, FCW e SBPC. PESQUISA FAPESP
{Veja o final desta edição, com a lista dos jurados e o logotipo das parceiras.) Em 2004, na terceira edição, ampliou-se para um total de 140 o universo das entidades convidadas a apresentar nomes-candidatos ao prêmio. Foram vencedores: o bioquímico Isaias Raw, presidente da Fundação Butantan, em Ciência Geral. César Gomes Victora, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), em Medicina. Na categoria Ciência Aplicada à Água ganhou o almirante Alberto dos Santos Franco, especialista na análise e previsão das marés.Em Ciência Aplicada ao Campo, o escolhido foi o Instituto Agronômico, de Campinas (IAC). O Museu Paraense Emílio Goeldi, de Belém, foi o premiado em Ciência Aplicada ao Meio Ambiente. Ferreira Gullar, poeta maranhense radicado no Rio de Janeiro, foi o laureado em Literatura. Por fim, os premiados na categoria Arte (Foto Publicitária) foram os fotógrafos Ricardo CuPESQUISA FAPESP
nha, em primeiro lugar, Paulo Vainer, em segundo, e Felipe Hellmeister, em terceiro. Em 2005, na quarta edição apresentada nas páginas desta revista, o médico e cientista Wanderley de Souza, da UFRJ, recebeu o Prêmio FCW de Ciência Geral. Adib Jatene, do Hospital do Coração, foi o premiado em Medicina. Na categoria Ciência Aplicada à Água ganhou José GaliziaTundisi, do Instituto Internacional de Ecologia e Gerenciamento Ambiental de São Carlos. Em Ciência Aplicada ao Campo, o escolhido foi Luiz Carlos Fazuoli, pesquisador do café do IAC. Aziz Nacib Ab'Saber, da USP, foi o premiado na categoria Ciência Aplicada ao Meio Ambiente. Fábio Lucas, crítico literário da Academia Mineira de Letras, foi o laureado em Literatura. Os premiados na categoria Arte (Foto Publicitária) foram os fotógrafos Maurício Nahas, em primeiro lugar, Andréas Heiniger, em segundo, e Gustavo Rodrigues de Lacerda, em terceiro. •
A escultura de Vlavianos é dada aos vencedores em Ciência Geral, Medicina, Ciência Aplicada ao Campo, Ciência Aplicada ao Meio Ambiente, Ciência Aplicada à Água, Literatura e Arte
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1. Vencedores em cada categoria; 2. Presidentes das instituições que fizeram as indicações; 3. Américo Fialdini Júnior, diretor presidente da FCW;4. Os premiados Fábio Lucas (esq.), Aziz Ab'Sáber e Antônio Bias Bueno Guillon, presidente do Conselho Curador da FCW; 5. Isaac Roitman, do Ministério da Ciência e Tecnologia (esq.), e Ricardo Brentani, diretor presidente do Conselho Técnico-Administrativo da FAPESP; 6. Os fotógrafos Maurício Nahas (esq.), Andreas Heiniger e Gustavo Lacerda; 7. Rubens Fernandes Júnior, presidente do júri de Fotografia Publicitária (esq.), o pianista Arnaldo Cohen e sua esposa, Ann.
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PESQUISA FAPESP
A FESTA DOS GANHADORES s nove vencedores do Prêmio FCW 2005 de Arte, Ciência e Cultura participaram da cerimônia de premiação na Sala São Paulo no dia 12 de junho, na capital paulista. Os integrantes do júri que escolheu os ganhadores, o Conselho Curador e os diretores da Fundação Conrado Wessel estiveram presentes, além de cerca de mil pessoas.Todos assistiram a PESQUISA FAPESP
um recital do pianista Arnaldo Cohen, que tocou peças de Bach,Alberto Nepomuceno, Radamés Gnattali, Luis Levy, Francisco Braga, Ernesto Nazareth e Chopin. No local ocorreu também a Mostra de Fotografia Publicitária, com os melhores trabalhos dos fotógrafos do setor, que concorreram ao prêmio de Arte da FCW. Confira alguns flashes da festa.
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NO ENCALÇO DO PARASITA Radicado no Rio de Janeiro, o baiano Wanderley de Souza é referência internacional no estudo de protozoários que atacam o homem
uando cursava o colegial, hoje chamado de ensino médio, o parasitologista Wanderley de Souza já pensava em ser cientista. Mas havia um obstáculo geográfico a separá-lo de sua aspiração. Nascido em 1951 no município baiano de Iguaí, Sout sabia que, naquele tempo, teia de deixar a terra natal para perseguir seu objetivo. "Na Bahia, não havia então condições de ser pesquisador", relembra. "Eu teria de ir a São Paulo ou ao Rio de Janeiro." Escolheu a capital fluminense, onde entrou no curso de medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1968. "Antigamente, quem queria virar pesquisador (nas áreas biológicas) fazia medicina", conta. "Hoje o caminho mais tradicional é cursar biologia."
