Pesquisa FAPESP 225

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novembro de 2014  www.revistapesquisa.fapesp.br

EMbraer

Empresa desenvolve com a FAB avião para carga e transporte militar ASMA

Exercício aeróbico combate inflamação nos pulmões Perfil dos deputados

Pastores ampliam bancada na Câmara nas últimas décadas entrevista thomas maAck

Do exílio à excelência em Cornell

O tamanho dos bebês Pesquisadores do Brasil e de sete outros países propõem padrão ideal de desenvolvimento dos fetos e dos recém-nascidos


nov.225 Entrevista 26 Thomas Maack

Fisiologista da Universidade Cornell, exilado em 1964, fala sobre a ditadura, carreira científica e educação médica

Capa

capa foto  KEVIN CURTIS / SCIENCE PHOTO LIBRARY

CIÊNCIA

32 Fomento

Escritórios criados para livrar pesquisadores da burocracia oferecem novos serviços

Exercício aeróbico combate inflamação e enrijecimento dos pulmões em doenças respiratórias como asma e pneumonia

36 Bioenergia

48 Neurociência

40 Reconhecimento

50 Zoologia

Edição de 2014 do Prêmio Nobel destaca avanços em microscopia, neurociência e óptica

18 Grupo

internacional propõe padrão ideal de crescimento dos fetos e dos recém-nascidos

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

Conferência mostra que expansão dos biocombustíveis precisa do respaldo de políticas públicas para sustentar-se em nível global

18

32

60

44 Saúde

Novo modelo para o Alzheimer reproduz em macacos alterações que a doença causa no cérebro humano Ainda controversa, nova espécie de anta é mais disseminada na Amazônia do que se pensava

56 Ecologia

Crustáceos do litoral paulista acumulam metais pesados e exibem alterações orgânicas

60 Astronomia

Meteorologistas querem saber por que venta muito em Vênus e Titã


fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo Celso Lafer Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior alejandro szanto de toledo, Celso Lafer, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, Horácio Lafer Piva, joão grandino rodas, Maria José Soares Mendes Giannini, Marilza Vieira Cunha Rudge, José de Souza Martins, Pedro Luiz Barreiros Passos, Suely Vilela Sampaio, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo José Arana Varela Diretor presidente Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo

62

TECNOLOGIA

HUMANIDADES

62 Engenharia aeronáutica

76 Ciência política

Embraer desenvolve novo avião militar com a FAB, parceiros no exterior e empresas no Brasil

68 Logística

Integração de etapas reduz custos e impacto ambiental na descarga de carvão mineral no porto de Tubarão

72 Ciência da computação

O avanço da eScience impacta o modo tradicional de fazer ciência

Entre 1945 e 2010, ruralistas perdem espaço, pastores e comunicadores ganham terreno e as classes populares ficam com mais assentos na Câmara dos Deputados

82 Sociedade

Estudo dos 100 anos da habitação social no Brasil desvenda projetos de alta qualidade na era Vargas

issn 1519-8774

Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Adolpho José Melfi, Carlos Eduardo Negrão, Douglas Eduardo Zampieri, Eduardo Cesar Leão Marques, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Joaquim J. de Camargo Engler, José Arana Varela, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Luis Augusto Barbosa Cortez, Marcelo Knobel, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Marta Teresa da Silva Arretche, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Luiz Monteiro Salles Filho, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner do Amaral Caradori, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos Diretora de redação Mariluce Moura editor-chefe Neldson Marcolin Editores Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência); Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores espe­ciais); Bruno de Pierro e Dinorah Ereno (Editores-assistentes) revisão Daniel Bonomo, Margô Negro arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Maria Cecilia Felli e Alvaro Felippe Jr. (Assistente) fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador)

seções

13 Estratégias

4 Carta da editora

15 Tecnociência

5 Fotolab

88 Memória

6 Cartas 8 On-line

Mapa feito na França em 1748 delineou novas fronteiras do Brasil continental depois do Tratado de Tordesilhas

10 Dados e projetos

A força da cooperação com pesquisadores estrangeiros 12 Boas práticas

› FAPESP

divulga casos de violações › Conjunto de irregularidades

90 Arte

Maestro e professor Olivier Toni lança, aos 88 anos, primeiro CD com composições próprias 92 Conto

“Meu irmão, o robô”, de Adriano Messias

94 Resenhas

› 1964 na visão do

ministro do Trabalho de João Goulart,de Almino Affonso: “Brasil 40 graus”, por Fernanda Pompeu › Moqueca de maridos: mitos eróticos indígenas, de Betty Mindlin: “Sexualidade nas sociedades indígenas”, por Glória Kok

Internet Pesquisa FAPESP online Maria Guimarães (Editora) Júlio César Barros (Editor-assistente) Rodrigo de Oliveira Andrade (Repórter) Rádio Pesquisa Brasil Biancamaria Binazzi (Produtora) Colaboradores Ana Lima, Adriano Messias, Daniel Bueno, Evanildo da Silveira, Fernanda Pompeu, Glória Kok, Igor Zolnerkevic, Lauro Lisboa Garcia, Marina Oruê, Maurício Pierro, Mauro de Barros, Pedro Franz, Pedro Hamdan, Sandro Castelli, Valter Rodrigues, Yuri Vasconcelos, Zé Vicente É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para anunciar Midia Office - Júlio César Ferreira (11) 99222-4497 julinho@midiaoffice.com.br Classificados: (11) 3087-4212 publicidade@fapesp.br Para assinar (11) 3087-4237 assinaturaspesquisa@fapesp.br Tiragem 43.600 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP

96 Carreiras

› Programa oferece

doutorado vinculado a geração de produto › Estudo mostra diferençasentre a academia e as empresas

PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo

PESQUISA FAPESP 225 | 3


carta da editora

Régua e compasso Mariluce Moura | Diretora de Redação

S

oa um tanto estranha a afirmação de que “os bebês humanos, sob condições ideais, nascem quase sempre com o mesmo tamanho”. De imediato, a frase faz minha atenção transitar vertiginosamente dos altos suecos aos japoneses, dos grandes jogadores de basquete norte-americanos aos italianos do sul, dos corredores quenianos aos índios peruanos, e duvido de sua veracidade. Admito adiante que ela vai ao encontro de impressões que vicejaram à sombra desse chamado senso comum que, com certa frequência, melhor atenderia pelo nome de preconceito. Todos os bebês, propõe a reportagem de capa desta edição, elaborada por nosso editor de ciência, Ricardo Zorzetto, vêm ao mundo com aproximadamente 50 centímetros de comprimento, tamanho que “pode variar dois ou três centímetros para mais ou para menos e parece representar o crescimento ótimo alcançado pela espécie humana nos dias de hoje”. Afirmação tão peremptória está empiricamente baseada no trabalho de três centenas de médicos e pesquisadores ligados a 27 instituições – entre elas, a Universidade Federal de Pelotas, no Rio Grande do Sul – que, entre maio de 2009 e agosto de 2013, pesaram e mediram 20.486 recém-nascidos saudáveis em suas primeiras horas de vida, em oito países, o Brasil inclusive. De posse dos resultados dessa tarefa coordenada pelo obstetra argentino José Villar, professor na Universidade de Oxford, no Reino Unido, o imenso time conseguiu propor em setembro último uma espécie de régua universal para os quase 140 milhões de crianças que nascem no mundo a cada ano. E atendeu dessa forma a uma preocupação manifestada 20 anos antes pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que achava necessária a criação de uma ferramenta nova de avaliação do crescimento infantil para avaliar a saúde e o risco de doença e morte nos primeiros anos de vida dos bebês em qualquer latitude ou longitude do planeta. O trabalho em seus detalhes e prováveis desdobramentos está contado a partir da página 18.

* * * Em vez do zigue-zague por entre páginas e diferentes seções, no qual encontro às vezes grande prazer, nesta carta vou adequar rigorosamente a sequência dos meus comentários à ordem das páginas da revista. Não se trata de cartesianismo fora de propósito nem de renúncia ao prazer da prosa, mas de obedecer ao intuito de dar um maior des4 | novembro DE 2014

taque à entrevista pingue-pongue desta edição, elaborada por Marcos Pivetta e Neldson Marcolin, respectivamente editor especial e editor-chefe de Pesquisa Fapesp. O notável e bem-humorado personagem que a entrevista, a partir da página 26, põe diante dos leitores é o fisiologista brasileiro Thomas Maack, 79 anos, professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, que teve que deixar o país nos anos 1960 em decorrência das perseguições da ditadura instaurada pelo golpe militar de 1964. Observe-se que Maack, nascido em Insterburg, na Alemanha, chegara ao Brasil ainda bebê, em 1936, trazido pelos pais que fugiam do horror e do terror que Hitler viria a disseminar por toda a Europa. O capítulo da violência política brasileira o lançaria, depois de meses de prisão, da Medicina da USP para a Universidade do Estado de Nova York, em Siracusa e, em seguida, para Cornell, instituição a que ele continua ligado, hoje menos dedicado à pesquisa e muito mais às contribuições para o aperfeiçoamento dos currículos das faculdades de medicina de todo o mundo. Gostaria de destacar, ainda no âmbito da saúde e da medicina, a reportagem elaborada pela editora Maria Guimarães a respeito de um estudo que apresenta evidências novas de que portadores de asma e de outras doenças respiratórias, causadoras de inflamação e enrijecimento dos pulmões, só têm a ganhar com os exercícios aeróbicos (página 44). Em tecnologia, o destaque obrigatório é para a reportagem elaborada pelo editor de tecnologia, Marcos de Oliveira, juntamente com nosso colaborador Evanildo da Silveira, sobre o novo avião militar desenvolvido pela Embraer junto com a FAB e outros parceiros no Brasil e no exterior (página 62). Nas humanidades, recomendo atenção à reportagem de Marcos Pivetta, que aborda um estudo revelador sobre a evolução da origem geográfica e do perfil ocupacional, etário e ideológico de todos os deputados federais eleitos entre 1945 e 2010 (página 76). Por fim, deixo uma breve referência à página 90, seção de arte, na qual Lauro Lisboa Garcia noticia e comenta o primeiro CD com composições próprias lançado pelo respeitado maestro e professor Olivier Toni, aos 88 anos. É graças a ele que o compasso pode se juntar à régua no título desta carta, trazendo-nos inelutavelmente o Gilberto Gil de “Aquele abraço”. Boa leitura!


fotolab

Formas do nanomundo As fotos Colmeia e Átomos de Dalton mostram nanopartículas de óxido de alumínio e de óxido de zinco obtidas por microscopia eletrônica de alta resolução e colorizadas pelos pesquisadores e técnicos do Laboratório Interdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica da Universidade Estadual Paulista (Liec/Unesp), de Araraquara. As imagens integram a exposição levada ao 3º Festival Internacional de NanoArt, na Romênia, em setembro.

Imagem enviada por Ricardo Tranquilin, pesquisador do Liec/Unesp Se você tiver uma imagem relacionada à sua pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

PESQUISA FAPESP 225 | 5


cartas

cartas@fapesp.br

Coração e cavernas

Gostei da reportagem “Como explicar um coração tão dividido” (edição 224). A foto do embrião de galinha (página 53) me impressionou, pois eu não havia acreditado que o Léo Ramos pudesse ter capturado uma imagem daquelas só com a sua câmera. Gostei também da reportagem de capa (“Vida subterrânea”). Por coincidência, eu já havia conversado com a pesquisadora Eleonora Trajano, e ela, n ​ aquela ocasião, me mostrou suas fotos incríveis de peixes transparentes (com os corações totalmente visíveis). José Xavier Neto Laboratório Nacional de Biociências Campinas, SP

Jean-Claude Bernardet

A entrevista com o notável professor, diretor e ator Jean-Claude Bernardet (edição 224) ficou excelente, no sentido de ir contra a maré do neopopulismo e do pobrismo ideológico tão presentes em nossas produções culturais. Evoco aqui as melhores posições de Lina Bo Bardi e do próprio Ginfrancesco Guarnieri, de saudosa memória. Parabéns. Carlos Guilherme Mota São Paulo, SP

Citros

Gostaria de esclarecer ao leitor Fabio Di Giorgi (seção cartas, edição 223) que a reportagem “Para pessoas e plantas” (edição 214), referente ao uso do N-acetilcisteína (NAC) para combate à clorose variegada dos citros (CVC), não foi meramente um chute de uso de produtos ao acaso, como sugerido por ele. Foi, sim, resultado de pesquisas de anos de trabalho com rigor científico cujo projeto de custeio foi julgado por pesquisadores científicos. Os dados do projeto foram publicados em revista científica internacional (Plos One, 2013), cujo corpo editorial e assessores têm independência no julgamento do mérito do trabalho e validade dos dados. Reforçamos que não se trata de fórmulas milagrosas, e sim de resultados de pesquisa baseados em 6 | novembro DE 2014

informação do genoma da bactéria e do efeito do NAC em bactérias que causam doenças em humanos (não se trata de antibiótico, mas de um análogo do aminoácido cisteína). Dentro do processo de divulgação científica dos resultados, em nenhum momento foi dito ou sugerido aos citricultores e agricultores que façam o uso dessa molécula, uma vez que foram resultados de ensaios em condições controladas. Os testes em campo foram iniciados há pouco tempo procurando validar os resultados obtidos. Quaisquer resultados desses ensaios serão veiculados da mesma forma que foram feitos para os ensaios em condições controladas. O Centro de Citricultura pesquisa citros há quase 90 anos e não divulga algo que não tenha sido avaliado com rigor. Alessandra Alves de Souza Centro de Citricultura Sylvio Moreira/IAC Cordeirópolis, SP

Timo

Na reportagem “Filme imperfeito” (edição 223), há uma abordagem magistral do mau funcionamento da glândula timo. É feita uma oportuna advertência sobre o risco da utilização prolongada de corticoides e da geração de doenças decorrentes de autodefesa do corpo humano. Francisco J. B. Sá Salvador, BA

Teatro

A análise do trabalho de Alessandra Vannucci que consta da seção de arte (“Palco italiano”, edição 224) nos orgulha e indica a importância da divulgação de trabalhos acadêmicos que transpõem os muros de nossas universidades, que Pesquisa FAPESP se esmera por fazer. Entretanto, na apreciação do livro que revê a herança dos diretores italianos ao teatro brasileiro estranhamos a não indicação da Editora Perspectiva, que editou o estudo de Alessandra Vannucci, A missão italiana, em abril de 2014. Jacó Guinsburg Editora Perspectiva São Paulo, SP

Açúcar

A nota “Tão ou mais nocivo que o açúcar” (seção tecnociência, edição 224) me causou severa estranheza. Considerando que trabalho com tecnologia do açúcar há anos e tendo estudado o assunto profundamente, posso garantir que em quaisquer que forem as situações não poderíamos alegar qualquer ação “nociva” ao açúcar – que, pelo contexto do texto, entendo ser sacarose na forma cristalina. Gostaria de alertar para o fato de que a indústria do açúcar no Brasil tem contribuído significativamente para o PIB nacional e é ingrediente para uma série de produtos alimentícios e farmacêuticos. Em qualquer ramo de atividade, nunca houve constatação de que a sacarose fosse nociva à saúde humana. Acredito que, por vezes, se confunde o fato do consumo de altas doses ou quantidades de determinada molécula ou substância, que, aí sim, pode promover um desequilíbrio no metabolismo humano, implicando, às vezes, doenças, como alegado no artigo citado do colega Eran Elinav, do Weizmann Institute of Science. Em leitura ao artigo de Elinav, pudemos verificar a total imparcialidade do autor quanto à sacarose. Ele trata da glicose, uma molécula produzida a partir do catabolismo de uma infinidade de carboidratos mais complexos, como (de fato) sacarose, amido, celulose, entre outros. Dessa forma, torna-se infundado o fato de atribuir à sacarose (açúcar cristal) a “culpa” da diabetes humana. Claudio Lima de Aguiar Esalq/USP Piracicaba, SP

Correção

Na reportagem “Seca na metrópole” (edição 224), a informação “entre 1857 e 1940” está errada. O correto é “entre 1874 e 1940”.

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar - CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.



on-line

Nas redes Anna Beatriz Gaglianone_

Exclusivo no site

A arqueóloga Niède Guidon é mesmo incrível. A vida toda

x Pesquisadores ingleses e belgas parecem ter identificado a região do planeta onde começou a atual pandemia de Aids. Num artigo publicado na revista Science, eles sugerem que a disseminação global da linhagem pandêmica, conhecida como HIV-1 grupo M, teria começado por volta de 1920, em Kinshasa, capital da República Democrática do Congo (RDC), na África. O anúncio acontece 30 anos após a identificação do HIV-1, vírus causador da doença e responsável pela infecção de cerca de 75 milhões de pessoas no mundo. x Está em teste em Catania, Itália, o primeiro protótipo de um dos telescópios do Cherenkov Telescope Array (CTA), consórcio internacional para construir o maior observatório astronômico do mundo dedicado à observação de raios gama, com 100 telescópios. Por meio dele, será possível estudar melhor os buracos negros e as remanescentes de supernovas, entre outros. Os testes vão até abril de 2015. Se tudo correr bem, o equipamento vai compor parte de um arranjo menor do CTA, formado por sete telescópios, dos quais o Brasil construirá três com apoio da FAPESP.

dedicada à ciência e à luta contra as desigualdades e o abandono que marcam a realidade do Piauí. (Do próprio bolso) Renata Paixão_ Dentre tantas notícias ruins em São Paulo, surge uma ótima! (Ar mais limpo) Cibele Sidney_ Fotografia sem nada de luz? Ah, é coisa de cientista. (A luz que enxerga o que não viu) Ronaldo Marin_ Até que enfim Telescópio protótipo do futuro CTA, que deverá ser o maior observatório astronômico dedicado ao estudo de raios gama.

alguém teve coragem de publicar algo que eu digo aos alunos há muito tempo. Parabéns Jean-Claude Bernardet! (Um crítico contra a estética da miséria)

Rádio O biólogo José Xavier Neto conta como a análise dos músculos cardíacos de peixes ajuda a explicar a evolução do coração humano

Agnaldo Nicoleti_ Etanol feito de bagaço da cana-de-açúcar. A evolução do biocombustível está chegando. (A segunda geração está chegando) Matheus Steinmeier_ Muito interessante ver como o aumento de CO2 pode favorecer a proliferação de trepadeiras na Amazônia e de bambus na mata atlântica. (Florestas em transformação)

Vídeo do mês Expedição oceanográfica mostra a estranha fauna que vive a 4 mil metros de profundidade no litoral sudeste do Brasil youtube.com/user/PesquisaFAPESP

8 | novembro DE 2014

Assista ao vídeo:

ELISABETE DE GOUVEIA DAL PINO (IAG-USP)

w w w . r e v i s ta p e s q u i s a . f a p e s p. b r



Dados e projetos

Instituição: Nepo/Unicamp Processo: 2014/04850-1 Vigência: 01/10/2014 a 30/09/2018

 Sapindales: filogenia e diversificação na região Neotropical Pesquisador responsável: José R. Pirani Instituição: IB/USP Processo: 2014/18002-2 Vigência: 01/10/2014 a 30/09/2019

Temáticos e Jovem Pesquisador recentes Projetos contratados em setembro e outubro de 2014 temáticos  Papel da imunidade adaptativa na evolução da cardiopatia isquêmica após infarto agudo do miocárdio Pesquisador responsável: Francisco Antonio Helfenstein Fonseca Instituição: EPM/Unifesp Processo: 2012/51692-7 Vigência: 01/09/2014 a 31/08/2019

 Investigação de fenômenos de altas energias e plasmas astrofísicos: teoria, simulações numéricas, observações e desenvolvimento de instrumentação para o Cherenkov Telescope Array (CTA) Pesquisadora responsável: Elisabete Maria de Gouveia Dal Pino Instituição: IAG/USP

 Dimensões US-Biota-São Paulo: pesquisa colaborativa: integrando as dimensões da biodiversidade microbiana ao longo de áreas de alteração do uso da terra em florestas tropicais. (FAPESP-Biota-NSF Dimensions) Pesquisador responsável: Siu Mui Tsai Instituição: Cena/USP Processo: 2014/50320-4 Vigência: 01/10/2014 a 30/09/2019

Processo: 2013/10559-5 Vigência: 01/08/2014 a 31/07/2018

 Observatório das Migrações em São Paulo: migrações internas e internacionais contemporâneas no estado de São Paulo Pesquisadora responsável: Rosana Aparecida Baeninger

A força da cooperação com pesquisadores estrangeiros

JOVEM PESQUISADOR  Caracterização de microRNAs (miRNAs) em folículos antrais bovinos em fêmeas Nelore: envolvimento na diferenciação das células foliculares ovarianas e regulação na expressão do receptor de LH (LHR) Pesquisador responsável: Anthony Cesar de Souza Castilho Instituição: FCL de Assis/Unesp Processo: 2013/11480-3 Vigência: 01/10/2014 a 30/09/2018

Relação entre colaboração internacional e impacto dos trabalhos de autores brasileiros nas áreas de conhecimento (2009-2013) Impacto relativo à média mundial

Sigla

Todos

Colab. intern.

% Colab. intern.

Todos

Física

FIS

11.370

5.794

51%

1,05

Colab. intern. 1,49

Engenharia

ENG

7.862

2.387

30%

0,89

1,09 1,01

Matemática

MAT

3.724

1.716

46%

0,88

Geociências

GEO

3.267

1.659

51%

0,80

1,11

Ciência espacial

CESPACIAL

1.563

1.108

71%

0,78

0,95

Ciência da computação

CCOMP

2.168

844

39%

0,76

0,86

Ambiente/ecologia

AMB

5.951

2.135

36%

0,74

1,21

Psiquiatria/psicologia

PSI

2.457

882

36%

0,71

1,25

Multidisciplinar

MULTI

249

98

39%

0,70

1,67

Ciência de materiais

CMAT

4.912

1.494

30%

0,69

0,93 1,04

5.349

1.618

30%

0,69

Medicina clínica

MEDCLIN

36.354

8.535

23%

0,68

1,51

Química

QUI

13.697

3.388

25%

0,67

0,90 0,90

Neurociência e comportamento NEURO

Farmacologia e toxicologia

FARMACO

5.510

1.092

20%

0,65

Imunologia

IMUNO

3.520

1.511

43%

0,64

0,91

Microbiologia

MICROBIO

3.344

1.128

34%

0,61

0,89

Ciências sociais, geral

CSOCIAIS

9.288

1.696

18%

0,61

1,31

Biologia e bioquímica

BIO+BIOQ

8.223

2.299

28%

0,57

0,89

Ciência vegetal e animal

CPLANTAS+ANIMAIS

21.269

4.868

23%

0,55

0,95

Ciências agrícolas

AGRI

19.849

2.199

11%

0,50

1,06

Biologia molecular e genética BIOMOL

4.171

1.471

35%

0,47

0,82

Economia e negócios

1.238

399

32%

0,44

0,84

ECONOMIA

1,20

fis 1,00

Impacto relativo à média mundial

eng

mat geo

0,80

amb ccomp

neuro cmat medclin qui psi farmaco microbio csociais bio+bioQ

0,60

AGRI

cplantas+animais

0,40

cespacial

multi imuno

biomol economia

0,20

0,00 0%

10% 20%

30% 40%

50%

% de artigos com coautoria internacional

10 | novembro DE 2014

60%

70% 80%

 Sistemas nanoestruturados tópicos para colocalização de agentes quimioterápicos e quimiopreventivos na pele e mama Pesquisadora responsável: Luciana Biagini Lopes Instituição: ICB/USP Processo: 2013/16617-7 Vigência: 01/09/2014 a 31/08/2018

Fonte: InCitesTM, Thomson Reuters (2012). Report Created: 18/10/2014 Data Processed March 31, 2014 Data Source: Web of Science ®

Artigos Áreas

 Estudo dos mecanismos de patogenicidade e correlação com resistência a antimicrobianos de Klebsiella pneumoniae isoladas no Brasil e em países dos cinco continentes Pesquisador responsável: Andre Pitondo da Silva Instituição: FCF de Ribeirão Preto/USP Processo: 2013/22581-5 Vigência: 01/10/2014 a 30/09/2018  Redução simplética e quantização: aspectos algébricos e geométricos Pesquisador responsável: Hans Christian Herbig Instituição: ICMC de São Carlos/USP Processo: 2014/00250-0 Vigência: 01/09/2014 a 31/08/2018  Função de DNA extracelular e de ácidos lipoteicóicos na matriz extracelular de biofilmes cariogênicos Pesquisadora responsável: Marlise Inez Klein Instituição: FO de Araraquara/Unesp Processo: 2014/05423-0 Vigência: 01/09/2014 a 31/08/2018  Identificação de genes alvos regulados pelo fator de transcrição SHINE em monocotiledôneas Pesquisador responsável: Michael dos Santos Brito Instituição: IAC/SAASP Processo: 2014/08468-4 Vigência: 01/11/2014 a 31/10/2017



Boas práticas A FAPESP começou a divulgar, desde o dia 7 de outubro, os sumários de casos de investigações que conduziu ou supervisionou e que resultaram na constatação da ocorrência de violação de boas práticas científicas. A divulgação é feita no site Boas Práticas Científicas, no portal da FAPESP, em www.fapesp.br/boaspraticas. Os casos permanecerão na página por um período de tempo limitado, a ser definido de acordo com a natureza e a gravidade da violação constatada, conforme as condições definidas pela Portaria PR nº 05/2013. Um dos princípios da política de preservação dos valores da integridade da pesquisa científica da FAPESP é que eles sejam objeto de autorregulação e autocontrole por parte da comunidade científica. Como parte da sistematização desse processo, a FAPESP publicou em 2011 seu Código de boas práticas científicas (www.fapesp.br/ boaspraticas/codigo2014.pdf ). A FAPESP entende que a disseminação de uma cultura sólida de integridade no ambiente científico depende principalmente de ações educativas das instituições e organizações de pesquisa, com o propósito de capacitar os pesquisadores a identificar e respeitar os valores da integridade. Para a FAPESP, a preservação desses valores e da fidedignidade pública da ciência depende igualmente da percepção, por parte dos pesquisadores e da sociedade em geral, de que essas instituições e organizações são capazes de responder, pronta e rigorosamente, à prática constatada de violação de boas práticas científicas. 12 | novembro DE 2014

O Código de boas práticas científicas requer que toda alegação de violação de boas práticas científicas no curso de pesquisa apoiada pela FAPESP seja investigada, de maneira justa e rigorosa, ou por ela própria ou, sob sua supervisão, pela instituição em que a pesquisa foi realizada. Em respeito ao princípio jurídico da presunção de inocência e à necessidade de preservar a reputação dos suspeitos de violação de boas práticas científicas, prevê-se que essa investigação seja realizada sigilosamente. No entanto, quando a investigação comprovar a ocorrência de violação de boas práticas científicas, a FAPESP deve tornar públicas

daniel bueno

FAPESP divulga casos de violações

as suas conclusões, tendo em vista os possíveis decorrentes prejuízos ao avanço da ciência e à sociedade em geral.

Conjunto de irregularidades A revista Tumor Biology, vinculada à Sociedade Internacional de Oncologia e Biomarcadores, decidiu cancelar a publicação de um artigo depois de descobrir um conjunto de diferentes irregularidades em seu conteúdo e na lista de autores. Trata-se de um estudo multicêntrico, publicado em junho por um grupo de 12 pesquisadores da China, que explorou a relação entre neutropenia, disfunção do sangue caracterizada por uma contagem reduzida de neutrófilos, e infecção fúngica invasiva em 2.177 pacientes da China que tinham doenças hematológicas tratadas com quimioterapia. Uma das conclusões do artigo é que tratamento com drogas antifúngicas ajuda a prevenir o problema. A revista,

publicada pela editora Springer, constatou que os resultados do artigo continham dados imprecisos e não validados. Isso impedia a replicação do experimento. Os demais problemas são relacionados à má conduta na atribuição dos autores e falta de transparência. Há autores que participaram do estudo, mas não foram reconhecidos como autores, e pelo menos um coautor que não foi consultado sobre a inclusão de seu nome no paper. Por fim, o grupo omitiu o patrocínio do laboratório farmacêutico Merck ao estudo multicêntrico. No período de quatro meses entre a publicação e a retratação, o artigo não recebeu nenhuma citação em outros trabalhos.


Estratégias

fotos 1 Heitor Shimizu / FAPESP 2 Michael Darden / Brazil Institute, Wilson Center

Simpósios internacionais A FAPESP realiza em

o Ministério da Educação

novembro mais uma

e Pesquisa da República

edição do simpósio

Federativa da Alemanha

internacional FAPESP

e o segundo com a

Week. O evento será

Universidade de Münster.

sediado na Universidade

“Muitos pesquisadores

da Califórnia, nos campi

do Brasil combinaram de

de Berkeley e de Davis,

continuar as conversas

nos Estados Unidos, com

com grupos alemães,

apoio do Wilson Center.

principalmente nas áreas

Entre os dias 17 e 21,

de fotônica, energia e

pesquisadores de diversas

química”, ressaltou

áreas do conhecimento,

Knobel. Ludwig Spaenle,

de instituições paulistas

ministro de Educação,

e norte-americanas,

Ciência e Artes do

terão a oportunidade

estado da Baviera,

de estreitar contatos e

destacou a importância

promover colaborações.

da internacionalização

Em abril, Beijing, na China,

da pesquisa. “Estamos

Fundação de Amparo

O presidente da FAPESP,

sediou a primeira FAPESP

procurando parceiros

à Pesquisa do Estado do

Celso Lafer, destacou o

Week de 2014. No mês

de peso e há muitos

Amazonas (Fapeam).

caráter científico e

passado, o evento foi

em São Paulo”, disse.

O encontro aconteceu

diplomático da parceria.

realizado em Munique, na

Também em outubro,

no dia 28 de outubro

“São pesquisadores

Alemanha. “Os simpósios

a FAPESP e o

e reuniu mais de 120

do Brasil e dos

têm a capacidade de

Departamento de

cientistas, especialistas

Estados Unidos que

dar visibilidade para a

Energia dos Estados

em conservação da

compartilham valores

ciência feita em São Paulo

Unidos organizaram um

biodiversidade e

ligados aos méritos da

e de conectar nossos

simpósio em Washington

jornalistas. “Precisamos

investigação científica.

pesquisadores com o

para fazer um balanço

dos melhores cientistas

Em um mundo cheio de

mundo”, disse Marcelo

das pesquisas em curso

para compreender as

tensões, isso é algo que

Knobel, professor da

do experimento

mudanças que ocorrem

faz desse tipo de esforço

Universidade Estadual

Green Ocean Amazon

nas florestas tropicais”,

também um esforço

de Campinas (Unicamp)

– chamada de projetos

disse Ernest Moniz,

relacionado à construção

e coordenador adjunto

feita em 2013 pelas

secretário de Energia

do conhecimento e da

de Colaborações em

duas instituições e pela

dos Estados Unidos.

cooperação”, disse.

1

FAPESP Week Munich: contatos promissores nas áreas de fotônica, energia e química

Pesquisa da Fundação. A FAPESP Week Munich foi realizada no Deutsches Museum entre os dias 15 e 17 de outubro. Reuniu cerca de 170 pessoas, entre representantes do governo alemão, do governo do estado da Baviera, da FAPESP e de instituições de ensino e de pesquisa dos dois países. A FAPESP assinou dois novos acordos de cooperação durante o simpósio. O primeiro com

2

O secretário de Energia dos Estados Unidos, Ernest Moniz, e o presidente da FAPESP, Celso Lafer, em Washington: colaboração em pesquisas sobre a Amazônia PESQUISA FAPESP 225 | 13


Vírus letais fabricados

Prevenção da cegueira O professor e

de pessoas. Presidente

O governo norte-

pesquisador Rubens

da Academia Brasileira

-americano anunciou

Belfort Jr., da Universidade

de Oftalmologia,

que irá temporariamente

Federal de São Paulo

Belfort Jr. promoveu

suspender o

(Unifesp), recebeu no

mutirões de cirurgias de

financiamento de novas

dia 19 de outubro na

catarata e de diabetes

pesquisas que buscam

cidade de Chicago, nos

ocular e participou

tornar certos tipos de

Estados Unidos, o

da criação do primeiro

vírus mais letais ou

International Blindness

centro de oncologia

transmissíveis. Esse tipo

Prevention Award,

ocular na Amazônia.

de pesquisa busca

prêmio concedido pela

Atualmente, ele

compreender como os

Academia Americana

desenvolve um

vírus sofrem mutações

de Oftalmologia (AAO).

programa para fornecer

que os tornam mais

É a primeira vez que

óculos gratuitos

um brasileiro recebe

para idosos e crianças.

a honraria. Instituído

“A falta de acesso,

em 1992, o prêmio

recursos humanos

é destinado anualmente

inadequados e

a profissionais com

tecnologia antiga são

contribuições

os maiores desafios à

significativas para a

saúde ocular nas partes

1

esse processo é uma

Pesquisador manipula placas virais no Centro de Controle e Prevenção de Doenças, nos Estados Unidos

forma de avançar no

Síndrome Respiratória

conhecimento sobre o

do Oriente Médio (Mers)

assunto. “É uma grande

que interrompam os

notícia”, disse à revista

trabalhos até que uma

Nature Marc Lipsitch,

avaliação de risco seja

epidemiologista da

concluída. A Casa Branca

prevenção da cegueira

do Brasil onde trabalho”,

Escola de Saúde Pública

quer estabelecer um

ou a restauração da

afirmou Rubens

de Harvard. Ele e

limite de segurança no

visão, cujas atividades

Belfort Jr. ao site da

outros pesquisadores

estímulo artificial

atingiram uma

American Academy of

consideram que há

de mutações e proibir

quantidade expressiva

Ophthalmology.

risco de disseminar

pesquisas que queiram

acidentalmente vírus

ir além desse ponto.

com grande potencial

Arturo Casadevall,

pandêmico. O Escritório

microbiologista da

de Políticas de Ciência

Escola de Medicina

e Tecnologia da Casa

Albert Einstein, em

Branca também está

Nova York, criticou a

pedindo a pesquisadores

interrupção. “A maioria

que fazem experimentos

dos experimentos é feita

desse tipo com os vírus

em laboratórios de alta

da gripe, da Síndrome

segurança, que tomam

Respiratória Aguda

todas as precauções

Grave (Sars) e da

necessárias”, disse.

