Ciência e Tecnologia
ESPECIAL
DUPLA HÉLICE
50 ANOS
no Brasil
Ciência e Tecnologia no Brasil ESPECIAL
www.revistapesquisa.fapesp.br
ARTIGOS
REPORTAGENS
OS GÊNIOS E O GENE
OS CHAPELEIROS MALUCOS
ROGÉRIO MENEGHINI
As descobertas de Watson e Crick desafiam os analistas a tentar adivinhar futuras conquistas . . . . . . . . . . 12
Por que a descoberta do modelo do DNA há 50 anos, por Watson e Crick, ainda desperta tanto entusiasmo . . . . 6 QUEBRA-CABEÇAS DA COMPLEXIDADE EMMANUEL DIAS NETO
Conhecimento da seqüência de um genoma não basta para entender nossa carga genética . . . . . . . . . . . . 15 GENOMA: UM BALANÇO PRELIMINAR JOSÉ FERNANDO PEREZ
Cientistas brasileiros são atores importantes na ciência e na biotecnologia de Watson e Crick . . . . . . . . . . 20 O GENOMA HUMANO 50 ANOS APÓS A DESCOBERTA DA DUPLA HÉLICE DO DNA MAYANA ZATZ
As celebrações dos 50 anos são um bom momento para refletir os limites éticos e as possibilidades reais . . . . . . . 26 CIÊNCIA GENÉTICA E AÇÃO DIGITAL JOÃO CARLOS SETUBAL
A. BARRINGTON BROWN/SPL
Gerações futuras descobrirão que há pouca distância entre a invenção do computador e a descoberta do DNA . . . . . . 37
4
■
PESQUISA FAPESP ESPECIAL
A CULTURA AMEAÇADA PELA NATUREZA RENATO JANINE RIBEIRO
Genoma Humano pode mostrar que problemas em nosso comportamento têm base genética . . . . . . . . . . 38
INTERLÚDIO DA BIOLOGIA MOLECULAR
Depois do seqüenciamento, será a vez de se criar a patologia e a farmacologia genômicas . . . . . . . . . . . . . . . 24 APOSTA CONTRA O CÂNCER
Andrew Simpson diz que o Brasil deveria investir no desenvolvimento de fármacos contra tumores . . . . . 29 COLABORAÇÃO DO BRASIL AO MUNDO
Ação integrada do setor público e empresas impulsiona pesquisa em biotecnologia . . . . . . . . . . 30 A REVOLUÇÃO DA BIOINFORMÁTICA
Nos próximos anos, haverá mudanças em todas as ciências em torno da biologia molecular . . . . . . . 34 FICÇÃO DNA: A REVANCHE
O escritor e médico Moacyr Scliar escreveu para Pesquisa FAPESP um conto sobre o DNA . . . . . . 41 Capa: Hélio de Almeida Fotos: Fabio Colombini, Miguel Boyayan, Sirio J. B. Cançado, Rudi Turner/ Universidade de Indiana, Eduardo Cesar, Delfim Martins/Pulsar, Sanger Centre, Vanderlei Rodrigues/USP, Walter Colli/ IQ-USP, Eduardo Alves/Esalq/USP
ISSN 1519-8774
ESPECIAL
CARTA DO EDITOR
Meio século de uma revolução
FAPESP CARLOS VOGT PRESIDENTE PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADO VICE-PRESIDENTE CONSELHO SUPERIOR ADILSON AVANSI DE ABREU, ALAIN FLORENT STEMPFER, CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, CARLOS VOGT, FERNANDO VASCO LEÇA DO NASCIMENTO, HERMANN WEVER, JOSÉ JOBSON DE ANDRADE ARRUDA, MARCOS MACARI, NILSON DIAS VIEIRA JUNIOR, PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADO, RICARDO RENZO BRENTANI, VAHAN AGOPYAN CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO FRANCISCO ROMEU LANDI DIRETOR PRESIDENTE JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO JOSÉ FERNANDO PEREZ DIRETOR CIENTÍFICO
PESQUISA FAPESP CONSELHO EDITORIAL ANTONIO CECHELLI DE MATOS PAIVA, EDGAR DUTRA ZANOTTO, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA COUTINHO, FRANCISCO ROMEU LANDI, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, JOSÉ FERNANDO PEREZ, LUÍS NUNES DE OLIVEIRA, LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS, PAULA MONTERO, ROGÉRIO MENEGHINI DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS DIRETOR DE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA EDITOR DO ESPECIAL CARLOS HAAG CHEFE DE ARTE TÂNIA MARIA DOS SANTOS DIAGRAMAÇÃO JOSÉ ROBERTO MEDDA, LUCIANA FACCHINI FOTÓGRAFOS EDUARDO CESAR, MIGUEL BOYAYAN COLABORADORES CARLOS FIORAVANTI (EDITOR DE CIÊNCIA), CLAUDIUS, EDUARDO GERAQUE, EMMANUEL DIAS NETO, JOÃO CARLOS SETUBAL, JORGE COTRIN (REVISOR), MARCOS PIVETTA (REPÓRTER ESPECIAL), MAYANA ZATZ, MOACYR SCLIAR, REINALDO JOSÉ LOPES, RENATO JANINE RIBEIRO RICARDO ZORZETTO (EDITOR-ASSISTENTE), ROGÉRIO MENEGHINI, SIRIO J. B. CANÇADO ASSINATURAS TELETARGET TEL. (11) 3038-1434 – FAX: (11) 3038-1418
e-mail: fapesp@teletarget.com.br APOIO DE MARKETING SINGULAR ARQUITETURA DE MÍDIA singular@singular.com.br PUBLICIDADE TEL/FAX: (11) 3838-4008 e-mail: redacao@fapesp.br PRÉ-IMPRESSÃO GRAPHBOX-CARAN IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRÁFICA DISTRIBUIÇÃO DINAP FAPESP RUA PIO XI, Nº 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA – SÃO PAULO – SP TEL. (11) 3838-4000 – FAX: (11) 3838-4181
http://www.revistapesquisa.fapesp.br cartas@fapesp.br NÚMEROS ATRASADOS TEL. (11) 3038-1438
Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO
SECRETARIA DA CIÊNCIA TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
L
ivros, jornais, revistas científicas e de divulgação científica do mundo inteiro vêm dedicando desde o começo do ano páginas abundantes à comemoração dos 50 anos da descoberta da estrutura molecular do DNA pelos pesquisadores Francis Crick, britânico, e James Watson, norte-americano. Nada mais justo. Materializada no modelo da dupla hélice que eles mesmos construíram e puderam admirar em 7 de março de 1953, e explicada à comunidade científica internacional em apenas 939 palavras num artigo publicado pela Nature, em 25 de abril do mesmo ano, a descoberta é considerada uma espécie de pedra fundamental da biologia molecular. É, portanto, ponto de partida de uma área científica que avança a passos largos e se desdobra hoje em excitantes zonas de fronteira do conhecimento, que alteram anteriores percepções sobre a vida e traz para o homem possibilidades até há pouco inimagináveis de manipulação dos organismos vivos. Pesquisa FAPESP, com esta edição especial, junta-se às dezenas, talvez centenas de títulos que neste momento exploram os significados da descoberta de Crick e Watson, e o faz, entretanto, respeitando seu propósito editorial central, que é o de mostrar resultados importantes da pesquisa científica e tecnológica no Brasil. Assim, articula ao desvendamento original da estrutura molecular do DNA, a sistemática e consistente pesquisa genômica hoje em curso no país, dentro da qual há que se assinalar, obrigatoriamente, o pioneirismo e o papel organizador da FAPESP. Observemos aqui que três décadas se passariam entre a construção do modelo da dupla hélice e o desenvolvimento da tecnologia que iria permitir o acesso ao interior da estrutura molecular do DNA e às regiões até então insondáveis dos genes. Só na segunda metade dos anos 80 começariam nos países mais desenvolvidos a pesquisa de genes responsáveis por doenças humanas, os primeiros projetos de seqüenciamento genético de micro e macrorganismos, os
primeiros desenvolvimentos de alimentos transgênicos. Considerado isso, o Brasil não se atrasou tanto para pôr o seu time organizadamente em campo. Porque foi em meados da década de 90 que alguns pesquisadores e formuladores da política científica e tecnológica deram-se conta de que algo precisava ser feito para reverter uma situação que mostrava a pesquisa científica, como um todo, avançando no país a taxas mais elevadas que as das médias mundiais, enquanto a pesquisa em molecular crescia não só abaixo das taxas nacionais em geral, como era inferior aos índices internacionais da área. Foi aí que a FAPESP decidiu montar um projeto de seqüenciamento genético de um microrganismo importante do ponto de vista científico, econômico e, ao mesmo tempo, capaz de elevar rapidamente a competência local em biologia molecular. O primeiro capítulo dessa história chama-se Xylella fastidiosa. E para falar simultaneamente da já longa aventura internacional que a dupla hélice inaugurou e de seus capítulos brasileiros, nesta edição alinham-se pesquisadores como Rogério Meneghini, que escreve um belo review da genética molecular; Emmanuel Dias Neto, que aborda o estado da arte e as fronteiras a explorar nesse vasto campo; Renato Janine Ribeiro, que trata das questões que a mudança de paradigmas ora proposta pela biologia levanta para as ciências humanas; Mayana Zatz, com um pequeno resumo das conseqüências da pesquisa em genômica para a saúde humana e João Setubal, que também resume o que esperar da bioinformática, área de pesquisa cujo nascimento resulta praticamente de exigências da biologia molecular. O diretor científico da FAPESP, José Fernando Perez, abre com um balanço preliminar sobre a genômica no Brasil as páginas destinadas à pesquisa no país. E, para fechar, com um brinde aos leitores, um delicioso conto de Moacyr Scliar – tudo isso entremeado pelo humor agudo de Claudius. MARILUCE MOURA - DIRETORA DE REDAÇÃO PESQUISA FAPESP ESPECIAL
■
5
DUPLA HÉLICE 50 ANOS
Os gênios e o gene Por que a descoberta do modelo do DNA há 50 anos, por Watson e Crick, ainda desperta tanto entusiasmo
A. BARRINGTON BROWN/SPL
R O GÉRIO M ENEGHINI *
James Watson (à esq.) e Francis Crick em 1953, diante do modelo do DNA
* ROGÉRIO MENEGHINI é professor titular aposentado do Departamento de Bioquímica do Instituto de Química da USP e coordenador da SMolBNet – Rede de Biologia Molecular Estrutural 6
■
PESQUISA FAPESP ESPECIAL
H
á 50 anos a revista Nature publicava, no número de 25 de abril de 1953, o artigo de James Watson e Francis Crick no qual a estrutura tridimensional do sal do ácido desoxirribonucléico (DNA) era apresentada. Eram duas páginas em que a primeira sentença começava:“Nós gostaríamos de sugerir uma estrutura para o sal do ácido desoxirribonucléico. Esta estrutura tem características inéditas que são de considerável interesse biológico”. Terminava com: “Não nos escapou que o pareamento específico (de bases) que nós postulamos sugere imediatamente um possível mecanismo de cópia para o material genético”. Esta última sentença tem sido considerada como sendo uma das mais falsamente modestas da literatura científica. Muito já se escreveu sobre a história dessa descoberta em livros e artigos. Eles incluem desde o “best-seller” de 1968 de Watson, A Dupla Hélice, até livros mais recentes, entre eles dois de autores brasileiros, História da Biologia Molecular, de Rudolf Hausmann (agora na Universidade de Freiburg, Alemanha), e Watson e Crick, a História da Descoberta do DNA, por Ricardo Ferreira (Universidade Federal de Pernambuco). Provavelmente os mais famosos são A Dupla Hélice e The Eight Day of Creation, por Horace F. Judson (Simon and Schuster, New York, 1979). O primeiro é uma versão do próprio Watson da história da descoberta, onde, talvez por desejar que se tornasse um livro “best-seller”, ou pela sua própria personalidade, imprimiu um roteiro que destacava os episódios mais novelescos dos acontecimentos. Conta como conseguiu obter de ma-
neira escusa informações de dados cristalográficos de concorrentes (Rosalind Franklin, química e cristalógrafa do King’s College de Londres), escarnece de outro concorrente (Erwin Chargaff, bioquímico da Universidade de Colúmbia em Nova York), que criticava mordazmente a ignorância de Crick e Watson a respeito da estrutura química das bases do DNA, Adenina (A) Timina (T), Guanina (G) e Citosina (C). Chargaff tinha descoberto, no final da década de 40, que em todas as amostras de DNA analisadas o conteúdo de A igualava ao de T, enquanto o conteúdo de G igualava ao de C e tentava desmoralizar Linus Pauling (químico ícone do século 20, na época professor do Califórnia Institute of Technology, que publicou em 1952 uma sugestão da estrutura do DNA, onde três hélices se entrelaçavam e onde o fosfato aparecia protonado e sem carga; no pH fisiológico, cerca de sete, o fosfato deveria ter uma carga negativa, como aprendem os alunos de curso básico de química). Watson tinha 23 anos quando se revelou a dupla hélice. Desde então sua personalidade cáustica tendeu a fazer com que lhe atribuíssem o papel de vilão da descoberta. Divertido, mas não confiável em termos históricos, o livro A Dupla Hélice foi escrito numa época em que Watson já desistia da carreira de cientista para tornar-se um administrador de ciências (certamente os atributos demonstrados em seu livro o qualificavam para isso). No final da década de 1980, Watson liderou o início do projeto de seqüenciamento do genoma humano. Sem dúvida, quem quiser formar a sua própria história da descoberta (e muitas podem ser criadas, como os leitores podem ter notado de outras lei-
turas) deve recorrer ao livro The Eigh Day of James Creation, de Judson. Trata-se de uma soberba e Watson extensa obra (650 pági- tinha só nas) de jornalismo científico. Judson levou sete 23 anos anos entrevistando os personagens envolvidos em 1953 no desenrolar dos acontecimentos, freqüentemente contrastando depoimentos e analisando documentos, trabalhos científicos e cadernos de laboratório. Atingiu o clímax de sua atividade profissional quando, além de relatar e interpretar as várias facetas das informações colhidas, chega o ponto de explicar, com seus próprios termos e compreensão, a parte técnica que cercava a descoberta. Por que mais um artigo? Creio que Pesquisa FAPESP não pode deixar de lembrar esse acontecimento, assim como tantas outras revistas de ciência. Quanto a eu aceitar o convite para escrever algo sobre este assunto, foi porque tive um forte entusiasmo ao tomar conhecimento dessa descoberta em 1963 e acompanhei muito o que se escreveu posteriormente sobre ela. Afinal, a partir de 1965, trabalhei em um dos poucos laboratórios que faziam biologia molecular no Brasil naquela época, o do professor Francisco J. S. Lara. Por que essa descoberta despertou tão efusivos entusiasmo e encantamento, ao longo dos anos que se seguiram? Watson diz em seu Dupla Hélice que foi a maior descoberta da biologia desde a teoria da evolução, de Darwin. Por outro lado, Crick, no dia da concepção da estrutura, entrou num pub, PESQUISA FAPESP ESPECIAL