Desde o primeiro ano da faculdade, já na condição de bolsista de iniciação científica pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o jovem Wanderley abraçou a área que seria o centro de seus estudos, as doenças causadas por protozoários (seres vivos com apenas uma célula), como os parasitas da malária, da toxoplasmose e da leishmaniose. Fez seus primeiros trabalhos sob orientação de Hertha Meyer, alemã emigrada para o Brasil na década de 1940, que foi uma das pioneiras na área de cultivo celular, e Cezar Antônio Elias, especialista em radiobiologia. Formou-se em 1974 e logo em seguida fez mestrado e doutorado no Instituto de Biofísica da
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UFRJ, analisando em detalhes a biologia do Trypanosoma cruzi, protozoário causador da doença de Chagas, até hoje um de seus principais objetos de estudo. "No curso de medicina, o que mais me interessou foi o estudo dos parasitas", conta Souza. "Sempre quis entender como eles penetravam nas células humanas." Desde então, Souza desenvolve uma bemsucedida carreira de pesquisador, ocupando hoje o cargo de chefe do Laboratório de Ultra-estrutura Celular Hertha Meyer do Instituto de Biofísca Carlos Chagas Filho da UFRJ. Ele passou pequenas temporadas no exterior (México, Estados Unidos e Escócia), sem, no entanto, fazer um pós-doutorado formal fora do país. PESQUISA FAPESP
Wanderley de Souza: descrição detalhada de duas organelas do Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas
De forma esquemática, os trabalhos conduzidos em seu laboratório podem ser agrupados em três grandes linhas: o estudo da organização estrutural de parasitas que provocam doenças no homem; sua interação com células do hospedeiro; e o desenvolvimento de novas drogas que possam ser utilizadas em quimioterapia. "Nos últimos oito anos, estamos intensificando a procura de novas drogas PESQUISA FAPESP
para combater os parasitas", diz Souza. Um dos alvos prioritários dos cientistas é desenvolver fármacos que atuem sobre a síntese do ergosterol, um tipo de composto solúvel em gorduras que é essencial para a sobrevivência e replicação de alguns parasitas. De função semelhante ao colesterol, o ergosterol controla a fluidez das membranas de certos protozoários. Além de pesquisar os parasitas unice-
lulares, o laboratório também se dedica, com menor ênfase, ao estudo de estruturas de nematóides (vermes), tendo como modelo experimental o Litomosoides chagasfilhoi, agente causador da filariose em roedores. Em alguns momentos da vida profissional o parasitologista exerceu, ao lado de seu trabalho de investigação científica, cargos na administração pública, sempre na área de educação ou pesquisa. Na década de 1990 foi o primeiro reitor da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), em Campos dos Goytacazes, um projeto de instituição de ensino idealizado pelo antropólogo Darcy Ribeiro. Entre janeiro de 2003 e janeiro de 2004, foi secretário executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia. Atualmente é secretário estadual de Ciência, Tecnologia e Inovação no Rio de Janeiro, posto que ocupa pela segunda vez."Um dos maiores desafios do Brasil é transformar o nosso conhecimento básico em produtos com valor econômico", afirma Souza. "Também precisamos atrair mais empresas privadas para a pesquisa científica." Autor de mais de 400 artigos científicos publicados em revistas internacionais, sem contar o meio milhar de comunicados apresentados em congressos e os sete livros editados, Souza é um dos maiores especialistas na anatomia dos protozoários e nos mecanismos de invasão utilizados por esses parasitas para penetrar nas células humanas. Nesse campo de estudos, seus trabalhos de maior relevância talvez sejam as descrições pormenorizadas de duas importantes organelas do
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O parasitologista brasileiro é autor de mais de 400 artigos publicados em revistas científicas internacionais
Trypanosoma cruzi, o acidocalcissoma e o reservossoma, esta segunda descoberta pela própria equipe de Souza. Segundo o parasitologista, que será o presidente do 13° Simpósio Internacional de Protozoologia a ser realizado no Brasil em 2009, seus escritos científicos já foram citados cerca de 7 mil vezes em artigos de outros pesquisadores. "O Brasil é líder nos estudos de protozoários", comenta.
Além da expressiva produção acadêmica, Souza também se orgulha de formar novas levas de pesquisadores. Já orientou cerca de 80 pós-graduados e contribuiu para a formação de núcleos de estudos em parasitologia em universidades de vários estados. "Temos de passar o conhecimento adiante, para outros grupos", diz. Somente em seu grupo na UFRJ trabalham cerca de 50 pessoas.
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Por sua atuação de destaque na ciência fluminense, Wanderley Souza, que é membro da Academia Brasileira de Ciências desde 1987 e da Academia de Ciências do Terceiro Mundo desde 1990, recebeu o título honorífico de cidadão do estado do Rio de Janeiro. Esse baiano radicado há quase quatro décadas no Rio de Janeiro é casado e pai de três filhos — dois dos quais alunos de pós-graduação da Uenf. • PESQUISA FAPESP
Trajetória de José Galizia Tundisi inclui a criação de dois programas de pós-graduação
aprendizado de história natural no colégio mexeu com a imaginação e o rumo profissional de José Galizia Tundisi, 68 anos, que em seu currículo registra quase cinco décadas de estudes e projetos dedicados a recursos hídricos e meio ambiente. Era o final da década de 1950.Tundisi estudava em Jaú, no interior de São Paulo, cidade vizinha a Bariri, onde nasceu e ainda morava, e se encantou com as aulas dadas pelo professor Antônio Therezio Mendes Peixoto, a ponto de se lembrar, tantos anos depois, da importância desse mestre para as suas escolhas futuras. A primeira dessas escolhas foi o curso de história natural na Universidade de São Paulo (USP), vinculado à Faculdade de Filosofia. Naquele tempo não existia ainda o curso de ciências biológicas. "O curso de história natural tinha um pouco a tradição da velha escola alemã de naturalistas, influência do professor Ernest Marcus e outros fundadores da USP", diz Tundisi. As disciplinas contemplavam várias PESQUISA FAPESP
áreas, como zoologia, botânica, geologia, mineralogia, física, química e matemática. O curso, com duração de cinco anos, foi concluído em 1962. "A grande escola que eu tive relacionada com água e ecologia de águas foi no Instituto Oceanográfico da USP", diz o pesquisador. Foi lá que ele fez a iniciação científica, orientado pela professora Marta Vanucci, que trabalhava em um circuito internacional muito amplo e, com isso, trazia sempre idéias novas. "Fiquei muito interessado por essa nova dimensão da ciência a que fui apresentado, que não se limitava a descrever os
organismos, mas tinha como objetivo conhecer melhor as inter-relações entre os organismos e o ambiente, a base da ecologia", diz. A etapa seguinte foi o mestrado em oceanografia biológica pela Universidade de Southampton, na Grã-Bretanha, encerrado em 1966 com a dissertação "Alguns aspectos da produção de substâncias extracelulares pelas algas marinhas". Na volta ao Brasil fez o doutorado em ciências biológicas na USP, orientado por Francisco Lara, com a defesa da tese "Produção primária, standing stock do fitoplâncton e fatores ecológicos da região lagu-
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nar de Cananéia", em 1969.0 pesquisador trabalhou no Instituto Oceanográfico da USP até 1971, quando foi para São Carlos, no interior de São Paulo, onde mora até hoje, fundar o curso de graduação em ciências biológicas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). No ano seguinte criou o curso de graduação em biologia e mais tarde o programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) de ecologia e recursos naturais, que em outubro completou 30 anos. "O programa de pós-graduação teve um papel importante na formação dos primeiros quadros profissionais no Brasil em ecologia, com uma visão mais sistêmica, e não apenas descritiva", diz Tundisi. Em 1984 ele voltou às origens acadêmicas. Foi novamente para a USP de São Car-
los, desta vez no Departamento de Hidráulica e Saneamento. Lá, em 1989, criou outro curso de pós-graduação, chamado ciências da engenharia ambiental. "Foi uma evolução do processo, porque o curso de ecologia da UFSCar era mais básico, formava profissionais voltados para o problema da água, enquanto o curso da USP tinha fundamentalmente uma aplicação em água", relata. Após criar um curso de graduação e dois de pós-graduação na mesma cidade, em duas universidades diferentes, Tundisi foi convidado a presidir o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), onde ficou de 1995 a 1998, quando se aposentou da carreira acadêmica. Outros projetos estavam a caminho. A experiência e o conhecimento de Tundisi e de
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sua mulher, a pesquisadora Takako Matsumura-Tundisi, especialista em ecologia de sistemas, resultaram na criação do Instituto Internacional de Ecologia, em São Carlos, empresa que desenvolve pesquisas em planejamento e gestão de recursos hídricos e oferece serviços de consultoria na área. Entre os clientes estão várias empresas interessadas em resolver o problema da gestão das águas, grandes hidrelétricas e empresas de mineração. Tundisi também coordena um projeto, chamado Programa de Águas (Water Programme), parte de um programa mundial que reúne 96 academias de ciências e sob a responsabilidade da Academia Brasileira de Ciências. "A finalidade é estender essas idéias que desenvolvi no Brasil em termos de pós-graduação, pesPESQUISA FAPESP
José Galizia Tundisi: cinco décadas dedicadas ao estudo dos recursos hídricos
quisa e formação de recursos humanos para criar centros de pesquisa, inovação e capacitação", diz. Brasil, Polônia, China, Jordânia, Casaquistão e África do Sul integram a rede para implementar esses centros. "O grande gargalo que temos é formar gerentes qualificados que trabalhem na gestão das águas do ponto de vista da inovação", diz Tundisi. Isso significa ter uma visão mais ampla do processo de gestão, que não se limite apenas ao tratamento da água, mas sim o seu papel na economia local, regional e na saúde humana. Entre os planos atuais do pesquisador está a criação de um terceiro curso de pós-graduação, de recursos hídricos e desenvolvimento sustentável, no Centro Universitário Metropolitano de São Paulo (Unimesp), em Guarulhos. "É um PESQUISA FAPESP
terceiro momento, em que vamos trabalhar muito mais a questão da água na Região Metropolitana de São Paulo", diz Tundisi, que prevê um cenário não muito alentador para daqui a duas décadas. "Em 2025 poucos países serão capazes de produzir e exportar alimentos a partir da água que possuem." E lembra que para produzir um boi são necessários 4.500 metros cúbicos de água e outros milhares de litros para um único quilo de arroz. A América do Sul, com o aqüífero Guarani, é um dos continentes privilegiados nesse cenário que se desenha para o futuro próximo. "O Brasil tem um papel estratégico para a produção de alimentos não só para a nossa população, mas para o mundo", diz o pesquisador. A água disponível será a grande diferença entre os países.