Cientistas por um dia: em Brasília, estudantes entraram em contato com o cotidiano da pesquisa

Mutirão da semana nacional

2

Milhares de pessoas em mais de 556

CienTec, na Universidade de São Paulo

jeto que buscou ensinar produtores locais

cidades brasileiras participaram da 11ª

(USP), que ofereceu atividades como uma

de mel a ampliar a produção com base

Semana Nacional de Ciência e Tecnologia

oficina de réplicas de fósseis e uma mos-

em conhecimentos científicos. O balanço

(SNCT), que aconteceu entre os dias 13

tra de curtas-metragens. Em Brasília, 200

nacional da semana, no entanto, não pôde

e 19 de outubro. Organizado pelo Minis-

instituições de todo o país apresentaram

ser feito, já que em alguns estados, como

tério da Ciência, Tecnologia e Inovação

projetos no Parque da Cidade. Uma das

Amazonas e Espírito Santo, as atividades

(MCTI), em parceria com outros órgãos

atrações foi um motor transparente de

só começaram depois das eleições. “O

e empresas, o evento teve como tema

carro, usado por alunos do Instituto Fe-

número de municípios envolvidos deve

ciência e tecnologia para o desenvolvi-

deral de Educação, Ciência e Tecnologia

superar a marca de 740 cidades do ano

mento social. Em São Paulo, o grande

de Pernambuco (IFPE). Outro destaque

passado”, diz Douglas Falcão, coordena-

evento da semana foi realizado no Parque

foi o estado do Maranhão, com um pro-

dor-geral da Semana no MCTI.

14 | novembro DE 2014

fotos  1 James Gathany / CDC  2 fabio rodrigues / agência brasil

perigosos – induzir


Tecnociência

foto  léo ramos  ilustraçãO  daniel bueno

Quem são os desmatadores? Na Amazônia Legal, as

pequenas propriedades,

grandes propriedades

esse valor cai para

são responsáveis por boa

16,3%. Como a taxa de

parte do desmatamento.

desmatamento voltou

É o que conclui um grupo

a crescer entre 2012 e

internacional liderado

2013, os pesquisadores

por Javier Godar, do

avisam que é importante

Instituto Ambiental de

entender esse perfil para

Estocolmo, na Suécia,

direcionar estratégias de

que reuniu dados de

combate à eliminação da

Aprender espanhol,

criem aplicativos para

censos agropecuários e

floresta, que prejudica sua

português e japonês

o sistema de forma

de sensoriamento

capacidade de armazenar

é a nova etapa da

semelhante aos

remoto para identificar

carbono atmosférico e

plataforma Watson, o

existentes nos sistemas

onde o desmatamento

contribuir para o ciclo da

sistema de computação

Apple e Android.

aconteceu na Amazônia

água. É possível, o estudo

cognitiva que a IBM

“O Watson funciona

entre 2004 e 2011,

sugere, que os grandes

lançou em 2011. Ele tem

com informações não

quando os índices de

produtores tenham

habilidade para interagir

estruturadas. Nas

derrubada da floresta

aprendido a burlar a

na linguagem do usuário,

páginas de internet dos

diminuíram (PNAS,

fiscalização abrindo

com voz, processar

bancos, por exemplo,

28 de outubro). O estudo

clareiras menores. Uma

grandes quantidades de

a lógica é estruturante

avaliou uma escala

solução para fazer frente

dados, aprender e

com informações

detalhada: os 13.303

ao problema pode ser

adquirir conhecimento

constantes e

setores censitários da

uma política de incentivos

conforme é usado. “Para

previsibilidade. Um

região, que abrange 771

positivos, como já é

isso, é preciso uma

exemplo de não

municípios. Os setores

praticado em uma série

adaptação a uma língua

estruturada são as

em que predominam

de iniciativas, entre elas o

com vocabulários e

receitas de torta de

propriedades maiores

Programa Municípios

regras semânticas”, diz

maçã no Google, onde

do que 500 hectares

Verdes do Pará. Esse tipo

Fábio Gandour, cientista-

aparecem mais de 150

representaram a

de programa também

-chefe do Laboratório de

mil respostas. Não tem

maior parte (55,6%)

pode ajudar pequenos

Pesquisas da IBM Brasil.

lógica contínua”, diz

do desmatamento

fazendeiros a praticar um

O Watson vai ser

Gandour. Ele também

no período. Nas áreas

desenvolvimento rural

alimentado com mais de

exemplifica que o

caracterizadas por

mais sustentável.

300 mil palavras, além

Watson poderá servir

de ser dotado de um

como um gerente de

processamento que

banco eletrônico ao

inclui o significado de

indicar os melhores

cada palavra. “O sistema

investimentos de acordo

não é um produto pronto

com o perfil do cliente.

que a pessoa compra e

Em hospitais, onde já é

instala no computador

utilizado nos Estados

ou servidor, ele precisa

Unidos, colabora no

ser alimentado com

diagnóstico e tratamento

informações para que

de cânceres. Algumas

possa dar respostas

informações poderão ser

adequadas a cada

compartilhadas entre

usuário. É um jovem que

os usuários do sistema,

está em evolução”, diz

mas outras, se for do

Gandour. A novidade

interesse de uma

abre caminho para que

empresa que comprou

estudantes, startups e

os serviços do Watson,

pequenas empresas

não serão disseminadas.

Watson aprende português

Amazônia rural: propriedades grandes desmatam mais do que as menores

PESQUISA FAPESP 225 | 15


Suplementação luminosa Com o objetivo de

na Europa para o cultivo

aumentar a produtividade

de tomate, pepino,

de minitomates

pimentão e na produção

cultivados em estufas,

de rosas. A pesquisa

pesquisadores da Escola

brasileira teve início a

Superior de Agricultura

partir de uma demanda

Luiz de Queiroz da

da Philips do Brasil.

Universidade de São

“Fomos procurados

Paulo (Esalq-USP), sob a

pela empresa para

orientação da professora

estudar o uso de LEDs

Simone da Costa Mello,

nas condições de clima

estão testando o uso

tropical e subtropical”,

de barras com diodos

relata Simone.

emissores de luz (LEDs)

Em abril deste ano foi

para suplementação da

feito o plantio dos

radiação solar. “Elas são

minitomates da

Os Leds são utilizados

colocadas na porção

variedade sweet grape

no processo

inferior do dossel do

em uma estufa

fotossintético, essencial

tomateiro, local onde

climatizada composta

para o crescimento

as plantas sofrem as

por dois módulos, um

vegetativo e reprodutivo

maiores consequências

com barra de LEDs que

das plantas. A colheita

Para evitar a coagulação

do autossombreamento,

emitem luz nos

do tomate será no

do sangue e a

com envelhecimento

comprimentos de ondas

mês de dezembro e

contaminação por

mais rápido das folhas

em 465 nanômetros

os resultados iniciais

bactérias em dispositivos

por redução da

(luz azul) e 667

indicam um aumento

médicos implantados

luminosidade”, diz

nanômetros (luz

na produtividade de 15%

ou utilizados como

Simone. As barras de

vermelha) e outro sem

para as plantas com

instrumento para

LED já estão em uso

esses dispositivos.

incidência luminosa.

exames, pesquisadores

1

Tomates sweet grape em estufa na Esalq sob a luz de leds: produtividade maior em 15%

Camada protetora

da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, desenvolveram

Sapo do barulho tira o sono de paulistanos

um novo tipo de revestimento.

Numa noite de 2012, uma moradora do

tencial de se tornarem invasores. E o ba-

Dispositivos como

bairro paulistano do Brooklin ouviu um

rulho, semelhante a uma sirene, é ensur-

implantes cardíacos,

barulho estranho. Chamou a prefeitura e

decedor a ponto de a moradora que fez

cateteres, sondas e

Marcos Melo, o funcionário que foi verifi-

a reclamação ter sido hospitalizada por

car, gravou o som e identificou o sapinho

não conseguir dormir. Além da saúde, a

Eleutherodactylus johnstonei, nativo das

cantoria pode afetar o mercado imobiliá-

Antilhas. A identificação foi confirmada

rio, como aconteceu em caso semelhan-

pela bióloga Mariana Lyra, do grupo do

te no Havaí. A eficácia da identificação

zoólogo Célio Haddad, da Universidade

genética pode ser crucial para se buscar

Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro,

uma solução o quanto antes, alerta o ar-

um composto químico.

que comparou trechos do DNA a sequên-

tigo (Salamandra, 30 de outubro).

Segundo o estudo

máquinas de diálise, por Nativo das Antilhas, E. johnstonei se instalou em bairro de São Paulo

exemplo, poderão receber um revestimento na forma de uma camada molecular de perfluorocarboneto,

cias depositadas no banco internacional

publicado na edição

GenBank. Acredita-se que esses animais,

on-line da revista Nature

que medem no máximo três centímetros,

Biotechnology, em 12 de

viajem com o comércio de plantas, mas

outubro, essa camada

não está claro como chegou a toda uma

impede a fixação de

quadra de São Paulo. “Eles estão por todo

fibrina, uma proteína

lado”, conta Haddad. “Em frestinhas nas

que age na coagulação,

paredes, dentro das casas, nos jardins.”

e reduz a adesão

Como não precisam de água acumulada

plaquetária. Foram feitos

para se reproduzir, já que os sapinhos saem prontos dos ovos, têm grande po-

testes em porcos com 2

materiais já aprovados para uso nos aparelhos.

16 | novembro DE 2014


Navegando com energia solar Silencioso e sem gastar

Compramos o material

uma gota de combustível

e fizemos a integração”,

ou emitir poluentes, um

diz Rüther. “Depois

barco catamarã de

realizamos os testes e

alumínio capaz de levar

a homologação.”

até 16 pessoas vai

O projeto também teve

navegar na lagoa do

a colaboração do

Peri, em Florianópolis,

Instituto Ekko Brasil,

Santa Catarina,

uma organização não

aproveitando a energia

governamental que, por

do Sol. Módulos solares

meio do Projeto Lontra,

3

fotovoltaicos fazem

que tem patrocínio da

o papel de cobertura

Petrobras, vai utilizar

do barco e ao mesmo

a embarcação na lagoa

tempo carregam as

Peri, em Florianópolis,

oito baterias e demais

para pesquisas com

Filtro de cigarro pode melhorar eficiência de equipamentos elétricos

Pesquisadores

acetato de celulose

equipamentos que

lontras e educação

coreanos descobriram

(tóxicas e não

fazem funcionar quatro

ambiental nesta reserva

como os mais de 5

biodegradáveis) das

motores elétricos

da mata atlântica

trilhões de filtros de

bitucas de cigarro em um

instalados na popa da

onde estão proibidos

cigarro que os

material poroso que

embarcação. O projeto

veículos com motor a

fumantes do mundo

aumenta o desempenho

do barco é do Grupo de

combustão. “As lontras

todo lançam no lixo a

de componentes

Pesquisa Estratégica

são animais muito

cada ano podem ser

eletrônicos conhecidos

em Energia Solar da

tímidos e reservados.

reaproveitados para

como supercapacitores.

Universidade Federal de

É extremamente

aumentar a eficiência

Os supercapacitores hoje

Santa Catarina (UFSC),

importante que a

de turbinas eólicas a

disponíveis no mercado

sob a coordenação

aproximação possa ser

carros elétricos. Uma

são feitos com materiais

do professor Ricardo

feita sem barulho, o

equipe liderada pelo

à base de carbono. Em

Rüther. “Tivemos um

que poderia estressar

químico Jongheop Yi,

geral, eles armazenam

projeto do CNPq

o animal e prejudicar

da Universidade

relativamente menos

[Conselho Nacional

todo o processo de

Nacional de Seul,

energia elétrica do que as

de Desenvolvimento

pesquisa”, explica

descreveu em

baterias convencionais,

Científico e Tecnológico]

Oldemar Carvalho

agosto na revista

mas vêm ganhando

no valor de R$ 100 mil

Júnior, gerente de

Nanotechnology

espaço por durarem

em 2010 para o projeto

projetos e pesquisa

um processo que

mais tempo, além

do barco solar.

do Instituto Ekko.

transforma as fibras de

de carregarem

Barco com placas fotovoltaicas no teto para navegar na lagoa Peri, em Florianópolis

Bituca armazena energia

e descarregarem milhares de vezes mais rápido. A nanotecnologia tenta melhorar o desempenho dos

fotos 1 esalq  2 célio haddad / unesp 3 eduardo cesar  4 UFSC

supercapacitores atuais substituindo esses materiais por grafeno ou nanotubos de carbono. Os pesquisadores de Seul queimaram as bitucas de cigarro a temperaturas elevadas e na presença de nitrogênio e obtiveram um tipo de carbono poroso. Nos testes, esse material foi capaz de armazenar mais energia do que todos os outros 4

avaliados anteriormente. PESQUISA FAPESP 225 | 17


capa

Uma régua universal Grupo internacional propõe padrão ideal de crescimento dos fetos e dos recém-nascidos

ilustrações  elisa carareto sobre foto Medical Body Scans Photo Researchers, Inc. / latinstock

Ricardo Zorzetto


O

s bebês humanos, sob condições ideais, nascem quase sempre com o mesmo tamanho. Depois de passar em média 40 semanas bem protegidos e alimentados no útero materno, eles vêm ao mundo com aproximadamente 50 centímetros de comprimento. Esse tamanho pode variar dois ou três centímetros para mais ou para menos nessa idade gestacional e parece representar o crescimento ótimo alcançado pela espécie humana nos dias de hoje. Pais e pediatras talvez até já suspeitassem disso. Mas para obter valores válidos do ponto de vista científico foi necessário o trabalho de um batalhão de pessoas. Ao longo de quatro anos, entre 2009 e 2013, cerca de 300 médicos e pesquisadores de 27 instituições pesaram e mediram nas primeiras horas de vida 52.171 recém-nascidos de oito países.­ PESQUISA FAPESP 225 | 19


Vários povos, um padrão Bebês de diferentes regiões, sob boas condições, crescem de modo semelhante

Pesquisadores coletaram dados de bebês de oito países para construir as curvas de crescimento

Estados Unidos

Itália

311 bebês em gestação

509 bebês em gestação

1.027 recém-nascidos

2.358 recém-nascidos

Inglaterra

Índia

640 bebês em gestação

625 bebês em gestação

2.939 recém-nascidos

2.493 recém-nascidos

China

609 bebês em gestação 3.551 recém-nascidos

Brasil Omã

411 bebês em gestação

599 bebês em gestação 2.821 recém-nascidos

Quênia

2,0

617 bebês em gestação

1,5 (em unidades de desvio padrão)

Discrepância padronizada entre populações

1.595 recém-nascidos

3.702 recém-nascidos

1,0 Para o comprimento,

0,5

cada 0,5 de desvio-padrão 0

corresponde a 9 mm

– 0,5 – 1,0 – 1,5

Brasil

Omã

China

Inglaterra

Índia

Estados Unidos

Quênia

Itália

– 2,0 0

35

36

37

38

39

40

Idade gestacional (semanas)

Desses bebês, selecionaram os 20.486 cujas gestações duraram de 33 a 42 semanas – os que permaneceram menos tempo no ventre materno obviamente eram menores, e os que passaram mais tempo, maiores. Todas as crianças tinham boa saúde, assim como as mães, que pertenciam às faixas de renda mais altas e com nível educacional mais elevado dessas populações. Nenhuma das mulheres fumava nem tinha doenças que pudessem reduzir o crescimento dos bebês.

H

ouve uma razão para a escolha de um grupo tão seleto. Mulheres com mais anos de estudo e nível socioeconômico mais elevado costumam cuidar melhor da própria saúde e correm menos risco de apresentar problemas na gestação. E os pesquisadores queriam conhecer em detalhe o perfil corporal e o estado de saúde 20 | novembro DE 2014

Todas as idades gestacionais

Fonte  villar, j. et al. lancet diabetes & endocrinology. 2014

dos recém-nascidos gestados nas melhores condições possíveis. Com esses dados, eles planejavam criar curvas estabelecendo faixas do crescimento considerado ideal durante a gravidez e logo após o parto que pudessem ser válidas para os quase 140 milhões de crianças que nascem a cada ano no mundo. José Villar, obstetra argentino que coordenou essa extensa tarefa, acredita ter, por fim, conseguido gerar curvas de uso universal, cumprindo uma recomendação de 20 anos atrás da Organização Mundial da Saúde (OMS). “Agora todos os recém-nascidos podem ser medidos tomando-se por base uma mesma referência”, diz Villar, professor da Universidade de Oxford, no Reino Unido. Ele havia integrado o comitê de especialistas da OMS que em 1994 identificou a necessidade


de criar um padrão internacional para saber se os bebês estavam nascendo saudáveis e com o tamanho adequado ou se eram menores do que deveriam e corriam mais risco de adoecer e morrer nos primeiros dias de vida. Para isso, era preciso desenvolver uma ferramenta de avaliação do crescimento, uma espécie de régua universal dos bebês, que servisse para as diferentes populações. Mas não bastava ter a régua. Era preciso saber se os valores que estavam sendo medidos indicavam saúde ou problema. Desde a reunião da OMS muitas curvas foram criadas – um “As novas curvas levantamento recente contabilidescrevem como zou 104 publicadas desde 1990. Mas nenhuma parecia preenuma criança deve cher os requisitos necessários para ser considerada válida unicrescer em uma versalmente. É que as estratégias usadas para construí-las já gestação em impunham limitações.

infográfico Marina oruê

E

condições ideais”, diz Fernando Barros

laborar curvas representativas do padrão de crescimento de uma população – ainda mais de uma população tão grande e variada como a humana – é algo trabalhoso e caro. Exige a mobilização de muitos profissionais e a avaliação de um grande número de pessoas. Em razão dessas complicações, muitas das curvas antigas eram feitas a partir de dados coletados no passado, em geral menos confiáveis e mais sujeitos a imprecisões, ou sem a padronização necessária das estratégias de medição. Outro motivo que com frequência punha em xeque a validade internacional dessas curvas era o uso de informações de grávidas e crianças de uma única região ou, quando muito, de um só país. Essa limitação fazia os médicos suspeitarem que curvas produzidas, por exemplo, com mulheres e crianças norte-americanas não fossem uma boa referência para mães e bebês da África ou da Ásia. As novas curvas de recém-nascidos, apresentadas em um artigo da edição de 6 de setembro da revista Lancet, em princípio, suprem essas restrições. Foram construídas pelos pesquisadores do Consórcio Internacional sobre Crescimento Fetal e de Recém-nascidos para o Século XXI (Intergrowth-21st) usando a mesma metodologia e o mesmo tipo de equipamento para realizar as medições e, principalmente, reuniram dados de mulheres e crianças de oito países com variados níveis de desenvolvimento social e econômico (Estados Unidos, Brasil, Inglaterra, Itália, Quênia, Omã, Índia e China) espalhados por quatro continentes.

Além de coletar informações de 20.486 crianças para a produção das curvas de crescimento dos recém-nascidos, os pesquisadores também desenvolveram novas curvas de crescimento fetal, que exibem um padrão de crescimento considerado desejável para os bebês durante a gestação – os dois tipos estarão disponíveis no site do Intergrowth. Diferentemente das curvas dos recém-nascidos, elaboradas a partir de medições feitas logo após o parto, as curvas dos fetos são mais trabalhosas. Exigem a realização de uma série de medidas da criança no interior do útero materno, o primeiro ambiente de vida humana. Para isso, os integrantes do Intergrowth acompanharam a gravidez de outras 4.321 mulheres de nível social, econômico e educacional elevado nos mesmos oito países. Durante a gestação, essas mulheres receberam acompanhamento regular de saúde, enquanto seus bebês eram avaliados e medidos por meio de exames de ultrassonografia realizados a cada cinco semanas – eles continuarão a ser acompanhados por meio de exames físicos e testes de desenvolvimento neurológico até os dois anos de idade. Publicadas em um segundo artigo da mesma edição da Lancet, assinado pelo obstetra Aris Papageorghiou, também de Oxford, essas curvas de desenvolvimento fetal, segundo seus autores, também seriam as primeiras a apresentar validade universal. “Sabemos exatamente o que aconteceu com cada uma das mulheres e das crianças”, afirma Villar, um dos autores principais do estudo ao lado dos brasileiros Fernando Barros e Cesar Victora, ambos da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). “Queríamos criar curvas que fossem prescritivas”, conta Barros, que coordenou a coleta de dados no Brasil e a participação nacional no projeto. “Acreditamos que elas descrevem como uma criança deve crescer durante uma gestação que transcorre em condições ideais, com boa nutrição, sem infecções e vivendo em altitudes abaixo de 1.600 metros, onde a disponibilidade de oxigênio é maior”, diz o pesquisador gaúcho.

P

ara assegurar que essas curvas pudessem servir como padrão para as diferentes populações humanas, os pesquisadores confrontaram a variação de tamanho apresentada pelos bebês das oito populações avaliadas. A comparação, publicada em julho na Lancet Diabetes and Endocrinology, mostrou que a diferença média de tamanho foi sempre inferior a nove milímetros (ver gráfico na página ao lado). “Essa diferença é praticamente desprezível”, comenta o endocrinologista Alexander Jorge, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), que investiga as causas genéticas de distúrbios do crescimento. “Esses dados mostram que, em condições ideais, as populações PESQUISA FAPESP 225 | 21


As medidas das meninas Curvas de peso, comprimento e circunferência da cabeça de recém-nascidos do sexo feminino Peso ao nascer

Percentil 50 Abrange metade

5,5

dos valores da amostra

Percentil 90

Inclui os 10% da amostra com valores mais altos

Peso (kg)

4,5

3,5

2,5 Percentil 10

Compreende os 10% da amostra com valores mais baixos

1,5

0,5

33

34

35

36

37

38

39

40

41

42

43

Idade gestacional (semana)

comprimento 56

P

Comprimento (cm)

52

48

44

40

36

33

34

35

36

37

38

39

40

41

42

43

41

42

43

Idade gestacional (semana)

circunferência da cabeça 40

Circunferência (cm)

38 36 34 32 30 28 26

nascem com tamanhos muito próximos, o que não significa que não exista influência genética no comprimento das crianças.” As características genéticas de cada população, aliás, parecem ter influenciado pouco a variação de tamanho dos bebês, que já era pequena. Elas explicam no máximo 3% ou 0,3 milímetro da diferença de comprimento observada entre as crianças dos oito países. Os outros 8,7 milímetros são consequência dos fatores ambientais (saúde, nutrição e qualidade de vida maternas). Dentro de uma mesma população, no entanto, a variação genética explicou até 20% da diferença de tamanho. Os 80% restantes se deveram ao ambiente. Conhecendo os dados do Intergrowth e a importância da saúde materna para o desenvolvimento do bebê, um grupo de 50 médicos, economistas e outras lideranças internacionais reunidas em Oxford no início do ano decidiu agir. Enviou uma carta ao governo de 22 economias emergentes – entre elas, Brasil e Índia – alertando para a necessidade de melhorar a qualidade de vida das mulheres, “um fator que influencia o desenvolvimento social e econômico dos países”. “Houve poucas respostas”, diz Ian Scott, diretor do grupo. “Não tivemos notícias do Brasil.”

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arece haver razões biológicas para que bebês da mesma espécie cresçam de modo muito semelhante se gestados sob condições quase idênticas. Anos atrás o pesquisador Jeffrey Baron, do Instituto Nacional de Saúde da Criança e Desenvolvimento Humano dos Estados Unidos, comparou a velocidade de multiplicação de embriões de camundongos, seres humanos e elefantes. E constatou que o ritmo de proliferação celular nos primeiros estágios de desenvolvimento do embrião é muito próximo nas três espécies. As diferenças começam a surgir a partir do momento em que há uma desaceleração na velocidade de multiplicação das células. Essa velocidade diminui mais cedo nas espécies menores, que também têm gestações mais curtas – a do camundongo dura cerca de 20 dias e a do elefante, por volta de 20 meses. Na espécie humana, Alexander Jorge suspeita, pode ter havido uma pressão de seleção importante a ponto de os genes que regulam o crescimento fetal terem permanecido estáveis em populações de diferentes regiões do mun-


do – curvas de crescimento distintas indicam que o comprimento das crianças varia pouco entre populações até os dois anos de idade. “Mutações nesses genes podem ter exercido uma influência negativa em termos de perpetuação da espécie e terem sido eliminadas”, diz Jorge.

As medidas dos meninos Curvas de peso, comprimento e circunferência da cabeça de recém-nascidos do sexo masculino

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Peso ao nascer 5,5

Peso (kg)

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Inclui os 10% da amostra com valores mais altos

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dos valores da amostra

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Compreende os 10% da amostra com valores mais baixos

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oje se conhecem cerca de 180 genes e regiões gênicas associados à determinação da estatura. Mas, juntos, eles explicam apenas 11% da diferença de altura entre os seres humanos. O restante, acredita-se que seja determinado pelo ambiente. “O potencial de crescimento de uma pessoa é determinado pela sua constituição genética no momento da concepção”, explica o pediatra Claudio Leone, da Faculdade de Saúde Pública da USP, estudioso do crescimento e desenvolvimento infantil. “Um ambiente desfavorável amputa esse potencial.” Uma criança que, por razões genéticas ou ambientais, cresça menos que o desejável – em especial durante a gestação e nos primeiros anos de vida, quando o ritmo de desenvolvimento é mais acelerado – pode não atingir esse potencial, mesmo que volte a ganhar estatura mais rapidamente mais tarde. Por essa razão, pais e médicos estão sempre de olho na estatura. “Crescer bem é um sinal físico de saúde”, diz Leone. E curvas como as produzidas pelo Intergrowth são uma importante ferramenta de triagem tanto durante a gestação como após o nascimento. Durante a gravidez, as curvas ultrassonográficas dos fetos pequenos para a idade ajudam a identificar o momento mais adequado para interromper a gestação, explica o obstetra Silvio Martinelli, médico do Hospital das Clínicas da USP. “Tentamos fazer o parto quando a chance de sobrevivência e a qualidade de vida fora do útero são maiores do que a de manter a criança no ventre materno”, conta. Já as curvas de recém-nascidos sinalizam para os pediatras possíveis problemas que terão pela frente. “Elas dão uma ideia dos riscos que as crianças correm e dos cuidados que vão demandar nos primeiros dias de vida”, conta a neonatologista Cléa Rodrigues Leone, pesquisadora do Instituto da Criança da USP. Aos olhos de um leigo, as curvas lembram uma obra de arte minimalista. Em geral, trazem cinco faixas de valores ou percentis para cada característica – por exemplo, peso ou comprimento – medida em diferentes idades gestacionais. Para elaborar as curvas de crescimento fetal, os pesquisadores registraram os valores de cinco parâmetros (três medidas da cabeça, comprimento do fêmur e circunferência do abdômen) a cada exame de ultrassom. Já as curvas dos recém-nascidos levam em consideração o peso, a circunferência da cabeça e o comprimento total dos bebês para cada idade gestacional (ver curvas nestas páginas).

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As faixas que mais preocupam os médicos são as da extremidade inferior e da superior. As primeiras marcam os percentis 3 e 10 e representam os valores que estão, respectivamente, entre os 3% e os 10% mais baixos para aquela característica. Já as duas últimas, os percentis 90 e 97, incluem os valores que correspondem aos 10% e aos 3% mais elevados. As faixas intermediárias incluem os 90% restantes dos valores, aqueles em que pais e médicos gostariam de ver as crianças.

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“A restrição de crescimento é a segunda causa de morte perinatal”, diz Silvio Martinelli

s extremos preocupam porque são sinal de problema. Bebês que desde o útero crescem seguindo os valores do percentil 90 em geral são filhos de mulheres diabéticas que não conseguem manter sob controle os níveis de açúcar (glicose) no sangue. Essas crianças são maiores que as demais porque o sangue materno, com mais glicose que o desejável, estimula o pâncreas a aumentar a produção de insulina, um dos principais hormô24 | novembro DE 2014

nios promotores do crescimento nessa fase da vida. Nas primeiras semanas depois de nascer, elas necessitam de acompanhamento médico para evitar que o teor sanguíneo da glicose, a principal fonte de energia do cérebro, diminua muito e prejudique o desenvolvimento do sistema nervoso central. Os médicos também dedicam atenção especial aos bebês que crescem acompanhando o limite inferior dessas curvas, o percentil 10. Entre 50% e 60% dessas crianças são bebês saudáveis, que estão se desenvolvendo de acordo com a sua constituição genética. O restante, no entanto, apresenta o que os médicos chamam de restrição de crescimento. Dito de modo simples, são crianças que crescem pouco porque não recebem a nutrição adequada. “A restrição de crescimento é a segunda causa de morte perinatal”, afirma Martinelli. Ela aumenta em sete vezes o risco de uma criança morrer durante a gestação. Um estudo recente conduzido pelo obstetra húngaro Jason Gardosi, autor de uma curva de crescimento individualizada, que se baseia em características de saúde da mãe para projetar o desenvolvimento esperado


de cada bebê, avaliou a saúde de 92.218 crianças nascidas entre 2009 e 2011 na Inglaterra. A taxa de morte entre crianças sem restrição de crescimento foi de 2,4 casos para cada mil nascimentos, enquanto esse índice saltou para 16,7 por mil entre as que passaram por privação de alimentos no útero. Segundo artigo publicado em 2013 no British Medical Journal, a proporção de mortes foi ainda mais elevada (19,8 por mil) quando não se identificava a restrição precocemente. “O organismo de crianças que sofrem restrição nutricional durante a vida intrauterina apresenta adaptações metabólicas que o levam a reagir de modo diferente aos estímulos ambientais depois do nascimento, aumentando o risco de doenças cardiovasculares no futuro”, explica Cléa Leone. A razão mais frequente por que o feto deixa de receber os níveis adequados de nutrientes durante a gravidez são alterações no funcionamento da placenta, em geral associadas à hipertensão materna, para as quais ainda não há tratamento eficiente.

foto Neil Borden / Photo Researchers, Inc. / latinstock

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á mais de 60 anos confirmou-se a importância da nutrição materna para o desenvolvimento dos filhos. No inverno de 1944, já no final da Segunda Guerra Mundial, o exército da Alemanha nazista invadiu a Holanda e restringiu a circulação de alimentos. Houve um grande surto de fome, que ficou registrado em estudos publicados em 1946 e 1947: os bebês das holandesas que haviam sobrevivido ao período de privação nasciam menores e mais magros que o normal, problema que afetou principalmente os meninos. Assim como orientam o trabalho de pediatras e obstetras, ao dar pistas sobre a saúde de cada bebê, as curvas de crescimento também permitem conhecer como anda a saúde de uma população. “As curvas são também bons indicadores de bem-estar social, melhores até do que a mortalidade infantil”, diz Claudio Leone. “Se as crianças de uma população de uma comunidade, região ou país estão, em média, crescendo bem, é sinal de que as condições de vida estão melhorando”, explica. Essas médias caem quando o grupo atravessa um período de dificuldades econômicas. Leone e os outros pesquisadores que avaliaram as novas curvas fetais e dos recém-nascidos a pedido de Pesquisa FAPESP consideram as feitas pelo Intergrowth as mais rigorosas e bem-feitas do ponto de vista metodológico. “Independentemente da discussão se serão ou não adotadas como padrão universal”, diz Leone, “são as melhores curvas de crescimento que se tem atualmente”. Silvio Martinelli ainda não sabe dizer se as novas curvas de ultrassonografia serão adotadas na maternidade do Hospital das Clínicas da USP, em substituição às usadas hoje, produzidas

nos anos 1980 e 1990 com base em uma população americana. “Vamos discutir as novas curvas com a equipe da maternidade”, diz. “Estamos habituados a trabalhar com curvas que apresentam uma estimativa de peso dos fetos e essas não têm.” Além disso, usando as curvas fetais do Intergrowth uma proporção menor de bebês seria classificada como tendo restrição de crescimento. “Precisamos nos certificar de que não vamos correr risco e nenhum bebê vai escapar ao diagnóstico”, completa o obstetra. Na curva dos recém-nascidos, Cléa Leone observou uma limita“Se as crianças ção: não há dados sobre os bebês de uma que nascem mais prematuros, entre a 22a e a 32a semanas de gestação. população “Se o ideal é usar uma única curva no berçário, fica difícil indicá-la para crescem bem, as unidades de risco, que trabalham com crianças mais prematuras?”, as condições diz a neonatologista, que por vários de vida estão anos chefiou o berçário anexo à maternidade do Hospital das Clínicas melhorando”, diz da USP. “Minha posição no momento é de que devemos testar os dois Claudio Leone tipos de curvas do Intergrowth para ver se alteram os indicadores de mortalidade e de prematuridade.” Ao concluir as curvas neonatais, os pesquisadores do Intergrowth as testaram aplicando ao universo de quase 140 milhões de bebês que nascem anualmente no mundo. Seguindo os padrões propostos pelo Intergrowth, mais rígidos e obtidos de gestações de muito baixo risco, cerca de 30 milhões de recém-nascidos estariam subnutridos, precisando de suporte de saúde para recuperar o ritmo de crescimento e desenvolvimento adequado. É um número 2,5 vezes maior do que o estimado anteriormente. “Os governos terão de agir”, diz José Villar. “Eles precisam entender que é necessário sanar esse problema para melhorar o capital humano de um país. Eles preferem agir logo e ter maior chance de obter melhores resultados a custo mais baixo ou esperar e ter de agir mais adiante com menor probabilidade de sucesso?” n

Artigos científicos PAPAGEORGHIOU, A. et al. International standards for fetal growth based on serial ultrasound measurements: the fetal growth longitudinal study of the Intergrowth-21st project. Lancet. 6 set. 2014. VILLAR, J. et al. International standards for newborn weight, length, and head circumference by gestational age and sex: the newborn cross-sectional study of the Intergrowth-21st Project. Lancet. 6 set. 2014. VILLAR, L. O. et al. The likeness of fetal growth and newborn size across non-isolated populations in the Intergrowth-21st project: the fetal growth longitudinal study and newborn cross-sectional study. Lancet Diabetes and Endocrinology. 6 set. 2014.