■
7
no campus da Universidade de Cambridge, gritando: “O descobrimos o segredo da vida!”. À parte desses testemunhos dos autores, o fato é que muitos outros cientistas vieram a compartilhar dessas afirmações ao longo dos anos. O que levou à unicidade dessa descoberta? Provavelmente foi um amálgama de fatores, com uma probabilidade muito pequena de novamente ocorrer e que misturou ciência com aventura e arte. Em primeiro lugar a estrutura tem uma beleBeleza za intrínseca, perceptível mesmo para os leigos. intrínseca Em segundo lugar, há lógica química era visível no uma arranjo estrutural até para que imediatamente peruma interpretação leigos mite biológica para a molécula do DNA. Embora o termo biologia molecular tenha sido cunhado em 1935 por Warren Weaver, da Fundação Rockefeller, para descrever como os fenômenos biológicos podem ser compreendidos fundamentalmente pelo conhecimento das estruturas das moléculas e das interações e alterações destas, apenas em 1953 é que se percebeu de forma dramática esta correlação estrutura-função, com a descoberta da dupla hélice. Essa descoberta é, portanto, um marco frente ao passado e ao futuro, no que diz respeito a essa biologia molecular, hoje mais conhecida como biologia molecular estrutural. Em terceiro lugar foi uma luta de dois jovens Davis contra um Golias poderoso. De fato, Linus Pauling já tinha descoberto a estrutura helicoidal de proteínas (α-hélice) juntamente com Robert Corey, e tinha informações que a estrutura do DNA também poderia ser helicoidal. Pauling era uma eminência da físico-química, já com mais de 50 anos, e iria ganhar o Prêmio Nobel em 1954 pelos seus trabalhos com estrutura de proteínas. Watson e Crick sabiam das intenções de Pauling e obviamente temiam ser superados na corrida. A figura da estrutura de DNA é tão ubíqua que não cabe apresentá-la aqui. Sumariamente, a estrutura pos8
■
PESQUISA FAPESP ESPECIAL
sui duas hélices que se entrelaçam, formando uma dupla hélice. Imaginando um eixo que corre no centro da dupla hélice, o arcabouço de cada hélice é formado pela seqüência de um açúcar (desoxirribose) ligado a um fosfato, essa unidade se ligando a outra idêntica inúmeras vezes, de forma paralela ao eixo da dupla hélice. O resultado seria açúcar-fosfato-açúcar-fosfato e assim por diante. Uma hélice simples tem uma polaridade, isto é, percorrendo-a num sentido é diferente de percorrê-la no sentido oposto. Um dado fundamental é que as duas hélices do DNA se entrelaçam com polaridades opostas (chamadas de hélices antiparalelas). A dupla hélice se enrola no sentido horário. Procure enrolar em espiral uma fita de papel ao redor de um lápis. Será possível fazê-lo de duas formas, no sentido horário ou anti-horário. As duas hélices assim obtidas são assimétricas e distintas, uma sendo a imagem de espelho da outra. É o mesmo que uma mão se refletindo num espelho. A mão direita é a imagem da esquerda e vice-versa.
A
s bases A, T, C, G correspondem ao terceiro componente do DNA. Elas têm estruturas planares e estão também ligadas ao açúcar. Porém os seus planos se dispõem ortogonalmente ao eixo da hélice. Elas têm um pareamento específico num mesmo plano: A numa hélice se contrapõe a T na outra ou G numa hélice a C na outra. As hélices são por isso ditas complementares. Nota-se que, por causa desse pareamento específico, num certo DNA a quantidade de bases G é igual a C e a quantidade de G é igual a T, como tinha descoberto Chargaff. A ligação química que une as bases é chamada de ponte de hidrogênio. Essas forças são importantes elementos de estabilização da dupla hélice. Entre A e T há duas pontes de hidrogênio, enquanto entre G e C há três. Se olharmos esses pares de bases de cima, veremos que eles têm dimensões e forma quase idênticas, de modo a permitir que o diâmetro da dupla hélice permaneça constante ao longo do eixo. Se olharmos a dupla hélice de perfil, veremos que os pares de bases estão em-
pilhados, de forma ortogonal ao eixo, e com um recobrimento parcial por causa da volta da hélice. Seria como se tomássemos pedras de dominó (representando os pares e base) e as empilhássemos, fazendo com que a de cima forme um ângulo de 36 graus de giro com a de baixo. Se empilhássemos dez pedras, completaríamos 360 graus, isto é, uma volta da dupla hélice corresponde a dez pares de bases. A distância entre os pares de bases é de 3,4 angströns (um angström equivale a 10-10 metros), de maneira que o passo da dupla hélice (distância ao longo do eixo correspondente a uma volta completa) é de 34 angströns. Certamente os elementos fundamentais dessa estrutura forneciam explicação completa das duas propriedades mais importantes do gene: a codificação de proteínas, dada pela seqüência de bases, e a duplicação do gene: as fitas complementares A e B se separariam e seriam copiadas, A dando uma nova fita B e B, uma nova A. Duas novas dupla hélices AB e BA, idênticas a dupla hélice mãe AB, seriam formadas. O encontro de Watson e Crick é o que se pode chamar de fortuita complementaridade moldada para a descoberta que viriam a fazer. Ambos tinham lido o livro do famoso físico Erwin Schrodinger O que É a Vida? publicado em 1944. Muitos biólogos, físicos e químicos ficaram magnetizados pelas especulações de Schrodinger a respeito da natureza química do gene, até então desconhecida. Schrodinger chamava o material genético de sólido aperiódico. Aperiódico porque não poderia ser repetitivo como um cristal de cloreto de sódio, senão, como poderia codificar tantas características distintas de um organismo? Sólido porque o gene não poderia ter as propriedades de substância orgânica comum, isto é, de sofrer mudanças químicas numa taxa relativamente alta à temperatura ambiente, incompatível com a estabilidade do gene. Schrodinger argumentava essa estabilidade com o exemplo dos membros da dinastia Habsburg da Áustria, cujos retratos, que retroagiam dois séculos, mostravam freqüentemente uma má-formação labial. Sem dúvida a estabilidade do material genético é hoje explicada
E
m 1946, Oswald Avery e seus colaboradores demonstraram que DNA constituía o material genético. Não é surpreendente, portanto, que vários cientistas estivessem interessados em DNA no início da década de 50: virologistas, físicos, químicos e biologistas estruturais. Não é surpreendente, tampouco, que Watson, encontrando-se num congresso em Nápoles com Maurice Wilkins, tenha ficado excitado ao saber do interesse de cientistas do King’s College, ao qual Wilkins pertencia, e do Cavendish Laboratory em Cambridge por estudos estruturais de DNA. Conseguiu sair de Copenhague, onde realizava um pósdoutoramento, e com a ajuda de Salvador Luria, renomado geneticista então na Universidade de Illinois e orientador do doutorado de Watson,
mudar-se eventualmente para Cambridge, no Laboratório Cavendish. Lá conheceu Crick em outubro de 1951, que com 35 anos trabalhava com a estrutura de hemoglobina como material de tese de doutoramento (na sua juventude trabalhou durante a guerra como físico de radares, daí esse atraso). Começou assim, a grande aventura. Ambos tinham os mesmos interesses. Eram jovens e desconhecidos. Sabiam quase nada sobre a estrutura química do DNA. Alguns resultados de difração de raios X do King’s college, obtidos por Maurice Wilkins e separadamente por Rosalind Franklin, sugeriam uma estrutura helicoidal. Falavam com grande entusiasmo, e eram brilhantes. Contagiaram Max Perutz – que iria posteriormente elucidar a estrutura tridimensional da hemoglobina –, que, por sua vez, convenceu Sir Lawrence Bragg (diretor do Cavendish) a deixálos trabalhar com DNA. Crick insistia que eles não tinham que se preocupar muito com os fatos e sim com a estrutura em si, baseandose em dados de difração de raios X e utilizando uma mistura de intuição e CLAUDIUS
pelo processo de reparo do DNA e certamente Schrodinger usava o termo sólido como metáfora. Ademais o material genético deveria ter propriedades que permitissem a sua reprodução.
dedução, com o emprego apenas de modelos de átomos introduzidos por Pauling para definir estruturas de proteína. Olhando por outro ângulo, que mais poderiam fazer? Não sabiam como preparar amostras de DNA, jamais tinham trabalhado com um gerador de raios X para obter fotos de difração de raios X, e tinham conhecimentos parcos da química do material genético. Crick tinha uma vantagem, que era a de saber interpretar dados de difração de raios X. Os conhecimentos de genética de vírus e bactérias de Watson, trazidos do Crick laboratório de Luria, de pouco adiantavam nesse não queria cenário. Como foi pos- perder sível que em um ano e meio estivessem publi- tempo em cando o trabalho na revista Nature com a defi- fatos nição da estrutura dupla hélice? Há vários episódios relevantes: em novembro de 1951, Watson compareceu a um seminário de Rosalind Franklin no King’s College, que comentava sobre suas fotos de difração de raios X em fibras de DNA. Vários dados importantes foram apresentados: a unidade cristalina (a unidade que se repete e que fornece o padrão de difração) indicava uma grande hélice contendo duas, três ou quatro cadeias, várias moléculas de água (cerca de oito) e nas quais os fosfatos estavam na interface da hélice e do solvente aquoso (isto é, ao lado externo da hélice, ao contrário do que a estrutura proposta por Pauling mostrava). Vários relatos indicam que Watson conseguiu captar muito pouco do que Rosalind discutiu e, pior, não tomou nota de nada. Quando questionado por Crick, forneceu, de memória, dados errados; principalmente falhou quanto aos números do alto conteúdo de água por unidade cristalina. Um primeiro modelo foi construído, baseado nessas premissas errôneas, e logo desqualificado por vários colegas do Cavendish e do King’s College. Crick argumentou mais tarde que esse fracasso não teria sido só culpa de Watson, por ter fornecido dados errados, mas também dele próprio por não saber química suficiente para perceber que as cargas dos fosfatos PESQUISA FAPESP ESPECIAL
■
9
implicariam alto conteúdo de água, não levado em conta no modelo. Por interferência de John Randall (King’s College) com Bragg, Watson e Crick tiveram de desistir de trabalhar com DNA, deixando isso para o pessoal do King’s College. Crick voltou para sua tese com a hemoglobina e Watson induziu o crescimento de cristais de proteína para Randall. Que mais poderiam fazer, sem emprego e numa situação transitória, de passagem por onde estavam? No entanto, 15 meses depois, Watson e Crick publicavam a estrutura correta do DNA. O ponto de virada deu-se com a publicação de uma possível estrutura do DNA por Pauling, também quimicamente sem consistência. A simples publicação, no entanto, acirrou De início os os ânimos do Cavendish. Não se conformamodelos vam por terem perdido para Pauling eram anacorrida descoberta das estrumuito turas α-hélice e folha β-pregueada de proteítoscos nas e não poderiam perder novamente com o DNA. Bragg reativou Watson e sCrick. Nesse intervalo, tanto Watson como Crick tinham se preocupado em estabelecer bases teóricas mais sólidas para suas pretensões. Crick, juntamente com William Cochran e Vladimir Vand, publicou um artigo teórico sobre interpretação de difração de raios X em estruturas helicoidais. Por sua vez, Watson tentou entender melhor as estruturas das bases do DNA. O grande pulo do gato deu-se quando o relatório da equipe do King’s College para o Medical Research Council (que dava suporte financeiro para o grupo de cristalografia) passou pelas mãos de Perutz, que o entregou a Crick. Os dados recentes de Rosalind Franklin sobre medidas de difração de raios X de DNA estavam ali meticulosamente descritos. Dados reveladores aos olhos de observadores argutos como Crick tinham passado despercebidos por Rosalind Franklin. Anos depois, André Lwoff (Institut Pasteur) e, separadamente, Erwin Chargaff publicaram artigos questionando se Perutz 10
■
PESQUISA FAPESP ESPECIAL
tinha sido ético em disponibilizar o relatório do King’s College a Crick. Horace Judson, no livro The Eight Day of Creation, conta que examinou minuciosamente os cadernos de laboratório de R. Franklin. Segundo ele, Franklin não tinha se dado conta da importância de seus dados. Tinha descoberto que em condições mais úmidas o DNA passava de uma forma A para B, a qual claramente mostrava-se helicoidal. No entanto, voltou suas costas para a estrutura B e se preocupou mais com a estrutura A, questionando se esta correspondia a uma estrutura helicoidal. A estrutura B, além de mais reveladora em termos de definição por difração de raios X, deveria ser mais próxima da estrutura fisiológica, num meio aquoso.