interesse de Tundisi por história natural cinco décadas atrás resultou em 300 trabalhos publicados, 24 livros lançados e a formação de 60 mestres e doutores, espalhados por estados como Paraná, Santa Catarina, Amazonas, Minas Gerais, Paraíba, Mato Grosso e países vizinhos. "Muitos mestres e doutores que formei estão hoje liderando cursos e programas de pós-graduação na América Latina", diz. Muitos gerentes de empresas de saneamento e indústrias também foram formados por Tundisi, em cursos realizados na América Latina e na África e em cursos ministrados para gerentes de recursos hídricos de países do Mediterrâneo. Todos formados com uma visão integrada dos processos que englobam água, meio ambiente, saúde humana e economia. •
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CIÊNCIA APLICADA AO CAMPO
ENTUSIASMO PELO
CAFÉ
As contribuições do pesquisador Luiz Carlos Fazuoli para a cafeicultura nacional
mesmo fruto e a mesma planta de café que o pesquisador Luiz Carlos Fazuoli, do Instituto Agronômico (IAC) em Campinas, se dedica a estudar, há mais de 35 anos, trazendo muitas contribuições para o melhoramento genético da cultura cafeeira do país, são os mesmos com os quais seu pai, Guido Fazuoli, começou a trabalhar como meeiro, ainda na adolescência, depois de chegar ao Brasil, vindo da Itália, em 1923. Instalado inicialmente na cidade de Dois Córregos e posteriormente Jaborandi, duas cidades do interior paulista, o velho Fazuoli plantou e abanou café, e viu depois o filho se tornar engenheiro agrônomo, em 1969, na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo, já em sua própria fazenda no mesmo município de Jaborandi. "O fato de eu vir a estudar café foi uma simples coinci-
dência", diz Luiz Fazuoli. Mas o café logo apareceria em sua vida. "Fiz estágio na Esalq, no período de 1967 a 1968, com a orientação do professor Eurípedes Malavolta, sobre nutrição do cafeeiro, e publiquei o meu primeiro trabalho científico em 1968", conta. Depois de formado, Fazuoli ganhou uma bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para trabalhar com genética e melhoramento do milho no IAC. "Eu havia me entusiasmado pelo melhoramento de plantas já no quinto ano da faculdade com o professor Ernesto Paterniani." Nessa prática agronômica, o pesquisador busca obter novas variedades para uma determinada cultura, normalmente levando o pólen de uma flor de uma planta mais resistente a uma doença para os órgãos femininos da flor de uma outra planta igual-
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mente resistente ou mais produtiva, por exemplo, num longo e demorado processo para resultar em uma linhagem diferente das existentes. "No melhoramento, é preciso acumular uma grande bagagem de conhecimento em botânica, nutrição, pragas e doenças", explica. No IAC, o trabalho inicial com milho tinha uma relação com seu passado. "Meu pai plantava milho naquela época e desde pequeno acompanhei a plantação, embora eu ajudasse mais no armazém dele em Jaborandi." Foi nessa cidade, na região de Ribeirão Preto, que Fazuoli nasceu, em 1940, e conheceu sua esposa. O conhecimento maior e a especialização no café, ele só iniciaria com o término de sua bolsa em 1970. "Acabou a bolsa e não havia vaga para mim. Aí recebi um convite para dar aula na Universidade Estadual Paulista (Unesp) de PESQUISA FAPESP
Jaboticabal, mas, quase ao mesmo tempo, surge no Brasil a ferrugem, uma doença perigosa para o cafeeiro." Provocada por um fungo, a ferrugem ataca principalmente as folhas, deixando-as amarelas e os ramos secos, prejudicando, com o tempo, toda a planta. Originária da África, a doença atingiu primeiro as plantações de café próximas aos cacaueiros, na Bahia. "Com esse perigo iminente para São Paulo, o instituto resolveu contratar mais dois pesquisadores para trabalhar com o café diretamente com o doutor Alcides." O "doutor Alcides" citado por Fazuoli é o engenheiro agrônomo Alcides de Carvalho, reconhecido como a maior liderança científica da cafeicultura mundial. Ele trabalhou no IAC de 1935 a 1993 e foi o principal responsável por grande parte das variedades de café e pesquisas para entender e conPESQUISA FAPESP
trolar as doenças da planta. Fazuoli trabalhou por 23 anos sob a coordenação de Carvalho e é considerado seu discípulo e herdeiro direto nos estudos dos cafeeiros. "No IAC queriam alguém disposto a sair pelo estado para testar e estudar as novas variedades resistentes à ferrugem que chegou em São Paulo logo em seguida, em 1971", diz. Naquele tempo, Carvalho já tinha variedades imunes ao fungo. Ele começou a se preparar contra a ferrugem em 1950, com sementes colhidas nos experimentos em Campinas e outras enviadas pelo Centro de Investigação das Ferrugens do Cafeeiro (CIFC) de Portugal, país que lutava contra a doença nos cafezais em suas então colônias africanas, como Angola e Moçambique. "Passamos a testar as variedades não só em relação à doença, mas também em relação aos tipos de grãos, produ-
tividade e demais características agronômicas." Muitas dessas variedades foram cruzadas com outras desenvolvidas aqui no Brasil e resultaram em terceiras linhagens mais resistentes. Daí para frente, Fazuoli colaborou ou foi o principal artífice de muitas variedades de café, cada uma própria para uma região climática do estado e do país, com porte alto ou baixo, cores de fruto e qualidade da bebida. São cultivares mais antigas e disseminadas por todo o país, como a Mundo Novo, a Acaiá, a Icatu, até as mais recentes lançadas em 2000, como a Tupi IAC 1669-33, a Obatã IAC 1669-20 e a Ouro Verde IAC H5010-5, além de outras em fase final de seleção, como a Catuaí e uma variedade da Mundo Novo, resistentes à ferrugem.As atuais cultivares do IAC no Brasil representam 90% do café arábica (Coffea arábica) plantado
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Luiz Carlos Fazuoli: durante 35 anos mantém a tradição do IAC em produzir novas variedades de café
no país, relativos a dois terços dos 6 bilhões de pés de café brasileiros. O restante é de café robusta (Coffea canephorà), predominante no estado do Espírito Santo, espécie de que o IAC também desenvolve novas variedades e clones. Muito das cultivares desenvolvidas no IAC também são produtivas em outros países. "Na Colômbia, 60% dos cafeeiros são da variedade Caturra, do IAC. Desde a década de 1970, o instituto recebe muitos pesquisadores desse país (segundo produtor mundial atrás do Brasil). Na Costa Rica, 55% da plantação é da cultivar Catuaí e os cafeeiros restantes, de Caturra." Fazuoli também foi consultor do Instituto Interamericano de Cooperação para a