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léo ramos

entrevista Thomas Maack

Memórias de um ano que não terminou Marcos Pivetta e Neldson Marcolin

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primeiro emprego do fisiologista Thomas Maack foi como office boy em uma loja que vendia produtos dentários, em São Paulo. Depois foi militante político, médico, pesquisador e reformador de currículos de faculdades de medicina. Vem se dedicando, nos últimos anos, a viajar, para falar em escolas médicas de outros países sobre os novos conceitos educacionais que podem melhorar a formação dos médicos. Aos 79 anos, porém, ele constata que o tema sobre o qual mais fala no Brasil é 1964, o ano marcado pelo golpe militar. “Cinquenta anos depois, parece que ninguém esquece minha antiga militância”, diz ele, sempre bem-humorado, em mais uma passagem por São Paulo. Thomas Maack nasceu em Insterburg, na Alemanha, em 1935 e veio ainda bebê com os pais para São Paulo, em 1936, fugindo de Hitler. Quando estudante na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), militou por uns três anos no Partido Operário Revolucionário Trotskista. Formado em 1961, foi um dos discípulos de Michel Rabinovitch, conhecido por impulsionar jovens talentos na pesquisa científica. Como professor, era um dos críticos da antiga cátedra, nas mãos das tradicionais famílias de médicos paulistas na FM-USP. Não estava sozinho – docentes iniciantes como Luiz Hildebrando Pereira da Silva, Erney Plessmann de Camargo e os já veteranos como Isaias Raw, Antonio Barros de Ulhôa Cintra, Alberto Carvalho da Silva, Rabinovitch, os casais Maria José e Leônidas Deane e Ruth e Victor Nussenzweig, compartilhavam do mesmo desejo de reforma. Para Maack, a violência com que o golpe atingiu a FM-USP com demissões e prisões foi provocada não apenas pela caça aos que eram de esquerda. “Ela foi especialmente incentivada pelos velhos catedráticos, que temiam perder poder com as reformas que viriam”, diz. Dos que foram presos em 1964, ele foi o que passou mais tempo encarcerado – sete meses – antes de conseguir um habeas corpus e ir para os Estados Unidos. Primeiro na Faculdade de Medicina da Universidade do Estado de Nova York em Siracusa e depois na Faculdade de Medicina da Universidade Cornell, Maack teve uma carreira

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idade 79 anos especialidade Fisiologia e biofísica formação Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (graduação), Universidade Federal de São Paulo (doutorado) instituição Faculdade de Medicina da Universidade Cornell produção científica Mais de 100 artigos científicos com cerca de 7 mil citações


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científica longa. Entre suas descobertas destacam-se o desvendamento dos mecanismos pelos quais o rim metaboliza proteínas e hormônios que circulam no sangue e a identificação da estrutura química e das funções do peptídeo natriurético atrial. Quando cansou do laboratório, dedicou-se à educação e foi um dos líderes da reforma do currículo médico em Cornell, que está entre as 10% melhores faculdades de medicina norte-americanas. Hoje vive com a esposa, Isa, em Nova York. Professor emérito, Maack usa sua expertise para dar consultoria sobre como montar um moderno curso de medicina. Em outubro, esteve mais uma vez na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) falando sobre o assunto. Antes, conversou com Pesquisa FAPESP. Vamos começar falando do golpe de 1964, que completou 50 anos em 2014. Além de pesquisador, o senhor era um ativo militante político. A qual organização pertencia? Minha militância foi muito confusa porque a origem de minha consciência política vem do fato de ter estudado à noite no ginásio [ensino fundamental]. Durante o dia trabalhava como office boy. Fui um estudante vagabundo no primário, mas só tirava notas boas porque estudar era fácil para mim. Meu pai, um alemão, achava que eu tinha que aprender o que era a vida. Ele conseguiu um emprego para mim com um amigo que vendia instrumentos dentários. Estudei no ginásio à noite e me dei muito bem com meus colegas. Todos trabalhavam e alguns deles, inclusive o meu melhor amigo, eram muito pobres e moravam em favelas. Os professores eram fantásticos. A diversidade do meio em que eu estudava teve uma profunda influência na formação da minha consciência política e social. Todavia, minha participação política e militância ainda tiveram que esperar a entrada na FM-USP. Por que seus pais emigraram? Eles eram refugiados de Hitler. Minha mãe era judia, meu pai não. Eles perceberam cedo que tinham que sair de lá, no início de 1936, quando eu era bebê. Eles não podiam trazer dinheiro da Alemanha, mas o piano sim. Trouxeram um piano de cauda e a primeira coisa que fizeram, quando desceram no porto de 28 | novembro DE 2014

Santos, foi vender o instrumento para poder sobreviver. Meu pai tinha um talento para línguas inacreditável. Na travessia, em 15 dias aprendeu português. O primeiro emprego dele no Brasil foi de tradutor de alemão para português. Depois trabalhou como propagandista numa empresa farmacêutica. Foi subindo de cargo e acabou como diretor científico da companhia. Não foi por razões econômicas que me mandaram para uma escola pública noturna e me arrumaram um emprego durante o dia. Foi para me dar uma lição de vida. Sou muito grato por isso. E por que saiu da escola pública? Quando terminei o ginásio, meus pais decidiram que eu teria de me preparar para a universidade e me colocaram no Colégio Bandeirantes. Isso sim era um sacrifício econômico, custava caro. Contei tudo isso por causa da política, mas há uma boa razão. No curso científico [equivalente ao ensino médio atual] havia a Juventude Comunista, muito ativa, e era um caminho de muitos da minha geração passar pelo Partido Comunista [PC]. Mas eu tive um professor de biologia, Clemente Pereira, que era geneticista do Instituto Biológico e um mendelista estrito. E naquela época o PC propagava as ideias de Trofim Lisenko, o braço direito de Stalin para questões de ciências na União Soviética. Lisenko dizia que gene não existia, que era invenção da burguesia... Meu professor participava dos debates entre mendelistas e lisenkistas no Centro do Professorado Paulista. Ele nos levava para assistir e depois explicava o significado daquilo. Foi esse detalhe que impediu a minha entrada na Juventude Comunista e depois no PC. Mendel o afastou dos comunistas... Completamente. Não dava para ser do mesmo partido de Lisenko. Minhas primeiras experiências de ação política foram no movimento estudantil [UNE e UEE] em campanhas nacionalistas, como “O petróleo é nosso”. Depois fiquei muito insatisfeito com as limitações do movimento nacionalista e procurei uma associação com um movimento social mais amplo. Trabalhava então com Nelson Fausto no laboratório de Michel Rabinovitch. Nelson era trotskista e acabou me recrutando para o Partido Operário Revolucionário Trotskista. Ele

também se radicou nos Estados Unidos e fez uma carreira brilhante. Quanto tempo ficou nessa organização? Do terceiro ao quinto ano de faculdade com militância ativa que, aos poucos, fui largando até o meu rompimento com a organização antes de 1964. Era uma pequena seita, com todos os defeitos inerentes ao culto da personalidade do líder e um centralismo democrático – que tinha muito centralismo e era nada democrático. Não me arrependo desse período. Portanto, durante o meu tempo de estudante da FM-USP, eu era um militante público muito ativo. Outros foram demitidos não por ativismo político, mas porque defendiam a reforma universitária. O senhor atribui a violência pela qual passou a FM-USP à eliminação dos reformistas? Não tenho dúvida. Todos os demitidos e indiciados eram professores de várias tendências que desejavam fazer reformas na universidade. O Ulhôa Cintra [ex-reitor da USP e presidente do primeiro Conselho Superior da FAPESP] não tinha nada de esquerdista. O professor Alberto Carvalho da Silva [fisiologista, ex-diretor científico e ex-diretor presidente da FAPESP] também não era um ativista político. O Isaias Raw era um reformista que eu até achava, talvez injustamente, ter tendências direitistas. O ódio que os catedráticos tinham de pessoas como eles era tremendo. A razão é que eles teriam mais poder do que nós, esquerdistas, para realizar a reforma dentro da FM-USP e mais ainda dentro da USP. Um dos objetivos dos reformistas era acabar com a cátedra vitalícia familiar. Na FM-USP, mais do que em qualquer outra faculdade, a cátedra era em muitos casos hereditária. Na FM-USP de São Paulo, eles se apegavam ao poder de forma muito mais forte que nas outras faculdades. Comparem o exemplo do diretor da FM-USP de Ribeirão Preto, Moura Gonçalves, com o João Alves Meira, da mesma faculdade em São Paulo. O pessoal do Exército queria fazer o IPM [inquérito policial militar] em Ribeirão Preto. Moura Gonçalves disse que naquela faculdade eles não entrariam; se quisessem, que fizessem fora, não lá dentro. Já o João Meira cedeu o próprio escritório para o coronel Ênio Pinheiro fazer o IPM na unidade


paulistana. Este é o tipo de comparação que devemos fazer. Isso vai muito além do golpe militar em si ou do fato de ser de esquerda e de direita. Os militares inicialmente não queriam se envolver nas brigas internas da FM-USP e da USP, mas, ao mesmo tempo, se aproveitavam dessas disputas para obter denúncias e reprimir a esquerda. Em 1964, os militares ainda se gabavam de ter mais moralidade do que os nossos repressores universitários. Por exemplo, o coronel Sebastião Alvim, responsável por ter me mantido na prisão por sete meses, me disse com orgulho que o Exército nunca faria a crueldade que fizeram comigo, quando a FM-USP expulsou minha filha de 18 meses da creche da faculdade depois que fui preso. A cátedra acabou durante a ditadura e o governo militar criou mais universidades, além da pós-graduação no país ter se sistematizado durante aquele período. Mas o senhor é crítico quanto a esses avanços. Minha oposição ao fazer esse tipo de balanço não tem nada a ver com o que os militares fizeram ou deixaram de fazer. Quando visitei a Alemanha, me indicaram uma estrada feita por Hitler e me disseram: “Hitler também fez coisas boas”. Minha resposta a isso foi: “Deve ter sido a estrada mais cara do mundo, porque custou a vida de dezenas de milhões de pessoas”.

dê uma boa razão profissional”. O professor Alberto, por essa e outras ações, pagou o preço mais tarde, quando, com base no AI-5, foi expurgado da USP. O senhor ficou preso sete meses, quatro deles no navio-prisão Raul Soares. Teve medo de ser torturado ou morto? Quando estive preso no quartel de Quitaúna, em Osasco, em um interrogatório no escritório do coronel Sebastião Alvim, um capitão mais nervoso apontou o revólver para mim e disse: “Ou você fala ou te mato”. Respondi: “Então atira”. Não foi um ato heroico. Tinha 100% de certeza de que ele não iria sujar o tapete grã-fino do escritório do coronel com o meu sangue. Esse episódio foi bem no começo da prisão, antes do navio. Meu

banheiro, um luxo. Os operários ficavam num porão imundo e minha única ida lá era quando um deles ficava doente. Não havia um oficial médico para atender aos prisioneiros que adoeciam. Essa função recaiu sobre mim, pois eu era o único médico. Quando as coisas complicavam, eu dizia para o capitão que não me responsabilizaria: ou mandava o doente para a Santa Casa de Misericórdia de Santos ou ele poderia morrer. Vamos falar um pouco sobre sua vida científica. Seus primeiros trabalhos foram feitos na FM-USP? Minha carreira de pesquisador começou com o Rabinovitch na FM-USP. Esse grupo compreendia cerca de 10 estudantes de medicina que estavam interessados em seguir uma carreira acadêmica. Publiquei dois artigos como estudante. Sobre o quê? Em um dos trabalhos, descrevemos como as células do rim captavam uma proteína circulante, a lisozima, e também aumentavam os níveis de uma enzima, a ribonuclease alcalina. Esse saiu publicado na Nature. O outro descrevia o aumento dessa enzima após a administração de corantes teratogênicos. Com esses estudos, aprendemos como fazer pesquisa. Depois, já como instrutor de ensino, como eu sempre tive interesse em fisiologia, fiz o estudo da reabsorção de proteínas de baixo peso celular no rim. Esse trabalho foi praticamente terminado no início de 1964 e foi o meu primeiro como pesquisador independente, financiado pela então récem-criada FAPESP. O artigo referente a esse estudo saiu muito mais tarde no Journal of Cell Biology, quando eu estava nos Estados Unidos. A razão do atraso foi o golpe militar. Todas as anotações que realizei foram perdidas porque os militares tinham levado os meus cadernos de laboratório à procura de algum código secreto da resistência contra a ditadura. Contei essa história para o William Kinter, meu chefe no Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Siracusa, e ele disse: “Vai ficar se lamentando ou vai repetir tudo

Na FM-USP, muitos foram demitidos não por ser de esquerda, mas por combater a cátedra universitária

Foi depois de formado que o senhor trabalhou com Alberto Carvalho da Silva? Foi. O Alberto tinha uma honestidade e uma força moral inacreditável. Fui preso, em junho de 1964, no Departamento de Fisiologia da faculdade, que era comandado por ele. Isso foi antes do decreto do governador Adhemar de Barros que demitiu os primeiros sete professores, eu entre eles, em outubro. Quando fui preso, o coronel Alvim se dirigiu diretamente ao professor Alberto pedindo-lhe para me demitir. Isso era fácil porque eu era apenas um instrutor de ensino, não tinha estabilidade e o cargo era o mais baixo de todos. Ele se negou e disse ao coronel: “Não farei isso, a menos que o senhor me

maior medo era ir para o Dops [Departamento de Ordem Política e Social], onde ocorriam as torturas físicas mais brutais. O coronel dizia a toda hora: “O Exército não tortura”. Mas, a partir de 1968, o Exército foi quem fez as piores torturas. Ser mandado para o navio foi, de certa forma, um alívio para mim. A alternativa era o Dops. No navio, a maioria dos presos eram estivadores e sindicalistas de Santos. Um dos grandes orgulhos da minha vida é a minha relação com os trabalhadores do porto, que mantenho até hoje. Sempre digo que a esquerda só se une na prisão. Eles ajudavam uns aos outros, se organizavam para manter o moral, se arriscavam pelo bem comum. Fiquei numa cela isolada, que tinha até

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para completar o trabalho?”. Ele me deu seis meses para isso, com dinheiro de sua pesquisa. Kinter era generoso: me deixou trabalhar num assunto que não era o dele. Refiz tudo e publiquei. E esse artigo era sobre o quê? Mostrava como se dava o manuseio de uma proteína circulante, no caso a lisozima, no animal intacto, e o que acontecia no rim. Foi o primeiro artigo que mostrou isso. Ninguém acreditava que as proteínas, filtradas no glomérulo renal, fossem reabsorvidas, hidrolizadas em lisossomos e os aminoácidos resultantes voltassem para a circulação. A família foi junto para o exílio? Minha esposa, Isa, e minha filha Marisa foram comigo. Minha segunda filha, Márcia, nasceu lá em outubro de 1965. Isa aproveitou e fez pós-graduação em história na Universidade de Siracusa. Ela conseguiu bolsa e moradia. Por que não fez pós-graduação lá? Achei desnecessário. Meus trabalhos estavam tão adiantados que eu não precisaria do título de ph.D. O próprio Kinter achava não ser necessário. Meu único título até 1980 foi o de graduação em medicina. Em 1979, quando eu passei um ano em São Paulo, meus colegas da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, a Unifesp, me convenceram a escrever uma tese e me deram um título de doutorado. Quanto tempo ficou em Siracusa? Quatro anos. Dois anos como pós-doc e dois anos como professor-assistente. Pouco depois que cheguei, Kinter ficou muito doente, com problemas no coração. Quando piorou, me pediu para substituí-lo em algumas atividades. Ele era editor-associado do American Journal of Physiology na parte de rim. Então passei a ler os artigos submetidos para publicação, escolher e distribuir os textos para especialistas que entendessem do assunto para revisão. Com isso tive contato intensivo com a comunidade de fisiologia renal de todo o mundo. Já muito doente, Kinter foi trabalhar em tempo integral num laboratório de biologia marinha no Maine. Antes, ele soube que abriria uma vaga na Faculdade de Medicina da Cornell, em Nova York, e sugeriu que eu deveria me candidatar. Em 1969 30 | novembro DE 2014

fui contratado pela Cornell. Até 1980 trabalhei na mesma temática de como o rim manipulava as proteínas circulantes. Depois passei a centrar mais em hormônios: como o rim lida com insulina, hormônio paratireoidiano, hormônio de crescimento e pequenas imunoproteínas. Continuei publicando, com bom impacto. Uma parte desses trabalhos foi realizada com fellows brasileiros que trabalharam no meu laboratório. Com um deles, Daniel Sigulem, fiz um rim funcionar fora do corpo de um rato. A vantagem dessa técnica é que se pode fazer a experiência de forma bem controlada. O trabalho foi bem-sucedido e auxiliou muito nas minhas pesquisas futuras e promoções acadêmicas. Nos Estados Unidos, se o pesquisador não é promovido em cinco ou seis anos, muitas vezes ele tem de sair e procurar uma posição em outra universidade. Ou seja, fica na universidade se o trabalho dele se tornar importante e tiver visibilidade. Isso faz com que a mobilidade seja muito grande, ao contrário do Brasil. Na Cornell, depois de dois anos, fui promovido a associate professor. O senhor conseguiu as promoções em um tempo menor. Bem menor. Virei professor titular, ou full professor, aos 40 anos. Essa preparação do rim isolado também abriu caminho para a etapa seguinte, que foi estudar peptídeos natriuréticos. Tinha esgotado minha imaginação do que fazer com o manuseio renal de proteínas e hormônios. Nesse período, foi descoberto que quando se distende o átrio, que é a câmara superior do coração, aumenta a excreção de sódio pelo rim. O pesquisador Adolfo de Bold, um argentino radicado no Canadá, fez um extrato do átrio e injetou num animal intacto. Havia dúvida de se a excreção do sódio era um efeito direto ou indireto. Com o rim isolado essa dúvida acabou: mostrei que o extrato de átrio continha uma substância que aumentava diretamente a excreção de sódio pelo rim. E, também devido à preparação do rim isolado, foi fácil isolar a substância que provocava esse efeito. E isso mudou o rumo de suas pesquisas. Exato. Li o resumo do trabalho de De Bold, publicado em 1980, e pensei: “É isso!”. Vou ver se o efeito é direto ou indireto. Trabalhei com uma fellow brasi-

leira, Maria José Camargo, da Unifesp. Usamos o rim isolado para purificar a substância do extrato. Precisei da colaboração de uma companhia de biotecnologia para determinar qual era a estrutura química da substância. Com isso, fomos o primeiro grupo a ter o peptídeo sintético e descobrimos diversas funções desse novo hormônio, inclusive seus efeitos sobre a filtração glomerular, a pressão arterial, o volume plasmático e o sistema renina-angiotensina-aldosterona. Descobrimos um novo receptor de peptídeos natriuréticos, cuja função principal é remover os peptídeos da circulação e, dessa maneira, regular os seus níveis plasmáticos. Os trabalhos do meu laboratório sobre peptídeos natriuréticos e seus receptores receberam mais de 5 mil citações na literatura científica. Em 1984, havia apenas cinco artigos publicados sobre peptídeos natriuréticos, inclusive um dos nossos, e três laboratórios trabalhando no tema. Hoje, no meu database tem mais de 25 mil artigos publicados sobre esse assunto. Quais são as implicações clínicas? A descoberta de que a pressão arterial é regulada por uma combinação de hormônios. Alguns aumentam a pressão: renina, catecolaminas, ativação do sistema simpático. Os peptídeos natriuréticos fazem o oposto. A implicação clínica imediata é que, para manter uma pressão arterial normal e outras funções cardiovasculares e renais, é necessário um equilíbrio entre esses hormônios. Qualquer desequilíbrio vai aumentar ou diminuir a pressão arterial e outras funções cardiorrenais. No arsenal terapêutico temos diversos medicamentos que, por exemplo, diminuem a atividade do sistema renina-angiotensina-aldosterona. Infelizmente, ainda não existe uma terapia efetiva baseada nos efeitos dos peptídeos natriuréticos, que são muito difíceis de usar porque precisam ser injetados. Se tomados pela boca, são destruídos no estômago e intestino. Até quando o senhor trabalhou como pesquisador? Larguei o laboratório em 2010. Decidi que queria mais liberdade e resolvi parar por conta própria. Saí da Cornell como professor emérito. Ainda tenho um escritório lá e faço algumas coisas. Vou ensinar, por exemplo, em escolas médi-


cas da Tanzânia e Qatar. Nos últimos 10 anos, me dediquei mesmo à educação médica. Vi que o aprendizado passivo não é bom. Dar aula é um método muito ineficiente de aprendizado. Primeiro, porque o estudante estuda a aula naquele dia e meses depois faz o exame. O conhecimento é inicialmente recordado, mas desaparece rapidamente. Em segundo lugar, porque o conhecimento em ciências biomédicas é tão grande e avança tão rapidamente que ninguém sabe o que ensinar. Todos os dias um conceito velho é superado por um novo. Me propus a ajudar a reformar o ensino de ciências básicas na Cornell. O centro da reforma é o autoaprendizado, baseado principalmente em casos clínicos. No estudo da fisiologia do coração, por exemplo, o estudante começa com um caso real de enfarte e tenta saber por que aquilo ocorreu em vez de ir para um livro-texto, no qual um autor explica como funciona o coração. Outro conceito que tentamos introduzir é o das chamadas áreas verdes, isto é, dar tempo ao estudante para o autoestudo, para se aprofundar em tópicos de sua escolha. Trata-se de parte da grade escolar em que não são exigidas atividades formais do aluno. Isso, claro, é um problema maior no Brasil, onde o estudante de medicina tem aula e atividades entre as 8h e as 18h.

o aluno. O sistema de testes de aprendizado é absurdo aqui. Eles são feitos uma vez por semestre ou duas, no máximo. O aluno estuda apenas uma semana antes do exame. Eu fiz isso, sei como é. Esse é um sistema em que o conhecimento desaparece rapidamente. Como funciona nos Estados Unidos? Em primeiro lugar, os estudantes fazem college, um curso universitário pré-profissional com quatro anos de ciências gerais, que fornece a base para várias carreiras. Depois fazem efetivamente o curso profissional que desejam, como o de medicina. No Brasil, por melhor que seja, o ensino médio não prepara bem o estudante. Os professores de ciências básicas aqui têm que dedicar muito tem-

Escola médica de qualidade não dá lucro e diversas no Brasil têm fins lucrativos

E funciona deixar o aluno solto? Desenvolvemos o projeto em 1997 na Cornell e funcionou. O conceito de área verde significa ter confiança em que o estudante vai aproveitar o tempo livre para, em primeiro lugar, ter certeza de que adquiriu o conhecimento da parte formal do curso. Sem isso, nada adianta. Em segundo, começar a explorar o que lhe interessa. Por exemplo, aqui o aluno poderia fazer iniciação científica. No Brasil, os estudantes de medicina são muito mais jovens do que nos Estados Unidos. Portanto, precisam ter tempo –inclusive para namorar, jogar futebol. A área verde no Brasil é criticada porque dizem que o estudante só vai fazer isso. A minha resposta é: testem

po para explicar noções elementares, que nos Estados Unidos são ministradas no college. Lá o curso de medicina dura quatro anos. Os primeiros dois anos são centrados em ciências básicas, mas já com uma direção clínica. O estudante vê o paciente, vai num consultório, observa o médico atendendo. Começamos com a aprendizagem baseada em problemas, em que grupos de 10 estudantes se reúnem com tutores por uma hora e meia três vezes por semana. Os estudantes avaliam um caso clínico e veem o que ainda não sabem de ciência básica. Aí estudam, voltam, fazem apresentações uns para os outros e, na sexta-feira, último dia da semana, chegam a uma conclusão. Temos aulas de conceitos gerais: labora-

tórios de anatomia, dissecção etc. Às 13 h toda atividade formal acaba – menos nas tardes de quintas-feiras, em que os estudantes vão obrigatoriamente a consultórios médicos ou postos de saúde. E o que eles fazem nas áreas verdes? Depende do nível do aluno. O que aprende fácil vai procurar cursos que quer fazer. Nossa única imposição é que, ao fim de duas semanas, ele faça um teste sobre o conhecimento que adquiriu na parte formal do curso. Não dá para vagabundear. No Brasil algumas escolas médicas estão começando a sua reforma curricular nesse sentido Como vê a formação dos médicos no Brasil? A maioria vem de escolas desastrosas, que não seriam reconhecidas no mundo desenvolvido. Tem mais faculdade de medicina aqui – cerca de 300 – do que nos Estados Unidos – 120. As daqui, com as exceções conhecidas, são completamente desaparelhadas, sem hospital-escola. Escola médica de qualidade não dá lucro e diversas no Brasil têm fins lucrativos. Nos Estados Unidos, não conheço nenhuma. A formação do médico no Brasil também ganharia muito se houvesse um curso universitário pré-profissional de dois anos antes da escola médica. Assim o aluno teria uma base melhor de ciências e poderia testar a sua motivação para a medicina, o que não é possível hoje. Como é sua vida em Nova York nesses 50 anos de Estados Unidos? É uma vida boa. Vamos muito a concertos e ao teatro. Leio bastante e gosto de ficar com minha esposa, filhas e netos. Minha esposa também teve uma carreira universitária muito satisfatória, sendo professora titular de história no Essex Community College em Newark, New Jersey. Minha filha Marisa é chefe de gabinete de uma vereadora de Nova York. A caçula, Márcia, é advogada em Washington, diretora do programa de atendimento gratuito em um escritório de advogados. Os netos são filhos da Marisa, aquela mesma que foi expulsa da creche quando fui preso. n PESQUISA FAPESP 225 | 31


política c&T  Fomento y

Suporte sofisticado Escritórios criados para livrar pesquisadores da burocracia oferecem novos serviços Fabrício Marques

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omeça a render frutos uma iniciativa da FAPESP que busca reduzir o tempo gasto pelos pesquisadores na administração burocrática de seus projetos, permitindo que se concentrem em sua atividade principal, que é a produção do conhecimento. No final de 2010, a Fundação criou um programa que oferece treinamento para equipes de funcionários de universidades e instituições de pesquisa dedicados a reduzir a carga de trabalho imposta aos cientistas na gestão e administração de seus projetos. O treinamento tem duração de quatro dias, em turmas de no máximo seis participantes. Desde o advento do programa, mais de 110 equipes já receberam capacitação na sede da Fundação – e pelo menos 24 delas organizaram Escritórios de Apoio Institucional ao Pesquisador, que estão em plena operação. A novidade é que esses escritórios, além de ajudarem na compra de insumos e na prestação de contas, começam a oferecer novos serviços. Alguns se dedicam a prospectar oportunidades de financiamento em editais e chamadas de propostas, ajudando os pesquisadores também a le-

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vantar recursos. Outros dão suporte não só para os projetos, mas também para os bolsistas. “Esses escritórios estão se disseminando e alguns já fornecem um apoio bastante sofisticado”, diz Marcia Regina Napoli, responsável pela Gerência de Apoio, Informação e Comunicação (Gaic) da Diretoria Administrativa da FAPESP, que coordena o programa desde 2010. Um exemplo é o Escritório de Apoio Institucional ao Pesquisador do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, que mantém dois funcionários trabalhando tanto no suporte a quem pretende submeter um projeto de pesquisa a agências quanto na fase posterior à obtenção dos recursos, auxiliando na compra dos insumos, prestação de contas e até mesmo ajudando a publicar os resultados em revistas científicas. Vinculado ao Hospital Israelita Albert Einstein, o instituto dispõe de laboratórios organizados em core facilities, um biotério acreditado pela Association for Assessment and Acreditation of Laboratory Animal Care Internacional (AAALAC) e um centro de pesquisa clínica onde são realizados estudos científicos por 23 pesquisadores contratados, 42


docentes do programa de pós-graduação acadêmica e mais de 200 médicos de seu corpo clínico envolvidos em pesquisa. Desde sua criação, em meados de 2012, o escritório já ajudou a submeter 67 projetos de pesquisa. A taxa de aprovação de projetos submetidos chega a 61% do total – e a captação de recursos oriundos de agências de fomento cresceu 323% entre 2012 e 2013.

Ilustrações Maurício pierro

N

a chamada fase pre-award, o trabalho tem várias frentes. Diariamente, a equipe rastreia chamadas de projetos e editais lançados no Brasil (por meio da visita a sites de agências) e no exterior (através de um serviço pago) e informa por e-mails os pesquisadores da instituição que podem ter algum interesse. “Esse mapeamento de oportunidades é a primeira coisa que fazemos no dia”, diz Aline Pacífico Rodrigues, coordenadora de projetos de pesquisa do escritório. Quando surge um interessado, Aline e sua equipe marcam uma reunião para orientá-lo. “Às vezes, precisamos alinhar com o pesquisador as suas expectativas sobre o financiamento. Alguns querem, por exemplo, que as agências finan-

ciem serviços ou exames. Explicamos que é mais fácil obter recursos para pagar insumos, comprar equipamentos e contratar serviços pontuais de terceiros”, diz. “Mas sempre buscamos oferecer alguma saída para ele e nunca fechamos portas.” Oescritório não ajuda o pesquisador a escrever seu projeto, pois considera que tal tarefa não pode ser delegada. “O mérito científico do projeto é do pesquisador. Nosso papel é desonerá-lo do trabalho burocrático, que não é sua atividade-fim”, afirma Aline. Ainda assim, é oferecido um serviço de aconselhamento. Uma professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP) tornou-se consultora do escritório e faz uma avaliação preliminar do projeto de pesquisa. “Ela analisa o projeto e sugere mudanças, que o tornam mais competitivo, com um olhar semelhante ao que o avaliador do projeto terá”, explica Aline. Com isso, evita-se que o pesquisador menos experiente cometa erros previsíveis. Se o projeto for rejeitado, o escritório avalia se é possível pedir reconsideração. “Analisamos o parecer do revisor e às vezes fica claro que pequenas alterações no projeto podem habilitá-lo a ser pESQUISA FAPESP 225  z  33


aceito.” Aline cita o caso de um pesquisador que não escondeu a decepção quando seu primeiro projeto foi rejeitado. “Ele mandou um e-mail pedindo desculpas por ter ocupado o nosso tempo. Eu mostrei para ele que não era o fim da linha e que podíamos pedir reconsideração. E na segunda tentativa o projeto foi aprovado”, afirma. Em algumas situações, contudo, o “não” é mesmo o fim do caminho. “Se o problema, por exemplo, for curricular, ou se o avaliador considera que o proponente não tem experiência para executar aquele projeto, não há muito o que fazer”, diz. Aline e sua equipe também atuam no chamado post-award, que é a administração dos projetos aprovados. Compram os insumos necessários ao projeto, organizam a prestação de contas e orientam os pesquisadores a não cometer erros. No final, ainda os estimulam a publicar os resultados. O instituto contrata os serviços de uma empresa de comunicação científica que faz workshops com autores de artigos, ajudando-os a escrever os manuscritos.

A

equipe da Gaic, da FAPESP, que oferece treinamento a funcionários e faz visitas periódicas aos escritórios em implantação, observou que o tipo de serviço oferecido por eles é desigual – e há casos de instituições que não conseguiram tirar a ideia do papel. “Notamos que os escritórios mais bem estruturados são aqueles vinculados a unidades cujos diretores apostam no sucesso da iniciativa e se envolvem diretamente nela”, diz Marcia Regina Napoli, da Gaic.

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“Buscamos

O Centro de Apoio a Projetos (CAP), oferecer saídas vinculado à Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da USP, foi para o criado em maio deste ano e já se dedica à administração de 12 projetos de pesquipesquisador sa, contemplados com cerca de R$ 10 milhões. A criação do escritório fez parte e nunca da plataforma de campanha da diretora fechamos da faculdade, Maria Vitória Bentley, que assumiu o cargo em janeiro. “Realoquei portas”, diz dois funcionários, um com formação em contabilidade e outro graduado em ciênAline Pacífico, cias da informação, para estruturar o escritório”, conta ela, que se inspirou numa do Einstein experiência bem-sucedida, a do Centro de Gerenciamento de Projetos (CGP) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP (ver Pesquisa FAPESP nº 203). Para ajudar no trabalho, foi adquirido um software de gerenciamento financeiro, customizado conforme as necessidades e perspectiva de atuação do CAP. A equipe atua articulada com o setor de compras e a tesouraria da faculdade, auxiliando nos processos de importação pela USP, FAPESP e Importa Fácil do CNPq. Também auxilia docentes e secretárias a realizarem a prestação de contas de projetos e propostas de orçamentos segundo normas das agências e da universidade, atuando como um setor de informação. “Nosso próximo passo é aperfeiçoar a estrutura e começar também a prospectar oportunidades”, diz a professora. Por enquanto, o escritório cuida apenas dos projetos cujos termos de outorga foram assinados após sua criação,


três departamentos do instituto. “O trabalho não se resume à prestação de contas. O escritório faz levantamento de custos e cotações necessários na preparação do projeto, ajuda a inserir dados nos sites das agências e monitora a divulgação de editais nacionais e internacionais”, diz a professora Matilde Virginia Ricardi Scaramucci, diretora do IEL desde 2011. A equipe tem três funcionários: uma secretária e dois técnicos que fazem o atendimento aos pesquisadores. “Como o quadro é Na Faculdade de Ciências enxuto, não é possível faFarmacêuticas de Ribeirão Preto, zer tudo o que gostaríamos. Mas eles conseguem a criação do escritório era um tópico controlar as datas em que pesquisadores e bolsistas da plataforma da atual diretora têm de submeter as suas renovações”, diz. A adeAlguns dos melhores exemplos de escritórios são dos pesquisadores do IEL não é uniforme. de apoio ao pesquisador foram selecionados pa- Alguns delegam todas as tarefas burocráticas ra apresentar suas experiências num workshop para a equipe, outros apenas parte delas. “Queprogramado para o dia 4 de novembro na sede da remos ampliar o atendimento. Gostaríamos de FAPESP. O caso do Instituto Israelita de Ensino e ter um funcionário que falasse bem inglês”, Pesquisa Albert Einstein é um deles. Outro exem- afirma. Em 2013, o IEL submeteu 128 projetos plo destacado foi o da Embrapa Instrumentação, a agências de fomento. No ano passado, só da instalada em São Carlos, cujo corpo de suporte à FAPESP os pesquisadores do instituto obtiveram pesquisa passou a auxiliar também os bolsistas. R$ 3,9 milhões em recursos – em 2011, o total Uma terceira experiência de destaque é a da Se- foi de R$ 2 milhões. Há cerca de três anos, a Universidade Estadual cretaria de Pesquisa e Projetos do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da Universidade Paulista (Unesp) determinou a criação de seções Estadual de Campinas (Unicamp). Trata-se de de apoio a pesquisadores em cada um de seus 22 uma das mais longevas iniciativas de apoio a campi espalhados pelo estado. O Escritório Regiopesquisadores. Existe desde 1993 e atende 65 nal de Apoio à Pesquisa e à Internacionalização docentes e 17 pesquisadores-colaboradores dos (Erapi) da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação (Faac), em Bauru, é um dos mais articulados. Lançado em 2012, viu um crescimento de 72% nas solicitações de auxílio à pesquisa e 66% em pedidos de bolsas. “Chegamos a responder a 200 solicitações de informação por semana”, diz Angélica Parreira Lemos Ruiz, diretora técnica acadêmica da Faac. Ela comanda a equipe de dois funcionários, responsável por apoiar aproximadamente 105 docentes, 400 alunos de pós-graduação e 1.580 de graduação. “Tudo passa por nós, como pedidos e prestações de conta de bolsas, auxílios à pesquisa, uso de reserva técnica, busca de orçamentos. Orientamos propostas, colhemos as assinaturas dos pesquisadores e acompanhamos os processos”, diz Angélica. Um banco de dados com informações sobre pesquisadores e projetos foi criado para monitorar o desempenho do escritório, cuja criação inspirou-se em exemplos como o do Erapi do Instituto de Química de Araraquara, que existe desde os anos 1980. “Acreditamos que, nos próximos cinco anos, nossas estatísticas vão melhorar bastante, estimulando a pesquisa e a produção do conhecimento de qualidade na nossa instituição”, afirma. n entre os quais dois temáticos, reserva técnica institucional da FAPESP e projetos de cooperação internacional, além de alguns financiados pelo CNPq, Finep e USP. Esse número, espera Maria Vitória, vai aumentar. A unidade submeteu duas propostas ao programa dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia e está em vias de assinar um acordo com o BNDES.