C
rick percebeu claramente os parâmetros geométricos da unidade cristalina a partir dos dados de Franklin (afinal ele estava desenvolvendo uma tese de doutorado na qual a estrutura de proteínas prescindia inequivocamente desses parâmetros) que permitiram concluir que havia duas hélices, correndo em sentido antiparalelo, e que as bases estavam inquestionavelmente no interior da dupla hélice. No entanto, faltava entender como as bases de uma e outra cadeia interagiam mantendo uma estrutura mais rígida. Crick não aceitava as pontes de hidrogênio, tão popular naquele momento devido às descobertas de Pauling da importância delas na estrutura de proteínas. A partir de dados de livros, textos, Crick admitia que as bases tinham uma estrutura enólica e não ceto (uma cadeia carbônica, com um grupo OH ligado a um carbono, o qual se une a outro carbono por uma dupla ligação, pode estar em equilíbrio tautomérico com uma estrutura em que este mesmo carbono está ligado por dupla ao oxigênio). Aqui entra outro personagem, Jerry Donohue, vindo do grupo de Pauling, e que entendia de química mais do que qualquer investigador do Cavendish, e que naquela época estava nessa instituição. Ele percebeu imediatamente que Crick estava sendo dirigido por argumentações errôneas, pois as estruturas estáveis das bases deviam
estar na forma ceto, que permitia a formação de pontes de hidrogênio. A estrutura do DNA tornou-se então praticamente montada nas cabeças de Crick e Watson. O último lance parecia, no entanto, estar cabendo a Watson. Não conseguindo esperar pela fabricação de modelos atômicos pela oficina do Cavendish, que seriam utilizados para construir a estrutura do DNA compatível com todas essas informações, pôs-se a trabalhar com modelos de papelão que ele mesmo construiu. É quase inacreditável que a Watson tenha cabido a última palavra. Não tendo contribuído nem antes nem depois para maiores revelações científicas e por ter se apegado a conjecturas pouco esclarecedoras no episódio da descoberta (como, por exemplo, que pontes entre íons de magnésio e de fosfato estabilizariam a estrutura do DNA), teve uma revelação que o conduziu ao ponto final da descoberta. Com seus modelos toscos, pôde perceber que o pareamento de guanina e citosina e o de timina e adenina tinham contornos geométricos comparáveis e que duas pontes de hidrogênio nesses pares seriam, conforme os ensinamentos de Donohue, responsáveis pela estabilidade da dupla hélice. Dessa forma o diâmetro da dupla hélice permaneceria constante ao longo do eixo. Nenhum outro tipo de par permitia isso. Ademais, e igualmente importante, esses dois pareamentos fariam justiça aos dados de Chargaff, que, a bem da verdade, eram levados mais a sério por Watson do que por outros personagens envolvidos. É curioso que tanto Watson como Crick sabiam da regra de Chargaff e tinham inferido que ela era importante na replicação complementar. Porém, como notou Crick: “O paradoxo da coisa toda foi que, quando nós tínhamos todos os elos da estrutura prontos, não tínhamos usado a regra de Chargaff. Nós fomos empurrados para ela”. A estrutura do DNA com os modelos da oficina de Cavendish foi finalizada poucos dias depois. Porém, no dia seguinte ao vislumbre de Watson, 28 de fevereiro de 1953, este e Crick sabiam, embora só na cabeça, toda a estrutura: ela tinha emergido da sombra de bilhões de anos, absoluta e simples, e foi vista e entendida
CLAUDIUS
pela primeira vez, de acordo com o relato de Judson.
A
fascinação da descoberta é percebida por mais alguns fatos: Watson e Crick, embora jovens e sem posição acadêmica, conseguiram pelo próprio brilho ser o centro da atenção de uma comunidade de cientistas de primeira grandeza. Vários deles receberam Prêmio Nobel, posteriormente à descoberta da dupla hélice. Diretamente envolvidos com a epopéia da dupla hélice estiveram Lawerence Bragg (Nobel de Física em 1915), Linus Pauling (Nobel de Química em 1954), Alexander Todd (Nobel de Química, 1957), Maurice Wilkins (Nobel de Medicina ou Fisiologia em 1962), Max Perutz e John Kendrew (Nobel de Química em 1962). Como “mensageiros” estiveram André Lwoff e Jacques Monod (Nobel de Medicina ou Fisiologia em 1965) e Max Delbruck, Alfred Hershey e Salvador Luria (Nobel de Medicina ou Fisiologia
em 1969). Crick e Watson receberam o Prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia de 1962, nove anos após o anúncio da estrutura da dupla hélice. Quão complexa é a estrutura do DNA? Eis aqui a observação de Perutz, que acompanhou todos os episódios da descoberta: “Uma proteína é mil vezes mais difícil do que DNA. DNA foi comparativamente simples e pôde ser elucidado pelo método de tentativa. Há pouca informação a partir de uma fotografia de difração de raios X; o que Crick e Watson tinham era realmente três medidas limitadas: a largura, a altura entre bases paralelas empilhadas e a altura de uma volta completa da hélice. Desses dados eles sabiam que o mesmo padrão recorria periodicamente ao longo do eixo da fibra. Obedecendo esses três parâmetros, eles conseguiram resolver a estrutura com modelos de construção. Não é possível resolver a estrutura de proteína por esse método, pois não há padrões de repetição. Para determinar tais estruturas é preciso determinar
vários milhares de parâmetros a partir das fotografias de raios X”. Uma assertiva de Jacques Monod, um outro teórico da biologia molecular, parece colocar Crick no seu devido contexto: “Francis (Crick) de fato estudava mais do que nós. Ninguém descobriu ou criou a biologia molecular. No entanto, um homem dominou intelectualmente essa área, porque ele sabia mais do que nós e entendia mais do que nós: Francis Crick!”. O que aconteceria se os nomes de Watson e Crick fossem apagados da história da ciência, num exercício intelectual? Gunther Stent, famoso biologista molecular, argumentou: “Se Watson e Crick não tivessem descoberto a estrutura do DNA, ao invés de ela ser revelada com todo o seu glamour, seria apresentada com um gotejamento lento, de forma que seu impacto teria sido muito menor”. Com esse argumento, Stent sentencia que uma descoberta científica é mais um trabalho de arte do que em geral se admite. PESQUISA FAPESP ESPECIAL
■
11
DUPLA HÉLICE 50 ANOS
Os chapeleiros malucos As descobertas de Watson e Crick desafiam os analistas a tentar adivinhar futuras conquistas C ARLOS H AAG
E
les já foram descritos como dois “chapeleiros malucos conversando durante o chá” e, efetivamente, essa dupla, tão célebre como o modelo de hélice que revelaram, levou a biologia ao país das maravilhas. “Se percebemos, na época, o significado de nossa descoberta? Bem, Jim Watson lembra que anunciei no The Eagle, o pub local, que havíamos descoberto o segredo da vida”, afirma Francis Crick em um texto cedido com exclusividade para a revista Pesquisa FAPESP. “Na manhã de sábado, 28 de fevereiro de 1953, Jim estava preguiçosamente manuseando os modelos de metal que fizeramos do DNA e notou que um par AT tinha formato parecido com o de um par CG. Na hora, vimos que os pares de bases obedeciam a essas regras”, diz. “Os modelos tinham a simetria correta, ligdas por um eixo duplo perpendicular ao eixo da hélice”, lembra. Curiosamente, Watson não gostou da idéia. “Ele tentou, sem sucesso, construir uma espinha dorsal como se as duas cadeias fossem paralelas. Mas isso exigia uma rotação de 18 graus entre um nucleotídeo e outro, estreita demais, ao passo que as cadeias antiparalelas pediam 36 graus e a rotação era mais fácil”, fala. Estava revelada a pedra de roseta da configuração genética. “A dupla hélice iniciou uma cadeia explosiva de descobertas sobre como a vida funciona e as novas revelações vieram muito rapidamente”, observa Victor McElheny, ex-diretor do Cold Spring Harbor Laboratory, professor visitante do programa de Ciência e Tecnologia do MIT e autor do recémlançado Watson and DNA: Making a Scientific Revolution. Com inusitada modéstia, Crick faz uma ressalva da importância de seu trabalho.
12
■
PESQUISA FAPESP ESPECIAL
“Sem dúvida, ele foi fundamental. Mas nós não previmos o seqüenciamento do genoma humano. Enxergamos, no máximo, o código genético, embora tenhamos pensado erroneamente que o RNA ribossômico fosse o RNA mensageiro”, diz Crick. “Pensavamos que seqüenciar o DNA seria algo muito difícil e que tomaria muito tempo. Tampouco pudemos prever o DNA recombinante”, fala. “Mas isso é parte da ciência. Raras vezes pode-se antever algo corretamente mais do que dez ou 15 anos adiante. Descobertas inesperadas podem, com freqüência, alterar o quadro completamente”, avalia o pesquisador. McElheny reconhece que o futuro, atual, deve em muito ao empenho de Watson. “Ele forçou tudo para a frente. Jim sabia que era preciso fazer as pessoas entenderem que aquilo era e é uma revolução baseada em grandes problemas. E fez com que muitos jovens de talento fossem a campo para trabalhar sobre a descoberta da dupla. Watson ensinou gerações de cientistas como pensar a biologia”, observa o pesquisador. “Ele queria que toda seqüência de As, Ts, Gs e Cs do DNA humano, mais de 3 bilhões, viessem à luz no cinqüentenário da descoberta do modelo, quando ele completa 75 anos”, revela o autor da biografia do cientista. “Pena que boa parte das celebrações deste ano se concentrem na descoberta em si, no estado presente da ciência do DNA e nas esperanças e nos temores do uso do conhecimento biológico”, avisa. “Dá-se pouca atenção à cascata de descobertas, muitas surpresas, ao longo desses 50 anos e que levaram ao saber atual genético. Mas não duvido que o desejo de Jim Watson seja cumprido e ele ganhe esse belo presente de aniversário.”
“O futuro? Notem que, ao menos em termos de procariotes, a determinação da seqüência, do DNA para o RNA e para a proteína (o que Jim chama, incorretamente, de o Dogma Central), é, em termos de informação, um processo que apenas se auto-alimenta”, nota Crick. “Em verdade, para o futuro, somos confrontados não com um tal processo, mas com sistemas dinâmicos não-lineares, cuja teoria é fragmentária, complexa e confusa. Isso e as interações de grupos de proteínas em grandes compostos são os problemas que nos esperam à frente”, avalia o cientista. “Parece não haver limites para as questões que nos aguardam, mas não viverei para ver suas soluções. Mas muitos de vocês vão conseguir assistir ao nascimento de técnicas radicalmente novas e chegar a novas descobertas. Boa sorte”, diz Crick. Brincadeira - O jornalista Kevin Davies, editor da revista Bio-IT World e autor de Decifrando o Genoma, faz eco às declarações de Francis Crick. “Se pensarmos a genética como um campo de futebol, com certeza estamos no primeiro tempo. A genética do século 20 iniciou-se com a redescoberta das leis de Mendel e terminou com a seqüência do genoma. Mas nós temos outros cem anos para realmente entender como essa informação pode ser codificada em saúde e doença”, analisa. Se há muitas promessas para o futuro, o que realmente podemos esperar nas novas fronteiras da pesquisa? “O enfoque ainda está nos genes, em especial como eles se modificam, por exemplo, nos cânceres. Mas muitos já se voltam para o estudo da proteômica. Os cientistas, no entanto, avisam que os genes são brincadeira perto das proteínas”, acredita Kevin Davies.
“Hoje, a vasta ciência do DNA enfrenta muitas novas questões. Agora que a seqüência humana do DNA está quase completa, há a necessidade de fazer um dicionário completo de todas as proteínas que são “especificadas” pelo DNA e também precisaremos criar uma gramática da forma em que essas proteínas interagem umas com as outras. Os biólogos lutam para dar algum sentido da descoberta recente de um enxame de pequenas moléculas de RNA que têm muitas funções no controle dos processos da vida”, avisa McElheny. Não sem razão, as palavras poéticas de Watson: “Nós crescemos pensando que o nosso destino estava nas estrelas. Agora, sabemos que, em boa parte, nosso destino está nos genes”. “Preste bem a atenção no “em boa parte”: mesmo Watson concorda que os genes não determinam completamente nosso comportamento e personalidade. Mas, ao determinar as variaçõeschave em nossa seqüência única de DNA, poderemos dizer para você, em um estágio muito inicial, se você está destinado a sofrer de Alzheimer, cân-
cer ou outra coisa”, reforça Davies. “A ciência do DNA, no campo da medicina, vai, certamente, ajudar a estender a vida humana e fazê-la menos dolorosa. Esa ciência foi crucial para identificar o vírus que causa Aids e para obter algumas drogas que ajudam a combater essa doença. O trabalho do DNA encobre os aspectos genéticos das doenças humanas: os genes que interagem com nosso ambiente para causar câncer ou outras moléstias”, continua McElheny.