Agricultura (IICA) em países centro-americanos e africanos. Na trajetória acadêmica, ele fez o mestrado entre 1974 e 1977, na Esalq,mas o doutorado demorou um pouco."Estava envolvido com o trabalho no IAC e não havia tempo", lembra Fazuoli. Iniciado em 1986, ele defendeu sua tese em 1991, na Universidade Estadual de Campinas, quando completou 51 anos de idade. Como professor, dá aulas na pós-graduação da Esalq e no IAC sobre melhoramento de café. Embora com tempo de trabalho para se aposentar, Fazuoli diz que vai esperar mais um pouco e continua acompanhando, como diretor do Centro de Café Alcides Carvalho do IAC, as pesquisas posteriores ao recém-finaliza-
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do Genoma do Café, em que se verificam, por exemplo, genes específicos, relacionados à qualidade da bebida. Ele também acompanha novidades como uma linhagem de cafeeiro com grãos descafeinados, em colaboração com a pesquisadora Maria Bernadete Silvarolla, e até uma variedade formada pelos cafés arábica e robusta, já chamada de arabusta. Casado e com três filhos que não seguiram a tradição familiar e se voltaram para o direito, Fazuoli mantém uma propriedade agrícola herdada do pai. "Ela está arrendada com cana e soja. Café eu não planto porque a região (Jaborandi, Barretos) é muito quente e não permite o plantio de café arábica." Palavra de quem conhece. • PESQUISA FAPESP
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O GEÓGRAFO DA FOME Aziz Ab'Sáber luta para que a ciência não se distancie da realidade humana
0 geógrafo foge do estereótipo de homem de ciências centrado em livros e teorias
ada desagrada mais a um cientista mjpderno do que falar em determinismo geográfico, mas, no caso do geógrafo Aziz Ab' Saber, a controversa teoria parece ter pregado uma peça em seu destino, como que o levando a sua opção pelo bem-estar do homem comum e pela preservação da natureza. Filho de um libanês (cuja bandeira traz uma folha de cedro, árvore típica da região, símbolo de força e eternidade) e de uma brasileira do sertão florestal, o pesquisador, que acaba de completar 82 anos, nasceu em São Luiz do Paraitinga, cidadezinha do interior paulista que também foi berço de outro mestre da ciência nacional, Oswaldo Cruz, cuja casa era cuidada pelo padrinho de Aziz. Isso dá o que pensar. "Ninguém escolhe o lugar, o ventre, a condição socioeconômica e cultu-
TH
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ral para nascer. Nasce onde o acaso determinar. Por isso somos responsáveis por todos aqueles que estão agora nas favelas, na periferia", analisa o professor. Ab'Saber, como se pode ver, foge do estereótipo do homem de ciências centrado em livros e teorias. "Parto do princípio de que as pessoas precisam, em primeiro lugar, entender o que é cultura para, depois, entender o que é ciência. A cultura é um conjunto de valores do homem.A pesquisa agrega conhecimento à cultura, alimenta a ciência e acelera os processos evolutivos das sociedades", observa. Para ele, a ciência, em si, é inocente e para que seja útil à sociedade precisa se combinar com as outras ciências, para que surjam descobertas novas. "As ciências têm que se dirigir à socieda-
de, à comunidade humana. Isso faz as ciências do homem fundamentais em todo o corpo geral das ciências, a fim de que o progresso científico não fique por demais distanciado da realidade das comunidades humanas às quais será aplicado." A junção do científico e o social é a base do pensamento e, mais importante, da ação do geógrafo, filho de um imigrante iletrado que se preocupava com a educação de seus filhos e se mudou de São Luiz para Caçapava pensando em dar melhores chances a todos eles. Ainda assim, seus professores de geografia, confessa, não foram os melhores.A carência de livros e revistas, que a família não podia comprar, ele supriu, gosta de dizer, "lendo a paisagem". Ingressou na Universidade de São Paulo em 1941, disposto a estudar
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história e geografia, disciplinas integradas até o segundo ano. A opção pela última foi natural. Teve a sorte de ter como mestres alguns dos professores da famosa Missão Francesa, grupo de intelectuais da França que lecionaram na USP entre 1935 e 1946. Seu favorito foi o geomorfologista Pierre Monbeig, que, mexendo com sua vaidade, lhe ensinou o caminho da verdadeira pesquisa geográfica. Num trabalho de faculdade arriscou um pequeno avanço no terreno da teoria. O francês fez bico. "Aziz, gostei do seu trabalho, mas o aconselho a primeiro fazer análises para um dia chegar à teoria que você merece." O insight foi imediato. Ab'Saber percebeu que livros e revistas acadêmicas, pelo menos as de seu tempo, não o levariam a lugar nenhum se não fosse a campo. "Mergulhei em uma série de pesquisas regionais: pesquisei o domínio dos morros florestados, seu processo de povoamento, o domínio dos cerrados, as chapadas e cheguei à Amazônia e ao Rio Grande do Sul." Revirando o país, começou, aos poucos, a tentar entendê-lo. geógrafo nunca mais se esqueceu das lições de Monbeig e de como o professor o ensinou que toda teorização precoce termina por ser repetitiva e estéril e que, antes de conhecer na prática as relações entre o homem e a terra, é impossível teorizar. Foi com esse pensamento que criou a sua celebrada Teoria dos Redutos. Em 1957, cicerone do geógrafo francês Jean Trincart, numa expedição ao interior de São Paulo, mais especificamente na região entre Salto e Jundiaí, foi numa conver-
sa com o companheiro de viagem que teve a iluminação para sua tão esperada teoria. Observaram linhas de pedra (stone Unes) no meio de vários barrancos, em encostas de morros ou a cerca de 1 metro abaixo da superfície. Ao observar o chão pedregoso,Trincart intuiu que no passado havia, naqueles lugares, um clima mais seco, com uma flora de caatingas e cerrados. "Você conhece o Nordeste seco, sabe que tem chão pedregoso e que as raízes dos arbustos penetram pelo meio das pedras e se fixam. Então, essa linha de pedras representa outro ambiente, outro clima, outra combinação de fatores fisiográficos e ecológicos que existiram em outra época", avaliou o francês, aguçando a curiosidade deAb'Sáber, que passou a mapear as linhas de pedra do país.