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bioenergia y

O desafio de ampliar a escala Conferência mostra que expansão dos biocombustíveis precisa do respaldo de políticas públicas para sustentar-se em nível global

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atual estágio de desenvolvimento científico e tecnológico já permite que a produção de bioenergia possa ser feita em larga escala no mundo. Mas, para que isso aconteça de fato, é necessária a adoção de políticas públicas que se preocupem com toda a cadeia de produção de energias renováveis, incluindo desde a questão do uso da terra e a eficiência das tecnologias de conversão de biomassa em energia até os desafios ambientais, econômicos e sociais envolvidos. Essa é uma das principais conclusões de um relatório sobre a implantação de sistemas de bioenergia no mundo, do qual alguns aspectos foram apresentados na abertura da segunda edição do Brazilian BioEnergy Science and Technology Conference (BBest), realizado entre 20 e 24 de outubro em Campos do Jordão (SP). Denominado Processo Rápido de Avaliação sobre Biocombustíveis e Sustentabilidade, o relatório foi elaborado por pesquisadores vinculados aos programas especiais da FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen), de Pesquisas em Caracterização, Conservação, Restauração e Uso Sustentável da Biodiversidade (Biota) e de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais.

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“As políticas públicas globais estão acenando para o fato de que precisaremos triplicar a produção da bioenergia moderna até 2030”, disse Glaucia Mendes Souza, pesquisadora do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Bioen. Ela foi a responsável pela organização do relatório, feito em colaboração com cientistas de 24 países, sob a responsabilidade do Comitê Científico para Problemas do Ambiente (Scope, na sigla em inglês), parceiro da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). O documento final será divulgado nos dias 14 e 15 de abril de 2015, durante um seminário na FAPESP, que incluirá também o lançamento de um resumo para guiar políticas públicas. O relatório destaca o papel da bioenergia na questão da segurança alimentar. Segundo o documento, a bioenergia moderna pode ter o condão de aumentar a produtividade da terra, ao integrar, por exemplo, a produção de milho e cana para produção de etanol, ou de soja e dendê para biodiesel, com a agricultura ligada ao abastecimento de alimentos. “A produção de bioenergia em áreas rurais mais pobres também pode impulsionar

a economia local, criando empregos e mercado”, explica Glaucia Souza. No entanto, o relatório ressalta que é preciso ter uma compreensão melhor dos impactos das medidas adotadas para o uso da terra na produção de bioenergia. Um mesmo tipo de biomassa, como a cana-de-açúcar, pode ter destinos diferentes – aquecimento, uso como combustível líquido, geração de eletricidade – e impactos também diferentes. Monitorar tais impactos é essencial. “Se, para plantar cana, forem depositadas toneladas de nitrogênio no solo, isso pode aumentar as emissões de gases de efeito estufa, como o óxido nitroso. Há que se tomar muito cuidado com as tecnologias utilizadas”, avaliou Reynaldo Victoria, professor da USP e membro da coordenação do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais. Um estudo ligado ao Bioen mostra que as emissões diretas de gases causadores do efeito estufa no cultivo de cana-de-açúcar no Brasil são inferiores às estimadas na literatura científica internacional. “As condições nas quais produzimos cana aqui não levam a grandes emissões de óxido nitroso”, diz Heitor Cantarella, pesquisador do Instituto Agronômico

eduardo cesar

Bruno de Pierro


Cana-de-açúcar: eficiência da planta na geração de bioenergia no Brasil é reconhecida internacionalmente; o próximo passo é impulsionar novas tecnologias que aumentem a produção de etanol

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Especialistas de várias partes do mundo se reuniram em Campos do Jordão (SP), na segunda edição do BBest; na pauta, o desafio de articular políticas para o setor de bioenergia

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(IAC) e coordenador do estudo. No entanto, diz ele, o ideal é que os canaviais adotem soluções para reduzir ou mitigar as emissões do gás. Algumas estratégias começam a ser avaliadas pelo grupo de pesquisa de Cantarella no interior de São Paulo. Uma delas é não aplicar ao mesmo tempo fertilizante e vinhaça – um resíduo do processamento industrial do álcool –, já que a combinação de ambos leva à produção de óxido nitroso no solo. “A prática das usinas é aplicá-los simultaneamente, para acelerar o processo. É preciso mudar essa mentalidade”, afirma Cantarella. “A cana-de-açúcar continua sendo sustentável. Nosso objetivo agora é melhorar os indicadores dela em relação às emissões de gases do efeito estufa”, diz. versatilidade do etanol

A produção de bioenergia a partir de biomassa também pode contribuir para a recuperação e o aumento de recursos ambientais para a fauna de solos degradados. “Em algumas circunstâncias, quando pastagens degradadas são substituídas pelo cultivo de cana ou de eucalipto, isso pode permitir a recuperação do solo e, inclusive, um aumento de recursos para a fauna nessa área”, diz Luciano Verdade, professor da USP e membro da coordenação do Programa Biota-FAPESP, que também ajudou a fazer o relatório. 38  z  novembro DE 2014

“A produção de bioenergia em áreas rurais mais pobres pode impulsionar a economia local”, diz Glaucia Souza

Em apresentações feitas por especialistas ao longo da semana no BBest, foram apresentados casos concretos que ilustram o potencial de aproveitamento de biomassa. Um deles é o uso do etanol de cana-de-açúcar para a obtenção de hidrogênio, que por sua vez poderá servir para alimentar carros movidos a célula a combustível. O projeto está em andamento no Laboratório de Hidrogênio da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que, em parceria com a empresa Hytron, busca desenvolver pequenas estações de extração de hidrogênio a partir do etanol comercializado em postos de gasolina. “A ideia é mostrar que o etanol é versátil e, na forma como é vendido hoje nos postos, pode ser utilizado de maneira mais eficiente”, explica Carla Cavaliero, professora da Unicamp e pesquisadora do laboratório. Algumas montadoras, como Honda, Toyota e Hyundai, lançaram recentemente modelos movidos a célula a combustível. O custo da produção desses

carros, no entanto, ainda é alto. Em países da Europa e nos Estados Unidos, a extração do hidrogênio é feita diretamente em alguns postos de gasolina, mas não a partir do etanol, e sim por meio da eletrólise (decomposição) da água. “A vantagem de se usar etanol para obter hidrogênio é que o Brasil já tem vantagem competitiva na produção do combustível a partir da cana, o que torna o processo mais barato”, diz a pesquisadora. As possibilidades para a produção de biocombustíveis líquidos avançados também foram discutidas no BBest. Os participantes tiveram a oportunidade de conhecer os avanços da produção de etanol de celulose, feito a partir de resíduos agroindustriais, como bagaço de cana, no Brasil. Neste ano, duas empresas iniciaram a produção em escala comercial do etanol de segunda geração, como também é chamado o etanol celulósico. Uma delas é a GranBio, que inaugurou uma unidade de produção em Alagoas. Foram investidos cerca de US$ 190 mi-


lhões na parte industrial e mais R$ 300 milhões por parte do BNDES. A fábrica tem capacidade para produzir 82 milhões de litros de etanol anidro por ano e deverá operar de forma completa a partir de 2015. Outra iniciativa é o Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), criado em 1969 pela Copersucar, que colocou em operação uma planta de demonstração de etanol de segunda geração, localizada em São Manoel, interior de São Paulo. A usina tem capacidade de processar 100 toneladas de biomassa de cana-de-açúcar por dia. O objetivo da unidade é apresentar o potencial da tecnologia desenvolvida pelo centro, que pode multiplicar a produção de etanol sem expandir a área plantada de cana. Em 2008, o processo desenvolvido pelo CTC para obter etanol celulósico da cana foi patenteado, por representar uma diferença estratégica em relação aos métodos adotados por outras empresas que estão na corrida da pesquisa com etanol de segunda geração no país. O processo de hidrólise enzimática da celulose presente no bagaço e na palha será completamente integrado à estrutura existente da usina (ver Pesquisa FAPESP nº 208).

fotos 1 eduardo cesar 2 wikimedia commons

enzimas

No entanto, ainda existem barreiras que impedem o avanço da produção do etanol de segunda geração numa escala industrial. “A principal dificuldade está relacionada às enzimas”, diz Jaime Finguerut, assessor técnico da presidência do CTC. A produção do etanol de segunda geração depende de enzimas utilizadas na quebra da lignina e das hemiceluloses das células da cana para obter a celulose e, em seguida, a glicose, possibilitando, assim, a fermentação do açúcar para a obtenção do etanol. “Existem poucas empresas fornecedoras dessas enzimas e o custo delas é muito alto, o que torna a produção do etanol celulósico mais cara”, diz Finguerut. Atualmente, o CTC, em parceria com a Embrapa e o Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), buscam novos insumos para esse processo. A programação do BBest não se limitou à discussão em torno dos biocombustíveis, como o etanol. O futuro das energias renováveis, como a eólica e a solar, também teve destaque em um dos dias do evento. A ideia era mostrar que existem outras formas de geração de

Turbinas eólicas em Parnaíba, no Piauí: o futuro das energias renováveis foi abordado na conferência

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eletricidade que podem complementar a produção de bioenergia feita a partir das biomassas. “Filmes fotovoltaicos, por exemplo, são flexíveis e podem ser acoplados na construção de casas e edifícios ou mudar a configuração das janelas, diminuindo ou aumentando a incidência de luz”, disse Helena Li Chum, brasileira radicada há 30 anos nos Estados Unidos, pesquisadora do Laboratório Nacional de energia Renovável do Departamento de Energia Norte-Americano. Segundo Helena, o processo de individualizar a captação e distribuição de energia é uma forma de atender às demandas específicas de diferentes setores da indústria. Um exemplo de como energias renováveis podem interagir foi apresentado por Danny Krautz, do Berlin Partner for Business and Technology, agência alemã de apoio à inovação. Ele mostrou as vantagens das células fotovoltaicas cristalinas, tecnologia utilizada na fabricação de filmes de polímeros bem finos capazes de converter luz solar em energia elétrica com mais eficiência do que as placas solares de silício. “As células fotovoltaicas cristalinas já são usadas na Ásia, principalmente em áreas rurais. Elas são leves e fáceis de serem instaladas”, explica Krautz. Assim como os filmes fotovoltaicos, as miniusinas eólicas também despon-

tam como alternativas para a geração de energia elétrica de maneira descentralizada. Formadas por pequenas hélices de cinco metros de altura, elas chegam a pesar cerca de 800 quilos e podem ser instaladas em casas, fábricas ou pequenas comunidades. Jon Samseth, da Oslo and Akershus University College of Applied Sciences, na Noruega, explicou que a ideia desses projetos, muitos ainda em fase de elaboração, é apresentar uma alternativa ao modelo de distribuição centralizado de energia, como existe hoje. “A produção de eletricidade de forma descentralizada busca atender necessidades específicas, evitando desperdícios e altos custos”, disse ele. Um exemplo citado por Samseth é o NuScale SMR, um pequeno reator nuclear desenvolvido pela empresa americana NuScale Power. O equipamento, que só deve estar pronto para comercialização a partir de 2020, poderá ser transportado por caminhão ou trem e tem como objetivo atender pontualmente os clientes, como indústrias e hospitais. Com capacidade de gerar 540 megawatts de energia ao longo de 60 anos, o minirreator pode ser construído rapidamente e, em caso de acidente, os danos ambientais e econômicos são mais fáceis de ser controlados. n pESQUISA FAPESP 225  z  39


reconhecimento y

Do LED azul ao GPS cerebral Edição de 2014 do Prêmio Nobel destaca avanços em microscopia, neurociência e óptica

P

esquisadores dos Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, Noruega e França foram agraciados com o mais importante prêmio científico do planeta. A edição 2014 do Prêmio Nobel reconheceu contribuições que superaram barreiras da microscopia óptica tradicional, viabilizaram a produção de lâmpadas LED, identificaram como o cérebro mantém o senso de orientação no espaço e indicaram como grandes corporações devem ser reguladas. Dois norte-americanos e um alemão ganharam o Nobel de Química por permitirem que microscópios enxerguem estruturas minúsculas dentro de células vivas. Eric Betzig, 54 anos, do Instituto Médico Howard Hughes, William Moerner, 61, da Universidade de Stanford, e Stefan Hell, 52, do Instituto Max Planck de Química Biofísica, foram os laureados pela Real Academia Sueca de Ciências. Desde o século XVII, microscópios ópticos viabilizaram o estudo de microrganismos, mas só até certo ponto. A microscopia óptica convencional tem uma limitação física, enunciada em 1873 pelo físico alemão Ernst Abbe: a sua resolução será inferior à metade do comprimento de onda da luz utilizada. Para a luz visível, esse limite é de 0,2 mícron (milésimo de milímetro). Uma bactéria não é muito maior do que isso e havia pouca esperança de vislumbrar detalhes dentro das células. A barreira do 0,2 mícron persiste, mas os três cientistas encontraram uma maneira de driblar seus efeitos. Isso graças à capacidade de marcar as moléculas biológicas,

1

medicina

2

40  z  novembro DE 2014

O casal norueguês Edvard e May-Britt Moser (esq.) e o norte-americano John O'Keefe: como as pessoas se orientam em espaços complexos e distintos


física

fotos 1 Geir Mogen / NTNU 2 Per Henning / NTNU  3 Randy Lamb / UCSB  4 Kaz Photography / Getty Images 5 idei  6 Bernd Schuller / mpibpc  7 Matt Staley / HHMi  8 Linda A. Cicero / Stanford News Service

Nakamura (esq.), Amano e Akasaki (abaixo): transformação na forma como o mundo é iluminado

3

4

acoplando-as a uma proteína, chamada GFP, que em certas condições se torna fluorescente. As descobertas de Betzig, Moerner e Hell transformaram a microscopia em nanoscopia: o nanômetro, ou milionésimo de milímetro, é a escala das moléculas individuais. O desenvolvimento permitiu ver como são formadas as ligações nervosas no cérebro ou acompanhar proteínas envolvidas em doenças como Parkinson ou Alzheimer. “A microscopia, que era uma técnica biológica, passou a ser uma técnica química”, afirmou Sven Lidin, presidente do comitê do Nobel de Química. Em 2000, Hell desenvolveu o primeiro método, no qual dois feixes de laser são usados. Um deles estimula moléculas fluorescentes a brilharem, enquanto o outro cancela todo brilho, exceto os de volumes na escala nanométrica. Ao digitalizar a amostra, o microscópio consegue gerar uma imagem com uma resolução bem melhor que o limite estipulado por Abbe. Seis anos depois, Betzig e Moerner estabeleceram as bases

5

Economia Tirole: como regular setores com poucas empresas poderosas

6

7

química Stefan Hell (esq.), Eric Betzig e William Moerner (dir.): transformação da microscopia em nanoscopia

para o segundo método, que consiste na possibilidade de ligar e desligar a fluorescência individual das moléculas. Assim, os cientistas conseguem fazer várias imagens de uma mesma área, permitindo que apenas uma molécula brilhe de cada vez. A sobreposição produz uma imagem em resolução superior à do limite de 0,2 mícron. GPS incrustado no cérebro

O Nobel de Medicina ou Fisiologia coube ao trio de pesquisadores John O’Keefe, 75 anos, da Universidade College London, na Inglaterra, e o casal May-Britt, 51, e Edvard Moser, 52, da Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia de Trondheim, pela sua descoberta de um conjunto de células que constitui um sistema de posicionamento que permite ao cérebro se orientar em ambientes. “Este GPS interno permite nos orientarmos no espaço e demonstra a existência de uma base celular para uma função cognitiva de alto nível”, informou o comunicado do Comitê Nobel.

8

pESQUISA FAPESP 225  z  41


Deixaram os animais circularem livremente e monitoraram suas atividades cerebrais por meio de eletrodos. Assim, registraram os locais em que as células do córtex entorinal se ativavam. Em 2005, anunciaram num artigo publicado na revista Nature que os locais de ativação formavam uma grade hexagonal que denominaram “células em grelha”, que constituíam um sistema de coordenadas espaciais. A luz que faltava

Um trio de pesquisadores japoneses ganhou o Nobel de Física. Isamu Akasaki, 85, e Hiroshi Amano, 54, ambos da Universidade de Nagoya, no Japão, e Shuji Nakamura, 60, da Universidade da Califórnia, Santa Bárbara, nos Estados Unidos, desencadearam uma transformação na forma como o mundo é iluminado, com mais economia de energia. Eles desenvolveram, no início dos anos 1990, um diodo emissor de luz (LED) azul que permitiu a criação de fontes de luz branca eficientes e ambientalmente sustentáveis, as lâmpadas LED. LEDs são dispositivos eletrônicos que convertem energia elétrica em luz, utilizando materiais semicondutores. “Nos LEDs, a eletricidade é convertida em

Os vencedores do Ig Nobel Todo mês de setembro,

cascas de banana são

um psicopata. Na categoria

nos cálculos do tamanho

em uma cerimônia no Teatro

escorregadias. O trabalho,

Saúde Pública, a vitória coube a

da economia. O prêmio

Sanders da Universidade

publicado na revista Tribology

pesquisadores de quatro países

de Medicina coube a

Harvard, cerca de mil

Online, mediu o atrito entre um

que avaliaram se viver com

pesquisadores da Índia e

espectadores prestigiam o mais

sapato, uma casca de banana

um gato é ou não perigoso

dos Estados Unidos que

excêntrico prêmio da ciência.

e o chão. Na categoria

para a saúde mental. O Ig Nobel

demonstraram a eficiência de

Trata-se do Ig Nobel, que

Neurociência, venceu um grupo

de Biologia, conquistado por

usar tiras de carne de porco

destaca pesquisas cujas

de pesquisadores chineses e

pesquisadores da Alemanha,

para conter hemorragias nasais

premissas parecem piada

canadenses que analisou, por

República Tcheca e Zâmbia,

persistentes. Pesquisadores

(mas não são) e “se destinam

meio de ressonância magnética,

documentou que os cães,

da Noruega, Estados Unidos,

a celebrar o incomum, honrar

como funcionam os cérebros

quando defecam e urinam,

Canadá e Alemanha ganharam

o imaginativo – e estimular o

de pessoas que veem o rosto

preferem alinhar o eixo de seu

o Ig Nobel de Ciência sobre o

interesse das pessoas em

de Jesus Cristo em torradas.

corpo com o eixo geomagnético

Ártico ao testarem como as

ciência, medicina e tecnologia”,

O prêmio de Psicologia

norte-sul da Terra. O artigo foi

renas reagiam quando viam

conforme define a revista

reconheceu a contribuição de

publicado na revista Frontiers

humanos fantasiados de

Annals of Improbable Research,

um artigo publicado na revista

in Zoology. O prêmio de

ursos polares. Pesquisadores

que desde 1991 organiza a

Personality and Individual

Economia foi conferido ao

espanhóis levaram o prêmio

premiação. O Ig Nobel de Física

Differences que investigou

Instituto Nacional de Estatística

na categoria Nutrição: eles

foi atribuído a um grupo de

a relação entre o hábito de

da Itália, por incluir as receitas

testaram o uso de bactérias

pesquisadores do Japão que se

ficar acordado até tarde e a

com prostituição, contrabando

encontradas nas fezes de bebês

dedicou a investigar por que

probabilidade de se tornar

e outras atividades ilícitas

na fermentação de linguiças.

42  z  novembro DE 2014

fotos 1 BBC World Service  2 Russell Watkins / Department for International Development  3 Catherine Helie / Gallimard

“Vivemos a era da luz LED, que amplia as possibilidades de aplicação da óptica”, diz o físico Vanderlei Bagnato

A contribuição de O’Keefe e do casal Moser respondeu a uma pergunta que desafiava os neurocientistas: como o cérebro consegue desenvolver um mapa do ambiente que o rodeia e como as pessoas se orientam em espaços complexos e distintos com base nesse mapa? O’Keefe identificou os primeiros componentes celulares desse sistema de posicionamento em 1971. À época, observou que um grupo de neurônios em uma região do cérebro chamada hipocampo era sempre ativada quando camundongos eram colocados em lugares específicos mais de uma vez. Ou seja, o cérebro marcava esses ambientes como pontos de referência. Ele batizou tais neurônios de “células de posicionamento”. Em meados dos anos 1990, O’Keefe recebeu em seu laboratório dois pós-doutorandos noruegueses: May-Britt e Edvard Moser. Eles se interessaram pelas células de posicionamento e, quando retornaram a seu país, investiram nessa linha de pesquisa investigando as ligações entre essas e outras células nervosas. Observaram que, numa estrutura cerebral próxima do hipocampo chamada córtex entorinal, certas células se ativavam quando o roedor passava numa determinada posição do espaço.


Memória e luta contra a violência Além das categorias científicas e de economia, também foram anunciados os vencedores dos prêmios Nobel da Paz e de Literatura. O escritor Patrick Modiano, de 69 anos, tornou-se o 11º francês contemplado com o Nobel de Literatura. Foi escolhido, segundo o comitê de premiação, por sua sensibilidade em lidar com temas 1

como a memória e o esquecimento e em abordar o período da ocupação nazista, pano de fundo de muitos de seus mais de 30 romances. Já o Nobel da Paz foi para Malala Yousafzay, paquistanesa de 17 anos, e para o literatura

de 60 anos. O reconhecimento se deu

Patrick Modiano é o 11º francês a ganhar o Nobel na categoria, com uma obra cujos temas são a memória, a identidade e a culpa

pela luta de ambos contra a violência imposta a jovens e crianças e pela garantia de seu direito à educação.

2

paz O indiano Satyarthi e a paquistanesa Malala: reconhecimento pela luta contra a violência e pela educação de crianças e jovens

partículas de luz — os fótons —, levando a ganhos na eficiência em relação a outras fontes de energia em que a maioria da eletricidade é convertida em calor e apenas uma pequena parte em luz”, informou a Real Academia Sueca das Ciências. O desenvolvimento do LED azul é recente. Até meados dos anos 1990, apenas diodos de luz verde e vermelha haviam sido criados. Mas era necessário um terceiro componente para obter luz branca, hoje usada em toda parte para a iluminação. O professor Isamu Akasaki e seu aluno de doutorado Amano trabalhavam

3

engenheiro indiano Kailash Satyarthi,

juntos na Universidade de Nagoya. Já Nakamura estava numa pequena empresa japonesa, a Nichia Chemicals. Os três cientistas apostavam que o material semicondutor para obter uma emissão de luz azul deveria ser o nitreto de gálio – e trataram de obter cristais de alta qualidade do composto. Usando métodos diferentes, criaram em 1992 os primeiros LEDs azuis. Para o físico Vanderlei Salvador Bagnato, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), em São Carlos, o principal mérito dos pesquisadores laureados com o Nobel foi obter o elemento que faltava para desencadear o que ele chama de terceira revolução da óptica. “As lâmpadas incandescentes constituíram a primeira revolução, pois tiraram a humanidade da escuridão", diz Bagnato, que é coordenador do Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (Cepof), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP. Depois, ele observa, veio o laser, e com ele uma nova forma de emissão de luz. “Agora vivemos a era da luz LED, que vem ampliando as possibilidades de aplicação da óptica, tanto na comunicação quanto na iluminação”, afirma o professor.

Como regular corporações

As análises acerca do poder de mercado de grandes corporações renderam ao francês Jean Tirole, de 61 anos, o Prêmio Nobel de Economia de 2014. Ele foi agraciado por investigar como as grandes empresas devem ser reguladas de forma a evitar que os consumidores sejam prejudicados. “Jean Tirole tem importantes contribuições teóricas em várias áreas, mas esclareceu, especialmente, como entender e regular setores com poucas empresas poderosas”, informou a nota da Academia Sueca. Pesquisador da Universidade de Ciências Sociais de Toulouse, ele mostrou teoricamente que algumas regras, como limitar preços dos monopólios e proibir a cooperação entre empresas concorrentes para evitar cartéis, podem funcionar bem sob certas condições, mas têm mais efeitos negativos do que positivos em outras circunstâncias. Suas análises sobre empresas com poder de mercado resultaram em uma teoria que mostrou aos governos como lidar com fusões e cartéis e regular monopólios. Para o economista francês, a política de regulamentação da concorrência deve ser cuidadosamente adaptada às condições específicas de cada indústria. n pESQUISA FAPESP 225  z  43


ciência  saúde y

Correr faz bem! Exercício aeróbico combate inflamação e enrijecimento dos pulmões em doenças respiratórias como asma e pneumonia Maria Guimarães

A

cautela bastante antiga que levava os asmáticos a se esquivarem de práticas esportivas parece estar baseada num engano, conforme vem mostrando o trabalho de Rodolfo de Paula Vieira, da Universidade Nove de Julho (Uninove). Desde o doutorado, realizado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), o pesquisador graduado em educação física vem mostrando e detalhando como o exercício aeróbico combate os efeitos nocivos de doenças respiratórias. “É preciso que o exercício seja moderado para causar os efeitos benéficos sem desencadear crises de asma”, explica. “O problema é que é difícil controlar a intensidade do esforço de crianças numa aula de educação física.” Vieira entrou no doutorado, em 2004, com a intenção de estudar os efeitos do exercício na asma, sob orientação da médica Marisa Dolhnikoff e do fisioterapeuta Celso Carvalho, também da USP. Sofreu o primeiro revés apenas um mês depois, quando foi publicado no Journal of Im44  z  novembro DE 2014

munology um artigo do grupo da imunologista norte-americana Lisa Schwiebert, da Universidade do Alabama em Birmingham, mostrando que o exercício reduz os processos inflamatórios num modelo de asma em camundongos. Mas o jovem estudante não esmoreceu e partiu para detalhar esses efeitos, mostrando em artigo publicado em 2007, no American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine, que, além dos efeitos anti-inflamatórios nos tecidos pulmonares, o exercício também combate a fibrose típica da asma. “A inflamação não resolvida leva ao espessamento das vias aéreas, num processo progressivo e irreversível”, explica. Essa fibrose torna os pulmões menos flexíveis e reduz as trocas gasosas – efeitos que podem durar a vida inteira, mesmo que as crises sejam controladas. Nos últimos anos, em parte durante um pós-doutorado na Universidade de Friburgo, na Alemanha, Vieira vem mostrando os efeitos benéficos do exercício físico em doenças respiratórias, como asma, doença pulmonar obstrutiva crônica

Miniacademia: em esteira adaptada, vários camundongos podem correr ao mesmo tempo


Eduardo Cesar

pESQUISA FAPESP 2xx  z  45


(DPOC), síndrome do desconforto respiratório agudo e pneumonia, e também em situações que agridem as vias respiratórias, como a exposição à poluição atmosférica e o consumo de cigarros. Boa parte do trabalho foi feita usando camundongos como modelo, mas isso deve mudar em breve. “No início de 2015 vamos inaugurar um centro de avaliação física e de reabilitação pulmonar aberto à população”, conta o pesquisador, mostrando uma sala com 15 esteiras elétricas – dessas de academia – e uma bicicleta ergométrica. “Vamos ter também equipamentos para musculação e estrutura para colher sangue, saliva e escarro A concentração induzido para análises.” Tudo isso em um espaço considerável que obteve no de fatores campus da Uninove na rua Vergueiro, no bairro paulistano da Liberdade, um enorinflamatórios me prédio onde circulam diariamente 35 mil estudantes. Apesar da pouca tradição é reduzida em pesquisa acadêmica, a universidade cedeu e está reformando as áreas necescom o treino sárias ao estabelecimento do laboratório cotidiano de Vieira graças aos recursos do projeto no Programa Jovem Pesquisador da FAde corrida PESP, que entrou em vigor neste ano. A conversa que serviu de base para esta reportagem aconteceu em meio a equipamento recém-instalado. “Esta centrífuga foi entregue semana passada”, contou o pesquisador, enquanto ensinava alunos a operá-la. Até o final do ano, ele espera receber todo o equipamento que já adquiriu e ter condições completas de recrutar voluntários humanos para ceder esforço, escarro e sangue. “A ideia é avaliarmos não só os fatores inflamatórios e anti-inflamatórios nas vias respiratórias, mas também a inflamação sistêmica, no sangue, por meio da técnica de citometria de Caixa ligada a tubo onde se fluxo”, explica Vieira, se referindo ao aparelho encaixa um principal do laboratório, obtido no Programa de cigarro permite Equipamentos Multiusuários da FAPESP. simular efeitos em fumantes

46  z  novembro DE 2014

Até agora, os trabalhos com roedores permitiram avançar mapeando como os efeitos do exercício chegam aos pulmões. Em artigo publicado em junho deste ano na revista Internationa l Journal of Sports Medicine, ele mediu quanto havia de proteínas com ação anti-inflamatória (interleucina-10) e inflamatória (interleucinas 4, 5 e 13) no líquido obtido por lavagem dos brônquios e no sangue de camundongos submetidos a um regime de exercício em esteiras adaptadas, com ou sem a aplicação de ovoalbumina, que induz nos roedores uma condição semelhante à asma. Os resultados mostram que a asma aumenta a concentração de fatores inflamatórios, que é reduzida com o treino cotidiano de corrida. “O exercício ativa os músculos esqueléticos, as células T regulatórias e o epitélio brônquico, levando à produção de interleucina-10, que entra na corrente sanguínea e chega aos pulmões”, resume Vieira. Grande parte dessa proteína fica na circulação sistêmica e pode combater a inflamação onde for necessário, mas uma fração entra nos pulmões e se soma à produzida ali mesmo. Mas a novidade mais importante do estudo foi indicar que o aumento ou a redução da produção de determinadas substâncias em situação de exercício aeróbico inibe no pulmão a ativação de leucócitos, células do sistema imunológico envolvidas no processo inflamatório. Além das interleucinas, o exercício também inibe a ação de outros protagonistas nessa história: diversos fatores de crescimento, proteínas que atuam na proliferação e diferenciação de células e se acredita serem os principais mediadores das alterações nas vias respiratórias, como a fibrose. Na fumaça

O efeito benéfico do exercício também se manifesta em pessoas saudáveis sujeitas aos efeitos nocivos da poluição atmosférica, como corredores que treinam perto de avenidas. No caso do experimento, feito em parceria com Marisa Dolhnikoff e Paulo Saldiva, do Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental da FMUSP, os esportistas eram camundongos correndo em esteiras. Depois de correr por 10 minutos, eles recebiam uma gota em cada narina de uma solução concentrada das partículas emitidas pelo cano de escape de veículos a diesel. Depois voltavam a correr, simulando uma sessão de exercício aeróbico moderado. “Ficamos surpresos em ver que o exercício protege os pulmões”, conta Vieira, que esperava encontrar uma camada dessas partículas depositada no sistema respiratório dos roedores. “Agora precisamos investigar como isso acontece.” Ele imagina que o epitélio (revestimento) pulmonar pode ficar mais eficiente em remover o poluente, com cerdas microscópicas funcionando como vassouras incansáveis. Seja qual for o mecanismo, o resultado traz uma nota


Na esteira pelo bem dos pulmões Moléculas produzidas durante exercício aeróbico combatem doenças respiratórias

Essas substâncias entram na corrente sanguínea, onde também são liberadas pelas células T reguladoras, do sistema imunológico Pelos vasos entram nos pulmões até chegar ao interior dos brônquios, onde combatem processos inflamatórios

FOTO EDUARDO CESAR  INFOGRÁFICO MARINA ORUÊ  ILUSTRAÇÃO PEDRO HAMDAN

Durante a corrida, os músculos produzem proteínas anti-inflamatórias, como a interleucina-10

FONTE  RODOLFO DE PAULA VIEIRA / UNINOVE

de otimismo para ciclistas que arquejam enquanto disputam espaço nas ruas com carros fumacentos, mas ainda é preciso esperar para ver se os experimentos com roedores refletem a realidade humana. Outra fumaça que costuma causar danos extensos é aquela tragada por fumantes, e pode ser um fator importante no desenvolvimento de enfisema e DPOC. Em colaboração com o grupo de Milton Martins, da FMUSP, Vieira participou de um estudo em que, ao longo de 24 semanas, camundongos eram postos em câmaras ligadas a um tubo com um cigarro aceso na ponta, expondo os roedores à fumaça que é tragada, não aquela que acaba destinada aos que convivem com fumantes. Os resultados, publicados em 2012 no European Respiratory Journal, mostraram que um regime de treinos em esteira cinco dias por semana reduziu de forma significativa a produção de substâncias responsáveis por estresse oxidativo, ao mesmo tempo que aumentou o teor de enzimas antioxidantes. O saldo foi uma proteção contra o enfisema nesses roedores. Os resultados sugerem que, em humanos, a proteção pode valer também para DPOC. Camundongos continuam a fumar no laboratório da Uninove, de maneira que mais resultados devem surgir nos próximos anos. Os esforços de Vieira vêm sendo reconhecidos não só pela ampla rede de colaborações e grande número de publicações, apesar de estar em plena instalação do laboratório. Seu grupo foi o mais premiado no congresso da Sociedade Respiratória Europeia, que aconteceu em setembro deste ano em Munique, Alemanha, com quatro prêmios recebidos. Um deles indicou que o exer-

cício físico protege contra a pneumonia causada pela bactéria Pseudomonas aeruginosa, a principal responsável por infecções oportunistas em ambientes hospitalares e por mortes em unidades de terapia intensiva. “A inflamação era 70% menor na fase aguda da pneumonia”, explica. “Foi o primeiro trabalho do nosso grupo em infecção respiratória”, conta o pesquisador, celebrando a boa acolhida no encontro internacional que reuniu cerca de 22 mil especialistas. Com o início dos testes com voluntários humanos e parcerias com hospitais e com o atendimento clínico na própria Uninove, Vieira promete muitas novidades nos próximos anos. Por enquanto, o recado aos asmáticos é: faça exercício regularmente, sob orientação, mas não exagere! n

Projetos 1. Papel da sinalização purinérgica e da sinalização SOCS-JAK-STAT nos efeitos anti-inflamatórios do treinamento aeróbico em modelos experimentais de asma e em indivíduos asmáticos (nº 2012/15165-2); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisador responsável Rodolfo de Paula Vieira (Uninove); Investimento R$ 1.131.587,47 (FAPESP). 2. EMU concedido no processo 2012/15165-2: Citômetro de Fluxo Accuri (nº 2014/07171-8); Modalidade Equipamento Multiusuário Modalidade 3; Pesquisador responsável Rodolfo de Paula Vieira (Uninove); Investimento R$ 161.798,40 (FAPESP).