O
ambiente é outra palavra-chave na visão futura do DNA. “Já temos um dilema moral por causa do mapeamento dos genes. Ao decifrarmos esse mapa e estabelecermos a ligação entre genes e comportamento, podemos deparar com verdades indesejáveis”, acredita o sociólogo Francis Fukuyama, que, preocupado com que o chama de “descaso de alguns cientistas com questões éticas sobre o futuro da manipulação genética”, lançou, no ano passado, o
estudo Our Posthuman Future: Consequences of Biotechnology Revolution (que deve chegar ao Brasil, traduzido, pela Rocco, neste ano). “Somos presas fáceis dos cientistas desde os tempos de Francis Bacon, acreditando, como eles acreditam, que todo o progresso da ciência é para o nosso bem. Até agora, o que mantém em pé o fundamento da igualdade entre raças, sexos e pessoas é a nossa crença de que não há diferenças entre eles. No momento em que os mapas dissecarem essas diversidades, estaremos diante de um dilema moral que pode ‘dar razão’ a preconceitos já vencidos”, avalia o pesquisador. James Watson é conhecido pelos seus detratores como um cientista inflexível que denuncia qualquer tentativa de se fechar Destino uma questão de pesquisa biológica por causa de estaria nos riscos e dilemas éticos. genes e “Como os biólogos dos tempos de Mendel e não em Darwin, ele rejeita totalmente a idéia de que a estrela vida é e sempre será, de alguma maneira, algo a se deixar desconhecido. Além disso ele detesta a hipótese de que desmembrar problemas em pequenas peças que podem ser solucionadas e resolver o todo viole algum princípio holístico”, defende McElheny. “Tentar regulamentar procedimentos futuros é um risco absurdo. As pessoas acham que têm uma escolha quando o assunto é a manipulação genética e isso nem está mais posto. A pesquisa genética é inevitável”, concorda Gregory Stock, diretor do programa de Medicina, Tecnologia da Universidade da Califórnia (UCLA). “Estou absolutamente certo de que, em menos de uma década, teremos feitos amplos estudos populacionais associando certos padrões genéticos com atributos relacionados à saúde e longevidade”, diz o pesquisador americano. O próprio James Watson não teria dito melhor. Ou teria: “Entender a natureza humana é, acredito eu, um dos grandes objetivos para este século: em que medida somos realmente controlados por genes. Essa é a grande pergunta”, avalia Watson. “Você tem apenas que conversar com a mãe de Francis Crick para PESQUISA FAPESP ESPECIAL
■
13
em que há diferenças pequenas e específicas de uma pessoa para a outra ajuda os objetivos de uma medicina que é mais ‘individualizada’ que a de hoje”, diz McElheny. “Somos pouco diferentes. E daí? Basta olhar para perceber como, em verdade, somos diferentes”, acredita Watson. Os dilemas éticos, porém, também incluem a exploração da manipulação do DNA para fins materiais. “Os problemas éticos decorrentes das novas habilidades de alterar sementes ou de diagnosticar doenças genéticas não são muito diversos dos antigos dilemas éticos da medicina. Todos se referem a como se define ‘boa vida’ e se consegue fazer com que todas as pessoas tenham acesso à comida farta e a cuidados médicos modernos. É ético impedir fazendeiros de usar sementes geneticamente modificadas que são resistentes a pragas? É ético deixar nascer um feto que traz genes capazes de gerar um defeito físico catastrófico?”, pergunta McElheny. “A ciência sempre pode ser usada para fazer o mal. A questão é: nós melhoramos a nossa vida nos últimos cem CLAUDIUS
saber que ele não é um produto de sua criação. Ela era ótima, mas eles não tinham nada em comum. A singularidade de Francis vem de qualidades que eu achei muito amáveis. Quanto disso vem dos genes? Não sei, mas meu palpite é de que não poderia ser muito”, brinca. Tudo ainda se complica quando somos inCiência formados, como fomos, de que há semelhanças pode ser genéticas notáveis entre e nossos parentes usada nós primatas mais próxipara fazer mos, sem falar da nossa genética algo mau proximidade com outras espécies. “O que nos faz únicos? É uma grande questão e explica a razão de os cientistas estarem loucos para seqüenciar o genoma dos chimpanzés, pois nós dividimos 98,5% de nosso DNA. Mas as diferenças de 1,5% é que podem revelar as pistas para a chave das diferenças genéticas que nos separam dos primos primatas”, avalia Kevin Davies. “Procurar por lugares no DNA
anos? Nem preciso pensar muito para dizer que sim e acredito com certeza que nos próximos cem anos vamos conseguir com que ela seja ainda melhor. Creio piamente que um desastre crucial é imaginar o retorno ao nosso meio de alguma doença infecciosa. Imagine se algo assim matasse metade da população mundial: estariamos numa recessão por décadas. Creio que o conhecimento é uma coisa boa e que as pessoas, ao menos boa parte delas e por boa parte do tempo, tentam usar esse conhecimento de forma construtiva. Mas, ainda assim, com certeza, o futuro nos reserva mais Hitlers, Stalins e Idi Amins”, explica Watson. Devemos, então, esperar um futuro glorioso e genético, como nos bons livros de ficção, ou temer a “sociedade pós-humana” de Francis Fukuyama? “A biologia é sempre incomodada por fantasias ficcionais sobre seres humanos criados para ser escravos. Nós já temos escravidão em larga escala, sem nenhuma manipulação dos nossos genes. Os reais problemas humanos são maiores do que as fantasias e estão conosco desde o início”, fala McElheny. “O DNA é um ícone celebrado, mas é importante termos em mente que ele não controla tudo no comportamento humano ou temer qualquer manipulação de sua estrutura. O ambiente é crucial e, apesar de todas as promessas da genética, não há dúvida de que uma fração de todo o dinheiro gasto no projeto genoma poderia salvar muitas vidas se fosse gasto com doenças que afetam o Terceiro Mundo, como malária”, diz Kevin Davies. A dupla, hélice ou os cientistas, então, não nos devem causar medo. Afinal, como resistir à candura com que Watson definiu a descoberta do segredo da vida, anunciada no pub The Eagle, há 50 anos: “Francis e eu somos famosos apenas porque o DNA é tão bonito!”. Ninguém duvida disso, com certeza. Leia mais 50 Years of DNA, de Julie Clayton e Carina Davis. Nature Palgrave, R$ 116,14 DNA: The Secret of Life, de James Watson. Knopf, R$ 167,55 Os dois livros sairão ainda neste semestre nos EUA e Inglaterra. Encomendas antecipadas na Livraria Cultura, fone (11) 3170-4033
14
■
PESQUISA FAPESP ESPECIAL
DUPLA HÉLICE 50 ANOS
Quebra-cabeças da complexidade Conhecimento da seqüência de um genoma não basta para entender nossa carga genética E MMANUEL D IAS N ETO *
O
estudo da biologia talvez seja tão antigo quanto o surgimento das estruturas cerebrais que permitiram o estabelecimento da linguagem e o desenvolvimento do pensamento consciente. Esse processo elaborativo fez com que a humanidade se ocupasse, há milhares de anos, com a compreensão de suas origens e também com os processos relacionados à vida, doença e morte. Nos últimos 50 anos, foi possível acompanhar descobertas fantásticas em diversas áreas do conhecimento. Na biologia, tivemos um salto tremendo, que culminou com o seqüenciamento completo do genoma humano alcançado recentemente. A habilidade de acumular uma vasta quantidade de informação genética nos permitiu conhecer a base estrutural de diversos genomas, desde as bactérias mais primitivas (chamadas de arqueobactérias) até o homem, passando por fungos, parasitas, vermes, plantas e modelos como a mosca-das-frutas e o camundongo. Esse conhecimento acumulado, permite reconstruir a relação evolutiva de uma boa parcela dos seres vivos, recontando a história da vida em nosso planeta. A capacidade de ler genomas alterou de maneira fundamental o estudo da biologia, da medicina e de diversos campos associados, influenciando um variado grupo de indústrias, que incluem a química fina, a farmacologia, a agroindústria e outras. A grande quantidade de informação produzida representa uma rica fonte de informação que deve ser cuidadosamente estudada, de modo a permitir o avanço mais pro-
veitoso de nosso conhecimento. O maior impacto desses achados ainda está por vir, e certamente virá, quando realmente tivermos conseguido decifrar, compreender e associar as informações contidas em nosso genoma. Para isso devemos, antes de tudo, ter consciência de que o conhecimento da seqüência completa de um genoma, apesar de ser uma peça importante, está longe de permitir, apenas por si, a montagem do intrincado quebra-cabeça de nossa complexidade. Para entender o que nos permite ter essa maravilhosa complexidade – nosso enorme repertório comportamental, a habilidade de ter ações conscientes, nossa capacidade criativa, musical e científica, a capacidade de aprender, a nossa memória, entre outras – não poderemos contar apenas com nossa carga genética de 3,2 bilhões de nucleotídeos e um número de genes não muito superior ao de uma mosca. Devemos ter a consciência de que o domínio de um genoma significa a posse de um mapa. No caso do genoma humano, um mapa complexo, ainda não totalmente conhecido, que auxiliará enormemente na busca pelas origens das doenças, com base nas variações genéticas, na diversidade, complexidade e no comportamento das proteínas no interior das células. Estudos de neuropsiquiatria mostram que, em gêmeos monozigóticos separados ao nascimento e criados em ambientes distintos, a concordância para o desenvolvimento de doenças neuropsiquiátricas é de cerca de 50%. Isso mostra que em certas circunstâncias existe um balanço entre a im-
portância dos genes e do ambiente na determinação de determinadas condições. Se por um lado a genética tem grande peso no desenvolvimento de doenças, os fatores ambientais também têm importância considerável. A genética não é absoluta. Ainda temos muito o que aprender no estudo das interações do genoma com o ambiente, além de conhecer e desvendar as sutilezas de nosso genoma.
Já sabemos muito, mas é pouco É curioso observar que, mesmo após o entusiasmo gerado pela finalização dos rascunhos do seqüenciamento do genoma humano, um tremendo esforço ainda precisa ser feito para que possamos conhecer o significado da imensa maioria das seqüências obtidas. Uma das primeiras questões que surgem é: como identificar as regiões importantes do genoma? Como determinar sua função no organismo? As regiões do genoma com função mais óbvia são os genes, que se acham comprometidos com a produção de proteínas. No entanto, essas regiões estão restritas a cerca de 3% do nosso genoma. O número de genes preditos nos badalados trabalhos que descreveram o genoma humano ficou, segundo as estimativas mais baixas, na faixa de 30 mil – alguns estudos indicam haver até 120 mil genes. Mesmo com esse pequeno número, apenas para a metade deles encontramos algum tipo de domínio que permita a predição de atividade fisiológica. Enquanto se acredita que as estimativas do número de genes devam
* EMMANUEL DIAS NETO é pesquisador do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e um dos criadores do método ORESTES. PESQUISA FAPESP ESPECIAL
■
15
crescer, com o desenvolvimento de melhores programas computacionais de predição gênica e com o acúmulo de mais dados experimentais, está muito claro que o número de genes é apenas um dos mecanismos que criam a diversidade bioquímica necessária para fazer as proteínas. Em nosso genoma, os genes são formados por blocos de informação intercambiáveis, chamados exons, que são separados por blocos sem informação protéica, conhecidos por introns. Os exons podem ser recombinados como se combinam sílabas para formar uma palavra, formando mensagens distintas. Desse modo, a seqüência de um único gene pode começar e terminar em regiões diferentes e sua porção interna pode ser montada alternando diferentes Blocos blocos, gerando proteínas com características que são funcionais distintas. Escombinações (cocomo sas nhecidas como splicing sílabas de alternativo) representam eficiente mecanispalavras um mo de geração de diversidade sem a necessidade de manter um imenso número de diferentes genes funcionais. Além dos eventos de splicing alternativo, diversos mecanismos conhecidos como epigenéticos, tais como metilação do DNA ou modificação de histonas, podem modular a expressão de um gene. Esses eventos de regulação epigenética regulam a atividade de genes silenciando sua atividade ou remodelando a estrutura dos cromossomos, expondo ou escondendo determinados genes de acordo com a necessidade de sua expressão. Dessa maneira, um complexo sistema de regulação intracelular é disparado, ligando ou desligando genes em determinados tecidos ou em fases específicas do desenvolvimento.