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Segundo a Teoria dos Redutos, durante o quaternário antigo, há cerca de 500 mil anos, o nível do mar desceu 100 metros do seu nível normal. O clima ficou mais frio e seco, reduzindo a tropicalidade e suas florestas. Os espaços deixados por elas foram ocupados por caatingas, vegetação característica de climas secos. Com o retorno do clima quente, o mar subiu novamente e a alta da umidade fez com que as florestas se expandissem novamente. Havia um porém: durante o tempo em que se mantiveram separadas, as vegetações se desenvolveram de forma diferenciada e, quando se emendaram, houve a reunião de várias florestas diversificadas. Ab'Sáber imediatamente se lembrou das observações de Charles Darwin, para o qual quando uma espécie é isolada em um PESQUISA FAPESP
ambiente, acumula tantas mutações que, depois de certo tempo, acaba se constituindo numa espécie diferente, isolada. "Ele foi genial. Mesmo sem saber da mudança dos oceanos, quando esteve em Galápagos, descobriu os 'refúgios insulares'."No caso brasileiro, os refúgios estavam em áreas continentais, e não em ilhas. "Compreendi que, no momento em que a semi-aridez predominou, as florestas recuaram para pontos mais úmidos. No processo de retropicalização, as caatingas foram abafadas, cedendo espaço para florestas densas, úmidas, com grande biodiversidade. Ora, nada se cria do nada. Não se cria uma biodiversidade fantástica onde não houve refúgios nem redutos", explica. O colega e amigo Paulo Vanzolini aproveitou a descoPESQUISA FAPESP
berta do amigo e a aplicou em seu campo de estudos, criando o conceito de "refúgios", ou seja, o contraponto do que teria acontecido aos animais submetidos a essas condições: para ele, a fauna teria se concentrado nesses locais de florestas, os refúgios. A mesma espécie teria ficado dividida em vários refúgios separados por barreiras ecológicas, submetidas a diferentes condições de sobrevivência. Cada uma teria sofrido especiação, fator que poderia explicar a grande biodiversidade da América do Sul. Mas o trabalho de Aziz Ab'Saber não parou com essa teoria importante. Foi diretor, entre 1969 e 1982, do extinto Instituto de Geografia, atuando também no Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São
Paulo (Condephaat), onde iniciou o processo de tombamento da serra do Mar e foi o grande responsável pelos tombamentos da serra do Japi, em Jundiaí, e da Pedra Grande, em Atibaia. O geógrafo foi presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) entre 1993 e 1995 e participou ativamente da elaboração do Projeto Floram (Reflorestamento da Amazônia), que visava integrar de forma ecologicamente sustentável a região ao resto do país, impedindo a destruição sistemática do ecossistema em nome de ganhos de capital. Seus estudos sobre o Nordeste e a Amazônia são referências acadêmicas fundamentais, o que não impede o geógrafo, mesmo octogenário, de manter a energia e a combatividade política de sempre. Suas críticas à falta de preparo dos governantes brasileiros em lidar com o meio ambiente e a nossa geografia são sempre ouvidas com respeito, embora quase não sejam implementadas pelos mandatários da nação. "O Brasil de hoje precisa cuidar do Brasil de amanhã",costuma esbravejar, deixando claro a sua preocupação em pesquisar formas de manter o desenvolvimento do país sem que isso implique a destruição de suas reservas naturais. Mesmo a situação das cidades está na sua pauta de estudos, tendo criado projetos para a periferia das metrópoles que ajudariam a combater a influência do tráfico e da criminalidade sobre as crianças dessas áreas. "Quem não tem ética com o futuro e capacidade de pensar o futuro em diferentes níveis e profundidades de tempo deixa que a devastação aconteça", avisa. •
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MEDICINA
CORAçõES, INVENTOS E RECURSOS Adib Jatene tornou-se referência como cirurgião, pesquisador e homem público
s 77 anos de idade o ciruro cardiovascular Adib Jatene segue fazendo o que gosta. Há sete anos ele deixou a cadeira de professor titular da Faculdade de Medicina da USP, aposentando-se também do cargo de diretor científico do Instituto do Coração (InCor). Mas suas mãos continuam a consertar corações praticamente todos os dias no Hospital do Coração, em São Paulo, instituição privada fundada por um grupo de senhoras da Associação Sanatório Sírio em 1976 e dirigida por Jatene até hoje. Em pelo menos um aspecto a rotina do cirurgião tornou-se mais amena que no passado. Antigamente ele não dava conta de atender a multidão de pacientes que fazia questão de operar-se com ele e com mais ninguém. Hoje essa demanda já não é tãoforte — mas o cirurgião enxerga na mudança o coroamento de seu trabalho de professor. "A
vida inteira eu lutei para que houvesse equipes de excelência espalhadas por todo o Brasil e hoje isso é uma realidade. E muitas dessas equipes têm grandes cirurgiões que eu ajudei a formar", afirma. Vinte e três anos atrás Jatene já defendia essa tese com todas as letras, quando o então presidente da República, o general João Figueiredo, sofreu um enfarte e resolveu operar-se em Cleveland, nos Estados Unidos. "Na época, eu disse que qualquer paciente tinha direito de se operar onde quisesse, mas o desafio do Brasil era permitir que qualquer cidadão brasileiro tivesse acesso a equipes de cirurgiões de nível internacional em todo o território do país. Afinal, a rapidez no socorro médico é essencial para o sucesso do tratamento." Embora Jatene tenha feito com as próprias mãos ou chefiado cerca de 100 mil opera-
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ções cardíacas, seus interesses nunca se limitaram ao bisturi. Secretário da Saúde do estado de São Paulo no início dos anos 1980, ele criou, na época, um plano estratégico para garantir um patamar mínimo de atendimento à população de baixa renda em todas as regiões da cidade. Boa parte dos hospitais construídos na periferia paulistana nos últimos anos é resultado desse plano, ainda que a carência de leitos persista. Sobre sua mesa de trabalho, no Hospital do Coração, há um mapa da capital paulista, dividido em sub-regiões, cada qual pintada com uma cor que revela o índice de leitos. Jatene segue no combate a esse flanco vulnerável. Ele lidera o Programa de Saúde da Família, coordenado pela Fundação Zerbini, responsável pela gestão do InCor, que construiu módulos de saúde nos bairros de Sapopemba e Vila PESQUISA FAPESP
Nova Cachoeirinha. "Temos equipes de saúde da família e grupos de especialistas para dar cobertura a elas", diz. No Instituto de Cardiologia Dante Pazzanese, em São Paulo, Jatene exercita outra de suas paixões, a bioengenharia, que ao longo de sua carreira resultou no desenvolvimento de próteses, equipamentos cirúrgicos e de diagnósticos para suporte a operações cardíacas. Tais inventos substituíram similares importados e permitiram ampliar o acesso dos pacientes brasileiros a tratamentos. A inovação mais recente em que tem participação é um ventrículo cardíaco implantável eletromecânico destinado a pacientes na fila de espera por um transplante cardíaco. E, como se tais atividades não fossem suficientemente absorventes, Jatene é membro de 32 sociedades científicas, preside o Conselho Deliberativo do Museu PESQUISA FAPESP