Artigos científicos VIEIRA, R. P. et al. Exercise deactivates leukocytes in asthma. International Journal of Sports Medicine. v. 35, n. 7, p. 629-35. jun 2014. VIEIRA, R. P. et al. Anti-inflammatory effects of aerobic exercise in mice exposed to air pollution. Medicine & Science in Sports & Exercise. v. 44, n. 7, p. 1227–34. jul. 2012. TOLEDO, A. C. et al. Aerobic exercise attenuates pulmonary injury induced by exposure to cigarette smoke. European Respiratory Journal. v. 39, n. 2, p. 254–64. fev. 2012.

PESQUISA FAPESP 225  z  47


Neurociência y

Liberdade aos oligômeros Novo modelo para o Alzheimer reproduz em macacos alterações que a doença causa no cérebro humano

48  z  novembro DE 2014

o líquido cefalorraquidiano, que banha o encéfalo – do cérebro dos animais. A ideia era não determinar um local para inserir a substância. “Queríamos dar liberdade aos oligômeros”, explica a pesquisadora. Tanto em ratos como em macacos cinomolgos (Macaca fascicularis), os pesquisadores observaram que os oligômeros se acumulam no córtex frontal, no hipocampo e em áreas associadas à memória e a aspectos cognitivos, segundo artigo publicado em outubro no Journal of Neuroscience, cuja primeira autora é a bióloga Leticia Forny-Germano, do grupo da UFRJ. “As primeiras áreas afetadas na doença refletiram o que acontece em seres humanos”, diz Fernanda. Experimentos feitos com células e roedores já haviam sugerido que os oligômeros beta-amiloide desempenham um papel central no desenvolvimento da doença, que causa perda de memória e demência irreversíveis (ver Pesquisa FAPESP nº 194). Faltava obter essa relação causal num modelo experimental que se aproximasse em complexidade do cérebro humano – até agora não se havia conseguido reproduzir no cérebro de primatas os danos que o Alzheimer causa em pessoas.

O mais importante no experimento, segundo Fernanda, foi observar nos ma­cacos danos semelhantes aos que acontecem no cérebro humano, como a perda de conexões (sinapses) entre as células cerebrais e as alterações na proteína tau, responsável pela formação de microtúbulos que estabilizam os prolongamentos dos neurônios. As proteínas tau alteradas formaram os emaranhados neurofibrilares, uma alteração típica de estágios avançados da doença. Os emaranhados neurofibrilares, comuns no cérebro humano e observados agora no dos macacos, não ocorrem no cérebro de roedores, em geral usados como modelo para o estudo do Alzheimer. “Não existem estudos mostrando o surgimento dos Emaranhados da proteína tau (em verde): comuns nos estágios avançados do Alzheimer e agora reproduzidos no cérebro de macacos

imagens  leticia forny-germano / ufrj

O

s pesquisadores tiveram uma surpresa quando injetaram no cérebro de macacos uma substância associada à origem da doença de Alzheimer em seres humanos. As moléculas migraram e se acumularam em áreas relacionadas à formação da memória, produzindo nas células as alterações típicas de estágios avançados desse mal. Essa constatação, importante para compreender o funcionamento da doença, é um alerta para a necessidade de usar primatas como modelo para se compreender como se instala o Alzheimer e testar possíveis tratamentos, segundo a neurocientista Fernanda De Felice, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenadora da pesquisa. Em parceria com o grupo canadense da Queen’s University liderado pelo neurofisiologista Douglas Muñoz, Fernanda e sua equipe queriam conhecer como a enfermidade se instala em um cérebro saudável. Para isso, injetaram pequenos fragmentos (oligômeros) da proteína beta-amiloide, precursores dos danos celulares, no ventrículo lateral – uma das cavidades naturais do cérebro onde é produzido


emaranhados só por ação dos oligômeros em roedores”, conta a pesquisadora carioca. “Agora, sem mutações, induzimos uma condição que é central na doença.” Tau e beta

Oligômeros beta-amiloide (em vermelho): acumulados ao redor de neurônios no córtex cerebral de cinomolgos

Alterações na proteína tau causadas pela proteína beta-amiloide também foram o foco de um estudo liderado por Rudolph Tanzi e Doo Yeon Kim, da Escola Médica de Harvard, publicado também em outubro na revista Nature. “A beta-amiloide de fato causa os emaranhados”, disse Tanzi no podcast da Nature, “isso não tinha sido mostrado antes”. A novidade, nesse caso, foi alojar neurônios humanos com mutações típicas da forma hereditária do Alzheimer numa matriz gelatinosa tridimensional, em vez da tradicional cultura celular em meio líquido, feita em placas onde as células se dispõem em só uma camada. Eles esperam usar o modelo tridimensional para testar fármacos com potencial de combater a doença nos estágios iniciais, antes que surjam os sintomas. Uma das vantagens de usar células isoladas, explicam, é acompanhar em detalhe a ação dos compostos candidatos a medicamento e identificar se agem sobre a produção e a deposição da beta-amiloide ou sobre a formação dos emaranhados. “Conseguimos dissecar esses dois eventos”, disse Tanzi. Para ele, o modelo permitirá testar fármacos 10 vezes mais rapidamente, talvez a um décimo dos custos de testes com roedores. Para Fernanda, esses resultados não reduzem a importância de usar primatas nos estudos sobre Alzheimer. “O modelo in vitro permite testar a ação de várias substâncias neuroprotetoras, mas não é um sistema complexo como o cérebro”, explica, argumentando que a matriz gelatinosa não inclui todos os tipos de células que atuam no órgão real. Além disso, ela ressalta, ainda não existem modelos para a forma mais comum da doença de Alzheimer, conhecida como esporádica. “Eles usaram as mutações descritas para a forma familiar, que representa menos de 5% dos casos da doença.”

Fernanda planeja continuar os experimentos com ratos e camundongos para entender melhor os detalhes de como a doença altera o cérebro. Mas acredita que os roedores não ajudarão em certos aspectos da pesquisa. “A maioria dos medicamentos testados em camundongos não funciona para o tratamento de doenças do cérebro humano”, exemplifica. O modelo desenvolvido pela equipe do Rio e do Canadá foi destacado no fórum especializado Alzforum e em comentário na Nature, mas não está completo. Falta, por exemplo, comprovar que os oligômeros prejudicam a memória dos animais. Na universidade canadense, alguns macacos já começaram a ser treinados para a segunda fase de estudos, em que os pesquisadores avaliarão alterações comportamentais que podem surgir como resultado da injeção dos oligômeros. É necessário treinar os cinomolgos por seis meses para realizar testes de memória, como reconhecer imagens em um monitor, e para que façam certo movimento com os olhos. Quando os macacos envelhecem, a capacidade de realizar esse movimento se deteriora de modo semelhante ao que ocorre em pessoas com Alzheimer. Fernanda também espera testar medicamentos nos primatas. O primeiro candidato é um remédio contra diabetes que seu grupo mostrou ser capaz de bloquear certos danos neuronais vistos em modelos animais do Alzheimer (ver Pesquisa FAPESP nº 215). Além dos resultados promissores para o estabelecimento de um novo modelo animal, ela celebra a parceria com o laboratório canadense. “São dois grupos com expertises complementares”, avalia. Uma receita de sucesso para avanços significativos em ciência. n Maria Guimarães

Artigos científicos FORNY-GERMANO, L. et al. Alzheimer’s disease-like pathology induced by amyloid-oligomers in nonhuman primates. Journal of Neuroscience. v. 34, n. 41. 8 out. 2014. CHOI, S. H. et al. A three-dimensional human neural cell culture model of Alzheimer’s disease. Nature. on-line. 12 out. 2014.


zoologia y

Onde está a anta-pretinha é mais disseminada na Amazônia do que se pensava Igor Zolnerkevic

50  z  novembro DE 2014

A

descrição de uma nova espécie de anta vivendo na Amazônia, a anta-pretinha, publicada em dezembro do ano passado na revista Journal of Mammalogy, foi celebrada por muitos como a descoberta mais extraordinária da zoologia deste século. Afinal, seria a primeira espécie de anta identificada desde 1865 e o maior animal descoberto pela ciência desde 1992, quando pesquisadores descreveram o saola, um bovino das florestas do Vietnã e do Camboja. O trabalho foi fruto de 10 anos de esforços de uma equipe liderada por Mario Cozzuol, paleontólogo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ele e seus colaboradores divulgarão neste mês novos dados sobre a ecologia e a genética da anta-pretinha, espécie que descreveram e batizaram com o nome científico de Tapirus kabomani, no Simpósio Internacional de Antas da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN), evento que acontece em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. Entre os dados estão fotos, vídeos e medidas inéditas de antas-pretinhas vivendo nos estados do Pará e de Roraima, assim como na Bolívia, sugerindo que há populações do animal espalhadas por quase toda a Amazônia do Brasil e dos países vizinhos.

ilustrações  sandro castelli

Ainda controversa, nova espécie


Nem tanto ao campo nem à floresta: a anta-pretinha é encontrada em regiões de transição entre áreas de vegetação aberta e matas mais densas

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IUCN e, para protegê-la, adotar medidas diferentes das que estão sendo tomadas para preservar a T. terrestris? Embora não sofra perigo eminente de extinção, a carne saborosa, o enorme tamanho (é o maior animal nativo da América do Sul) e o longo período de gestação fazem da anta-brasileira um animal muito vulnerável à caça excessiva e à perda de hábitat. A espécie corre sério risco de desaparecer em vários pontos do país nas próximas décadas, como já aconteceu nas regiões Nordeste e em boa parte das regiões Sul e Sudeste. Sua extinção local pode afetar toda a biodiversidade de uma região, pois, sendo um herbívoro de grande apetite, a anta ajuda a espalhar sementes nos campos e florestas. O debate na verdade dará sequência ao vivo a uma discussão que começou por escrito, primeiro num grupo fechado para pesquisadores no Facebook e posteriormente em artigos na edição de agosto do Journal of Mammalogy. Um grupo de pesquisadores liderado por Robert Voss, zoólogo do Museu de História Natural Americana (AMNH), refez parte das análises da equipe de Cozzuol e defende que a espécie não existe. “Teriam várias gerações de mastozoólogos neotropicais realmente falhado em reconhecer uma espécie amplamente distribuída pela Amazônia?”, perguntam Voss e coautores em seu artigo. “Sim, não reconheceram, lamento”, responde Cozzuol, que rebateu as críticas na mesma edição da revista. “Isso já aconteceu antes e vai acontecer de novo, não é pecado.”

Essas evidências também confirmam que, ao contrário da espécie mais conhecida de anta sul-americana, a Tapirus terrestris, Especialistas cujas populações escolhem entre discutirão a viver no interior da mata fechada e em campos abertos, a T. kabonecessidade mani prefere regiões de paisagem mais variada, onde há um mosaide incluir a co de áreas abertas e fechadas. “Todos os lugares em que enconanta-pretinha na tramos a espécie são assim”, diz lista de espécies Cozzuol. “Pode ser uma coincidência, mas talvez a T. kabomani ameaçadas e tenha mesmo um comportamento diferente da T. terrestris.” adotar medidas Nem todos os especialistas em mamíferos estão convencidos de de proteção que a anta-pretinha existe como diferentes para espécie independente. Alguns pesquisadores acreditam que preservá-la elas seriam apenas exemplares da espécie T. terrestris um pouco mais baixas e escuras que a média. Durante o evento da IUCN, Cozzuol participará de uma mesa-redonda sobre a validade da nova espécie. A discussão pode parecer uma questão taxonômica bizantina, mas de fato vai tentar responder a uma pergunta prática: vale a pena incluir a T. kabomani na lista vermelha de animais ameaçados de extinção da

As diferenças nos detalhes

Crânio estranho

Comparação entre os crânios da anta-pretinha (T. kabomani) e da anta-brasileira (T. terrestris) revela pequenas variações

Tapirus kabomani

Tapirus terrestris

Região frontal mais baixa e larga

Região frontal mais alta e estreita

1

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A busca pela confirmação da existência da anta-pretinha começou por acaso, em 2002, quando Cozzuol era professor na Universidade Federal de Rondônia (Unir) e colocou sua aluna de iniciação científica Elizete Holanda, atualmente paleontóloga da Universidade Federal de Roraima, para estudar um crânio fóssil de 45 mil anos, encontrado no rio Madeira, que pertencia a uma espécie extinta de anta. Comparando o fóssil com os de outras espécies de anta extintas e vivas, Elizete descobriu na coleção da Unir outro crânio com dimensões estranhas, que não combinavam com o esperado para nenhuma espécie conhecida. O crânio havia sido coletado em uma vila de pescadores ao norte de Porto Velho, com um furo de bala e outras marcas feitas por caçadores. O pai de Elizete, que havia sido seringueiro, comentou sobre outro tipo de anta que conhecia, uma pretinha, que caçava por ter carne mais saborosa que a da anta-comum. “Foi quando começamos a perceber que todos da região diziam que havia dois tipos de anta”, diz Cozzuol. “A maioria dos biólogos que trabalhavam com mamíferos da região sabia disso, mas não


Convivência pacífica Pesquisadores conseguem mais registros na Amazônia da possível nova espécie de anta

Guiana Suriname

Venezuela Colômbia

Guiana Francesa RR

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Equador AM

PA

MA

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RO

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MT

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RN PB

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Peru DF GO

Bolívia

MG

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Chile

No alto, a anta-brasileira ou comum (Tapirus terrestris), que se distribui por toda a área verde do mapa, e a anta-pretinha (T. kabomani), ao lado em um registro noturno, por ora encontrada apenas em alguns pontos da Amazônia

fotos  1 e 3 cozzuol, m. a. et al. journal of mammalogy  2 Jean-marc rosier / wikimedia commons

3

acreditava nas pessoas”, lembra o paleontólogo. O principal motivo para os pesquisadores ignorarem o que o povo dizia é que há mesmo uma grande variação de cor e tamanho entre os exemplares de antas de uma mesma espécie. Além disso, parecia improvável para os pesquisadores que duas espécies muito semelhantes ocupassem o mesmo ambiente, pois a concorrência por alimento e espaço levaria uma delas à extinção. “Mas como sou paleontólogo e sei que há registros fósseis de espécies de antas diferentes vivendo simultaneamente em uma mesma região nas Américas, não me ative a essa suposição”, conta Cozzuol. Era preciso verificar o que acontece hoje na natureza, mas Cozzuol não obteve licença para capturar um animal vivo da provável nova espécie e comparar com o crânio que Elizete encontrara. Só mais tarde conseguiu recursos para realizar expedições na Amazônia, em colaboração com a equipe do geneticista Fabrício Santos e do ecólogo Flávio Rodrigues, ambos da UFMG. Nessas

SP

Paraguai

ES

RJ

PR SC RS

Argentina

Uruguai

Inferência por DNA Captura de exemplar Registros fotográficos

Fonte cozzuol, m. a. et al. 2013

viagens os pesquisadores combinaram com caçadores locais para que os avisassem no caso de abaterem uma anta-pretinha. Assim, os pesquisadores poderiam recolher ossos, peles e amostras de DNA da carne. Já no primeiro contato, um caçador os levou até a carcaça de uma delas, abatida algumas semanas antes. “O crânio tinha as características que esperávamos”, diz Cozzuol. A suspeita também se confirmou durante visitas a aldeias dos indígenas Karitiana, em Rondônia, que empilham os crânios de suas caças como troféus. “Havia duas pilhas para as antas, uma delas com as medidas esperadas para a pretinha”, lembra Cozzuol, que batizou a espécie em homenagem ao nome dado a ela por outros índios, os Paumari: Arabo kabomani. Os pesquisadores sabiam, entretanto, que precisariam de muito mais evidências para convencer seus colegas de que a hipótese de uma nova espécie merecia ser levada a sério. “Uma espécie biológica é um conjunto de populações que possuem uma história evolutiva separada das outras, não é pESQUISA FAPESP 225  z  53


algo que dê para observar diretamente”, explica Cozzuol. “É preciso testar a hipótese integrando análises de genética, morfologia e de outras áreas.” Para verificar a existência da nova espécie, os pesquisadores compararam medidas dos crânios de antas-pretinhas com as de crânios de outras quatro espécies vivas e alguns fósseis de antas. Compararam também as sequências de três genes do DNA mitocondrial de quatro pretinhas com os mesmos genes de dezenas de antas de todas as espécies, obtidas no banco de dados aberto GenBank. “A maioria dos estudos com antas usa apenas um gene mitocondrial”, explica Cozzuol. Seja pela forma de seu crânio ou pelo seu DNA, a pretinha despontava como um animal diferente das outras espécies. A conclusão do estudo foi uma revisão da história natural das antas. As antas são consideradas fósseis vivos, pois não mudaram muito desde que surgiram há 50 milhões de anos, tendo sobrevivido à extinção da fauna Em 1794, de animais enormes que habitao naturalista vam as Américas até 10 mil anos atrás. Além da nova T. kabomani, Alexandre hoje existem apenas quatro espécies: a anta-asiática (T. indicus), na Rodrigues Malásia; a centro-americana (T. bairdii); a anta-da-montanha (T. Ferreira relatou pinchaque), que vive nos Andes, à coroa entre Peru, Equador e Colômbia; e a anta-brasileira (T. terrestris), portuguesa a presente em quase todos os biomas tropicais da América do Sul. Os anexistência de cestrais da T. kabomani teriam se separado dos ancestrais das antas duas espécies brasileira e de montanha há pelo de anta no menos 300 mil anos. Não é preciso ser um caçador Grão-Pará amazônico para distinguir a olho a T. kabomani da T. terrestris. A pretinha é bem menor, mais baixa e com pernas mais curtas que a T. terrestris. Sua pele é mais escura, a crina mais baixa e a testa mais larga. Os machos de todas as espécies de antas tendem a ser um pouco menores que as fêmeas e essa diferença de tamanho entre os sexos é mais acentuada entre as pretinhas. Outra diferença entre os sexos é uma mancha branca na cabeça, que se estende da bochecha até o pescoço, uma exclusividade das fêmeas. “Alguns indivíduos de T. terrestris têm manchas nas bochechas, mas elas não são tão nítidas e podem aparecer em ambos os sexos”, explica Cozzuol. Evidências suficientes?

Nada convencidos com os indícios de uma nova espécie, Voss e seus colegas contestam todas essas conclusões. Eles reexaminaram os mesmos 54  z  novembro DE 2014

dados genéticos usando um método estatístico alternativo e concluíram que as diferenças entre as sequências de DNA são pequenas demais para considerar a pretinha como uma espécie separada. Cozzuol explica que sua equipe refez a análise usando a mesma técnica que Voss, a cujos detalhes só teve acesso após a publicação do artigo e que portanto não constam de sua réplica na mesma edição da revista. Seus resultados foram diferentes e continuam a confirmar a existência de T. kabomani. “Ainda não entendi como eles chegaram aos resultados”, diz Cozzuol. Ele também reclama de criticarem seus dados de medições de crânios sem replicá-los. “O AMNH possui uma coleção muito maior de T. terrestris do que nós”, diz. “Não demoraria uma semana para tomarem os dados e verificarem nossa análise.” “Continuo convencido de que não é uma espécie válida”, diz Voss. “A evidência genética é nula.” Ele acredita que a hipótese deveria ser testada usando também o DNA do núcleo das células, além daquele das mitocôndrias já analisado. Cozzuol e Santos estão analisando justamente isso no momento, mas já concluíram que não é possível distinguir nenhuma espécie de anta sul-americana pelos genes de DNA de núcleo normalmente usados como marcadores nesse tipo de estudo, o que significa que precisarão buscar por diferenças em sequências de DNA nuclear menos conhecidas. “Os argumentos dele não se sustentam e vão além das exigências razoáveis”, diz Cozzuol. “Não tenho dúvida de que poderíamos ter feito melhor, mas outras espécies já foram descritas recentemente com muito menos detalhes e informações.” “A evidência etnográfica também não me convence”, afirma Voss. “Indígenas amazônicos rotineiramente superdiferenciam os animais grandes que caçam.” Para defender esse ponto, Cozzuol teve ajuda do etnozoólogo Hugo Fernandes-Ferreira, que deve concluir neste ano uma tese de doutorado na Universidade Federal da Paraíba sobre a história da caça a animais silvestres no Brasil. Fernandes-Ferreira explica que a superdiferenciação a que Voss se refere é a tendência de povos indígenas a darem nomes diferentes para animais que identificam com aparência diferente, mas que na verdade são apenas variações dentro de uma mesma espécie. Um exemplo são as onças-pintadas claras e pretas, pertencentes à mesma espécie biológica, mas consideradas animais diferentes pela maioria dos povos da Amazônia. As antas, no entanto, são caçadas por conta de sua carne saborosa e em decorrência de partes do animal terem uso medicinal, mágico e religioso. “As pessoas analisam com mais cuidado os animais que consideram úteis”, diz Fernandes-Ferreira. “Além disso, essa diferenciação entre uma anta


As antas pelo mundo As quatro espécies já confirmadas e a nova espécie proposta apresentam tamanhos e cores variados anta-pretinha Nome científico Tapirus kabomani Comprimento 1,6 metro (m) Peso 110 quilogramas (kg) Distribuição Amazônia (provável)

anta-da-montanha Nome científico Tapirus pinchaque Comprimento 1,8 m Peso 150 kg Distribuição noroeste da América do Sul

anta-brasileira Nome científico Tapirus terrestris Comprimento 1,7 a 2 m Peso 181 a 226 kg Distribuição América do Sul

anta-centro-americana Nome científico Tapirus bairdii Comprimento 2m Peso 226 kg a 272 kg Distribuição  do sul do México à América do Sul

anta-asiática Nome científico Tapirus indicus Comprimento 1,8 a 2,5 m Peso 100 a 500 kg Distribuição Sudeste Asiático

Fonte Tapirs Specialist Group

grande e cinza e outra pretinha é difundida em quase todos os povos da Amazônia.” “De índios, ribeirinhos, seringueiros e fazendeiros sempre ouvi dizerem que há duas espécies de anta”, diz Cozzuol. “Os indígenas Uru-Eu-Wau-Wau, por exemplo, vivem em uma área onde só há um tipo de anta, mas afirmam que sabem que em outros lugares há dois tipos.” de outros tempos

Fernandes-Ferreira também encontrou registros históricos de caçadores e naturalistas mencionando duas espécies de antas no Brasil. O mais antigo é de 1794, no qual naturalista brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira relata à coroa portuguesa a existência de duas espécies de anta na província do Grão-Pará, onde atualmente fica o estado do Amazonas. Outro relato histórico importante é o do presidente norte-americano Theodore Roosevelt, que menciona em suas memórias da visita ao Brasil em 1912 ter caçado no Mato Grosso uma anta, “um macho muito menor do que o outro que matei” e que “os caçadores disseram ser de um tipo diferente”. As antas abatidas por Roosevelt foram doadas ao AMNH e analisadas pelo zoólogo Joel Allen, em 1914, que considerou o animal menor apenas como uma variação da T. terrestris. “Tivemos acesso às medidas desse exemplar e elas batem perfeitamente com o que esperamos da T. kabomani”, diz Cozzuol. “A posição que defenderemos no painel da IUCN é que, se há a mínima possibilidade de que exista uma espécie diferente e a ignorarmos, podemos acabar condenando uma parte importante da biodiversidade da Amazônia sem ainda tê-la conhecido direito”, explica Cozzuol. “Na Nova Zelândia, houve um caso semelhante: achava-se que o tuatara, um tipo de réptil primitivo parente dos lagartos, era uma espécie só, até que ações de conservação que funcionavam em algumas regiões deram errado em outras. É porque havia na verdade duas espécies de tuatara com requisitos diferentes.” “Sim, se há realmente duas espécies válidas de antas amazônicas, então elas deveriam ser manejadas separadamente”, concorda Voss. “Entretanto, dado que não há uma estratégia eficaz de manejo para nenhum mamífero amazônico, a proteção do hábitat parece a melhor abordagem.” n

Artigos científicos COZZUOL, M. A. et al. A new species of tapir from the Amazon. Journal of Mammalogy. v. 94, n. 6, p. 1331-45. dez. 2013. VOSS, R. S. et al. Extraordinary claims require extraordinary evidence: a comment on Cozzuol et al. (2013). Journal of Mammalogy. v. 95, n. 4, p. 893-8. ago. 2014. COZZUOL, M. A. et al. How much evidence is enough evidence for a new species? Journal of Mammalogy. v. 95, n. 4, p. 899-905. ago. 2014.

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ECOLOGIA y

Caranguejada de risco Crustáceos do litoral paulista acumulam metais pesados e exibem alterações orgânicas Texto  Carlos Fioravanti |  Fotos  Eduardo Cesar, de São Vicente, SP

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ouco antes das oito da manhã, em frente a seu laboratório, o biólogo Marcelo Pinheiro conta como ajudou a construir este campus da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em São Vicente, onde é professor há 10 anos, e faz uma conta rápida: já deve ter aberto e examinado 12 mil caranguejos-uçá desde 1998. Ele gosta de uma boa caranguejada, mas não se arrisca a comer nenhuma feita com os

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crustáceos da região de Santos e São Vicente. “Não faça isso”, ele desaconselha. Pinheiro e sua equipe verificaram que quatro dos seis metais pesados avaliados por eles – cádmio, cobre, chumbo e mercúrio – ocorreram em níveis superiores aos permitidos por lei em amostras de água, sedimento e nos próprios caranguejos dos manguezais dos municípios paulistas de Cubatão, Bertioga, Iguape, São Vicente e Cananeia. Nas regiões com

maior concentração desses metais, os caranguejos apresentavam uma proporção maior de células com alterações genéticas associadas à ocorrência de malformações. O pior resultado, com contaminação ampla, foi Cubatão. De acordo com o levantamento, detalhado na tese de doutorado de Luís Felipe de Almeida Duarte, apresentada em maio, as únicas áreas livres de metais pesados estavam no município de Peruíbe, próximo à Es-


tação Ecológica de Jureia-Itatins, onde Pinheiro não hesitaria em pedir uma caranguejada ou um ensopado de uçá. Essa espécie (Ucides cordatus), de garras lilás e carapaça em geral azul-celeste ou amarelada, é encontrada em manguezais ao longo do litoral brasileiro, do Amapá a Santa Catarina. Por causa da degradação dos manguezais e da exploração intensiva, a produção, totalmente artesanal, decresceu, apesar do aumento da captura. O Ministério do Meio Ambiente registrou 6,8 mil toneladas em 2007, menos da metade das 15 mil toneladas de 1994. Essa queda é acompanhada de um elevado índice de perda por más condições de transporte, que, segundo proposta da Embrapa Meio Norte, no Piauí, poderia ser reduzido de 55% para 5% com o uso de caixas plásticas com camadas de espuma umedecida com água do estuário.

Segundo Pinheiro, a água é o principal veículo de dispersão de metais. Na Baixada Santista a água disponível para consumo humano é captada, principalmente, na represa Billings e no rio Pilões, ainda que outros rios do planalto paulista abasteçam os estuários da região. “Não sabemos a qualidade dessa água. Não me surpreenderia que chegasse ao litoral contaminada”, diz. As fábricas de Cubatão, antes muito poluidoras, “instalaram filtros, mas desconheço se permitem análises mais apuradas dos resíduos liberados nos rios desse município”. Em Iguape, a fonte de metais pesados são os resíduos de mineração que descem o rio Ribeira de Iguape. Além disso, poucos municípios da Baixada Santista tratam todo o esgoto residencial e industrial antes de o lançar ao mar, e embalagens plásticas e outras formas de lixo, incluin-

Vida no mangue: cracas e ostras aderidas aos troncos de mangue-vermelho (esquerda) e caranguejo-uçá (direita)

do peças de televisão e brinquedos, se espalham sobre os manguezais das ilhas próximas, protegidos por lei contra a ocupação humana. Em Bertioga, onde a equipe da Unesp não esperava encontrar caranguejos contaminados, foi detectada uma possível fonte poluente adicional: um antigo lixão, desativado em 2011 e hoje coberto, mas que poderia estar liberando substâncias químicas indesejadas para o rio pESQUISA FAPESP 225  z  57


Itapanhaú, onde estavam as três áreas analisadas. “Não há mais chorume vazando”, assegura Marisa Roitman, secretária de Meio Ambiente de Bertioga. Segundo ela, está sendo feita uma investigação para ver se o local precisaria ser descontaminado. “Não há ocupação industrial que possa ter acarretado poluição por metais pesados em Bertioga”, ela diz. Pinheiro conta que não teve acesso a um levantamento de indústrias de Bertioga. Em termos práticos, há incerteza sobre as fontes de poluição e, portanto, como poderiam ser combatidas. “Ainda desconhecemos os níveis de metais pesados inerentes aos sedimentos de nosso estado.” berçário contaminado

Pinheiro vê que a poluição sem controle e de origem incerta está modificando o equilíbrio ecológico do manguezal, a face menos poética da mata atlântica. O manguezal é rico e pulsante. Protege da erosão a linha da costa e funciona como berçário para peixes e crustáceos. A matéria orgânica concentrada neles fornece alimento para 50% a 80% dos pescados do mundo. Mas o manguezal também é feio e cheira mal por causa da alta quantidade de matéria orgânica misturada a seus finos sedimentos, aos quais aderem metais pesados. “Qualquer mudança de pH ou de salinidade”, diz Pinheiro, “provoca a liberação dos componentes químicos aprisionados aos sedimentos”. A equipe da Unesp verificou que os caranguejos-uçá dos poluídos manguezais de Cubatão têm 2,6 vezes mais células com micronúcleos – fragmentos de DNA encapsulados – que os da Jureia, uma área sem poluição. Quanto mais mi-

cronúcleos, mais irregular foi a divisão celular e, portanto, maior o risco de os bichos apresentarem malformações. Em 2012, Pinheiro coletou em Cubatão um uçá muito diferente, com uma das pinças apresentando cinco dedos fixos em vez de um. Amostras de hemolinfa examinadas ao microscópio indicaram uma das possíveis causas da malformação: o bicho tinha 11 células com micronúcleos em cada conjunto de mil células avaliadas – o normal, como na Jureia, seriam dois por mil. “Ainda desconhecemos a frequência de malformações na população, mas já percebemos que em Cubatão ela supera a das demais áreas estudadas. O histórico de poluição da região ainda é a explicação mais evidente”, diz ele. Nicholas Kriegler, de sua equipe, está investigando o número de micronúcleos em outras duas espécies de caranguejos de manguezais: o Aratus pisonii, que vive em árvores e se alimenta de folhas verdes, e o Goniopsis cruentata, também chamado de maria-mulata ou aratu, de carapaça escura, patas vermelhas e dieta mais ampla, que inclui caranguejos menores. Os dados preliminares mostram que a frequência de alterações tem se mantido: elas são mais comuns nos animais de áreas poluídas do que nos de manguezais preservados. Outros grupos de organismos marinhos apresentaram alterações semelhantes. Em 2004 e 2005, Camilo Seabra, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidade Santa Cecília (Unisanta), ambas em Santos, trouxe mexilhões (Perna perna) de um cultivo de Caraguatatuba, instalou-os em gaiolas na baía de Santos e, três meses depois, detectou sinais de contaminação

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1 Lixo se acumula em manguezal de São Vicente, no litoral paulista 2 Hemolinfa de caranguejo, corada para análise 3 Uçá com garra defeituosa coletado em Cubatão

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1 por metais, principalmente chumbo, zinco, mercúrio e cromo, este último acima do limite recomendável para consumo humano. Em outro estudo, ostras do gênero Crassostrea trazidas de um cultivo de Paranaguá, no Paraná, apresentaram mais alterações de DNA do que o normal depois de mantidas por um mês no estuário de Santos. Em um peixe consumido na região, o robalo (Centropomus parallelus), ele encontrou 10 vezes mais micronúcleos do que o verificado na mesma espécie em Cananeia. Talvez em parte por isso, de 10 robalos coletados na costa em uma região próxima a uma área residencial de São