DNA lixo? Os genes são distribuídos de modo desigual nos nossos cromossomos. Dados de seqüenciamento mostram que alguns cromossomos, como o 17, o 19 e o 22, são ricos em genes, quando comparados com os cromossomos 4, 8, 13, 18 e o cromossomo Y. O empacotamento do material genético no 16
■
PESQUISA FAPESP ESPECIAL
núcleo de nossas células é um processo complexo, pois o DNA de uma única célula humana tem cerca de 2 metros de comprimento. Há alguns anos, descobriu-se que a distribuição dos cromossomos dentro das células, no processo de empacotamento, é extremamente organizada. Na periferia do núcleo celular ficam os cromossomos com menor densidade gênica, enquanto os cromossomos mais ricos se situam na porção mais interna do núcleo. Foi demonstrado que essa distribuição cromossomal é regulada há pelo menos 30 milhões de anos, pois é conservada nos primatas. Essa conservação indica um papel funcional importante. Alguns pesquisadores sugerem que os cromossomos que possuem mais genes se encontrem na porção mais central dos núcleos, e os demais, ao seu redor, protegendo-os de agentes mutagênicos externos. Além disso, diversos trabalhos demonstram que ocorre um freqüente movimento dos cromossomos nos núcleos celulares. Essa dança dos cromossomos mostra que a estrutura do DNA e do seu empacotamento nas células não é nada rígida. Os cromossomos parecem se movimentar, possibilitando a troca de material genético entre si e a exposição de genes que devem ser ativados em determinadas circunstâncias. O estudo da distribuição cromossomal tem inclusive sido sugerido como um possível critério de diagnóstico para o câncer. Se apenas 3% do genoma codifica proteínas, será que o restante de nosso DNA é um resquício evolutivo que serve somente para proteção? Uma das maneiras de analisar nosso genoma é compará-lo com o de outros organismos. É a chamada genômica comparativa. Esses estudos partem da premissa de que um bloco de DNA conservado por milhões de anos deve ter alguma função importante, que poderia ser comprometida se a seqüência fosse muito alterada. É a chamada conservação fisiológica. Estudos de genômica comparativa demonstraram que aproximadamente 95% de nosso genoma é muito parecido (possuindo, de fato, cerca de 99% de identidade) com o de um chimpanzé. No entanto, nosso tempo de divergência (o período de tempo que nos separamos de um ancestral comum) com os chimpanzés é de apenas 5 milhões de anos. Talvez esse
período não tenha sido longo o suficiente para que regiões não funcionais tivessem se diferenciado, e teríamos uma conservação passiva. Quando aprofundamos as comparações e investigamos as semelhanças que possuímos com o genoma do camundongo, cujo último ancestral comum com o homem existiu há 145 milhões de anos, vemos que uma significativa parcela desse DNA lixo ainda é conservada.
S
e os chimpanzés são geneticamente muito próximos e não é possível distinguir conservação passiva de conservação funcional, o camundongo é muito distante, o que impede detectar mudanças no DNA adquiridas mais recentemente. Enquanto a comparação com o genoma de um organismo distante, como o do camundongo, oferece um painel importante de regiões genômicas com potencial funcional, a longa divergência entre as duas espécies não permite identificar algumas sutilezas. As regiões do genoma que se modificaram entre essas espécies e nos permitiram evoluir como primatas – e posteriormente como Homo sapiens – não estão no genoma de camundongo e deveriam ser encontradas de outra maneira. Em um artigo publicado na revista Science no final de fevereiro (Boffelli et al., 2003), um grupo de pesquisadores comparou regiões não-codificadoras do genoma humano com áreas semelhantes do genoma de outros primatas não-humanos. Os cientistas encontraram diversas regiões conservadas, mesmo quando foram usadas as espécies de primatas tropicais, muito distantes de nossa espécie. Conseguiram identificar elementos conservados e provar que têm atividade funcional: atuam na regulação da expressão gênica entre as diferentes espécies. Para isso, foram utilizadas diversas espécies de primatas, incluindo-se aí o DNA de vários primatas brasileiros. Fica clara a importância da biodiversidade para decifrar nosso genoma. No entanto, cada genoma possui características únicas, que por seus reflexos funcionais permitem diferenciar as espécies. Como investigar as regiões funcionais (com atividade fisiológica) únicas do genoma humano? Sabemos que elas não estão restritas aos
genes ou às regiões conservadas em outros primatas. São características únicas da nossa espécie. Um trabalho muito interessante nesse sentido foi feito por pesquisadores de uma empresa norte-americana, em conjunto com um pesquisador do Instituto Nacional do Câncer, nos Estados Unidos (Kapranov et al., 2002). Usando a seqüência dos cromossomos 21 e 22 humanos, os cientistas desenharam pequenos fragmentos de DNA artificial, cobrindo toda a seqüência desses cromossomos em curtos intervalos de 35 nucleotídeos, os blocos constituintes do DNA. Os milhões de fragmentos produzidos foram usados para investigar se linhagens celulares humanas estariam produzindo RNA complementar a esses fragmentos. A estratégia comprovou a atividade funcional de novas regiões e permitiu uma análise transcricional em larga escala desses dois cromossomos humanos. Para surpresa de todos, um altíssimo percentual desses fragmentos mostrou estar associado a RNAs maduros das linhagens celulares. Os
autores demonstraram que as regiões ativamente transcritas de nosso genoma são, pelo menos, dez vezes mais extensas do que poderíamos imaginar. Talvez essas regiões contenham genes muito raros, ainda não demonstrados por nenhuma técnica, ou moléculas regulatórias ainda não conhecidas, mas de importância central para o conhecimento da fisiologia de nosso genoma. Dessa maneira, se antes imaginávamos que 3% do genoma continha genes, esse trabalho sugere que talvez esse percentual seja muito maior.
Genes e novas drogas Dentre a fração de genes conhecidos atualmente, algumas centenas codificam proteínas potencialmente poderosas para o tratamento de doenças. Diversas dessas proteínas, assim como drogas baseadas em anticorpos monoclonais, estão em fase final de experimentação e algumas já são testadas em humanos. Sendo assim, buscam-se hoje mecanismos mais eficientes e de menor custo de produção de medica-
mentos. Uma das promessas é a manipulação genética de alimentos. Produzir um feijão mais nutritivo, milho com hormônio do crescimento humano ou cenouras com vacinas são sonhos que rondam as cabeças dos pesquisadores há anos. Esses sonhos estão cada dia mais próximos, e um passo importante nesse sentido foi anunciado há algum tempo por uma empresa norte-americana após associação com o renomado Instituto Escocês Roslin (o mesmo que assombrou o mundo com a clonagem da ovelha Dolly), para dessa vez produzir drogas dentro de ovos de galinhas. Enquanto animais, como cabras, vacas, ovelhas e coelhos vêm sendo usados para produzir medicamentos em seu leite, a tecnologia de trabalho com aves surge Sonhos com a promessa de ser mais rápida, barata e estão cada praticamente ilimitada vez mais graças à capacidade de produção de ovos. O próximos primeiro produto deverá ser um anticorpo do real monoclonal dirigido ao combate do melanoma, um dos mais agressivos e comuns tumores que ocorrem no Brasil. O domínio dessa tecnologia, aliado à descoberta da totalidade dos genes humanos e à determinação de sua função biológica, permite imaginar um futuro promissor para essa nova forma de produção de medicamentos.
Polimorfismos de DNA Cada um dos bilhões de seres humanos de nosso planeta – com exceção dos gêmeos monozigóticos – possui seu próprio e único genoma. Apesar de serem únicos, os genomas de dois seres humanos não aparentados têm uma identidade média de 99,9%. Diante de um genoma de cerca de 3,2 bilhões de bases, a sutil diferença de 0,1% representa uma coleção de alguns milhões de nucleotídeos, responsáveis pela nossa fabulosa diversidade. A maioria dessas diferenças tem a forma de substituições ou polimorfismos de nucleotídeos únicos (conhecidos em inglês como SNPs, ou Single Nucleotide Polymorphisms). Os SNPs constituem um elemento-chave para compreenPESQUISA FAPESP ESPECIAL
■
17
dermos a variabilidade genética humana e sua associação com diversas doenças. Recentemente houve um aumento explosivo no número de SNPs depositados nos bancos de dados públicos. Há cerca de um ano, apenas o banco dbSNP, ligado ao Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, tinha cerca de 4 milhões de SNPs depositados. Hoje esse número cresceu em cerca de 50%, ultrapassando os 6 milhões de SNPs. No entanto, apenas 0,3% dos polimorfismos já foi estudado de maneira mais aprofundada e numerosos polimorfismos ainda restam por serem descobertos. A literatura científica demonstra preocupação de que haveria um número imenso de polimorfismos ainNo futuro, da não revelados, mas de grande relevância, se poderá que não seriam enconapenas pelo uso prevenir trados de estratégias computaem vez de cionais. Essa preocupase deve ao fato de só curar ção que a porção central dos genes estaria pouco representada (nos dados das chamadas ESTs ou etiquetas de seqüências expressas), enquanto os dados do Projeto Genoma Humano são baseados em um número muito limitado de indivíduos, levando a uma redução da população de polimorfismos. Nesse sentido, a iniciativa brasileira de geração de ESTs do tipo ORESTES foi extremamente positiva. No contexto do Human Cancer Genome Project (HCGP, financiado pelo Instituto Ludwig de Pesquisa do Câncer e pela FAPESP), o grupo brasileiro produziu 1,2 milhão de ESTs, derivadas da porção interna dos genes, um dos maiores conjuntos de dados mundiais. Além de serem derivadas de diversos tipos de tumores humanos, essas amostras são de grande valor, por derivarem de uma população com alto índice de mistura étnica, contribuindo com variações dificilmente encontradas em populações mais homogêneas. Os dados nacionais serão essenciais para atingirmos uma abrangente análise de polimorfismos clinicamente relevantes, buscando associações entre polimorfismos de DNA e doenças e avaliando os níveis de polimorfismos de nosso genoma. 18
■
PESQUISA FAPESP ESPECIAL
E
sses polimorfismos devem ser a chave para a predisposição ou proteção ao desenvolvimento de numerosas doenças, além de estar diretamente associados à maneira como diferentes pessoas respondem a drogas. Já sabemos, por exemplo, que a diferença de uma única base na seqüência do gene APOE confere maior suscetibilidade ao desenvolvimento do mal de Alzheimer e a doenças cardiovasculares. O conhecimento do efeito dessas alterações na nossa resposta a drogas abre um tremendo espaço para a farmacogenética. Sabemos que o custo para o desenvolvimento de uma nova droga está na faixa de US$ 600 milhões. Por vezes, drogas extremamente eficazes para a imensa maioria da população devem ser retiradas do mercado, pois provocam efeitos graves em algumas pessoas. Esses estudos sobre polimorfismos alteram a evolução da medicina. Nas terapias medicamentosas podemos imaginar o fim da abordagem de tentativa e erro. Na área clínica, podemos prever que a prevenção será privilegiada em relação ao tratamento, podendo vir reduzir o custo do tratamento das doenças. Para isso, a interação entre a pesquisa científica e a iniciativa privada é fundamental, devendo permitir a tradução e incorporação dos achados científicos no diaa-dia das pessoas comuns. Apesar de o genoma ainda oferecer uma série de descobertas pela frente, o caminho já percorrido pela pesquisa científica permite uma série de possibilidades práticas atuais, prontas para serem implementadas na rotina de nossa sociedade. Os estudos de polimorfismos também nos permitiram calcular a diversidade de DNA existente entre indivíduos das diferentes etnias humanas. Ao compararmos o DNA de dois indivíduos de uma mesma etnia, vemos que o número de diferenças encontradas é tão freqüente quanto as diferenças observadas entre indivíduos de etnias diferentes. Desse modo a ciência demonstrou que o conceito de raça, visto a partir das diferenças de DNA, não faz o menor sentido. Diversidade e individualidade são características das mais fundamentais de cada ser humano. Os dados do genoma humano permitem
que essas características sejam visualizadas de maneira muito clara e nos mostram que, por mais que sejamos seres únicos no Universo, temos muito em comum com o resto da humanidade. Nosso genoma pode ser visto como um patrimônio da nossa espécie. Deixando de lado uma postura antropocêntrica, o DNA mostra que todas as formas de vida conhecidas são codificadas pela mesma matéria-prima básica, os nucleotídeos que formam os genomas. Isso nos permite uma visão conceitual de que o evento do surgimento da vida no planeta deve ter sido único. A visão filosófica e até mesmo poética nos diz que somos todos membros de uma grande família, composta pelas mais diversas formas de vida do planeta. Todos tivemos um ancestral comum, e isso nos deve levar a refletir sobre a nossa postura diante de aspectos como poluição, degradação do ambiente e preservação da vida no planeta.
O futuro Apesar de sempre podermos ser surpreendidos em nossas previsões, o estágio atual das pesquisas permite vislumbrar como será o cenário em um intervalo de 15-20 anos. Dentre amplas possibilidades, algumas poucas coisas parecem certas: Teremos uma lista abrangente de produtos gênicos humanos provendo um enorme potencial de drogas de reposição (de modo semelhante à insulina ou ao hormônio do crescimento recombinante hoje disponíveis), com um dramático efeito preventivo e curativo em diversas doenças.
■
O prontuário médico em breve irá conter uma lista com o status de diversos polimorfismos ligados à farmacogenética, assim como a propensão ao desenvolvimento de uma série de doenças.
■
A obtenção da seqüência genômica completa de um indivíduo deverá ser possível em poucos anos e devemos estar prontos para lidar com a manutenção dessa confidencialidade de maneira responsável.