de Arte de São Paulo, o Masp, e supervisiona suas fazendas de gado no interior paulista. Adib Domingos Jatene nasceu em Xapuri, no Acre, no dia 4 de junho de 1929. Perdeu o pai, um comerciante libanês, vítima de febre amarela, quando tinha apenas 2 anos de idade. A adolescência foi passada em Uberlândia, onde a mãe viúva instalou-se, abrindo um armarinho. Mais tarde, trocou Minas Gerais por São Paulo para fazer o ensino médio. E se graduou, aos 23 anos, pela Faculdade de Medicina da USP Lá também faria sua pós-graduação, orientado pelo cirurgião Euryclides de Jesus Zerbini, com quem começou a trabalhar em 1951. Em 1955 foi lecionar numa faculdade de medicina em Uberaba, mas voltou a São Paulo dois anos mais tarde, como cirurgião do Hospital das Clínicas de São Paulo e do Instituto Dante Pazzanese.
Nessa época organizou no HC um laboratório — no qual desenvolveu o primeiro aparelho coração-pulmão artificial —, semente do futuro Departamento de Bioengenharia. Em 1961 deixou o HC e concentrou-se no Dante Pazzanese (que hoje é administrado por uma fundação que leva o nome do cirurgião). Lá organizou a Oficina de Bioengenharia, onde foram desenvolvidos instrumentos e aparelhos, hoje produzidos industrialmente e utilizados no Brasil e no exterior. Em 1983 sucedeu a Euryclides Zerbini na cadeira de professor titular de cirurgia cardiovascular da FMUSP e ajudou a desenvolver o Instituto do Coração, que se tornaria uma referência internacional de atendimento e pesquisa, inaugurando um modelo inovador de gestão hospitalar. Nele, o atendimento a particulares e convênios hospitala-
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res ajuda a financiar os leitos destinados aos pacientes do Sistema Único de Saúde. Os médicos do InCor, em vez de trabalhar em vários lugares, são estimulados a atuar exclusivamente lá dentro, recebendo salários maiores. E ainda podem, em determinados períodos, atender pacientes particulares em consultórios do hospital. "Até 1982, as verbas eram insuficientes para permitir um funcionamento adequado. Quando começamos a captar os recursos, não só colocamos o hospital para funcionar com capacidade plena como passamos a suplementar o salário dos funcionários e estimular fortemente a pesquisa", lembra Jatene. Autor de cerca de 700 trabalhos científicos, Jatene deu contribuições no campo da cirurgia de revascularização do miocárdio e da cirurgia de cardiopatias congênitas. Descreveu a técnica de correção de transposição dos grandes vasos da base, conhecida hoje como Operação de Jatene. Em meados dos anos 1980 foi um dos principais artífices da realização de transplantes de coração, depois das experiências feitas pelo professor Euryclides Zerbini, no final dos anos 1960. Os transplantes tornaram-se viáveis com o surgimento de drogas imunossupressoras que conseguiram driblar o efeito da rejeição de órgãos. Nunca largou o bisturi mas, na década de 1990, deu vazão a seus talentos de homem público. Foi ministro da Saúde em dois governos. Com Fernando Collor, ficou apenas oito meses no cargo. Em 1995, com Fernando Henrique Cardoso, tornou-se célebre na batalha pela criação do imposto da saúde, que se
Em 1985, Jatene liderou a retomada dos transplantes de coração no Brasil. Isso foi possível graças ao advento de medicamentos contra a rejeição de órgãos
Jatene {esq.) com o cirurgião Euryclides Zerbini, o professor que, nos anos 1950, o ensinou a operar corações e o levou a rever os planos de voltar para o Acre
transformaria na atual CPMF. Repetia um mantra segundo o qual a saúde necessita mais do que outras áreas de recursos vinculados do orçamento. "Quando você constrói uma hidrelétrica, é preciso esperar ela ficar pronta para começar a ter receita. Mas quando você entrega um hospital público, gasta-se por ano com sua manutenção duas vezes o que foi destinado à obra. Por isso é preciso ter dinheiro vinculado", diz Jatene. Deixou o go-
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verno 18 dias após a aprovação da CPMF, que no entanto não se vinculou apenas à saúde, tampouco multiplicou os recursos do setor como ele desejava. Jatene diz que não guarda mágoas. Frustração mesmo, ele brinca, só a de não ter voltado para o Acre para trabalhar como médico no meio da selva, como planejara nos tempos de faculdade. "Mas aí eu conheci o professor Zerbini e acabei me desviando do projeto original." • PESQUISA FAPESP
LITERATURA
O PATRIOTA DAS LETRAS O crítico Fábio Lucas ataca a subserviência a modelos estrangeiros
||o acompanhou com incredulidade os atentados de 11 dê setembro, nos Estados Unidos, preferindo se convencer do seu caráter único, inusitado, bárbaro, em vez de se concentrar na banalidade do mal que ele representava. No Brasil, um artigo de um crítico literário mineiro, Fábio Lucas, revelou justamente essa faceta: "O inimigo não está fora do mundo. O inimigo não é um estranho, não é um ser bizarro ou desconhecido. Para conhecer o inimigo, basta conhecer o mundo e reconhecer o homem". Aquele não era o momento de falar em soluções, mas o trabalho de toda uma vida de Lucas trouxe o aprendizado do valor da literatura nesses instantes vitais, capaz de fazer do crítico um visionário mais preciso do que qualquer analista internacional: "A literatura é uma das múltiplas faces, através das quais o homem tenta romper a terrível consciência da morte. Há uma esperança de sobreviver além da sua capacidade física. Assim, a obra literária exerce uma função soPESQUISA FAPESP
Mineiro de Esmeralda, Lucas defendeu Jorge Amado ao mostrar que o baiano foi um dos poucos a furar o bloqueio internacional
ciai, porque traduz a continuidade do espírito humano", analisa Lucas. Com ele a boutade rodriguiana, de que o mineiro só é solidário no câncer, não funciona. Uma de suas maiores preocupações como crítico literário é justamente o narcisismo, o isolamento nocivo à configuração do gênero humano, que teria tomado conta do cenário das letras. Lucas lamenta o fim das escolas literárias do passado, o grupo de escritores que se uniam por afinidades eletivas, por projetos literários comuns, por uma visão de Brasil semelhante e, em muitos casos, pelo desejo de fazer com que um livro fosse
uma arma potente capaz de mudar a triste realidade do país, atrasado e corrompido pelo capital e pelo descaso. Para Lucas, os novos escritores só olham para o seu umbigo e só falam do próprio, incapazes de citar colegas ou defender pontos de vista sobre literatura. A mídia é, em boa parte, responsável por esse estado de coisas, para além das idiossincrasias pessoais. "Está havendo uma inversão: em vez de o jornalismo ir buscar na universidade as suas informações, muitos setores da pós-graduação é que estão se alimentando da informação jornalística", observa. Lucas lembra o caso das listas