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fotos  1 e 2 eduardo cesar 3 marcelo pinheiro/unesp

de seus trabalhos, que poderiam favorecer ações preventivas contra a eventual queda na produção ou na qualidade de peixes e outros organismos. Após longos debates, pesquisadores e representantes de órgãos públicos e de catadores de caranguejos estabeleceram limites para a exploração do caranguejo-uçá no país. Só podem ser coletados adultos com carapaça medindo mais de seis centímetros de largura. A captura de machos e fêmeas é proibida no início do período reprodutivo, de 1º de outubro a 30 de novembro, e a de fêmeas durante o mês de dezembro, quando desovam. As fêmeas com ovos são poupadas o ano todo. Uma das preocupações atuais é a possibilidade de exploração excessiva e consequente queda de produção ainda maior, já que se trata de uma espécie que demora 10 anos para atingir o tamanho máximo. Para evitar esse problema, uma proposta de plano nacional de exploração do caranguejo-uçá, do guaiamum (Cardisoma guanhumi), outra espécie de manguezal, e do siri-azul (Callinectes saVicente, um apresenpidus), divulgada em tava um tumor cutâ2011 pelo Ministério neo próximo a um dos do Meio Ambiente, olhos. Segundo PereiA poluição sem controle e de origem sugere uma série de ra, alterações como esincerta está modificando o equilíbrio medidas como o mosa são provavelmente nitoramento de pocausadas pelo despejo ecológico do manguezal luentes, a descontade esgoto residencial e minação de estuários industrial não devidae manguezais e a demente tratado. As agressões que causam essas moEstariam os caranguejos também mais finição de áreas de rodízio, para uma dificações nas células de caranguejos, frágeis? Pinheiro se fez esta pergunta em exploração mais racional e sustentável. ostras, mariscos e peixes também re- 2012, quando encontrou um crustáceo Se os pesquisadores, associações de profletem mudanças na estrutura das co- parasita (isópodo) de um centímetro de dutores, representantes de órgãos púmunidades dos seres vivos que habitam comprimento na cavidade branquial de blicos e consumidores conseguirem se o manguezal. A degradação ambiental um uçá coletado em São Vicente. No iní- organizar e implantar essas medidas, poderia favorecer o predomínio de al- cio de outubro, ao avaliar 15 exemplares talvez não falte caranguejo-uçá – sem guns grupos de espécies nos manguezais capturados em Cubatão, verificou que metais pesados – nos próximos anos. n poluídos e de outros nos manguezais 20% deles apresentavam sanguessugas, limpos. Michel Angeloni, da equipe da nesse caso bem menores, presas às brânUnesp, verificou que em manguezais da quias. Pinheiro acredita que a poluição Projeto Projeto Uçá III – Impacto genotóxico em populações do Jureia predominam as formigas do gêne- pode comprometer a resistência dos cacaranguejo-uçá, Ucides cordatus (Linnaeus, 1763) (Crusro Crematogaster, enquanto nos de São ranguejos à infestação por parasitas e tacea, Brachyura, Ucididae): avaliação e correlação com Vicente as mais encontradas são as lava- outros organismos. Além disso, enfermia concentração de metais pesados em cinco manguezais do estado de São Paulo (nº 2009/14725-1); Modalidade -pés, do gênero Solenopsis. A vegetação dades provocadas por microrganismos, Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável também parece se modificar. Enquanto como a doença letárgica do caranguejo, Marcelo Antonio Amaro Pinheiro (Unesp); Investimento caminha pelo manguezal de uma das causada por um fungo, têm levado, desde R$ 230.284,91 (FAPESP). ilhas de São Vicente, Pinheiro se agacha o início dos anos 1990, a perdas de até 80% e colhe um propágulo – um embrião – da produção em áreas como o Nordeste. Artigo científico sinuoso de Rhizophora mangle, árvore PINHEIRO, M. A .A. et al. Habitat monitoring and genoPor falta de tempo ou por não saberem toxicity in Ucides cordatus (Crustacea: Ucididae), as tools conhecida como mangue-vermelho, e quem procurar, os pesquisadores visito manage a mangrove reserve in southeastern Brazil. comenta: “Isso é atípico. A raiz deveria tam pouco os órgãos públicos de gestão Environmental Monitoring and Assessment. v. 185, n. ser retinha.” 10, p. 8273–85. 2013. ambiental para apresentar os resultados pESQUISA FAPESP 225  z  59


ASTRONOMIA y

Atmosfera conturbada Meteorologistas querem saber por que venta muito em Vênus e Titã

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dia custa a passar em Vênus. É que o planeta gira bem devagar. Quase do tamanho da Terra, Vênus leva 243 dias terrestres para dar uma volta em torno de si. Com rotação tão lenta, os meteorologistas esperavam que a atmosfera venusiana fosse uma das mais calmas do Sistema Solar. Mas as sondas enviadas ao planeta observaram uma ventania constante na alta atmosfera, onde os ventos atingem 400 quilômetros por hora (km/h). Ventos dessa intensidade só ocorrem na Terra durante furacões ou, esporadicamente, a altitudes elevadas. Em Vênus, eles sopram o tempo todo, em especial no equador. Para tentar resolver o mistério, o meteorologista João Rafael Dias Pinto, da Universidade de São Paulo (USP), e Jonathan Lloyd Mitchell, cientista planetário da Universidade da Califórnia em Los Angeles, criaram em computador um modelo simplificado de um planeta com atmosfera. Simulações usando esse modelo, publicado em agosto na revista Icarus, são as primeiras a descrever corretamente como se mantêm os ventos que varrem Vênus, fenômeno conhecido

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como super-rotação atmosférica, também observado em Titã, a maior lua de Saturno. “Identificamos novos e importantes mecanismos que ajudam a entender melhor esses ventos”, diz Mitchell. O segredo da super-rotação, segundo o novo modelo, está na forma como o calor se distribui na atmosfera de Vênus e Titã. Nesses corpos, por meio da circulação vertical, o calor se propaga mais lentamente para o alto e em direção aos polos do que na Terra. Além disso, um tipo especial de ondulação na atmosfera afeta as correntes de gases. Vênus e Titã são mundos tão diferentes entre si que até parece estranho suas atmosferas se comportarem de maneira parecida. A temperatura na superfície de Vênus chega a 477 graus Celsius, consequência do efeito estufa de sua atmosfera rica em gás carbônico. Em Titã, a temperatura é de 180 graus negativos e chuvas de metano alimentam lagos na sua superfície. Ao descer até o solo de Titã, porém, a sonda espacial Huygens descobriu em 2005 um perfil de ventos quase idêntico ao observado em Vênus pelas sondas soviéticas da série Venera nas décadas de 1970 e 1980. Fracos

O planeta Vênus, fotografado pela sonda europeia Venus Express: tamanho quase igual ao da Terra e ventos de 400 quilômetros por hora


Ao sabor dos ventos Na Terra e em Marte predomina um regime de correntes de ar mais ameno do que em Vênus e Titã

Superventos, criados por ondas atmosféricas no equador, varrem Titã e Vênus

TITÃ

Rajadas intensas surgem em faixas estreitas da atmosfera, impulsionadas pela rotação do planeta

Vênus

na superfície, os ventos no equador de Vênus e Titã chegam a 360 km/h a uma altitude superior a 50 quilômetros – os ventos a essa mesma altitude no equador da Terra não passam de 15 km/h.

fotos 1 ESA/MPS/DLR/IDA, M. Pérez-Ayúcar & C. Wilson 2, 3, 4 e 5 nasa  infográfico Marina oruÊ

além da rotação

Dias Pinto explica que na Terra as massas de ar que circundam o globo se movem impulsionadas pela diferença de temperatura entre o equador e os polos e arrastadas pela rotação do planeta. É por isso que os meteorologistas esperavam ventos mais fracos em planetas e satélites com rotação lenta. Os pesquisadores buscavam uma explicação para a super-rotação desde os anos 1970 e concluíram que, além da rotação mais lenta, é provável que um padrão específico de oscilações nos movimentos da atmosfera, as chamadas ondas atmosféricas, ajudem a criar um intenso jato de ar que se concentra no equador e cobre quase todo o corpo celeste. “É como se a atmosfera inteira se movesse em um único sentido”, conta Dias Pinto. “O problema é que a maioria dos modelos atmosféricos de Vênus e Titã, inclusive os mais realistas, tem dificuldade de reproduzir a super-rotação.”

terra

Ele resolveu estudar a super-rotação durante seu doutorado e, em uma conferência na França em 2011, conheceu Mitchell, um especialista em Titã e Vênus interessado em atacar o problema com um modelo mais simplificado. “Com um modelo mais idealizado, posso controlar melhor a dinâmica da atmosfera”, explica Dias Pinto. Ele trabalhou sob a orientação de Mitchell e dos brasileiros Rosmeri Porfírio da Rocha e Tércio Ambrizzi, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, e conseguiu simular a super-rotação usando um modelo atmosférico adotado para fazer previsão do tempo. Modificando alguns parâmetros desse modelo, Dias Pinto descobriu que não bastava diminuir a rotação do planeta para acelerar a rotação da atmosfera. “João demonstrou que o modelo só desenvolve super-rotação se transportar calor do equador para os polos mais lentamente”, explica Mitchell, notando que em Vênus e Titã, apesar dos ventos fortes, o ar circula bem devagar na vertical. Dias Pinto também identificou em suas simulações uma forma especial de onda planetária, que surge de oscilações no mo-

marte

vimento das correntes de ar no equador do planeta. “Essas ondas planetárias são as principais responsáveis por desenvolver e manter a super-rotação”, explica Mitchell. “Esses aspectos da super-rotação nunca haviam sido analisados em detalhe”, diz Sebastien Lebonnois, cientista planetário do Conselho Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) da França, que estuda a super-rotação de Vênus e Titã. “Para confirmar essa análise, precisaremos de observações do vento e da temperatura com uma resolução que é difícil de obter mesmo na Terra.” Apesar da dificuldade, ele espera obter evidências em dados da sonda Venus Express, que visita Vênus, ou da Cassini, que sobrevoa Titã. n Igor Zolnerkevic

Projeto Interação onda-escoamento médio e super-rotação atmosférica em planetas terrestres (nº 12/13202-8); Modalidade Bolsa de Doutorado – Estágio no Exterior; Pesquisador responsável Tercio Ambrizzi (IAG/USP); Bolsista João Rafael Dias Pinto; Investimento R$ 40.381,84 (FAPESP).

Artigo científico DIAS PINTO, J. R. e MITCHELL, J. L. Atmospheric superrotation in an idealized GCM: Parameter dependence of the eddy response. Icarus. v. 238. p.93-109. ago. 2014.

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tecnologia  engenharia aeronáutica y

Ilustração mostra uma futura aptidão do novo KC-390: reabastecer aviões militares em pleno voo

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Projeto global Embraer desenvolve novo avião militar com a FAB, parceiros no exterior e empresas no Brasil

Marcos de Oliveira e Evanildo da Silveira

embraer

C

apaz de transportar um helicóptero ou três jipes militares, 80 soldados ou 74 macas-padrão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), o avião cargueiro e de transporte militar KC-390 teve o primeiro protótipo apresentado publicamente em outubro pela Embraer na cidade de Galvão Peixoto, a 304 quilômetros da capital paulista, onde está situada a futura fábrica da aeronave. Eclético, ele também pode combater incêndios florestais, atuar em missões de ajuda humanitária, busca e resgate, lançar cargas e tropas de paraquedistas, além de ser reabastecido e reabastecer aviões e helicópteros militares em voo. Uma série de atividades que estarão ao alcance do maior avião fabricado no Brasil, embora considerado de porte médio entre aeronaves militares de carga e transporte do mundo. Com o K de tanker (tanque ou reabastecedor em inglês) e o C de cargo (carga), o

390 tem 35,20 metros (m) de comprimento e 35,05 m entre uma ponta e outra das asas, além de 11,84 m de altura. Ele ultrapassa o jato comercial para passageiros, o EMB 195, da mesma Embraer, que possui, entre as pontas das asas, 28,7 m, e 10,5 m de altura, mas é maior no comprimento, com 38,6 m. O novo avião da empresa vai substituir na Força Aérea Brasileira (FAB) os famosos Hercules C-130 fabricados pela Lockheed Martin norte-americana, projetados e lançados nos anos 1950 e presentes até hoje nas forças armadas de quase 100 países. Modernizado, ele ainda é fabricado na versão C-130J Super Hercules, todos com quatro motores turboélices, enquanto o KC-390 é equipado com duas turbinas a jato. As 22 aeronaves C-130 que estão em posse da Força Aérea já estão no final da vida útil. A ideia do novo avião foi elaborada entre a Embraer e a FAB, que necessita de uma aeronave de transporte militar pESQUISA FAPESP 225  z  63


Cargueiro militar Entre as missões que o KC-390 pode realizar estão as de transporte de tropas, veículos e ajuda humanitária Sistema de autoproteção Protege o avião com blindagem balística, faz a detecção de perigos como mísseis e propõe medidas de proteção

2

A

Embraer prevê um mercado de mais de 700 aviões neste segmento de transporabastecimento te militar, que abrange mais de 70 países Tubo que se conecta a outra aeronave nos próximos 15 anos. Até outubro estava prepara o KC-390 ser vista a venda de 32 aeronaves reabastecido a países que assinaram cartas de intenção de compra. São as forças aéreas da Argentina, com seis unidades; Chile, com seis; Colômbia, 12; Portugal, seis; e República Tcheca, duas. “PenO projeto samos a aeronave para que possa operar em qualquer cenário, foi feito em em todas as missões que os opeconjunto com radores precisarem e com flexibilidade. Usando tecnologia a FAB e teve para melhorar a eficiência da missão, diminuir a carga de traa participação balho da tripulação e, não menos importante, uma aeronave de indústrias fácil de ser mantida”, disse o portuguesas, engenheiro Paulo Gastão, diretor do programa do KC-390, no argentinas lançamento do primeiro protótipo em outubro. Atualmente, e tchecas mais de 1.500 empregados da Embraer estão diretamente envolvidos no projeto. “Em termos de robustez do projeto a gente para várias funções, ou ainda um carro blindado fala de uma aeronave concebida e desenvolvida como o LAV-25, pequeno veículo de combate, ou para operar a partir de pistas curtas, com baixa o Guarani, um blindado de transporte de pessoal. resistência e não pavimentadas, ou danificadas “O KC-390 é um projeto conjunto da Embraer em combate, com pouco espaço para manobra e com a FAB, tendo participação de indústrias de cobrindo todo o espectro da região amazônica defesa da Argentina, Portugal e República Tcheou das regiões quentes de deserto até a região ca. Essa aeronave estabelece novos padrões na antártica”, diz Gastão. O novo avião vai ainda sua categoria”, diz Jackson Schneider, presitransportar sete paletes-padrão completos de dente da Embraer Defesa e Segurança, empresa 108 polegadas (pol) por 88 pol e também carre- da Embraer responsável pelo desenvolvimento gar veículos como um helicóptero Black Hawk, e produção da aeronave. Nesses países, outras de médio porte, para transporte de tropas, bus- empresas também colaboraram no projeto e ca e resgate, e três Humvee, uma espécie de jipe produção de peças. Em Portugal, por exemplo, 64  z  novembro DE 2014

fly-by-wire Sistema computacional permite um melhor comando do piloto aproveitando ao máximo o avião sem afetar a segurança

ilustrações  maná e.d.i / abissal design – ARQUIVO/ESTADãO CONTEúDO/AE; e embraer (aviões menores)

média, capaz de ser reabastecida em voo e também de ser rapidamente configurada como avião reabastecedor. A Embraer fez um estudo de mercado inicial e o projeto KC-390 consolidou-se com a assinatura de um contrato em 2009 com a FAB para a construção de dois protótipos. Em maio de 2014, um contrato de R$ 7,2 bilhões foi fechado prevendo a compra de 28 aeronaves ao longo de um período de 12 anos, com a primeira entrega programada para o fim de 2016. Além das aeronaves, o contrato prevê o fornecimento de um pacote de suporte logístico, que inclui peças sobressalentes, treinamento e manutenção. A Força Aérea Brasileira, que custeia integralmente o desenvolvimento do KC-390, tem a propriedade intelectual do projeto e receberá royalties sobre as aeronaves exportadas.


camuflagem

carregamento

Definida pela Força Aérea, a pintura pode proteger o avião em solo em ambientes hostis

Há espaço para um helicóptero, três jipes militares ou veículos de combate ou de transporte, além de até sete paletes

compartimento de carga A área principal tem 18,6 metros (m) de comprimento, 3,45 m de largura e varia entre 2,74 m e 3,20 de altura

medidas 11,84 m

35,05 m

a Empresa de Engenharia Aeronáutica (EEA), uma companhia controlada pelo Estado, foi responsável pelo projeto e cálculo de resistência estrutural das carenagens laterais que protegem os trens de pouso e outros sistemas da fuselagem, chamados de sponsons, e dos profundores do avião, que são os lemes de profundidade. Outra empresa portuguesa é a OGMA, companhia com capital majoritário da Embraer, responsável pela produção dos painéis estruturais da seção central da fuselagem. No caso da Argentina, a empresa participante é a Fábrica Argentina de Aviões (Fadea), que também participou do desenvolvimen-

35,20 m

to e produz várias partes do avião. Da República Tcheca, a parceira é a empresa Aero Vodochody, responsável pela industrialização e produção de todas as portas da cabine, rampa de carga e última seção da fuselagem traseira. Os motores são produzidos pela empresa International Aero Engines (IAE), controlada pela Pratt & Witney, dos Estados Unidos, que inclui partes fabricadas do Reino Unido, Alemanha e Japão. No âmbito internacional também existe um acordo entre a Embraer e a Boeing que prevê o compartilhamento do conhecimento técnico em áreas que a empresa norte-americana tem pESQUISA FAPESP 225  z  65


1 e 2 Primeiro protótipo apresentado em Gavião Peixoto, ao lado da futura fábrica 3 Ilustração do KC-390 no combate a incêndios florestais

1

grande experiência. Outra faceta desse acordo é comercial, em que as duas farão uma avaliação conjunta do mercado, o que poderá resultar em sinergias comerciais importantes para explorar oportunidades em diferentes regiões do mundo, principalmente na Ásia. No Brasil, grandes conjuntos e partes estruturais do KC-390 são fabricados nas unidades da Embraer em São José dos Campos e Botucatu, no interior de São Paulo. Todas as peças e partes do avião são reunidas em Gavião Peixoto, onde estão as operações de junção, montagem, complementação e equipagem estrutural, além da montagem final da aeronave.

D

entre as empresas brasileiras que estão no projeto, a LH Colus, instalada no Parque Tecnológico da Universidade do Vale do Paraíba (Univap), em São José dos Campos, desenvolveu os assentos de tropas e macas da aeronave, tendo empregado durante o projeto tecnologia em modelos computacionais e testes. Os trens de pouso foram desenvolvidos e tiveram uma patente elaborada pela Eleb, empresa também controlada pela Embraer e também situada em São José dos Campos. Outros destaques entre as tecnologias brasileiras incorporadas ao KC-390 são a blindagem balística, produzida pela Aerotron, de Itajubá, Minas Gerais, e o duplo head-up display (HUD), produzido pela AEL, de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. O HUD é formado por duas telas no para-brisa na frente do piloto que mostra as principais informações do avião e do voo sem que o piloto precise mover a cabeça para olhar os instrumentos. A própria Embraer desenvolveu conteúdo tecnológico no projeto, em particular os softwares dos sistemas de missão, lançamento de carga e comandos de voo, o fly-by-wire. Esse sistema

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é responsável por transmitir os comandos dos pilotos à aeronave, permitindo o voo conforme definido pela tripulação. Os sistemas de comando convencionais utilizam cabos metálicos que ligam os controles como, por exemplo, o manche às superfícies aerodinâmicas responsáveis pelos movimentos da aeronave, nos casos de descida, subida, curvas etc. No sistema fly-by-wire os comandos dos pilotos são levados por meio de fios a computadores que definem qual movimento a aeronave deve fazer, levando em conta todos os parâmetros de voo relevantes. Outros fios transmitem então o comando dos computadores às superfícies aerodinâmicas, permitindo o voo. “O sistema fly-by-wire é capaz de garantir que a tripulação não exceda os limites da aeronave, podendo tirar o máximo que o avião pode oferecer sem afetar a segurança. Um software totalmente integrado e desenvolvido pela Embraer

2

4 Cabine tem ampla visibilidade e displays para visão noturna


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fotos  embraer

4

comanda esse sistema, utilizando os manches laterais ativos e não centrais como de hábito. É a primeira vez que nós empregamos esse tipo de manche numa aeronave com vantagens do ponto de vista da coordenação de cabine e do controle otimizado do avião”, diz Gastão. Com velocidade máxima de 870 quilômetros por hora e voando a até 11 mil metros de altitude, alcançando mais de 6 mil quilômetros de distância, mais que suficiente para ir de São Paulo a Manaus e voltar sem reabastecer, o KC-390 pode carregar 26 toneladas de carga, e os pilotos podem navegar com óculos de visão noturna que permitem a operação da aeronave no escuro, sem o uso de luzes visíveis, para minimizar a probabilidade de detecção do próprio avião em ambiente hostil. Tudo isso é controlado por sofisticados equipamentos aviônicos, que funcionam de interface entre a aeronave e os pilotos, permitindo aumento da capacidade operacional. As inovações são significativas, como o sidestick, um manche de comando ativo. Quando a posição

de um dos manches é alterada, o outro manche repete o movimento automaticamente. O piso de carga representa também uma configuração inovadora em aeronaves de transporte, sendo capaz de acomodar vários tipos de carga. O KC390 incorpora inclusive uma toalete similar às utilizadas em aeronaves comerciais, o que não existe em outras similares. Aviões militares modernos têm sistemas de autoproteção com o objetivo de melhorar a capacidade de sobrevivência da aeronave em situações de perigo. “No KC-390, fizemos um sistema completo, não só de autoproteção, mas com vários aspectos voltados à operação em ambientes hostis, como blindagens balísticas, estrutura tolerante ao dano, sistema de inertização dos tanques de combustível para evitar explosões em caso de impactos”, diz Gastão. “Nós estamos dando os últimos retoques no avião. Passaremos por uma campanha de vibração no solo, que é um ensaio padrão que a gente faz antes de liberar qualquer avião para voo.” Depois da inspeção da autoridade certificadora, no caso a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), o protótipo estará pronto para realizar o primeiro voo até o final deste ano. A campanha de ensaios de desenvolvimento e certificação se estenderá por cerca de dois anos, com dois protótipos de voo, além de várias bancadas de testes em solo. A maior parte dos ensaios será realizada no Brasil, mas alguns específicos requerem o deslocamento a outras regiões com gelo e neve, condições que os KC-390 da FAB devem enfrentar na Antártida. Quanto ao preço, a Embraer informou que o valor de qualquer aeronave de defesa varia de acordo com a configuração exigida para atender aos requisitos de cada cliente, por isso não há preço de lista para esse tipo de avião. n pESQUISA FAPESP 225  z  67


Porto de Tubarão, em Vitória (ES): sistema organiza a sequência da atracação de navios

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logística y

Navios sob controle Integração de etapas reduz custos e impacto ambiental na descarga de carvão mineral no porto de Tubarão Dinorah Ereno

agência vale

U

m sistema computacional para facilitar as operações e o desembarque de carvão mineral no porto de Tubarão em Vitória, no Espírito Santo, onde a empresa Vale concentra o recebimento desse material destinado ao funcionamento das siderúrgicas, foi desenvolvido por um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Entre as vantagens desse sistema de logística integrada está a diminuição do tempo de descarga dos navios, com consequente redução do período em que os descarregadores são utilizados para a tarefa, do custo de energia e do impacto ambiental da operação”, diz o professor Luiz Leduíno de Salles Neto, diretor do Instituto de Ciência e Tecnologia da Unifesp em São José dos Campos, no interior paulista, e coordenador do projeto financiado pela Vale e pela FAPESP no âmbito do Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite). O projeto faz parte de um edital lançado em 2010 pela empresa em parceria com as fundações de amparo à pesquisa dos estados de São Paulo, de Minas Gerais e do Pará, para o financiamento de estudos no valor total de R$ 120 milhões. “O sistema que desenvolvemos é integrado porque organiza desde a sequência dos navios que irão atracar, em qual berço cada um deles ficará [ponto de atracação], qual a ordem de entrada, quais máquinas descarregadoras serão

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alocadas para cada navio, o posicionamento desses equipamentos e ainda em quais esteiras o carvão será depositado para ser levado aos pátios de armazenamento do produto”, relata Salles Neto. O primeiro passo, antes de chegar ao software, foi o desenvolvimento de um modelo que traduz, de forma matemática, o problema real. “Essa foi uma das grandes contribuições do projeto”, diz Salles Neto, doutorado em matemática aplicada pela Unicamp. A partir do modelo matemático, foram usados algoritmos para encontrar a melhor solução. “Basta colocar no software informações como qual o tipo de navio, de carga e o horário de chegada da embarcação para que o nosso sistema encontre a melhor solução em relação ao custo de operação, redução do tempo, energia e impacto ambiental.” Patente do sistema

A importância de uma logística integrada para o porto de Tubarão é estratégica. “Cerca de 70% do carvão mineral que abastece as siderúrgicas brasileiras entra por esse terminal e de lá é distribuído por ferrovia ou rodovia”, ressalta.

1 Praia Mole, em Vitória: terminal que recebe o carvão 2 Sistema prevê o melhor lugar para estocagem 3 Logística abrange esteiras e descarregadores

Como no Brasil não existem reservas desse combustível fóssil, o segundo mais utilizado na matriz energética mundial, o Brasil importa o minério da China e dos Estados Unidos, principais países exportadores. Em junho deste ano, a Vale, a Unifesp e a Unicamp depositaram patente em conjunto para proteção do sistema. A Universidade de Campinas entrou como parceira porque na época em que o projeto foi submetido para aprovação o campus de São José dos Campos da Unifesp não tinha programa de pós-graduação. “Antes de iniciar o processo de pesquisa, foram feitas reuniões com o professor para que fosse desenvolvido um projeto que pudesse melhor contribuir com as demandas da empresa”, diz Edgar Sepúlveda, analista de desenvolvimento tecnológico da diretoria de tecnologia e inovação do Instituto Tecnológico Vale (ITV). No decorrer do processo, o professor Salles Neto foi a campo para conhecer a logística do funcionamento do terminal. Lá conheceu a equipe do engenheiro Lourenço Torres, da diretoria de operações do porto de Tubarão e responsável pelo projeto na Vale. O planejamento para o desembarque de carvão mineral no porto de Tubarão é realizado conforme a previsão de chegada dos navios por meio de um acordo entre a área comercial e os clientes. É necessário também definir a melhor alocação dos equipamentos. “O sistema

1

desenvolvido pelo grupo de Salles Neto agrega ganho ao software existente ao otimizar o processo com a possibilidade de escolha de rotas”, diz Sepúlveda. “Ele reduz o trabalho e o tempo despendido pelos programadores, porque apenas com os dados de entrada o software executa todo o processo.” A sua aplicação no porto de Tubarão, no entanto, ainda não tem data prevista. “Estudos estão sendo feitos pela área de tecnologia da informação para avaliar de que maneira os dois sistemas, o antigo e o novo, irão se comunicar”, completa Sepúlveda.

2

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3

O software de logística integrada pode ser usado em outros terminais ou portos do Brasil que operem com navios graneleiros, nome dado a embarcações que transportam mercadoria a granel na forma sólida ou líquida. Originalmente, o projeto previa a entrega de um protótipo de software. Como as pesquisas avançaram, a equipe de Salles Neto, em colaboração com o professor Aníbal Azevedo, do campus de Limeira da Unicamp, está trabalhando em um novo produto, que é a integração do primeiro software à organização dos produtos no pátio, onde eles ficam armazenados até seguirem para as siderúrgicas.

fotos  agência vale

Melhor Lugar

“A organização dos pátios é uma demanda da Vale”, diz o professor. Ou seja, depois que o carvão é descarregado do navio, ele segue por esteiras até os pátios de armazenamento, onde fica até seguir a ordem de transporte para as siderúrgicas por trem ou caminhão. “Atualmente a decisão de onde o carvão ficará alocado no pátio é feita manualmente”, explica. Por isso o novo programa em desenvolvimento prevê o melhor lugar possível para abrigá-lo de forma a gastar menos energia na operação. “Quanto melhor a localização do mineral, haverá menos gasto para realocá-lo e o produto poderá sair mais rapidamente para o seu destino final.” O projeto está em fase de conclusão e deverá ser incorporado ao sistema de otimização do porto.

Estudos são necessários para a crescente movimentação de cargas nos portos brasileiros que se desenha no horizonte

O desenvolvimento do projeto pelo grupo de Salles Neto abriu uma nova perspectiva de parceria para a Vale. “Estávamos acostumados a trabalhar com alguns grupos específicos e essa colaboração abriu o leque para um novo grupo de pesquisa, altamente capacitado”, diz Sepúlveda. “A parceria abriu novos horizontes, porque no trabalho de rotina acabamos executando as tarefas sem ter tempo para observar alguns gargalos”, diz Lourenço. Paralelamente ao projeto em parceria com a Vale, a equipe de Salles Neto está trabalhando no desenvolvimento de sistemas de logística integrada para navios que transportam contêineres. Esses estudos são necessários para o horizonte que se desenha de crescente movimentação de cargas nos portos brasileiros. No Brasil, segundo Salles Neto, o setor portuário é responsável por 95% do volume do comércio exterior. Se mantidas as taxas de crescimento de 5% dos últimos anos, os portos brasileiros terão que aumentar a sua capacidade de aten-

dimento de 650 milhões de toneladas por ano, em 2012, para 900 milhões em 2017. Esse acréscimo de 40% – da ordem de 32 milhões de toneladas por ano – equivale a um porto de Santos a cada três anos. Para efeito de comparação dos investimentos mundiais em infraestrutura portuária, em 2013 foi inaugurado na China um terminal capaz de movimentar 30 milhões de contêineres por ano, equivalente a mais de 10 vezes o que o porto de Santos, por exemplo, conseguiu movimentar em 2010 – 2,8 milhões de toneladas. “A otimização das operações portuárias no Brasil tem importância estratégica para a economia”, diz Salles Neto. n

Projeto Otimização dos custos de carregamento e de transporte de cargas por navios: aspectos teóricos e computacionais (nº 2010/51274-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Programa Parceria para Inovação Tecnológica (Pite); Pesquisador responsável Luiz Leduíno de Salles Neto (Unifesp); Investimento R$ 75.600,00 (FAPESP) e­ R$ 93.000,00 (Vale).

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CIÊNCIA DA COMPUTAÇÃO y

Avalanche de dados O avanço da eScience impacta o modo tradicional de fazer ciência Yuri Vasconcelos

ilustrações  Pedro Franz

F

oi-se o tempo em que o problema dos cientistas era a dificuldade em obter dados para dar andamento às suas pesquisas. Em muitas áreas do conhecimento, os recentes avanços na área da tecnologia da informação, com a democratização da informática, a ampliação de redes computacionais e a multiplicação das fontes de informação, tiveram como efeito direto uma produção intensiva de dados. Isso ocorre em campos tão distintos quanto a astronomia, inundada diariamente por milhares de imagens e informações de corpos celestes captados por potentes telescópios, a biologia molecular, beneficiada pelo surgimento de máquinas de sequenciamento genético de alto desempenho, e a ecologia, favorecida por uma série de tecnologias e sensores capazes de documentar com precisão as transformações pelas quais passam os diferentes biomas. Tudo isso leva os pesquisadores a se depararem com um novo problema: como fazer para processar, elaborar e visualizar a avalanche de dados adquiridos pelos mais diversos meios. Para dar uma resposta a esse dilema, um novo ramo da ciência tem ganhado cada vez mais importância, a eScience, que recorre a modelos matemáticos e ferramentas computacionais para analisar informações e acelerar a pesquisa em outros domínios do conhecimento. “A ideia de conectar a prática científica tradicional com o acesso, o uso e o processamento de grandes quantidades de dados vai modificar a maneira como fazemos ciência e aumentar sua potencialidade. A FAPESP está na vanguarda desse processo e, no final do ano passado, lançou o Programa eScience”, disse Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da Fundação, durante o Microsoft eScience Workshop pESQUISA FAPESP 225  z  73


2014, realizado entre os dias 20 e 22 de outubro no Guarujá, no litoral paulista. O objetivo do programa é organizar ou integrar grupos envolvidos na pesquisa sobre algoritmos, modelagem computacional e infraestrutura de dados com equipes de cientistas que atuam em outras áreas do conhecimento, como biologia, ciências sociais, medicina e humanidades. Desafio mundial

“Uma das principais barreiras que vamos enfrentar talvez seja a dificuldade de comunicação entre os cientistas das equipes necessárias para fazer ciência dessa maneira, fortemente baseada em dados ou em grandes quantidades de dados. Isso requer uma comunicação muito efetiva entre pesquisadores da área de ciência da computação e cientistas de outros domínios. É um desafio no Brasil e em qualquer lugar”, disse Brito. O diretor científico da FAPESP foi um dos conferencistas da mesa-redonda “A importância estratégica da eScience”, que também contou com a presença dos cientistas Jason Rhody, diretor sênior do Office of Digital Humanities da National Endowment for the Humanities, e Chris Mentzel, diretor da

Gordon and Betty Moore Foundation, duas organizações norte-americanas que mantêm programas de apoio à ciência. “Atualmente, todos os campos da pesquisa são afetados pela escala moderna de produção de dados”, disse Mentzel, destacando a importância dos chamados data scientists – ou cientistas de dados –, denominação dada aos profissionais que se debruçam sobre o grande volume de dados gerados pelas pesquisas para, a partir dele, produzir novos conhecimentos. “Eles são pesquisadores que trabalham entre as disciplinas. São fazedores de pontes”, disse. Na Gordon and Betty Moore Foundation, Mentzel está à frente de um programa com orçamento de US$ 60 milhões voltado a incentivar iniciativas na área de eScience. Para Rhody, os cientistas estão encarando uma mudança de paradigma. “Estamos passando de uma cultura de escassez para uma cultura de abundância de dados.” Cunhado em 1999 pelo diretor do Gabinete de Ciência e Tecnologia do Reino Unido, John Taylor, o termo eScience recebe outras denominações, como ciência orientada por dados (data-driven science) e computação fortemente orientada

Conectar as aplicações da ciência da computação à fenologia, que estuda os fenômenos cíclicos das plantas

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por dados (data-intensive computing). Alguns países, como Estados Unidos e Inglaterra, já têm programas apoiados pelo governo voltados ao desenvolvimento dessa nova área científica. Aqui no Brasil vale destacar o Núcleo de Pesquisa em eScience da Universidade de São Paulo (USP), institucionalizado em 2012. Coordenado pelo professor Roberto Marcondes Cesar Junior, do Instituto de Matemática e Estatística (IME) e um dos coordenadores adjuntos da área de ciências exatas e engenharias da Diretoria Científica da FAPESP, o núcleo é integrado por 20 pesquisadores. O Microsoft eScience Workshop 2014 foi realizado em paralelo à 10ª Conferência Internacional IEEE em eScience, organizada pela Computer Society do Institute of Electrical and Electronics Engineers (IEEE), entidade criada nos Estados Unidos por engenheiros eletricistas e eletrônicos. Durante o evento, foi promovido um painel com pesquisadores contemplados com bolsas do Instituto Virtual de Pesquisas FAPESP-Microsoft Research, que conectam as aplicações da ciência da computação aos desafios da ciência básica em áreas relacionadas às mudanças climáticas e outras disciplinas associadas ao ambiente. Um dos trabalhos apresentados explora soluções inovadoras para o monitoramento de plantas nos trópicos, combinando pesquisa em ciência da computação e fenologia. Um dos ramos mais antigos da ciênca, a fenologia é uma área da ecologia que se debruça sobre os fenômenos cíclicos de plantas, como o aparecimento de folhas, botões, flores e frutos, e sua relação com as condições ambientais.