■
■ A terapia gênica deve tornar-se realidade para doenças causadas por alterações em um único gene. Genes de-
CLAUDIUS
ca, mutação e diversidade. No entanto, a dupla hélice não esclareceu ainda os detalhes da interação entre a genética e o meio ambiente. A individualidade humana revelada pelo DNA faz com que diversos conceitos venham a ser revistos e a medicina passe novamente a focar o indivíduo. Predições em nível populacional não têm o mesmo poder preditivo em nível individual. Depois de termos caminhado tanto no conhecimento do “livro da vida”, talvez este seja o momento de re-avaliarmos nossas expectativas e o próprio conceito de nossa existência. Se por um lado temos nossa individualidade genética, nós também somos todos muito semelhantes e semelhantes às outras formas de vida do planeta. Termino este texto com um repente com o qual tive contato durante uma viagem à cidade do Recife. A sabedoria popular nos surpreende, e acredito que o número de genes proposto nos versos deva estar muito mais próximo da realidade do que os 30 mil sugeridos nos trabalhos da Nature e da Science.
feituosos poderão ser repostos por versões funcionais. A compreensão da base genética das doenças complexas permitirá o design de drogas racionais, dirigidas a vias metabólicas de funcionamento inadequado, eventualmente possibilitando a modelagem de estratégias preventivas.
■
O conhecimento de alterações genéticas específicas de certos tumores permitirá o diagnóstico precoce da maioria dos tumores humanos. ■
A indústria da farmacogenômica se estabelecerá de modo crescente, gerando uma medicina personalizada na qual drogas serão elaboradas de acordo com as feições genéticas de diferentes grupos de indivíduos.
■
Acredita-se que, por volta de 2010, marcadores genéticos efetivos estejam disponíveis para uma grande série de doenças e condições humanas. Estima-se que o custo para um teste diagnóstico, incluindo uma grande lista de marcadores, custe por volta de US$ 100. À medida que testes que permitam avaliar a predisposição genética a cer-
tas doenças se tornem possíveis, a sociedade enfrentará questões que envolvem a disponibilidade dessas informações a empregadores ou a segurossaúde. As leis devem proteger os cidadãos do uso inadequado dessas informações, e devemos questionar a validade de uso dessas informações no momento de decisões de contratação de pessoal. Nos próximos anos, o público terá mais e mais oportunidades de fazer testes genéticos e especular sobre seu destino genético. É urgente que a legislação acompanhe os avanços científicos, incorporando e usufruindo as descobertas e impondo limites nas áreas mais delicadas. Sem debate público e controles apropriados, as pessoas poderiam ser discriminadas por causa de suas características genéticas. É preciso discutir o que a genética pode e não pode realizar, e que tipo de sociedade queremos. A dupla hélice, com sua beleza e simplicidade, uniu de modo definitivo a bioquímica, a fisiologia e a genética. Sua estrutura oferece uma explicação imediata para os processos de cópia do DNA, mecanismos de herança genéti-
“O mundo se encontra bastante avançado, A ciência alcança progresso sem soma, Na grande pesquisa feita no genoma, Todo o corpo humano já foi mapeado, E lá neste mapa já foi tudo contado, Oitenta mil genes se pode contar, A ciência faz chover e molhar, Faz clone de ovelha, Faz cópia completa, Mas duvido a ciência fazer um poeta, Cantando galope na beira do mar...” REPENTISTA GERALDO AMÂNCIO, PERNAMBUCO, BRASIL.
Referências Boffelli, D, McAuliffe, J, Ovcharenko, D, Lewis, KD, Ovcharenko, I, Pachter, L, & Rubin, EM. 2003. Phylogenetic Shadowing of Primate Sequences to Find Functional Regions of the Human Genome. Science 299: 1391-1394. Kapranov P, Cawley SE, Drenkow J, Bekiranov S, Strausberg RL, Fodor SPA, Gingeras TR. 2002. Large-scale Transcriptional Activity in Chromosomes 21 and 22. Science 296: 916-919. PESQUISA FAPESP ESPECIAL
■
19
DUPLA HÉLICE 50 ANOS
Genoma: um balanço preliminar Cientistas brasileiros são atores importantes na ciência e na biotecnologia de Watson e Crick J OSÉ F ERNAND O P EREZ *
A
o anunciar, em 1997, o início do Projeto Genoma da Xylella fastidiosa, a FAPESP explicitou os objetivos da iniciativa. Pretendia-se, ao mesmo tempo em que se financiava a realização de projeto de pesquisa na fronteira do conhecimento, com o estudo de problemas de relevância socioeconômica, propiciar a formação de recursos humanos altamente qualificados na área de genética molecular. A competência gerada deveria contribuir tanto para o avanço da pesquisa básica em biologia e em medicina como para atrair investimentos para a criação de uma indústria de biotecnologia molecular no país. Decorridos cinco anos do início do programa, consideramos necessário, mais uma vez, cotejar metas estabelecidas, resultados obtidos e investimentos realizados. Nesse contexto torna-se relevante responder à pergunta: como esses investimentos teriam afetado a capacidade da FAPESP de financiar projetos em outras áreas de conhecimento também relevantes para o desenvolvimento científico e tecnológico do país? Quanto à relevância e qualidade científica, é importante registrar que todos os projetos financiados pela FAPESP são sempre previamente avaliados por reconhecidos especialistas. No caso, foi utilizada uma assessoria científica internacional que, enfática e unanimemente, recomendou o apoio à iniciativa. Ainda mais relevante foi, porém, a avaliação que se seguiu pelas diversas publicações nas mais prestigiosas revistas científicas, tais como Nature e os Anais da Academia de Ciências dos Estados Unidos (PNAS)1. Os
artigos foram publicados e, mais do que isso, mereceram destaques editoriais nessas revistas. Esse é o critério de excelência científica universalmente aceito e ao qual todas as agências de fomento conceituadas aderem. Quanto à importância socioeconômica dos projetos, ela se evidencia pela pauta de problemas a que remetem: doenças de citricultura (amarelinho e cancro), doenças humanas (esquistossomose e leptospirose) e culturas de grande importância (cana e eucalipto). Foi no último mês, aliás, que registramos a importante conclusão do Genoma Leptospira. As parcerias com empresas como Copersucar, Ripasa, Votorantim, Duratex, Suzano, além do Fundecitrus, atestam o interesse de vários setores da economia na iniciativa. Destaque-se também a parceria com o Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer, que investiu US$ 10 milhões na competência dos pesquisadores da rede Onsa em tumores de maior incidência no Brasil. Como conseqüência do programa, mais de 65 laboratórios no Estado de São Paulo utilizam, atualmente, de forma rotineira em seus projetos de pesquisa, as técnicas de seqüenciamento genético. Mais de 450 pesquisadores foram treinados nessa metodologia, essencial para a pesquisa biológica moderna. Talvez o mais expressivo indicador de sucesso tenha sido a recente criação de três empresas, Alellyx, Scylla e Canaviallis, cujos sócios são lideranças que emergiram no programa, e que deverão empregar dezenas de pesquisadores da área de genética molecular e bioinformática. Trata-se de fato sem precedentes na história econômica do país. Na palavra dos
* JOSÉ FERNANDO PEREZ é Diretor Científico da FAPESP e professor do Instituto de Física da USP 20
■
PESQUISA FAPESP ESPECIAL
Pesquisas receberam destaque no mundo
próprios investidores, esses desdobramentos são conseqüência direta do Programa Genoma da FAPESP. Esses fatos receberam grande destaque na imprensa internacional – New York Times, Washington Post, Le Figaro, The Economist, para citar apenas alguns –, que valorizou a estratégia inovadora da rede criada. Não menos importante foi o reconhecimento de competência pela parceria proposta pelo Ministério da Agricultura dos Estados Unidos para estudar a variante da Xylella que ataca os vinhedos da Califórnia2. Finalmente, chegamos ao item investimentos. Inicialmente deve ser registrado que nos quatro anos de programa nunca mais do que 5% do seu orçamento de fomento foi dirigido à genômica. Essa informação deve surpreender a muitos, face ao reconhecimento e ao espaço que a imprensa dedicou ao sucesso. Ainda mais relevante é o fato de que nenhum projeto de pesquisa, cujos méritos tenham sido reconhecidos pela assessoria especializada, deixou de ser financiado nesse mesmo período. E isso apesar de a FAPESP nos
últimos anos ter criado uma série de programas buscando articular competências e suprir deficiências do sistema de ciência e tecnologia. Assim, os programas de Inovação Tecnológica (apoiando mais de 240 pequenas empresas em projetos voltados para a inovação tecnológica); Políticas Públicas; Ensino Público; Biota (envolvendo mais de 500 pesquisadores que inventariam e estudam toda a biodiversidade do Estado, iniciativa que recebeu o Prêmio Henry Ford como Iniciativa Ambiental de 1999) e Jovens Pesquisadores (financiando mais de 450 projetos e visando dar oportunidade aos excelentes cientistas formados pelo sistema de pós-graduação de nossas universidades) receberam expressivos investimentos nesse período, tendo sido possível atender a toda demanda qualificada. Nada mais auspicioso para comemorar os 50 anos da identificação da estrutura da molécula do DNA do que ver os cientistas brasileiros como atores importantes na ciência e na biotecnologia que nasceu com James Watson e Francis Crick.
1 Xylella fastidiosa, Nature, 13 de julho de 2000; Xanthomonas campestris, Nature, 23 de maio de 2002; Onsa, the São Paulo Virtual Genomics Institute, Nature Biotechnology, setembro de 1998; Genoma do Câncer – tecnologia ORESTES, PNAS, Proceeding of The National Academy of Sciences of The United States of America, março de 2000; Cromossomo 22, PNAS, novembro de 2000; Genoma do Câncer, PNAS, outubro de 2001. 2 Xylella da Uva, Journal of Bacteriology, fevereiro de 2003. PESQUISA FAPESP ESPECIAL
■
21
O Brasil por dentro dos genes Iniciada em 1997, com o projeto da Xylella fastidiosa, a pesquisa genĂ´mica no paĂs avança rapidamente
SIRIO J. B. CANÇADO
DUPLA HÉLICE 50 ANOS
Interlúdio da biologia molecular Depois do seqüenciamento, será a vez de se criar a patologia e a farmacologia genômicas R EINALD O J OSÉ L OPES
C
“
omece com a dupla hélice e termine com o genoma humano”, costumava dizer James Watson enquanto esteve à frente do gigantesco esforço para seqüenciar as letras químicas que compõem a informação genética das células humanas. Para o co-descobridor da estrutura do DNA e então líder do Projeto Genoma Humano (PGH), uma coisa era a conseqüência lógica da outra. Se Watson e Francis Crick haviam desvendado o segredo da vida com seu modelo elegante da dupla hélice, a chave para a compreensão de como esse segredo se manifestava no organismo do homem só podia estar ali, na própria seqüência do DNA. Obtê-la significaria descobrir o que é ser humano e inauguraria uma nova era para a medicina. Após mais de dez anos e 3 bilhões de pares de nucleotídeos (as unidades que formam o DNA), o panorama está longe de ser tão simples quanto o imaginado por Watson, em especial quando se trata de aplicar a massa de informações obtida com o genoma para melhorar a saúde humana no curto prazo. “Havia muitos cientistas, talvez por inocência, talvez por miopia, que acreditavam que o PGH resolveria questões como ‘saber o que significa ser humano’”, pondera Sérgio Danilo Pena, geneticista da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “São hawks (falcões, em inglês), os Donald Rumsfelds da ciência”, diz Pena, comparando esse tipo de pesquisador ao secretário da Defesa linha-dura do governo George W. Bush. “Houve cumplicidade da imprensa e do próprio público nesse exagero. Mas o erro foi apenas de ordem temporal: no médio e no longo prazo, os frutos do PGH serão indubitavelmente extraordinários.”
24
■
PESQUISA FAPESP ESPECIAL
Mesmo assim, até o presente e o futuro próximo estão fervilhando de possibilidades, sugerem cientistas. Se as curas genéticas mirabolantes devem ser descartadas como um sonho distante ou até irreal, é na compreensão e na prevenção de inúmeras doenças que os dados genômicos podem fazer a diferença, denunciando de forma muito mais evidente o que há de errado no organismo e sugerindo formas de contornar o problema. Salto brasileiro - Atualmente, é até di-
fícil imaginar o Brasil fora da potencial revolução científica que os estudos genômicos prometem proporcionar. Contudo, era exatamente essa a situação do país até 1997. Na época, os indicadores da produção brasileira de pesquisa deixavam claro que alguma coisa precisava ser corrigida na área genômica. Basta dizer que, embora o aumento dessa produção, que se reflete no número de artigos publicados em periódicos científicos indexados pela base de dados do Instituto para a Informação Científica (ISI), tenha praticamente dobrado entre 1981 e 1995, o crescimento na área de biologia molecular se multiplicou por um fator de 1,69 – menos que a média mundial no mesmo período, que foi de 1,89. Era preciso agir para tirar o atraso. Foi com essa visão estratégica que surgiu o projeto Genoma-FAPES. Mas não dava para imaginar no seu lançamento que o sucesso viria tão rapidamente. Vontade não faltava. Prova disso foi o valor inicial destinado ao seqüenciamento do genoma da bactéria Xylella fastidiosa, causadora do temido amarelinho nos laranjais paulistas: US$ 12 milhões, nada menos que o maior valor concedido até então a um projeto científico no Brasil.