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de livros escolhidos pelos vestibulares, em que o que se vê é uma repetição das obras já vitoriosas nos formadores de opinião literária. Também a mídia se encarregaria de funcionar como caixa de ressonância da tendência da literatura de se deixar influenciar pela campeã de vendas da indústria cultural: a música popular. "Quando se fala em poesia, por exemplo, buscam-se principalmente os letristas que, no grande mercado literário brasileiro, tomaram o lugar dos escritores",avisa. Fábio Lucas provocou uma saudável polêmica pela coragem de escrever o artigo "A angústia da dependência", em que atacava a subserviência a modelos estrangeiros, que impediria o Brasil de formar um cânone nacional, incluindo, na sua crítica, um ataque ao culto a Borges. Is jejunos de nossa cultura, como Borges e seu amigo J5ioy Casares, recebem imado apoio da mídia, que I oferece todos os canais, gerálmefte interditos aos escritores, brasileiros", escreveu. Bizam-se os alunos em notícias de jornal bafejadas pela aura de modernização ou de 'pós-modernidade'. Reitera-se que as letras perderam a sua aura em nosso tempo e que o escritor, na era da massificação, sofre um processo de hibernação. Revistas e jornais de larga circulação parecem sucursais de equivalentes norte-americanos. Praticamente excluíram os autores brasileiros dos destaques dos cadernos culturais", afirma. Assim, Lucas defende uma nova missão para o escritor: reconquistar o seu lugar no grande curso da cultura, já que a formação de um cânone brasileiro dependerá da
Fábio Lucas é autor de mais de 40 obras, entre críticas, ensaísticas e romance
disposição de eles adotarem um processo brasileiro de literatura/Isso significa: primeiro, conhecimento do nosso passado literário, pois é na continuidade que o cânone se cristaliza; segundo, prática de intercâmbio cultural com outras nações, de modo que as agremiações externas sejam enriquecimento, e não servidão; terceiro, despojamento da consciência ingênua, que se deslumbra com a presença do estrangeiro, a ponto de atribuir qualidade àquilo que não passa de diferença." Esse pensamento vem sempre acompanhado pela ação. Lucas teve a "ousadia" de defender Jorge Amado, hoje execrado como produto exótico por uma parcela da crítica, ao
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mostrar que (na contramão de nossa visão colonialista que vê na imitação de modelos importados uma forma de produzir boa literatura) o escritor baiano foi um dos poucos a furar o bloqueio internacional aos nossos escritores, levando ao mundo um estilo de contar vivências brasileiras. Efetivamente, este mineiro não é solidário só no câncer. Nascido em 1931, em Esmeralda, foi um leitor precoce, graças ao orgulho que a família votava a quem se dedicava às letras. A opção pela crítica, conta, veio por inibição de criar. "Apreciava mais comentar a obra dos outros." Mas criou coragem e, em 1996, exibiu sua veia criativa com o romance A mais bela PESQUISA FAPESP
história do mundo, nada menos do que um livro sobre o amor. O pai o levou a fazer direito e, em 1953, ele se formou pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Inusitadamente, em 1963, o futuro grande crítico doutorou-se, na UFMG, em economia e história das doutrinas econômicas pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. "Era o lado racional da minha atividade intelectual, mas não deixei a literatura." É verdade. Em Belo Horizonte, escreveu sobre livros para vários jornais, aprendendo muito nesse exercício crítico a ponto de, mais tarde, ser convidado por Otto Maria Carpeaux para ser seu sucesPESQUISA FAPESP
sor no rodapé literário do jornal Correio da Manhã.Transferiu-se para São Paulo em 1966. Quem interrompeu sua paixão literária foi o golpe militar de 1964. Em 1969, dando cursos na Universidade de Brasília, teve os direitos de magistério cassados. Exilou-se e optou de vez pela literatura, já que, lembra, era mais fácil dar aulas dessa área no exterior. Ajudou nisso a experiência adquirida na especialização feita na UFMG em teoria literária. Foi para os Estados Unidos. No exterior, lecionou em seis universidades norteamericanas e uma portuguesa. No Brasil, deu aula em cinco universidades, dirigiu o Instituto Nacional do Livro, em Brasília, a Faculdade Pau-
listana de Letras e a União Brasileira de Escritores de São Paulo. Desde 1960 é membro da Academia Mineira de Letras e, no ano em que chegou a São Paulo, foi eleito para a Academia Paulista de Letras. É autor de mais de 40 obras, críticas e ensaísticas. Entre essas: Vanguarda, história e ideologia da literatura (1985), O caráter social da ficção no Brasil (1987), Do barro ao moderno (1989), Mineiranças (1990), Fontes literárias portuguesas (1991), Luzes e trevas (1998), Murilo Mendes, poeta e prosador (2001), Literatura e comunicação na era da eletrônica (2001), Expressões da identidade brasileira (2002). Sobre a questão da internet, tem grandes ressalvas, vendo a tecnologia de informação como um instrumento, e não como uma finalidade.Aborda no texto de 2001 a questão da "estética da ilusão" ou o abandono do sujeito em detrimento do objeto. Para Lucas, está em voga um princípio de estetização da vida, da ideologia, do êxito sem nenhuma motivação filosófica, política ou artística. O resultado é essa "estética da ilusão", em que se percebe o embelezamento da dependência e da injustiça. "Os cadernos culturais se tornaram ancilares da indústria do espetáculo, preferindo veicular o press release, barato e comercializador da obra a estabelecer um reduto da crítica. Toda vez que, por economia, elimina-se da mídia uma coluna de crítica literária, está-se fazendo para a saúde do espírito o mesmo que fechar postos de atendimento médico, para a saúde pública." Efetivamente, conhecer o inimigo é reconhecer o homem. •
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MELHORES FOTOS ganhadores do Prêmio FCW <Je Arte 2005 (Fotografia Publicitária) disputaram com outros 80 fotógrafos, num total de 150 trabalhos apresentados, Maurício Nahas foi o ganhadff com a foto Existem chances de cura..., para a agência Almap BBDO. Nahas ganhou a escultura de Vlavia-
nos e R$ 80 mil. Em segundo lugar ficou Andreas Heiniger, também da Almap BBDO, com o trabalho Gol. Sempre fiel a você... e ganhou R$ 40 mil. O terceiro lugar e R$ 20 mil foram para Gustavo Lacerda, da agência Lew Lara, com a campanha Lonas Alpargatas: o superpoder do caminhoneiro. •
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Io lugar: Existem chances de cura..., de Maurício Nahas 2° lugar: Gol. Sempre fiel a você..., de Andreas Heiniger 3° lugar: Lonas Alpargatas: o superpoder do caminhoneiro, de Gustavo Lacerda
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INSTITUIçõES PARCEIRAS DA
*J=APESP
FCW
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP Ligada à Secretaria de Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento Econômico e Turismo, é uma das principais agências de fomento à pesquisa científica e tecnológica do país. Desde 1962 a FAPESP concede auxílio à pesquisa e bolsas em todas as áreas do conhecimento, financiando outras atividades de apoio à investigação, ao intercâmbio e à divulgação da ciência e tecnologia em São Paulo.