Coordenado pela professora Leonor Patricia Morellato, do Laboratório de Fenologia do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Rio Claro (SP), o projeto prevê a combinação de tecnologias para monitorar as alterações sofridas ao longo do tempo por vegetações nativas de cerrado, de floresta atlântica, campos rupestres e até caatinga. A área central da pesquisa é em Itirapina, no interior de São Paulo. “Além da observação direta das plantas no solo, instalamos uma câmera no topo de uma torre a 18 metros do solo para fotografar diariamente a vegetação e uma estação meteorológica. Também vamos contar com um veículo aéreo não tripulado (vant) equipado com um sensor hiperespectral e uma câmera para adicionar uma escala espacial à coleta de dados”, diz a pesquisadora. Com elevada resolução espacial, os sensores hiperespectrais podem fornecer detalhes sobre as características físico-químicas e respostas fisiológicas das plantas imageadas. Para Patricia, a fenologia é uma das melhores ferramentas para entender os efeitos das mudanças climáticas nas plantas. “Isso já está estabelecido em regiões temperadas, onde o gatilho da fenologia é a temperatura ambiental e a duração do dia. Mas pouco sabemos sobre o que ocorre nas vegetações tropicais. Com os dados das câmeras e do sensor hiperespectral, queremos definir quais são os gatilhos da fenologia nos trópicos, ou seja, o que faz com que surjam, em determinados momentos, flores, frutos e folhas nas plantas”, diz ela. Analisar imagens

De acordo com Patricia, sem o auxílio de pesquisadores e recursos da ciência da computação seria impossível realizar a pesquisa. “O volume de dados que vamos coletar é gigantesco. Apenas uma câmera digital registra 60 fotos por dia. Temos 11 câmeras monitorando seis tipos de vegetação e precisamos observar a evolução durante, pelo menos, uma estação de crescimento para depois relacionar com o clima. Depois, é preciso processar e analisar todos as imagens, o que seria impossível fazer com uma planilha eletrônica simples. É preciso apoio para trabalhar com esse big data. Para isso uma mestranda criou um banco de dados especialmente para o projeto e um

Sensores sem fio instalados em florestas geram muitos dados sobre processos naturais pós-doc trabalhou em um software para visualização e organização das imagens.” A pesquisa da professora da Unesp conta com a colaboração do cientista Ricardo Silva Torres, diretor do Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), também contemplado com um projeto no âmbito do acordo FAPESP-Microsoft Research. Ele está à frente de um estudo cujo objetivo é desenvolver novas técnicas analíticas e ferramentas computacionais para o processamento de imagens de sensoriamento remoto a fim de analisar a dinâmica de alguns biomas em escalas regionais e continentais. O foco do trabalho, feito em parceria com a professora Marina Hirota, do Departamento de Física da Universidade de Santa Catarina (UFSC), são os biomas tropicais sul-americanos. Outro trabalho apresentado no evento do Guarujá é liderado pelo ecólogo da Unicamp Rafael Silva Oliveira, que trabalha em parceria com os pesquisadores Antonio Alfredo Ferreira Loureiro, do Departamento de Ciência da Computação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e Stephen Burgess, da University of Western Australia. “Nosso estudo tem como meta investigar a dinâmica de água e carbono em florestas nebulares, pastagens e na área de transição entre elas”, diz Oliveira. Florestas nebulares são encontradas no alto das mon-

tanhas tropicais. “Queremos entender como processos-chave, como absorção e estoque de carbono, transpiração das árvores e captação de água da neblina pela vegetação, são afetados por mudanças no uso da terra e por variações do clima.” Os estudos de campo ocorrem em uma região de floresta na serra da Mantiqueira, na região de Campos do Jordão, no interior paulista. Segundo Oliveira, está sendo implementada no lugar uma rede de sensores sem fio para monitorar, em três camadas do ecossistema (atmosfera, vegetação e solo), parâmetros microclimáticos de metabolismo da vegetação e de dinâmica da água no solo. “Esses dados poderão melhorar a predição dos impactos ambientais gerados por mudanças no uso da terra e, ao mesmo tempo, possibilitarão o desenvolvimento de modelos hidrológicos e de circulação biosfera-atmosfera com melhor capacidade preditiva”, explica Oliveira. n

Projetos 1. Towards an understanding of tipping points within tropical South American biomes (2013/50169-1); Modalidade Programa Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite) e Acordo FAPESP-Microsoft; Pesquisador responsável Ricardo da Silva Torres (Unicamp); Investimento R$ 384.838,38 (FAPESP). 2. Combining new technologies to monitor phenology from leaves to ecosystems (2013/50155-0); Modalidade Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais – Programa Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite) e Acordo FAPESP-Microsoft; Pesquisadora responsável Leonor Patrícia Cerdeira Morellato (Unesp); Investimento R$ 1.115.752,48 e US$ 535.902,72 (FAPESP). 3. Interações entre solo-vegetação-atmosfera em uma paisagem tropical em transformação (2011/52072-0); Modalidade Programa Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite) e Acordo FAPESP-Microsoft; Pesquisador responsável Rafael Silva Oliveira (Unicamp); Investimento R$ 644.800,74 e US$ 663.429,82 (FAPESP).

pESQUISA FAPESP 225  z  75


humanidades   ciência Políticay

Renovação à brasileira Nas últimas décadas, os ruralistas perderam espaço, os pastores ganharam terreno e as classes populares obtiveram mais assentos na Câmara dos Deputados

O

s políticos brasileiros costumam ser representados por alguns estereótipos: o “coronel” de direita, em geral um grande proprietário de terra oriundo do Nordeste, símbolo do poder rural; o sindicalista de esquerda do Sudeste, líder popular de origem humilde, que organiza greves e protestos; ou ainda por tipos como o empresário urbano bem-sucedido, o funcionário público ou o intelectual humanista da academia. Uma análise feita pelo Observatório de Elites Políticas e Sociais do Brasil (http:// observatory-elites.org/) da Universidade Federal do Paraná (UFPR) sobre a origem geográfica e o perfil ocupacional, etário e ideológico de todos os deputados federais eleitos entre 1945 e 2010 indica que, além dessas figuras tradicionalmente associadas à atividade política, indivíduos com outras características passaram a ocupar uma parcela significativa, ainda que não majoritária, dos assentos da Câmara dos Deputados depois do fim do regime militar.

76  z  novembro DE 2014

A partir da eleição de 2002, com o aumento do tamanho das bancadas de esquerda, houve uma popularização dos políticos no Brasil e uma parcela dos parlamentares oriundos das camadas mais altas da sociedade foi substituída por indivíduos da baixa classe média, apontam alguns estudos. Trabalhadores braçais, funcionários públicos e profissionais liberais, boa parte deles associados a uma postura de centro ou esquerda, garantiram mais cadeiras no Legislativo federal. “Na direita, a figura dos pastores evangélicos do Sudeste e comunicadores tomou em parte o lugar dos antigos proprietários de terras do Nordeste. Também houve um aumento dos representantes do empresariado urbano”, diz o cientista político Adriano Codato, coordenador do observatório, projeto financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e autor principal do estudo sobre o perfil dos deputados federais nas últimas seis décadas. O trabalho ainda detectou uma elevação na idade dos políticos que garantiram uma cadeira na Câmara nas eleições mais

ilustrações  zé vicente

Marcos Pivetta


pESQUISA FAPESP 225  z  77


A profissão dos deputados Evolução das ocupações que os parlamentares exerciam antes de assumirem seus mandatos 50%

n  trabalhador manual n  funcionário público

40%

n  pastores e padres n  advogado

30%

n  agricultor 20%

n  empresário n  profissional liberal

10%

n  comunicador

0%

democratização

ditadura militar

redemocratização

1945 - 1962

1966 - 1978

1982 - 2010

Representantes mais velhos No pleito de 2010, 35% dos deputados eleitos tinham entre 51 e 60 anos e 20% mais de 60 anos 45%

n  até 30 anos

40% 35%

n  de 31 a 40 anos

30%

n  de 41 a 50 anos

25%

n  de 51 a 60 anos

20%

n  acima de 60 anos

15% 10% 5% 0% 1946

1950

1954

1958

1962

1966

1970

1974

recentes e um avanço de parlamentares da direita no Sudeste e da esquerda no Nordeste, invertendo em certa medida a geografia político-ideológica que dominava o território nacional. Codato e outros dois cientistas políticos do observatório, Luiz Domingos Costa e Emerson Cervi, analisaram o perfil de 7.261 deputados federais eleitos em 18 pleitos. Os 65 anos de eleições para o Legislativo federal foram divididos em três períodos, assim denominados pelos pesquisadores: democracia populista (1945-1962), ditadura militar (1966-1978) e democracia liberal (1982-2010). Foram contabilizados dados de 1.675 parlamentares do primeiro período, 1.520 do segundo e 4.066 do terceiro. O regime autoritário no Brasil manteve as eleições para a Câmara dos Deputados, embora tenha permitido a existência de apenas dois partidos, a governista e de direita Aliança Renovadora Nacional (Arena) e o oposicionista Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que unia representantes do centro e da esquerda. Em seus trabalhos, os pesquisadores da UFPR usaram dados disponibilizados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e pelo Cpdoc da Fundação 78  z  novembro DE 2014

1978

1982

1986

1990

1994

1998

2002

2006

2010

Getulio Vargas (FGV). Também se valeram de um banco de dados sobre os deputados federais organizado pelo cientista político André Marenco, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Cada parlamentar foi separado de acordo com a idade no momento em que foi eleito, a profissão que exercia antes de se tornar político e o estado que representava no Parlamento. Os políticos foram ainda associados a um campo ideológico (direita, centro ou esquerda) em função das características de seu partido. No atual período democrático, um deputado eleito pelo Partido dos Trabalhadores (PT) é, por exemplo, contabilizado na bancada da esquerda e um do Democratas (DEM), na da direita. As ocupações profissionais dos deputados foram divididas em oito categorias: trabalhador manual, funcionário público, pastor e padre, advogado, ruralista, empresário urbano, profissional liberal (médico, engenheiro, jornalista etc.) e comunicador. “Uma especificidade da elite política brasileira é que as mudanças no perfil de suas profissões são muito lentas e não lineares ao longo do tempo”, diz Domingos Costa. “Por

Fonte Observatório de Elites Políticas e Sociais do Brasil


exemplo, pode ocorrer uma queda no número de empresários eleitos num pleito, mas que é estancada em outro. O caso mais representativo desse zigue-zague é o dos funcionários públicos.” No período anterior à ditadura, os funcionários públicos contabilizavam 18% dos deputados. Caíram para 9% durante o regime autoritário e voltaram a subir para 13% nos anos de democracia. A queda dos advogados

Os pleitos nos anos de democracia marcaram o declínio da supremacia dos advogados entre os parlamentares eleitos, que formavam uma maioria silenciosa na Câmara dos Deputados tanto na bancada da direita como na do centro-esquerda. Entre 1945 e o fim da ditadura, nenhuma outra categoria profissional elegeu tantos deputados quanto os bacharéis de direito. Nem todo mundo se lembra, mas o deputado Ulysses Guimarães, ex-presidente do MDB e mais tarde do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), havia estudado direito na Faculdade de Direito do Largo São Francisco da USP, em São Paulo. Durante as eleições realizadas sob o regime autoritário, mais de 47% dos parlamentares eram advogados. Nos pleitos realizados no período de redemocratização, os deputados bacharéis em direito reduziram-se a pouco mais de 21% do total e foram ultrapassados pela categoria dos profissionais liberais, que engloba várias ocupações. Nas últimas décadas, alterações substanciais na sociedade brasileira — a urbanização generalizada, o avanço das religiões pentecostais, a estabilidade da economia e o fortalecimento dos partidos de esquerda, em especial do Partido dos Trabalhadores (PT) — têm provocado transformações paulatinas na composição da Câmara dos Deputados. Aparentemente, a mudança de perfil dos deputados eleitos deveria se dar em um ritmo acelerado, visto que historicamente pouco mais da metade dos parlamentares consegue se

reeleger para um segundo mandato consecutivo. Os nomes mudam com frequência, mas o perfil dos eleitos se altera vagarosamente. “É notável que tenhamos uma Câmara dos Deputados com tanta renovação eleiNo período toral e um sistema partidário com democrático tantos partidos, mas que apresente tamanha estabilidade do ponto de pós-ditadura vista sócio-ocupacional”, diz Codato. “Isso parece indicar, antes de qualmilitar, mais de quer coisa, que as estruturas sociais, como o mercado de ensino superior 5% dos deputados e acesso às ocupações mais prestifederais são giadas, são ainda suficientemente desiguais a ponto de dificultar um animadores de arejamento mais substantivo da roupagem social dos representantes”, programas de afirma Domingos Costa. Ainda assim, algumas tendências se manifesrádio e TV tam de forma mais ou menos clara. Parece ser esse o caso de duas categorias profissionais — a dos padres e, sobretudo, pastores evangélicos, e a dos chamados comunicadores — que, a despeito de não contarem com um número elevado de parlamentares, têm mandado cada vez mais representantes para a Câmara dos Deputados. Políticos com esses dois perfis ocupacionais são, segundo o estudo do Observatório de elites políticas e Sociais do Brasil, associados geralmente ao campo ideológico da direita e podem ser alvo frequente de notícias na mídia. O pastor da Assembleia de Deus Marco Feliciano, do Partido Social Cristão (PSC) de São Paulo, e o apresentador de TV Celso Russomano, do Partido Republicano Brasileiro (PRB), ambos eleitos no pleito de outubro deste ano, são dois exemplos de membros dessas novas ocupações com assento no Parlamento em Brasília. A quantidade de representantes dessas pro­ fissões praticamente dobrou desde 1964. Os pa-

O tamanho das bancadas Deputados de partidos de direita, centro e esquerda. Na ditadura, o MDB agrupava toda a oposição 80%

n  direita

70%

n  centro

60%

n  esquerda

50%

n  MDB

40% 30% 20% 10% 0 1940

1945

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1986

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1994

1998

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Fonte Observatório de Elites Políticas e Sociais do Brasil

pESQUISA FAPESP 225  z  79


dres-pastores, que representavam 0,7% dos deputados eleitos durante o regime militar, respondem por quase 2% dos parlamentares que obtiveram mandatos durante o atual regime democrático. Os animadores de programas de rádio ou televisão vivem uma ascensão semelhante, mas que vem ocorrendo há mais tempo e de forma mais expressiva. Antes da ditadura, respondiam por 1,6% dos eleitos, passaram a 3,4% no regime autoritário e chegaram a 5,3% dos deputados no período democrático. De acordo com os dados dos pesquisadores do observatório, há um envelhecimento da classe dos deputados federais. No pleito de 2010, 34% dos parlamentares tinham entre 51 a 60 anos e 20% haviam passado dos 60 anos, os maiores índices já registrados nessas duas faixas etárias desde 1945. Nessa mesma eleição, os deputados com idade entre 31 e 40 anos, que historicamente representavam por volta de 40% dos parlamentares da Câmara, somavam apenas 28% do total, o menor índice desde o pleito de 1945. Em termos ideológicos, as mudanças mais significativas englobam os representantes das bancadas do Nordeste e do Sudeste. Durante a ditadura, cerca de 80% dos deputados nordestinos eram da governista Arena. Em 1990, já no período democrático, os parlamentares federais de partidos

80  z  novembro DE 2014

de direita respondiam ainda por 60% dos eleitos pela região. Nos anos 2000, esse índice caiu para aproximadamente 40%. Os representantes da esquerda, que dificilmente chegavam a 20% do total de deputados federais do Nordeste, passaram a fornecer cerca de 35% dos eleitos pelos estados da região (e o centro outros 25%). No Sudeste, ocorreu o fenômeno inverso, no entanto, com uma intensidade não tão acentuada como se deu nos estados nordestinos. A região foi a única que, durante a ditadura militar, elegeu em dois pleitos (1974 e 1978) mais deputados federais do MDB, um partido guarda-chuva da oposição de centro-esquerda, do que da Arena. Além disso, São Paulo é o berço do PT, o principal partido associado à esquerda. Nas últimas eleições, no entanto, os partidos de direita forneceram cerca de 40% dos deputados do Sudeste diante de aproximadamente 30% de esquerda e também 30% de centro. Profissionalização ou popularização

Os pesquisadores do observatório dizem que as mudanças no perfil socioprofissional dos deputados federais não permitem dizer se a Câmara dos Deputados se tornou menos ou mais conservadora. A relação entre a ocupação prévia do parlamentar, antes de sua entrada na política, e seu comportamento na Câmara é delicada e circunstancial, dizem Codato e Domingos Costa. Isso não quer dizer que o perfil ocupacional das bancadas não tenha implicações no tipo de política feita em Brasília. Tem, mas também influem outras variáveis, como as tendências da opinião pública, as propostas do Poder Executivo e a plataforma dos partidos da situação e da oposição.


O sobe e desce das ideologias nas regiões A bancada federal de direita do Nordeste diminuiu e a de esquerda cresceu. No Sudeste, os deputados de esquerda, que foram majoritários no início dos anos 2000, perderam terreno para os de centro e direita Nordeste 90%

n  direita

80%

n  centro

70% 60%

n  esquerda

50%

n  MDB

40% 30% 20% 10% 0 1945

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1974

1978

1982

1986

1990

1994

1998

2002

2006

2010

Sudeste 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0 1945

1950

1954

Codato defende a ideia de que, mais do que uma popularização do perfil do deputado federal, está ocorrendo uma profissionalização da classe política. “É difícil alguém hoje em dia conseguir ser eleito deputado federal se não tiver uma carreira mais longa dentro da política”, afirma o cientista político. Segundo ele, poucos são os indivíduos, independentemente de sua ocupação e classe econômica, que têm cacife e popularidade para pularem etapas da carreira política — ser vereador, prefeito e deputado estadual — antes de tentarem um assento em Brasília. O deputado-palhaço Tiririca, do Partido da República (PR-SP), eleito em 2010 e reeleito neste ano, é uma exceção, e não a regra. Autor de três livros sobre o perfil socioprofissional dos deputados federais, o mais recente deles lançado este ano (Pobres e ricos na luta pelo poder – Novas elites na política brasileira, pela editora Topbooks), o cientista político Leôncio Martins Rodrigues afirma que a popularização da classe política realmente ocorre na Câmara Federal. “Os empresários rurais foram os que mais perderam espaço”, diz o ex-professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ofi-

Fonte Observatório de Elites Políticas e Sociais do Brasil

cialmente aposentando, mas, na prática, ainda fazendo pesquisa. “Nos sistemas eleitorais de massa, o poder econômico dos mais ricos é contrabalançado por grandes organizações.” Fazer campanha para deputado federal é uma empreitada cara nos dias de hoje. Ter um sindicato, ou alguma outra entidade ou patrocinador, é uma das formas de apoiar candidaturas de indivíduos dos segmentos mais populares e das classes médias. Apesar das mudanças no perfil dos parlamentares federais, algumas associações ainda persistem. Deputados milionários tendem a vir do campo da direita e “pobres”, da esquerda. Dos 513 legisladores eleitos em 2010, Martins Rodrigues analisou a declaração de bens dos 50 deputados mais ricos e dos 50 com menor patrimônio declarado. Entre os mais abastados, 62% eram de partidos da direita, 30% do centro e 8% da esquerda. Dos mais “pobres”, dois terços eram da esquerda e o outro terço se dividia entre membros de agremiações da direita (em maior número) e do centro. Martins Rodrigues lembra que entrar para a política é ainda uma chance de ascensão social para os mais humildes. “E não é nem preciso ser desonesto”, afirma ele. “Basta o salário de deputado federal.” n pESQUISA FAPESP 225  z  81


sociedade y

Arquitetura para todos Estudo dos 100 anos da habitação social

82  z  novembro DE 2014

no Brasil desvenda projetos de alta qualidade na era Vargas Márcio Ferrari

Inês Bonduki

Conjunto da Gávea, de Affonso Eduardo Reidy, que fez também o de Pedregulho, ambos no Rio, no início dos anos 1950: projetos sociais de importância histórica e estética


A

inda que o Brasil tenha produzido nomes e marcos importantes da arquitetura do século XX, conhecidos mundialmente – Oscar Niemeyer e Brasília à frente –, há toda uma produção voltada para a habitação social ainda pouco conhecida e mais ou menos à margem da história oficial. Não que essa produção seja pouco visível ou numericamente insignificante. Está presente em cidades de todo o Brasil, e sua história constitui uma narrativa com rupturas, mas também fortes traços de continuidade, chegando até as políticas públicas atuais, além de ter criado um valioso repertório de experiências técnicas e formais na arquitetura e no urbanismo. A intenção de iluminar e inventariar a história da habitação social no Brasil,

que completou 100 anos em 2012, está na origem do recém-lançado Os pioneiros da habitação social, livro em três volumes de Nabil Bonduki, arquiteto, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e vereador em São Paulo pelo PT. O “miolo” da obra, que está no volume 2, é dedicado ao período que vai de 1930 a 1964, ou seja, da primeira posse do presidente Getúlio Vargas ao golpe militar. “Tivemos aí um ciclo da habitação social vinculado aos princípios do urbanismo moderno”, diz Bonduki. Se os 100 anos da habitação social começaram com um projeto do governo federal em Marechal Hermes, no Rio de Janeiro, que, enfrentando muita oposição, conseguiu completar 165 casas, a era Vargas criou uma nova cultura e uma pESQUISA FAPESP 2XX  z  83


1

outra abordagem. “Estabelece-se a ideia da função social da habitação; o Estado assume uma feição de enfrentamento das questões urbanas”, diz Bonduki. “E o modernismo passou a ser a linguagem desse novo tempo.” Avanços e retrocessos

No todo, Os pioneiros da habitação social trata simultaneamente dos fundamentos e práticas da política habitacional brasileira ao longo de um século e dos avanços e retrocessos arquitetônicos no mesmo período. A obra, publicada em conjunto pela Editora Unesp e pelas Edições Sesc SP, tem um total de 1.208 páginas ilustradas com fotos e gráficos. O volume 1, Cem anos de política pública no Brasil, apresenta e comenta a história da habitação pública no país, abordando em detalhes, na segunda parte, a produção dos institutos de previdência, responsáveis pela moradia pública na era Vargas. O volume 2, Inventário da produção pública no Brasil entre 1930 e 1964, coassinado pela arquiteta e urbanista Ana Paula Koury, traz o levantamento e a documentação dos 322 projetos (em 24 unidades federativas) do período, incluindo os redesenhos de cada um em escalas comparáveis. O volume 3, Onze propostas de morar para o Brasil moderno, estuda em profundidade 11 desses projetos, com modelos tridimensionais 84  z  novembro DE 2014

dos desenhos originais e ensaios do fotógrafo Bob Wolfenson. As raízes desse trabalho se encontram no mestrado e no doutorado de Bonduki, apresentados nos anos 1990 na FAU e apoiados pela FAPESP, que resultariam no livro As origens da habitação social no Brasil (editora Estação Liberdade, 1998, agora na sexta edição), sobre a transformação das cidades brasileiras na era Vargas. No processo de pesquisa, Bonduki

Para Le Corbusier, unidade habitacional é também espaço público como praça e escola

Conjunto residencial de Paquetá, no Rio, de 1952, e prédio do início da construção de Brasília: tentativas feitas no passado de harmonizar construções com o entorno

identificou uma produção arquitetônica importante no período, que raramente havia sido estudada. Nasceu daí o interesse em ampliar a historiografia sobre o assunto, tendo como foco “pensar a arquitetura moderna brasileira, sobretudo a dos anos 1940 e 1950 do século XX, e como se relacionava com a habitação social”. O trabalho de pesquisa se estendeu por 17 anos (1997-2013) na USP, inicialmente na Escola de Engenharia de São Carlos e depois na FAU, e teve a participação de cerca de 40 pesquisadores, muitos dos quais depois levaram adiante estudos próprios a partir de temas despertados durante o processo. A etapa-chave da pesquisa foi o levantamento de campo completo da produção da habitação social entre 1930 e 1964 – o segundo dos três volumes do livro, que foi o primeiro a ficar pronto. As duas grandes fases da pesquisa receberam apoio da FAPESP e a segunda, desenvolvida após o levantamento, foi selecionada em edital público promovido pela Petrobras na área de patrimônio e documentação. A atividade de pesquisa se articulou com a da equipe do professor Carlos Ferreira Martins, diretor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos (e autor da orelha do volume 2), que questionava a abordagem histórica tradicional da arquitetura modernista brasileira por ignorar alguns temas e


fotos 1 Bob Wolfenson / Os pioneiros da Habitação Social 2 Arquivo Projeto Pioneiros

2

nomes. Tanto para Martins quanto para Bonduki, há na trajetória da arquitetura “mais tradicional”, voltada para a habitação em massa, uma contribuição histórica tão importante quanto a dos nomes consagrados como Niemeyer, Lúcio Costa, Rino Levi e Lina Bo Bardi. Mesmo um arquiteto costumeiramente incluído nesse grupo, Affonso Eduardo Reidy, era pouco conhecido por sua atuação na habitação social, apesar de ser autor de projetos de grande importância histórica e estética como os serpenteantes conjuntos da Gávea e de Pedregulho, no Rio, ambos inaugurados no início dos anos 1950. Reidy era casado com a engenheira e teórica Carmen Portinho, outro nome cardeal da história da habitação social brasileira. Carmen foi diretora do Departamento de Habitação Popular, vinculado à prefeitura do Distrito Federal (Rio de Janeiro), um dos

poucos órgãos regionais que realizaram uma produção relevante no período do Estado Novo, e posteriormente, no segundo governo Vargas (1952-1954), atuou como membro do Conselho Central da Fundação da Casa Popular. Desaparecido da historiografia

Um dos arquitetos “desaparecidos da historiografia dominante”, segundo Bonduki, é Carlos Frederico Ferreira, que dedicou toda a vida profissional ao Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários (Iapi), o órgão público que mais se destacou na produção habitacional do período Vargas, do qual foi chefe do Setor de Arquitetura e Desenho e posteriormente da Divisão de Engenharia. “Consegui conversar com ele em 1994, seis meses antes de sua morte”, diz Bonduki. “Ninguém sabia onde ele estava até que o localizei na serra de Nova Friburgo, no Rio.”

Nessa conversa, Ferreira resumiu a preocupação central do Iapi em “colocar as unidades habitacionais ao alcance da grande maioria dos associados de salário modesto, isto é, estabelecendo o preço mínimo sem sacrificar, todavia, as condições indispensáveis de higiene e conforto”. Essa preocupação avançada estava em consonância com os princípios estabelecidos pelo suíço Le Corbusier, em 1933, no Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, entre eles, nas palavras de Bonduki, a ideia de que habitação “não era só unidade habitacional”, mas também espaços públicos como praças e escolas. No entanto, segundo o pesquisador da FAU, esse conceito encontrava obstáculos imensos no Brasil, a começar pela indústria de construção. “As questões que tinham de ser enfrentadas eram básicas, como a falta de normas para a produção de um simples pESQUISA FAPESP 225  z  85


Concentração de conjuntos habitacionais na zona leste de São Paulo (dir.) e Parque do Iguaçu, em Curitiba: baixa qualidade urbanística e arquitetônica

tijolo, cuja diversidade de tamanhos, de acordo com a origem, dificultava a realização de obras de grande dimensão”, escreve Bonduki. Outro nome importante dessa época é o do arquiteto Rubens Porto, assessor do Conselho Nacional do Trabalho, que estabeleceu diretrizes gerais para os institutos de previdência e recomendações para a construção dos conjuntos residenciais. Porto, em 1938, reuniu em livro uma série de soluções para esses edifícios, que implicavam a racionalização dos processos, eliminando toda decoração supérflua, entrega da casa mobiliada e uma tipologia de blocos multifamiliares de quatro pavimentos, com pilotis e apartamentos dúplex. Na prática, mesmo eventualmente não seguindo esses preceitos, boa parte da produção dos institutos apresentava noções claras de inserção urbana e uso racional e industrial dos materiais. “É difícil apontar a existência de uma política habitacional no período, mas houve ações simultâneas que foram coincidindo e se casando”, diz Bonduki. “O cenário era composto por uma dispersão de órgãos, vários institutos com características e equipes próprias tentando garantir atualização e custos mais baixos.” Formou-se uma “tecnoburocracia com-

petente” e departamentos de engenharia capazes de formular soluções para os desafios da criação de habitações populares de custo reduzido e boa qualidade. Numa época em que não havia empresas de construção como as de hoje, e as escolas para arquitetos eram novidade, esses departamentos funcionavam, segundo Bonduki, como “grandes escritórios de arquitetura” e “laboratórios práticos”. População de baixa renda

De acordo com o estudo de Bonduki, os notáveis avanços da arquitetura e do urbanismo e a criação de um legado 1 Is abor renditinsque delignat fugit autat pirador não significaram conquistas correspondentes no acesso da população de 2 Antus, quatur sinciaeri cus eumquia baixa renda à moradia. No contexto da transição de uma sociedade predomi3 Jeaquam inihil molestiunt at volores nantemente agrário-exportadora para uma era urbano-industrial e capitalista, em que o governo se atribuía a função de proteção ao trabalhador, as iniciativas privadas no campo da habitação foram desestimuladas pela Lei do Inquilinato, de 1942, que congelou os aluguéis. De início, o efeito foi positivo para a população, porque diminuiu consideravelmente o peso do gasto com moradia para os assalariados. Mas essa situação, combinada com um movimento intenso de urbanização do

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país (8 milhões de moradores de cidades em 1930 e 32 milhões em 1960), acabou gerando um déficit de habitações, um inchaço das periferias, carência de serviços públicos e uma onda de ações de despejos. Em suma, uma grave crise de habitação. No fim do período, os institutos de previdência nem sequer chegaram perto de suprir as necessidades de moradia da população, totalizando apenas 175 mil unidades construídas. “A saída para a população de baixa renda foi a autoconstrução nas periferias, criando o modelo das grandes cidades que hoje conhecemos”, diz Bonduki.

Para Bonduki, é urgente o poder público agir seriamente nas questões fundiárias 2

86  z  novembro DE 2014


Contrariando a ideia de que Brasília, inaugurada em 1960, foi um projeto revolucionário, Bonduki a considera “ponto de chegada” das experiências ocorridas entre os anos 1930 e 1950, com suas superquadras assemelhadas aos conjuntos projetados nos anos 1940. Além de um importante papel dos institutos de previdência na edificação das áreas residenciais.

fotos 1 Inês Bonduki / Os pioneiros da Habitação social 2 Ministério das Cidades / CEF

Novos programas

Do ponto de vista político, a inauguração da nova capital se dá em pleno refluxo da vitalidade alcançada no Estado Novo pela atividade arquitetônica e urbanista. Já no fim do período, foi proposta a unificação dos institutos de previdência num único órgão e a transferência de parte de seus fundos a uma instituição que seria destinada especificamente ao atendimento universal das necessidades de moradia da população, a Fundação da Casa Popular (FCP). As direções dos próprios institutos, além de outros setores da sociedade, se opuseram à mudança, que lhes tiraria recursos e privilégios. Com isso, a FCP já nasceu esvaziada e, segundo Bonduki, “seu fracasso atrasou em 20 anos a formulação de uma política habitacional consistente”. A retomada aconteceria com o início do regime militar de 1964, quando

os fundos de pensão são abolidos com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS, hoje substituído pelo INSS) e do Banco Nacional da Habitação (BNH), voltado para a produção e financiamento de imóveis. Era um banco de segunda linha, ou seja, atuava diretamente com outros bancos, não com o público, e durou até 1986, quando foi incorporado à Caixa Econômica Federal. No entanto, a inação dos tempos de FCP, somada ao desmonte de estruturas promovido pelo golpe de 1964, tirou do cenário as forças empenhadas numa política de habitação social consequente e que atendesse de fato às necessidades da população. As unidades habitacionais eram agora vendidas ao futuro morador e, se houve ênfase e êxito na produção em massa (4,2 milhões de residências), descuidou-se extremamente da qualidade dos projetos. Ao final da vida do BNH, já no período de redemocratização, a sigla era conhecida como sinônimo de edificações feias e mal-acabadas. A partir dos anos 1990, importantes experiências no âmbito municipal prenunciaram uma série de avanços na construção de políticas urbanas e habitacionais, muitas delas por iniciativa popular. Foi o período de instituição do Estatuto da Cidade, do Ministério das Cidades e do

Fundo Nacional da Habitação. Esse arcabouço formou um quadro auspicioso, fortalecido por condições demográficas favoráveis, como o encerramento do ciclo de migração campo-cidade e a diminuição do ritmo de crescimento populacional. Questões políticas, no entanto, levaram, em 2009, à criação do programa federal Minha Casa, Minha Vida, que Bonduki vê com muitas restrições. Ele ressalta a existência, hoje, de “um sistema de financiamento e subsídios com fontes próprias, muito robusto e saudável”. Mas afirma que “se procurou associar a criação de empregos e o crescimento econômico com a agenda da habitação sem agir nas questões fundiária e urbana, gerando resultados contraditórios”. Bonduki prevê como resultado o agravamento de problemas de mobilidade, segurança e meio ambiente. Para ele, é urgente substituir o foco quantitativo pelo qualitativo, como fizeram os “pioneiros” – e para isso, hoje, é necessário que o poder público encare seriamente o problema fundiário. n Projeto Os pioneiros da habitação social no Brasil (nº 2012/500300); Modalidade Auxílio Publicação; Pesquisador responsável Nabil Bonduki (FAU-USP); Investimento R$ 40.000,00 (FAPESP).