A intenção desse projeto pioneiro, anunciado oficialmente em outubro de 1997, ia além de seqüenciar pela primeira vez um microrganismo causador de doenças em plantas (fitopatógeno), uma bactéria importante para a agricultura brasileira. A idéia era qualificar pessoas e instituições de pesquisa para lidar com a novidade, ao menos para os brasileiros, do trabalho genômico em larga escala. Isso só foi possível com a integração de quase 200 pesquisadores de 30 instituições na rede Onsa (sigla em inglês de Organização para Seqüenciamento e Análise de Nucleotídeos) – uma espécie de instituto virtual, cuja organização era algo tão inédito no país quanto seus objetivos. Outros projetos, como o Genoma da Cana e o Genoma Humano do Câncer, logo se juntaram ao da Xylella e progrediram num ritmo bem mais rápido que o esperado. Iniciado em 1999, com uma parceria entre a FAPESP e o Instituto Ludwig de Pesquisa do Câncer, o Genoma Humano do Câncer se destacou por usar uma metodologia inovadora para identificar os genes. O bioquímico Andrew Simpson e biólogo Emmanuel Dias Neto, ambos pesquisadores do Ludwig na época, desenvolveram um novo sistema de seqüenciamento que, em vez de analisar o gene inteiro, centrava esforços na decodificação da parte do gene realmente ativa, sua porção central, responsável pela produção de proteínas – trata-se do Orestes, abreviação em inglês para Open Reading Frame Expressed Sequence Tags. O retorno da técnica em termos de conhecimento sobre as formas de câncer mais comuns no Brasil – como os de mama e os de cabeça e pescoço – ainda deve demorar muito para ser to-
talmente avaliado: foram gerados mais de um 1 milhão de seqüências de genes ativos em tumores humanos, alguns dos quais já estão sendo identificados como importantes indicadores da gravidade ou do aparecimento precoce do câncer.
A
consagração desses esforços ocorreu com a conclusão do seqüenciamento do genoma da Xylella quatro meses antes do previsto, em janeiro de 2000. Homenagens do governo do Estado de São Paulo e do então presidente Fernando Henrique Cardoso marcaram a conclusão do projeto. Mas o maior reconhecimento veio da própria comunidade científica internacional. Pela primeira vez em 131 anos, uma pesquisa brasileira foi capa da prestigiosa revista científica britânica Nature, que publicou o artigo sobre o genoma da bactéria na edição de 13 de julho de 2000. Outro semanário britânico, a revista The Economist, não teve dúvidas quanto ao significado desse resul-
tado: para a revista, o Brasil agora era famoso por três motivos: samba, futebol... e genômica. Não era para menos: com esses programas, agora engrossados por iniciativas como o Projeto Genoma Brasileiro, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o país se tornou o segundo maior depositador de seqüências de DNA no GeneBank, o banco de dados público usado por pesquisadores de projetos de seqüenciamento do mundo todo. Mesmo sem ser convidado, como costumava brincar Andrew Simpson, o Brasil havia entrado para a festa do genoma humano. Começava o desafio de descobrir como aplicar esses dados. Potencial - Uma das vantagens ime-
diatas de se ter um mapa completo do material genético humano é multiplicar as chances de encontrar um gene envolvido em uma moléstia. “Digamos que eu esteja tentando identificar um gene numa determinada região de um cromossomo. Sem a seqüência, era
como se eu chegasse a um bairro sobre o qual eu não tinha nenhuma informação e tentasse achar uma casa específica”, compara Mayana Zatz, do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP). “Com a seqüência, posso investigar a região que me interessa e encontrar os candidatos mais prováveis – e não só achar a casa, mas o tijolo que falta nela”, explica Mayana, que estuda doenças neuromusculares de origem genética. “A identificação de genes ligados a várias doenças genéticas será abreviada, pois os genes já estão fisicamente mapeados”, diz Fabrício Santos, da UFMG. “Só falta descobrirmos suas funções.” “Já se comparou a análise genômica com a tentativa de abrir uma porta testando milhares É como de chaves, uma por uma”, diz Sérgio Ver- abrir uma jovski-Almeida, do Ins- porta com tituto de Química da USP. “Antes do seqüen- milhares ciamento do genoma humano, nem tínhamos de chaves idéia de onde estava a fechadura.” Por outro lado, o estudo do genoma está revelando complexidades insuspeitas no funcionamento do material genético, algumas delas com impacto direto sobre a saúde humana. “Estamos elucidando mecanismos misteriosos”, diz Mayana. Um desses processos é observado com os chamados genes dinâmicos, que aumentam de tamanho de uma geração para outra. Esse mecanismo está associado a mais de 12 doenças, como a distrofia miotônica – uma moléstia neuromuscular que, em geral, leva à perda de força nas mãos. “Essa doença parecia piorar a cada geração dentro da mesma família, com formas que iam do aparecimento precoce de catarata e calvície a uma fraqueza muscular generalizada, que chega a ser incapacitante”, explica Mayana. “O que se descobriu é que o aumento do número de uma trinca de nucleotídeos (as unidades formadoras do DNA) estava envolvido”, diz a geneticista. Enquanto as pessoas saudáveis têm de 5 a 37 dessas trincas no gene, as portadoras da enfermidade apresentam de 50 a milhares de PESQUISA FAPESP ESPECIAL
■
25
repetições dessa pequena seqüência. O problema é que, quando há mais de 50 trincas, o gene se torna instável e a repetição tende a aumentar, de geração para geração, agravando a doença. Por outro lado, alterações em genes diferentes podem causar um mesmo problema clínico. “Isso acontece, por exemplo, na distrofia muscular das cinturas, à qual já foram associados 15 genes que codificam proteínas diferentes”, conta Mayana. “Algumas dessas proteínas atuam juntas, formando um complexo. Se houver um defeito em uma delas, o funcionamento do complexo todo fica prejuHá 170 dicado”, explica a pesquisadora. genes que Apesar de o funcionamento dos genes se ligam ao apresentar complexidacâncer de de cada vez mais evia abundância de próstata dente, dados sobre o genoma pode denunciar de maneira precoce e precisa as doenças mais complicadas do ponto de vista genético, provocadas por diversos fatores, como as inúmeras formas de câncer. “Com essas informações, é possível estudar milhares de genes que atuam simultaneamente”, diz Verjovski-Almeida, que investiga os fatores que determinam a gravidade do câncer de próstata. “Hoje conhecemos 170 genes relacionados à malignidade do câncer de próstata”, afirma o pesquisador da USP. “Sessenta por cento deles são genes novos, identificados pelo seqüenciamento em larga escala de material genético extraído de tecido afetado pelo câncer.” A análise simultânea de centenas dessas seqüências, feita por meio de microchips de DNA (pequenas lâminas de vidro que mostram a atividade dos genes), já permite criar um perfil molecular de um indivíduo e indicar a probabilidade de ele apresentar formas mais severas ou brandas da doença. “Um microchip para o câncer de mama, criado por Laura van’t Veer, do Instituto do Câncer da Holanda, já foi transformado pela empresa Rosetta Inpharmatics em um método de diagnóstico nos Estados Unidos”, conta o pesquisador. O próprio padrão genético de um tumor pemite antever sua 26
■
PESQUISA FAPESP ESPECIAL
gravidade e a chance de que se espalhe para outros órgãos. O diagnóstico molecular de doenças genéticas mais simples, causadas por um só gene, tem vantagens óbvias. “Em termos práticos”, diz Mayana Zatz, “a identificação dessas enfermidades por meio de um teste de DNA evita procedimentos dolorosos e complicados, como uma biópsia ou uma eletromiografia.” Apesar de haver um emaranhado de relações por trás das moléstias multifatoriais, conhecer a propensão genética a desenvolver uma doença também pode ser útil. “Eu não gostaria de saber se tenho risco aumentado de desenvolver o mal de Alzheimer, para o qual não há tratamento eficaz atualmente”, exemplifica Mayana. “Mas certamente gostaria de saber que tenho tendência ao diabetes (uma enfermidade multifatorial), porque eu poderia me cuidar e reduzir a influência dos fatores ambientais”, diz a geneticista. “Com um diagnóstico mais confiável e preciso, aumentam as chances de sucesso no tratamento”, resume Fabrício Santos. Outro ponto importante, de acordo com os pesquisadores, é que o diagnóstico molecular pode libertar os médicos de métodos relativamente grosseiros de detecção de doenças. “No caso do câncer de próstata, ainda hoje você depende da alteração da morfologia do tecido. Não há nenhum marcador molecular realmente específico para ele”, diz Verjovski-Almeida. “Falamos do câncer de mama como uma única enfermidade. Entretanto, mais recentemente, aprendemos em decorrência do conhecimento genômico que o câncer de mama não é uma, mas várias doenças”, afirma Sérgio Pena. Remédios sob medida - Sempre provocador, o cientista-empresário Craig Venter, responsável pelo seqüenciamento paralelo do genoma humano feito pela empresa Celera Genomics, diz que no futuro uma pessoa poderá obter o seqüenciamento de seu próprio genoma por US$ 2.000. Assim, poderia conhecer de antemão os problemas que poderiam acometê-la durante a vida e traçar estratégias para combatê-los. “Talvez essa meta seja inatingível, mas seria interessante en-
O Genoma Humano 50 anos após a descoberta da dupla hélice do DNA M AYANA Z ATZ *
A
pesar de a estrutura da dupla hélice ter sido descoberta há 50 anos, foi somente na década de 80 que a tecnologia que permite analisar o DNA começou a tornar-se acessível. Em 1990 iniciou-se o Projeto Genoma Humano com o objetivo de seqüenciar, até 2005, os 50 a 100 mil genes estimados como responsáveis pelas características humanas. Em 2001 anunciou-se que o seqüenciamento do nosso genoma estava quase completo. A mídia não se cansou de repetir que os conhecimentos gerados irão revolucionar a medicina. Será que iríamos finalmente entender: por que ficamos doentes? Por que envelhecemos? Por que morremos? Por que reagimos diferentemente à mesma medicação? Quanto da nossa personalidade e de nosso comportamento é condicionado por nossos genes? Entretanto, enquanto especula-se sobre o futuro, fala-se muito pouco a respeito das aplicações imediatas desse grande feito científico. Como o Projeto Genoma Humano pode influenciar nossas vidas? Como a medicina tem se beneficiado do estudo dos genes? O que já existe de prático? Quais são as implicações éticas? O objetivo principal do Projeto Genoma Humano é o de entender como nossos genes funcionam quando normais e por que causam doenças quando alterados. Uma maneira de abordar essa questão é a partir do estudo de doenças genéticas, que é o foco de pesquisas do Centro de Estudos do
Genoma Humano. Compreender o funcionamento gênico é o primeiro passo para futuros tratamentos. Além disso, a identificação de mutações patogênicas tem uma aplicação imediata na prevenção de novos casos a partir do aconselhamento genético, que inclui: diagnóstico de afetados, determinação de riscos genéticos, identificação de casais “em risco” de virem a ter prole afetada e diagnóstico pré-natal. O estudo molecular das doenças neuromusculares (cuja incidência é de um em cada mil indivíduos), que tem sido o nosso objeto de pesquisas, tem contribuído muito para a compreensão do comportamento de nossos genes. Isto é, como doenças diferentes podem ser causadas por mutações em um mesmo gene ou, ao contrário, como mutações em genes distintos podem causar a mesma patologia. Descobriram-se os genes dinâmicos, isto é, genes que causam doenças porque existem seqüências de DNA neles que podem se expandir (“crescer”) e que, quanto maior a expansão, mais grave é o quadro clínico. Entender que algumas doenças são causadas pelo excesso de um produto e outras pela falta de um produto será fundamental para futuros tratamentos. Mas o mais interessante foi descobrir que, para algumas doenças, pessoas portadoras da mesma mutação podem ter um quadro clínico discordante, variando desde uma forma grave até ausência de sintomas. Isso demonstra que muitas mutações ditas “patogênicas” podem não ser “determinantes” por si só de uma patologia e que outros fatores (genes modificadores, RNA de interferência, etc.) modulam a expressão dos genes. A identificação desses fatores que “protegem” algumas pessoas dos efeitos deletérios de um gene abre um leque enorme para futuros tratamentos.
Além do diagnóstico em pacientes afetados, a identificação de mutações patogênicas em indivíduos assintomáticos contribui para prevenir o nascimento de novos casos, o que é fundamental para doenças graves ainda incuráveis. Mas enquanto atuamos na prevenção e buscamos a cura, temos também um compromisso ético muito importante em relação ao uso de testes genéticos, principalmente em pessoas clinicamente normais. Questões éticas, que surgem em situações reais, são: quando oferecer testes? Até onde vai nosso direito de interferir? Como agir se a análise de DNA revelar dados inesperados, como, por exemplo, uma falsa paternidade? O princípio da confidencialidade, que é uma das regras do aconselhamento genético, protege quem? Devemos sempre lembrar que os resultados de um teste genético não mudam com o tempo, e seu impacto pode influenciar o futuro de uma pessoa ou de toda uma família. Antes de um exame, a pessoa deve ser informada: para o que está sendo testada? O que significa um resultado positivo? O que significa um resultado negativo? Qual é a vantagem em ser testada? O que pode ser feito a respeito? Por outro lado, a possibilidade de analisar o DNA em uma ponta de cigarro descartada demonstrou que as informações contidas no nosso DNA são muito mais acessíveis do que julgávamos, o que levanta outras questões: é ético fazer um teste genético em tal material sigilosamente ou contra a vontade de uma determinada pessoa? E o direito de “não saber”? E a nossa privacidade? Empregadores e companhias de seguro-saúde teriam acesso a essas informações? São assuntos que dizem respeito a todos nós e que devem ser discutidos com toda a sociedade.