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes CAPES
CNPq
Fundação vinculada ao Ministério da Educação, tem como missão promover o desenvolvimento da pós-graduação nacional e a formação de pessoal de alto nível, no Brasil e no exterior. Subsidia a formação de recursos humanos altamente qualificados para a docência de grau superior, a pesquisa e o atendimento da demanda dos setores público e privado.
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq Fundação vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), para apoio à pesquisa brasileira, que contribui diretamente para a formação de pesquisadores (mestres, doutores e especialistas em várias áreas do conhecimento). Desde sua criação, é uma das mais sólidas estruturas públicas de apoio à ciência, tecnologia e inovação dos países em desenvolvimento.
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - SBPC
PC SOCIEDADE BRASILEIRA PARA O PROGRESSO DA CIÊNCIA
\CADEMIA BRASJLEIRA DE CIÊNCIAS
Fundada há mais de 50 anos, é uma entidade civil, sem fins lucrativos, voltada principalmente para a defesa do avanço científico e tecnológico e do desenvolvimento educacional e cultural do Brasil.
Academia Brasileira de Ciências - ABC Sociedade civil sem fins lucrativos, fundada em 3 de maio de 1916, tem por objetivo contribuir para o desenvolvimento da ciência e tecnologia, da educação e do bem-estar social do país.Atualmente reúne seus membros em dez áreas: Ciências Matemáticas, Ciências Físicas, Ciências Químicas, Ciências da Terra, Ciências Biológicas, Ciências Biomédicas, Ciências da Saúde, Ciências Agrárias, Ciências da Engenharia e Ciências Humanas.
Academia Brasileira de Letras - ABL
B«-v
Fundada em 20 de julho de 1897 por Machado de Assis, com sede no Rio de Janeiro, tem por fim a cultura da língua nacional. É composta por 40 membros efetivos e perpétuos e 20 membros correspondentes estrangeiros.
Comando-Geral de Tecnologia Aeroespacial - CTA Criado na década de 1950, é uma organização do Comando da Aeronáutica que tem como missão o ensino, a pesquisa e o desenvolvimento de atividades aeronáuticas, espaciais e de defesa, nos setores da ciência e da tecnologia.
JÚRI DOS PRÊMIOS FCW CIÊNCIA GERAL Erney Plessmann Camargo - PRESIDENTE Adalberto Ramon Vieyra
UFRJ
Capes
Alejandro Szanto de Toledo
USP
FAPESP
Hugo Aguirre Armelin
USP
ABC
Marco Antônio Sala Minucci
IEAv
CTA
Isaac Roitman
Min. da Ciência e Tecnologia
Min. da Ciência e Tecnologia
Fernando de Arruda Botelho - PRESIDENTE DO JúRI
FCW
Luiz Fernando Palmer Fonseca
IEAPM
FCW Marinha do Brasil
Eric Arthur Bastos Routledge
Seap/PR
Sec. de Aquicultura e Pesca
CIÊNCIA APLICADA A ÁGUA
Adalberto Luis Vai
Inpa/Manaus
Capes
Rolf Roland Weber
USP
FAPESP
Ricardo Hirata
USP
SBPC
Capes
FCW
Segundo Sacramento U Caballero
Emprapa
Ministério da Agricultura
José Oswaldo Siqueira
Ufla
Capes
José Roberto Postali Parra
USP/Esalq
CNPq
Joaquim José de Camargo Engler
FAPESP
FAPESP
Ernesto Paterniani
USP/Esalq
ABC
Fábio Oliveira Pedrosa
UFPR
SBPC
Carlos Alberto Vogt - PRESIDENTE DO JúRI
FAPESP e Unicamp
FCW
Paulo Yoshio Kageyama
Ministério do M. Ambiente
Ministério do M. Ambiente
Fábio Rubio Scarano
UFRJ
Capes
Marcus Luiz Barroso Barros
Ibama
CNPq
CIÊNCIA APLICADA AO CAMPO Jorge Almeida Guimarães - PRESIDENTE DO JúRI
CIÊNCIA APLICADA AO MEIO AMBIENTE
Monica Ferreira do Amaral Porto
USP
FAPESP
Umberto Giuseppe Cordani
USP
ABC
Nanuza Luiza de Menezes
USP
SBPC
Celita Procopio de Carvalho - PRESIDENTE DO JúRI
FCW
FCW
Sérgio Sá Leitão
Ministério da Cultura
Ministério da Cultura
Carlos Alberto Ribeiro de Xavier
Ministério da Educação
Ministério da Educação
Benjamin Abdala Jr.
USP
Capes
Ledo Ivo
ABL
ABL
Carlos Alberto Vogt
FAPESP e Unicamp
FAPESP
José Ephim Mindlin
ABC
ABC
Marisa Philbert Lajolo
Unicamp
SBPC
Renata Caruso Fialdini - PRESIDENTE DO JúRI
FCW
FCW
Moisés Goldbaum
Ministério da Saúde
Ministério da Saúde
Luiz Roberto Londres
Capes
Capes
Erney Felicio Plessmann de Camargo
CNPq
FAPESP
Protásio Lemos da Luz
InCor
ABC
Dr.José Eduardo Krieger
InCor
SBPC
LITERATURA
MEDICINA
CRONOGRAMA DA PREMIAÇÃO 2006
Prazo para recebimento das indicações pela FCW
Preparação dos dossiês dos indicados
Julgamento e escolha dos premiados
Divulgação dos trabalhos
Premiação
FUNDAçãO CONRADO WESSEL
www.fcw.org.br