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memória

Espelhos do mundo Mapa feito na França em 1748 delineou novas fronteiras do Brasil continental depois do Tratado de Tordesilhas Neldson Marcolin

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a concepção iluminista do século XVIII, mapas eram espelhos perfeitos do território, projeções gráficas sobre o mundo real, ainda que a própria região retratada ou suas fronteiras não fossem completamente conhecidas. Assim pensavam o embaixador português em Paris, dom Luís da Cunha, e o principal geógrafo europeu do período, o francês Jean-Baptiste Bourguignon D’Anville. Em 1724, ambos deram início a uma parceria que levou D’Anville a desenhar a Carte de l’Amérique Meridionale, impressa em 1748. Trata-se do primeiro mapa da América do Sul (ou América Meridional) que deu ao Brasil feições parecidas com as que tem hoje. “O mapa concebido por eles – ao fundirem política, diplomacia, geografia e cartografia – ‘inventou’ um Brasil continental ao traçar as fronteiras que os portugueses desejavam para sua possessão na América do Sul”, diz a historiadora Júnia Ferreira Furtado, da Universidade Federal de Minas Gerais e autora do livro O mapa que inventou o Brasil (Odebrecht/Versal Editores, 2013), ganhador em


Imagens 1 Biblioteca Nacional da França 2 Fundação Biblioteca Nacional  3 Museu de Versalhes, anônimo, séc. XVIII  4 Memórias da Paz de Utrecht, c. 1715 / Biblioteca Nacional de Portugal

A Carte de l’Amérique Meridionale (à esq.), de 1748, foi a primeira configuração do Brasil próxima à de hoje. O Mapa das cortes (acima), de 1749, foi a base para a discussão do Tratado de Madri, em 1750, entre Portugal e Espanha

primeiro lugar na categoria Ciências Humanas do prêmio Jabuti deste ano. A configuração do território brasileiro havia sido acertada antes mesmo de sua descoberta. Em 1494, Portugal e Espanha assinaram o Tratado de Tordesilhas, em que se convencionou que as terras a serem descobertas situadas até 370 léguas a leste da ilha de Cabo Verde, no oceano Atlântico, pertenceriam aos portugueses e as terras a oeste dessa linha demarcatória imaginária seriam dos espanhóis.

O descobrimento ocorreu em 1500 e no século seguinte, com o avanço da colonização e a exploração do território, a situação começou a mudar. As fronteiras acordadas em Tordesilhas foram empurradas para oeste em virtude da descoberta de ouro e pedras preciosas na região mais central do país. Dom Luís da Cunha (1662-1749) sabia da importância que os mapas teriam nas negociações diplomáticas com os espanhóis para mudar as fronteiras na América Meridional a favor de Portugal. Também conhecia o esmero com que D’Anville (1697-1782) fazia seus mapas. Dom Luís era um embaixador experiente, respeitado nas capitais europeias. Teve como pupilos Marco António de Azevedo, que se tornou ministro de Assuntos Estrangeiros, e Sebastião José de Carvalho, o Marquês de Pombal. Já o francês era um desenhista com talento e gosto por mapas, que havia sido nomeado engenheiro e geógrafo do rei da França aos 22 anos. D’Anville era geógrafo de gabinete, erudito, que nunca saiu de Paris. Concebia suas cartas coligindo e estudando dezenas de

D’Anville (esq.) e dom Luís da Cunha: parceria intelectual incluía política, diplomacia, geografia e cartografia

documentos – outros mapas, relatos de exploradores e viajantes, dados de astrônomos, matemáticos e cosmógrafos. Com essas informações ele montava mapas muito próximos da realidade. E foi assim, com a preciosa ajuda de informações sigilosas passadas por dom Luís, além do conhecimento que o português dispunha sobre o território brasileiro, que foi desenhada a Carte de l’Amérique Meridionale. Com a carta pronta, em 1748, dom Luís a despachou para Lisboa. Alexandre de Gusmão, diplomata que era secretário particular de dom João V, deu ordens para que ela não fosse mostrada aos espanhóis e avisou que estava sendo feita outra carta em Portugal, sob suas ordens. Essa nova carta, Mapa dos confins do Brasil com as terras da coroa da Espanha na América Meridional, que ficou conhecida como o Mapa das cortes, foi a utilizada no Tratado de Madri, de 1750, que deu novos contornos às fronteiras sul-americanas. “O Mapa das cortes foi coligido a partir de vários mapas, incluindo o de D’Anville, do qual copiou a parte referente à região Norte do Brasil”, diz Júnia Furtado. “Ele foi feito sob medida para se conseguir mais terras na negociação com os espanhóis e traz erros propositais ao situar territórios colonizados por portugueses mais ao leste do que estavam.” A pesquisadora diz, porém, que nenhum mapa do período foi tão próximo da realidade do que o trabalho de D’Anville, ao mostrar um território brasileiro que, a rigor, não existia oficialmente. n PESQUISA FAPESP 225 89


Arte

Instantes da vida

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Maestro e professor Olivier Toni lança, aos 88 anos, primeiro CD com composições próprias Lauro Lisboa Garcia

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oberbo e augusto – como é descrito o corvo do poema do norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849) – parece ser o legado do maestro, compositor e professor Olivier Toni para a música clássica brasileira. Mestre de uma legião de músicos notáveis, entre eles os compositores Gilberto Mendes e Willy Corrêa de Oliveira, o maestro e arranjador Rogério Duprat, o violonista Fabio Zanon, o pianista André Mehmari e o maestro e violinista Claudio Cruz, só agora, aos 88 anos, Toni tem parte de suas peças autorais registradas em disco. Há entre elas desde composições antigas executadas em concertos, como as Três variações para orquestra, de 1959, apresentadas pela primeira vez pela Orquestra Sinfônica de Bochum, na Alemanha, em 1963, até In memorian W. A. Mozart, para violino solo, de 2012. O CD foi lançado no Sesc Consolação no dia 21 de outubro com apresentação das peças tocadas por Cruz (violino e viola) e Paulo Álvares (piano). Fundador do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), da Orquestra Jovem de São Paulo (que depois passou a se chamar Orquestra Experimental de Repertório) e das orquestras de

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Câmara de São Paulo e Sinfônica e Câmara da USP, idealizador do Festival de Prados, no interior de Minas Gerais, há mais de 30 anos, o maestro diz que todas essas atividades às quais se dedicou durante décadas fez com que o trabalho de compositor ficasse menos destacado. Em texto no encarte do CD, um de seus discípulos, Willy Corrêa de Oliveira, o compara a Webern (autor de obra relativamente pequena em quantidade) e questiona por que Toni escreveu tão pouco. Conclui que seus alunos foram a causa “do pouco tempo que ele dedicou a sua própria obra”. “Escrever música implica ter tranquilidade para estar sempre atento. Acabei de escrever música agora, há menos de um mês, e tive um trabalho enorme reescrevendo e apagando. Isso não é fácil enquanto se faz as outras coisas”, diz Toni. “Sempre achei muita graça em observar em amigos, alunos: a única coisa em que eles pensam é gravar um CD. Mas nunca me preocupei com isso.” Foi Claudia, uma das filhas, que falou com os amigos do pai para tornar viável o projeto. Claudio Cruz chamou os músicos. “No fim fiquei muito contente. Algumas peças com orquestra que gostaria que fossem gravadas não


foram pensadas para o disco porque custaria muito caro”, diz ele. O maestro conhece bem a dificuldade de apresentar repertório inédito no circuito de concertos, não só por parte dos músicos, mas do público que se habituou a ouvir sempre os mesmos autores e peças consagradas. A realização desse disco se deve muito à significativa importância do “multíssono” (como define Willy Corrêa) piano de Toni, adepto de poucas notas. “Toni consegue confeccionar em seu teclado figuras musicais inéditas, preciosos arabescos e jogos rítmicos de alturas e densidades que extravasam fronteiras entre contraponto e melodia acompanhada”, descreve. “Não aceito fazer apenas as coisas dos outros”, diz o maestro. “Às vezes me fazem falta alguns delineamentos usando todas as notas, mas no final das contas eu ouço esse delineamento parecido com Villa-Lobos, outro com Stravinsky, mudo algumas notas minhas, outras de Villa-Lobos, no fim dá tudo no mesmo. As minhas composições podem ter muitas notas, mas são sempre as mesmas. Em vez de 12 eu uso 7. Claro, é um problema nosso, dos músicos: cada vez mais só os músicos entendem a música.”

fotos 1 LÉo ramos 2 Divulgação

Quebra de expectativas

A peça para canto, contrabaixo, trompete e orquestra de cordas que abre e dá título ao CD lançado pelo Selo Sesc é Só isso e nada mais, baseada no poema O corvo, de Poe. A soprano Caroline De Comi interpreta três estrofes da tradução de Milton Amado, que Toni elegeu entre tantas outras adaptações para o português que já haviam sido feitas por escritores clássicos, como Machado de Assis e Fernando Pessoa. “Escolhi a versão do Milton Amado porque é soberba, a mais bonita. Ele usou o tamanho físico do poema de Poe. E eu segui de certa forma a métrica do Amado para compor a música. Essa questão é muito interessante, eu não poderia mexer na métrica, não daria para cantar”, diz o maestro, que frisa o extremo cuidado com a prosódia, aspecto em que muitos compositores (de música popular ou clássica) derrapam. “O corvo não fala, mas dialoga com o canto o tempo todo, está sempre presente com as mesmas notas com o glissando, aquele som estranho do voo do pássaro de noite num momento alucinante.” O canto se encarrega de narrar o que acontece, porém, como sempre objetiva jamais repetir o já feito, Toni quebrou as expectativas e buscou elementos da biografia de Poe, em particular o tormento do escritor depois da morte de sua amada Lenora, que o motivou a escrever O corvo. Outras referências na gravação são as citações de dois toques de trompete que provocam choques: o da abertura de Leonora nº 3, de Beethoven, com seu característico trompete – “Que não poderia

1 Toni entre Claudio Cruz (esq.) e Paulo Álvares: mestre de músicos notáveis 2 Capa do CD lançado: O corvo, de Edgar Allan Poe, inspirou uma das peças do disco

colocar mais do que uma vez, aí é que entra a criação”, diz –, e Il tabarro, de Puccini, compositor que Toni admira muito. “O trompete que antecede aquele célebre monólogo é medonho, por isso o escolhi. É uma homenagem a esses dois compositores. Isso é música do exército, nem é deles, mas que funciona incrivelmente no poema de Edgar Allan Poe.” Nesse disco com diversas homenagens, seja para discípulos, familiares, amigos, personagens históricos ou compositores clássicos que o maestro admira ou o influenciaram, como Mozart e Camargo Guarnieri, ele recorre a mais dois textos literários para compor. Um deles é a história de Chico Rei, peça de 1994 para canto e flauta – que tem por título o nome do mítico escravo – contada em versos por Renata Pallotini. É uma homenagem ao mito de Zumbi dos Palmares, em que o maestro escreveu “num modo característico usado pelos iorubas”. “Tem um dançar levemente inspirado no batuque e no canto negro vindo da África, não no que se faz hoje”, diz. A outra é Três instantes da vida (2009), inspirada em dois poemas do livro A árvore da montanha, de João Cunha Andrade, que foi seu professor. Peça escrita para canto, flauta e percussão, que encerra o CD, completando o círculo com a temática do poema de Poe, tem a marcação de uma caixa (instrumento de percussão), que o maestro descreve como “a presença do fim da vida”. “O terceiro instante tem uma colocação no poema que em poucas palavras diz ‘que nos meus últimos instantes eu enxergue aquilo que muito amo’. Quer dizer, não quero que quem eu muito amo morra antes de mim, quero ir embora vendo o que eu gosto. Pus isso porque é meu com a minha mulher. Estamos juntos há 62 anos. Não quero que ela vá antes”, conclui. n

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conto

Meu irmão, o robô Adriano Messias

São Paulo, 2052

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or ser feito de um material ligeiramente orgânico que lhe conferia forma próxima à nossa, revestindo a secura de finas camadas de silício, foi chamado de biociborgue. Se fosse pelo meu pai, cientista premiado, não o teríamos comprado. Meu velho sempre defendeu um extenso pessimismo em torno do mundo das máquinas e, mais ainda, dos ambientes e objetos sencientes que trouxeram fortes mudanças à cultura. Cultura aquela que muitos, apressadamente, relutavam em denominar, ainda, de “humana”. A respeito do biociborgue, meu pai me advertia: “Convém não chamá-lo por um nome, filho. Convém precaver-se. Trata-se de qualquer outra coisa que não um irmão”. Sobre a caixa metálica em que recebi o produto, dois anos atrás, lembro-me de ter lido o nome “Arthur”. Coisa encantadora foi aquilo: acionado por voz, o garoto de minha idade assentou-se e me passou, em cerca de dez minutos, todas as informações que eu poderia desejar sobre seu funcionamento. Era um ser multifuncional: conseguia até mesmo prever o tempo, tanto o tempo interior dos homens quanto o das massas de ar e intempéries. “Arthur” era homenagem a um reles robozinho que distraiu as crianças ingênuas dos anos 1980. Porém aquele nome sofreria os solavancos de meu recalque: não seria jamais pronunciado. Em vez disso, eu o chamaria simplesmente “robô”, termo genérico da ordem do desprezo que remetia a uma criação ultrapassada. Por isso, sadicamente eu o chamava “robô” daqui, “robô” dali, como um dono que não amasse o próprio cachorro e, por isso, apenas gritasse: “cão! cão!”. O biociborgue comprado para me fazer companhia parecia não se importar com o fato de eu não lhe atribuir um nome próprio.

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Parecia. Ele me acompanhava como um discreto segurança, estivesse eu no colégio, em algum parque ou em bares com meus colegas. E permanecia em mudez até que eu o autorizasse a falar. Era motivo de galhofas que eu mesmo criava junto aos meus amigos. Contudo, por ser um biociborgue, não teria sentimentos e poderia servir de saco de pancadas no qual eu extravasava raivas e injúrias. Junto a isso, a voz de meu pai ressoava: “Não confie nessa coisa que você comprou. Chegará o dia em que as máquinas se rebelarão. Lembre-se dos filmes, rapaz”. Todo biociborgue era muito questionado pela ciência: por um lado, possuía sutis atributos conferidos pela tecnologia da inteligência artificial. Parecia sentir, parecia querer, parecia ponderar, parecia entreter-se, parecia até amar. Mas não fazia mais do que semblant, como afirmava um velho psicanalista que morava no iglu abaixo do nosso. Todos os dias pela manhã, Miguelito abria a porta e chacoalhava o pó que se amontoava nos cabelos de sua secretária humanoide. Depois, olhava em direção à minha janela com um risinho enigmático. Um dia, ele me contou que a chegada dos biociborgues na vida cotidiana das pessoas trouxe uma nova onda de histeria, pior do que a do final do século XIX. Porém uma de suas polêmicas aparições na TV causou a ruína de seu prestígio intelectual: foi no exato dia em que declarou que até uma torradeira e um aspirador de pó iriam precisar de analistas. Desde então, caiu em descrédito no mundo acadêmico, mas continuou a ser mais e mais procurado como psicanalista. E não apenas por pessoas, mas por outros sujeitos. Não era raro ver um biociborgue apertar a campainha e entrar furtivamente em seu gabinete vinho e art déco, e sair meia hora depois com o rosto menos angustiado.


pedro franz

— Tenho um problema, robô – eu disse um dia ao meu pajem. O biociborgue olhou-me em profundidade. Suas pupilas se dilataram e ele pareceu ler algo que ia dentro de mim. — Você quer conversar, meu irmão? — Não me chame de irmão. Já mandei parar com isso. Nunca vai aprender? Heim? Como consequência daquele que era apenas mais um dos acessos de raiva que eu sempre tinha contra ele, tranquei-o no armário e apaguei a luz do quarto, saindo para fora do iglu para tentar ver alguma estrela acima dos amontoados metálicos. No dia seguinte, ordenei que ele caminhasse comigo pelo Ibirapuera monitorando minha perda real de calorias. — Você se importa de falar alguma coisa, robô? Cansa-me andar em linha reta ao lado de uma coisa inútil como você que, ainda por cima, não diz nada. É pedir muito? Apertei o passo. Ele me perguntou se eu ficaria satisfeito com a narrativa de algum conto ou com a atualização das notícias do dia. — Eu queria, robô, é que você pelo menos fingisse entender um pouco além do que decidiram chamar de “inteligência artificial”. Parei abruptamente, mais irritado, e dei-lhe soquinhos em seu peito. — Sei que aí dentro não tem muita coisa. São só ligações neuronais invisíveis, sangue de mentira, uma série de comandos para simularem o envelhecimento do corpo... Quantos anos você tem? Dezesseis? — Eu fui programado para envelhecer com você, Gabriel. Quando o pedido da compra chegou à fábrica, colocaram em mim o código da mortalidade. Vou deixar de existir algum dia. — Não me interessa. Você vai ultrapassar meus cento e vinte anos, isso já sei. Conheço biociborgues que estão programados para chegar aos duzentos. Meu pai me conta tudo. — Gabriel, às vezes eu me sinto confuso. O que quer que eu faça? É como se eu não conseguisse agradá-lo como deveria. Decidi me assentar e ele fez o mesmo. — Olha, robô... Não quero uma parafernália ambulante com sentimento de culpa ou de incapacidade atrás de mim. — E como eu poderia demonstrar melhor meu afeto e dedicação, Gabriel? — Não seja tolo. Você foi feito para me servir, mas tem várias imperfeições. Como pode? Veja só... – e toquei-lhe uma orelha. – Este lóbulo esquerdo... vê-se claramente que por trás tem uma entrada USB. Não poderia ter sido produzido com mais esmero? — Eu lhe peço desculpas, Gabriel, por minha concepção tão obsoleta.

Pus-me de pé e de chofre contei-lhe o que guardava só para mim: — A verdade, seu monte de areia e carne, é que você estava em liquidação. Liquidação, sabia? Vi naquele instante os olhos de meu robô ficarem cinzentos como as nuvens que nos cobriam. Sobre o Ibirapuera, formou-se uma tempestade que não estava na previsão do tempo de meu servo falho. — Você não analisou o clima devidamente hoje. — Desculpe-me – disse-me, tentando amenizar o semblante triste. – Mas... posso lhe perguntar uma vez mais o que mais posso fazer por você? — Bastaria que você fosse gente. É duro andar o tempo todo com um biociborgue de promoção que não sabe nem preparar champignons com ovos sem errar no sal. — Só posso lhe dizer que lamento muito, Gabriel. — Você nem deveria ter sido criado, sabia? – encolerizei-me. – Acho que nem Miguelito conseguiria aumentar sua autoestima... Aliás, de “auto” você só deve ter “automação” inscrita aí, nesses seus códigos fajutos. Bem dentro desse peito oco, sabia? Pus-me a andar rápido para fugir da borrasca que cairia em breve. Mas o robô vinha atrás, em passos deselegantes, insistindo: — O que mais posso fazer por você, Gabriel? O que você quer? O que você deseja? Cansei-me daquilo. Virei-me para ele e fiz um pedido impossível. — O que desejo? – bufei. – Desejo seu coração. Quem sabe você não me dá o coração de grão de arroz que existe por trás desse exoesqueleto almofadado? E tornei a caminhar em direção ao portão de saída. Entretanto, uma única vez o robô ousou tocarme sem permissão. E foi aquela. Tomou-me pelo braço e disse: — Quero que você seja feliz. E que goste mais de mim, Gabriel. Então, estupefato – como ainda estou agora –, vi o robô enfiar a mão esquerda dentro do próprio peito, atravessar a parede de carne e metal, e trazer para fora, vivo e pulsante, um coração. Indubitavelmente humano. Em pânico, segurei o órgão que me fora presenteado e que ainda batia, mesmo desconectado do corpo biociborgue. Desesperado, vi o robô cair por terra com um sorriso sereno de dever cumprido. Meu irmão, Arthur, estava morto. Adriano Messias de Oliveira é doutor em comunicação e semiótica pela PUC-SP e foi bolsista da Fapesp. É também autor de mais de 50 livros de ficção.

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resenhas

Brasil 40 graus Fernanda Pompeu

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1964 na visão do ministro do Trabalho de João Goulart Almino Affonso Fundap e Imprensa Oficial 680 páginas, R$ 60,00

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livro 1964 na visão do ministro do Trabalho de João Goulart, escrito por Almino Affonso, se parece com o filme Titanic. Todos que foram ao cinema sabiam do naufrágio final. Assim como os leitores do livro sabem que o golpe de 1964 afundou, por mais de duas décadas, a democracia brasileira. Então qual a graça em ver um filme ou ler um livro, se conhecemos o fim? Pelo encanto do roteiro que vai nos entregando as urdiduras da trama. Almino foi participante do governo de João Belchior Marques Goulart, o Jango, que dirigiu o país de setembro de 1961 a março de 1964. O autor, então na casa dos 30 anos, foi líder do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o mesmo do presidente, e depois seu ministro do Trabalho. Escrito com clareza e português escorreito, o livro defende a tese de que o golpe de 1964 teria nascido 10 anos antes quando da tentativa de derrubar o governo Getúlio Vargas. Entre os golpistas estariam militares de alta patente, o governador Carlos Lacerda – antigetulista ferrenho –, empresários sempre descontentes e o governo norte-americano, furioso com o monopólio estatal da Petrobras e com os planos da futura Eletrobras. Mas o suicídio de Getúlio e a reverberação de sua carta-testamento – dois atos que causaram profunda comoção popular – adiaram o arbítrio. Nova tentativa de golpe seria feita em 1961, depois da suspeitíssima renúncia de Jânio Quadros. Eleito presidente com expressivos votos, ficou exatos sete meses no poder. Com sua renúncia, a democracia mandava que o vice-presidente assumisse. Mas muita gente tentou impedi-lo. Militares fizeram manobras golpistas e Carlos Lacerda soltou o brado: “João Goulart não pode ser presidente”. Ora, naquela época, o vice era eleito separadamente. Jango havia sido eleito pela segunda vez. A primeira, como vice de Juscelino Kubitschek. Portanto, o povo o queria. E a Constituição brasileira também. Ocorre que o vice, no dia da renúncia de Jânio, estava em missão comercial na China comunista. Situação muito oportuna para os golpistas. Fato que houve manobras militares e tensões entre os políticos. O acordo possível foi João Goulart assumir o poder num sistema parlamentarista. Perfeito deus ex machina. Mas, em janeiro de 1963,

num plebiscito com 12 milhões de votantes, 10 milhões disseram não ao parlamentarismo. Na “campanha” pelo presidencialismo, Jango fizera o país conhecer o Plano Trienal, elaborado pelo ministro Celso Furtado. O plano preconizava as famosas reformas de base. Sendo as principais a administrativa, a bancária, a fiscal e a agrária. É nesse momento que o filme da história fica eletrizante, pois entram em cena o poder dos sindicatos urbanos, ligas camponesas, União Nacional dos Estudantes (UNE), além da força do Partido Comunista Brasileiro, o PCB (mesmo na ilegalidade). Também nascem a Ação Popular (AP) e a Política Operária (Polop). É o povo organizado. No cadeirão das reivindicações, os ingredientes são a reforma agrária, melhores salários, fim da inflação de mais de 50% ao ano, voto de analfabetos e elegibilidade de sargentos, não alinhamento automático aos interesses comerciais e políticos dos Estados Unidos. São demandas por prosperidade e justiça. Dentre elas, a que mais desagradou aos privilegiados e senhores de sempre foi a reforma agrária. Mexer nas leis da terra foi bulir com latifundiários e símbolos de poder. Com a aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural, de autoria do deputado Fernando Ferrari, o governo atiça a sanha da revanche. O presidente se torna uma personagem pressionada pelas exigências dos trabalhadores organizados e espremida pelo medo dos conservadores. Almino Affonso crê que Jango fez o que pôde no contexto de massas efervescentes e de golpistas prontos para o bote final. Até que o show de um governo popular termina com o general Mourão Filho movimentando tanques de guerra em Minas Gerais, altas patentes militares assanhadas, traições parlamentares, temores de uma anarquia civil e uma providencial mãozinha dos norte-americanos. Feito. No 1º de abril de 1964, o presidente João Goulart deixou Brasília para nunca mais. Foi o início da mais longa noite da recente história brasileira, com direito a tenebrosos pesadelos. Essas e outras passagens são contadas em detalhes documentados no sensível livro do democrata Almino Affonso. Fernanda Pompeu é redatora e escritora. Autora do livro 64, microcontos em torno da ditadura militar (Editora Brasiliense, 2006).


Sexualidade nas sociedades indígenas Glória Kok

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eduardo cesar

Moqueca de maridos: mitos eróticos indígenas Betty Mindlin e narradores Makurap, Tupari, Wajuru, Djeromitxí, Arikapú e Aruá Paz e Terra 322 páginas, R$ 45

ue sentidos lampejam nessas narrativas protagonizadas pelo amante Txopokod e a menina de pinguelo gigante, a cabeça voadora Nangüeretá, a namorada do Cobra-Cega, o sapo tororõi e outras figuras tão inesperadas? Enveredando por florestas densas de imagens de um tempo indiferenciado, em que homens, mulheres, animais e espíritos viviam em constante ebulição, esta Moqueca de maridos: mitos eróticos indígenas (publicada pela primeira vez em 1997 e traduzida para várias línguas), da antropóloga Betty Mindlin em coautoria com narradores Makurap, Tupari, Wajuru, Djeoromitxí, Arikapú e Aruá, é uma coletânea de mitos desconcertantes para os padrões de amor e erotismo do Ocidente. Na esteira de Mitológicas (1964), de Lévi-Strauss, Betty vem se dedicando desde a década de 1970 a documentar as tradições orais dos povos indígenas. Como afirma a autora, “o registro dos mitos é um caminho para a afirmação cultural, para lembrar a riqueza da diferença entre as sociedades e o direito de manter tradições diferentes” – e boa parte do material que coligiu resultou na organização de livros em coautoria com narradores indígenas, como Terra grávida (Rosa dos Tempos/Record, 1999), Couro dos espíritos (Senac/Terceiro Nome, 2001), Mitos indígenas (Ática, 2006) e Vozes da origem (Record, 2007). Moqueca de maridos trata da complexa batalha das sexualidades – envolvendo violência, sedução, erotismo, alimentação e metamorfoses do corpo em trânsito pelos mundos aquáticos, terrestres e celestes – no contexto de seis povos indígenas de Rondônia, com distintas línguas e tradições (dos 67 mitos reunidos, 20 são Makurap, 17 Tupari, 8 Wajuru, 10 Djeromitxí, 4 Arikapú e 8 Aruá). O mito Makurap, “A cantiga Koman ou moqueca de maridos”, que dá o título ao volume, narra a aparição de uma velha Katxuréu numa lagoa para reprimir as meninas que apanhavam sapinhos e peixinhos, vistos por ela como “nossa música e nosso jenipapo” (elementos inerentes à cultura). Como entoava lindas cantigas, atraiu as mães para aprenderem as canções e dançarem. Em troca, a velha exigiu das mulheres a carne de um marido por dia para comer. Desconfiado, um rapaz fingindo-se de doente, ao avistar uma delas carregando o marido mor-

to, avisou os homens, que surpreenderam suas mulheres dançando ao som da taboca da velha e comendo um marido bem cozido. Como vingança, flecharam e mataram todas, excetuando a velha, que escapou para a lagoa, e duas meninas escondidas na casa do cacique, que continuaram a preparar a chicha doce que só as mulheres sabem fazer. Quando casaram, o povo Makurap cresceu e aprendeu a cantiga Koman. Narrado originalmente em tupari, língua do tronco tupi, este mito contemporâneo remete ao circuito de vingança dos antigos rituais de antropofagia dos Tupinambá, sinalizando, entretanto, a inversão dos papéis. Se, no passado, a captura e a morte do inimigo circunscreviam-se ao domínio dos homens, neste mito são as mulheres as protagonistas. O massacre é o divisor temporal que restaura o papel cultural dos gêneros: os homens recuperam o ethos guerreiro, enquanto as mulheres voltam às atividades domésticas de fazer chicha, casar e povoar a aldeia. Somente a velha, insaciável em seus apetites, mantém viva a espiral de vingança arquetípica, lançando o desafio: “– É com esses dentes afiados que eu comi vocês, comi muitos homens!”. Tal voracidade lembra a da índia do relato do jesuíta Simão de Vasconcelos em Crônica da Companhia de Jesus (Vozes, vol. 1, 1977, p. 200), que, “no último da vida”, implora por “uma mãozinha de um rapaz Tapuia de pouca idade tenrinha para chupar os ossinhos”. Assim, cada mito anima a imaginação e suscita interrogações acerca dos lugares da sexualidade e das imagens do corpo em sociedades indígenas contemporâneas. Vale notar que a presente edição revista pela autora traz, além de novos textos e comentários, a introdução de Maurizio Gnerre, dados sobre os grupos indígenas citados, um glossário e um caderno com belíssimas fotografias do etnólogo Emil Snethlage, que visitou o Guaporé entre 1933 e 1935, e do antropólogo Franz Caspar, que viveu com os Tupari em 1948. Glória Kok é pesquisadora do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP e autora de O sertão itinerante. Expedições da capitania de São Paulo no século XVIII (Hucitec/FAPESP, 2004); Os vivos e os mortos na América portuguesa: da antropofagia à água do batismo (Unicamp/ FAPESP, 2001), entre outras publicações.

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carreiras

Pesquisa aplicada

Alunos para doutorado acadêmico industrial Programa-piloto da UFABC com apoio do CNPq oferece doutorado vinculado a geração de produto Desde o início de outubro até o dia 10 de novembro estão abertas as inscrições para o processo de seleção no programa de Doutorado Acadêmico Industrial (DAI) da Universidade Federal do ABC (UFABC), em Santo André, na Grande São Paulo. “Somos a única universidade que desenvolve um projeto desse tipo, por isso ele ainda é considerado como piloto”, diz o professor Wagner Alves Carvalho, coordenador do programa. “A ideia que deu origem a essa proposta é que o doutorando precisa, além de produção científica e defesa da tese, gerar no final um produto que possa ser aplicado no setor produtivo”, relata. O programa, resultado de 96 | novembro DE 2014

um acordo feito com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), foi iniciado em agosto de 2013. Atualmente são quatro os projetos em andamento, distribuídos nas áreas de nanociências em materiais avançados e energia. Carvalho explica que para a empresa ser parceira no programa ela precisa ter dentro da sua estrutura pelo menos um profissional que atue com pesquisa, desenvolvimento e inovação. “O projeto é concebido em parceria entre a universidade e a empresa”, diz. Cabe à empresa oferecer a infraestrutura para o desenvolvimento do projeto de e indicar um supervisor industrial,

que atua como um co-orientador. Ao mesmo tempo, o aluno também tem um orientador acadêmico e toda a infraestrutura da universidade à disposição. “Temos um grupo de orientadores cadastrados que faz a ponte com o supervisor industrial”, diz Carvalho. De modo geral, os alunos que procuram o doutorado acadêmico já sabem em que área pretendem atuar e quais as empresas de interesse. Mas a universidade também tem uma lista de companhias dispostas a receber os alunos na fase de pré-doutorado, como é chamada a primeira etapa de prospecção do projeto de pesquisa (mais informações no link http://propg. ufabc.edu.br/doutorado-academico-


foto  arquivo pessoal  ilustraçãO  daniel bueno

industrial-dai/). Uma parte dessas empresas foi contatada por meio dos próprios orientadores, que já mantém colaborações em projetos de pesquisa, e outras pela agência de inovação da universidade. Carvalho relata que quando faz apresentações do programa em empresas a primeira pergunta que ouve é: “qual a nossa contrapartida financeira?”. Essa contrapartida limita-se ao seguro, auxílio-alimentação e transporte para o aluno selecionado, os mesmos benefícios dados aos funcionários. No processo de inscrição, além dos documentos normalmente solicitados nesses processos seletivos, os interessados precisam apresentar uma carta de motivação e duas cartas de recomendação. “Na carta de motivação é preciso também justificar a razão pela qual ele está se candidatando a esse tipo de programa, e não a um programa acadêmico clássico, já que os perfis são distintos”, diz Carvalho. Os selecionados são matriculados na universidade inicialmente como alunos especiais vinculados ao doutorado acadêmico industrial. “Durante seis meses eles ficam integralmente na empresa, para prospecção dos possíveis projetos de pesquisa que poderão ser desenvolvidos.” Identificada a proposta de pesquisa, o aluno escreve o projeto e o encaminha ao programa para ser então submetido a aprovação do supervisor industrial e do orientador acadêmico. “A proposta precisa ter tanto a abrangência de um projeto de doutorado clássico como o assunto escolhido ser de interesse da empresa. “Após a aprovação do projeto, é feita a matrícula do doutorando em um dos programas regulares de pós-graduação. Desde o pré-doutorado, quando o aluno entra na empresa, ele já começa a receber uma bolsa do CNPq por até seis meses, que se estenderá por mais 48 após a aprovação do doutorado.

expectativas

O que se espera de um trainee Iniciativa, trabalho em equipe e relacionamento são qualidades esperadas de candidatos em processo seletivo As empresas, mesmo quando próximas em seus ramos de atuação, procuram competências distintas em seus candidatos aos programas de trainee. Essa é uma das conclusões da tese de doutorado de Fabíola Sarubbi Marangoni, intitulada “Os profissionais de administração: entre as competências desenvolvidas nos cursos de graduação e as competências requeridas pelo mundo do trabalho”, defendida em outubro na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP). “Quando as empresas procuram, por exemplo, competências éticas nos candidatos, elas não se preocupam tanto com as funcionais [ligadas às tarefas] e cognitivas [que reúne as formas de conhecimento]”, diz Fabíola, de 32 anos. A partir de 2015, ela dará aulas no Centro Universitário da FEI sobre comportamento organizacional. “Quando elas querem competências pessoais, como liderança e iniciativa, as metacompetências [comunicação, criatividade, resolução de problemas] ficam em segundo plano.” A surpresa do estudo foi que algumas competências identificadas na literatura como fundamentais ao administrador, como pensamento crítico e criatividade, figuraram entre as menos valorizadas pelas empresas que participaram do estudo. As três competências consideradas mais importantes

nos processos seletivos foram: ter iniciativa, trabalhar em equipe e construir relacionamentos e colaborações. Como as empresas de trainee em geral escolhem estudantes oriundos de cursos de excelência, a pesquisadora selecionou aqueles mais bem classificados pelo Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) e pelo Guia do estudante, da Editora Abril, para a pesquisa qualitativa. Dez coordenadores dos cursos das regiões Sul e Sudeste, exceto Rio de Janeiro, participaram da pesquisa. Na abordagem quantitativa foi feita uma coleta de informações por meio de questionários, com 377 formandos em administração dessas instituições e 25 empresas com programas de trainee. Os fatores destacados pelos coordenadores de cursos como importantes foram: ética, empreendedorismo, projeto pedagógico, currículo, competência, carreira, expectativa do mercado, perfil, teoria e prática, estágio, intercâmbio, interdisciplinaridade, professores, estudantes e autonomia. Em linhas gerais, os estudantes fizeram uma autoavaliação positiva. Fabíola ressalta que as competências exigidas pelas empresas dos trainees não são as únicas que merecem atenção nos cursos de administração, porque as exigências mudam em cada etapa da carreira profissional e da área de atuação. Em seu estudo, Fabíola foi orientada pelo professor Hamilton Luiz Corrêa, da FEA-USP, e teve a colaboração da Cia. de Talentos, gestora de programas de trainee. PESQUISA FAPESP 225 | 97


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98 | novembro DE 2014


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