MAYANA ZATZ é professora titular de Genética Humana e Médica Coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano do Departamento de Biologia – Instituto de Biociências/USP. Este artigo é um resumo da palestra da autora sobre a mesa-redonda “50 Anos da Dupla Hélice do DNA”, na Livraria Cultura do Shopping Villa-Lobos, no dia 10 de abril.
contrar um caminho intermediário”, avalia Verjovski-Almeida. É que a variação genética entre as pessoas pode ser a chave para medicamentos mais eficazes. “Se o seqüenciamento do genoma ajudou a mostrar que somos todos iguais, ou todos igualmente diferentes, ele também revelou diferenças que podem ser importantes para tratar doenças”, diz Mayana Zatz. Por descenderem todos de uma pequena população africana que viveu há cerca de 100 mil anos (um mero piscar de olhos evolutivo), os seres humanos de qualquer região do planeta são muito parecidos. Mas a adaptação de curto prazo aos mais diversos ambientes criou perfis variados de resistência ou suscetibilidade a doenças. É essa variação que a farmacogenômica, a ciência que relaciona o perfil genético com a resposta a remédios, promete explorar em favor da saúde humana. “Sabemos que as doses de medicamentos recomendadas nas bulas são apenas sugestões grosseiras, feitas com base em médias populacionais”, diz Sérgio Pena. Filosofia genômica - “Diferenças étnicas podem influenciar a maneira como as pessoas respondem a um medicamento”, afirma Mayana. A pesquisadora conta que, num estudo feito por ela e seus colegas da USP, verificou-se que um gene ligado ao transporte de um neurotransmissor, a serotonina, tem duas formas distintas na população brasileira. Um deles, o chamado alelo longo, que quebra rapidamente a serotonina, aparece em 80% das pessoas, enquanto o outro, o alelo curto, só aparece em 20% delas. “Mas nas pessoas de origem japonesa, a proporção se inverte”, diz Mayana. Isso poderia ser extremamente importante para projetar um medicamento capaz de interferir nesse processo. Existem alguns genes em que variantes desse tipo já são conhecidas e poderiam ser testadas para evitar reações adversas. Ao mesmo tempo, o mapa que mostra as predisposições genéticas de uma pessoa adquirir doenças não pode se tornar de domínio público, alerta a pesquisadora. “Companhias de seguro, empregadores, todo mundo vai querer saber minha chance de ter alguma doença”, diz ela. Mecanismos de privacidade genética terão de ser PESQUISA FAPESP ESPECIAL
■
27
M
esmo quando a coisa parece funcionar bem, como no caso dos meninos da bolha nos Estados Unidos e na França, que sofriam de uma forma severa de deficiência imunológica, o genoma é um sistema tão complexo que até alterações supostamente benéficas têm um efeito imprevisível: alguns desses garotos, curados da doença, contraíram leucemia em razão da geneterapia. “Nosso conhecimento a respeito da regulação celular e sua interação com o genoma ainda é mínimo”, afirma Fabrício Santos. “Qualquer terapia gênica, como a dos meninos da bolha, será por tentativa e erro, pois não temos controle suficiente das variáveis com que estamos lidando.” Sérgio Pena também reconhece que ainda há grande imprevisibilidade na manipulação genômica e reforça a idéia de que devemos, “talvez para sempre, nos abster de tentar fazer modificações na linhagem germinativa humana”. Modificações na linhagem germinativa, ou seja, nos óvulos e espermatozóides, que transmitem o CLAUDIUS
criados para evitar que a discriminação feita com base no genoma chegue ao mercado de trabalho. O otimismo dos pesquisadores esbarra num muro quando se trata de usar os dados do seqüenciamento do DNA para terapias que tenham como alvo o próprio genoma. “Sou cético quanto à viabilidade da geneterapia”, reconhece Verjovski-Almeida. Carlos Menck, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, conhece de perto a dificuldade de aplicar a técnica, mesmo nos testes mais preliminares. “Conseguimos tratar a Xeroderma pigmentosum, uma doença de pele que causa lesões terríveis e até câncer porque o paciente não consegue reparar seu DNA”, conta Menck. “Mas acabamos enfrentando limitações do próprio adenovírus que serve como vetor para o gene corrigido. Depois de um tempo, o sistema imune do paciente cria resistência e o tratamento não funciona mais.” Pode ser que isso mude e seja possível atuar na prevenção, criando alguma forma de paliativo para o paciente. “Mas não é nenhuma panacéia”, ressalta Menck.
28
■
PESQUISA FAPESP ESPECIAL
material genético à geração seguinte, tornariam a alteração genética transmissível, com efeitos potencialmente ainda mais perigosos. Por enquanto, a genômica deve se restringir a fornecer subsídios para a criação de drogas mais específicas, que atuem diretamente sobre a proteína codificada por um gene envolvido numa doença. Outra esperança, a ser corroborada, é a técnica conhecida como RNAi, interferência de RNA, outro tipo de material genético. Potente e específica, ela atua sobre um tipo de RNA, chamado mensageiro, que conduz as informações contidas no DNA e inicia a produção de proteínas. Testes em plantas, no verme C. elegans e em linhagens de células sugerem que a RNAi seria capaz de desativar quase totalmente o gene desejado, sem afetá-lo diretamente e sem influenciar outros genes. “É talvez uma das mais importantes descobertas da biologia moderna”, diz Pena. Uma coisa parece certa: mesmo sem novos seqüenciamentos, os dados já obtidos com o genoma humano e o de outros organismos importantes mal começaram a ser interpretados de forma adequada. “Os grandes seqüenciamentos devem continuar por algum tempo, mas teremos de usar hipóteses mais refinadas para justificá-los”, avalia Menck. “Particularmente, sou fã da genômica comparativa, que coloca lado a lado organismos diferentes para ver quais regiões do genoma estão conservadas e, portanto, são importantes para eles”, afirma. Dessa forma, deve se tornar mais fácil vencer o desafio de identificar todos os genes humanos, cujo número permanece incerto. Para Menck, é preciso também um esforço para fortalecer e diversificar os estudos de bioinformática no Brasil, para que essas análises computacionais do genoma acelerem a tarefa de identificar e entender os diferentes genes. “Vejo o esforço genômico como um interlúdio na história da biologia molecular”, filosofa Pena. “A parte de seqüenciamento do PGH está praticamente terminada e nos deu a anatomia do genoma humano. Agora, vamos passar o próximo século desenvolvendo a fisiologia genômica, a patologia genômica e a farmacologia genômica.”
DUPLA HÉLICE 50 ANOS
Aposta contra o câncer Andrew Simpson diz que o Brasil deveria investir no desenvolvimento de fármacos contra tumores
S
eis meses atrás, o bioquímico Andrew Simpson – um inglês que há mais de 12 anos fixara residência no Brasil e, nos últimos tempos, esteve à frente de projetos de peso da ciência nacional, como o seqüenciamento do genoma da bactéria Xylella fastidiosa e o Genoma Humano do Câncer – mudou de emprego. Trocou a filial paulista pela de Nova York do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer. Apesar do breve período no exterior, Simpson formulou uma reflexão interessante a partir do contato mais estreito com as grandes companhias farmacêuticas, donas de gordos orçamentos para o desenvolvimento de fármacos, e do convívio diário com cientistas norte-americanos que se dedicam à tarefa de pesquisar drogas contra os tumores. Na visão de Simpson, desde a descoberta da estrutura molecular do DNA, nos anos 50, o tratamento contra o câncer não mudou radicalmente, sobretudo no que diz respeito à descoberta de remédios contra a doença. Nem mesmo os estudos genéticos dos últimos anos conseguiram impulsionar a pesquisa de medicamentos contra esse mal. “Houve avanços, é claro, principalmente na questão do diagnóstico precoce dos tumores, mas, em termos de terapias, continuamos recorrendo às cirurgias, quimioterapia e radioterapia”, afirma Simpson. Segundo o pesquisador, ao contrário do que muita gente pensa, a busca por novos remédios contra o câncer não figura entre as maiores prioridades dos laboratórios. “Não podemos esperar que as grandes empresas resolvam esse problema para nós”, afirma. No ano passado, houve 340 mil novos casos de câncer no país e 120 mil mortes.
O bioquímico acredita que, do ponto de vista das multinacionais farmacêuticas, o mercado potencial para novas drogas contra o câncer é fracionado, dividido em vários nichos. Dessa particularidade decorreria a suposta falta de vontade das empresas privadas em investir pesado na pesquisa de drogas contra a doença. Por esse raciocínio, cada tipo de câncer – do pulmão, do fígado, de mama, de pele, etc. – seria visto pelos laboratórios como se fosse uma outra doença, com particularidades que a diferenciam das demais formas de tumores. “Cada tipo de câncer representa um mercado pequeno para os laboratórios, que preferem investir em doenças com maior chance de gerar blockbusters (remédios receitados para uma grande parcela da população)”, diz Simpson. Pesquisa cara - E isso não é tudo. Comparados com os portadores de doenças crônicas, como os hipertensos, que, por décadas a fio, tornam-se usuários quase perenes de remédios, os doentes de câncer não representam, potencialmente, o consumidor dos sonhos dos laboratórios. Isso porque os portadores de tumores fazem uso de medicamentos por um período relativamente curto. Segundo Simpson, a doença é tão grave que, uma vez tratado, o paciente com câncer rapidamente deixa de usar seus remédios. “Ou ele se cura ou morre”, comenta o bioquímico. Simpson acha que o Brasil tem de ir à luta e montar projetos para desenvolver fármacos contra o câncer, ainda que os valores necessários para essa empreitada pareçam elevadíssimos. “O país pode ter essa ambição”, afirma Simpson, que está se naturalizando brasileiro. “E não se pode esquecer que a verba investida no desenvolvimento
de um fármaco não é gasta de uma só vez, mas, A doença sim, ao longo de dez ou 15 anos.” Pelos seus cál- não é culos, seriam necessários prioridade ao menos US$ 5 milhões por ano para se tocar para as um projeto que buscasse uma droga contra o empresas câncer. Mas de onde viria o dinheiro para financiar esse tipo de iniciativa? Simpson acha que todas as fontes de recursos poderiam contribuir numa empreitada desse porte, desde as agências públicas de financiamento de C&T, em nível federal ou no âmbito estadual, até a iniciativa privada. “As universidades têm de estabelecer parcerias com os laboratórios nacionais já existentes ou com novas empresas de biotecnologia’, diz o bioquímico. Na área agrícola, isso já acontece. Simpson cita o exemplo da Allelyx, empresa de biotecnologia do Grupo Votorantim, que abriga pesquisadores oriundos de projetos genômicos que seqüenciaram patógenos de grande impacto econômico para o meio rural, como a Xylella fastidiosa, agente causador do amarelinho, grave doença que afeta os laranjais paulistas. Para o bioquímico, o país deve também buscar fontes de financiamento no exterior na pesquisa contra o câncer. Mais uma vez, cita um exemplo da área agrícola para embasar sua tese: “Se os norte-americanos pediram para os brasileiros seqüenciarem a cepa da Xylella fastidiosa que causa a doença de Pierce na videira, por que o Instituto Nacional do Câncer (dos Estados Unidos), que tem um orçamento anual superior a US$ 3,5 bilhões, não poderia financiar também aqui a pesquisa de drogas contra tumores?”. PESQUISA FAPESP ESPECIAL
■
29
DUPLA HÉLICE 50 ANOS
Colaboração do Brasil ao mundo Ação integrada do setor público e empresas impulsiona pesquisa em biotecnologia E DUARD O G ERAQUE
O
dia 1º de maio de 1997 inaugurou a pesquisa em genômica no Brasil. Em uma reunião num sítio em Piracaia, interior de São Paulo, o bioquímico Fernando Reinach, hoje diretor-executivo da Alellyx, empresa brasileira de biotecnologia criada há um ano, e o diretor científico da FAPESP, José Fernando Perez, concordaram que era o momento de seqüenciar, no Brasil, o genoma de uma bactéria. A proposta, lançada por Reinach, que também é do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), iria apenas começar a florescer. Em outra reunião na sede da FAPESP, algum tempo depois, o pesquisador da USP refinou a idéia: achava interessante estudar o genoma de alguma bactéria envolvida com o setor agrícola. “O pessoal do Fundecitrus (Fundo de Defesa da Citricultura) estava na época reclamando da CVC (Clorose Variegada do Citros). Olhei para o tamanho do genoma e achei que dava (para seqüenciar)”, relembra Reinach. O fato de a escolha ter recaído sobre uma bactéria não teve nenhum motivo especial. “Uma bactéria é suficientemente grande para envolver muita gente e suficientemente pequena para dar para fazer”, diz. “Na época, o genoma da bactéria era o maior que já havia sido seqüenciado.” Hoje, depois de seqüenciado o genoma humano, não seria mais um trabalho atraente. O seqüenciamento do genoma da Xylella fastidiosa, bactéria que causa o CVC ou amarelinho, uma das piores pragas dos laranjais no Brasil, tornouse o maior projeto científico já realizado no país. A FAPESP investiu US$ 12 milhões e conseguiu mobilizar 30 laboratórios do Estado de São Paulo, coordenados por dois laboratórios cen-
30
■
PESQUISA FAPESP ESPECIAL
trais. O interesse em participar desse projeto surpreendeu: havia 30 vagas, apareceram 70 laboratórios. Não apenas a abordagem científica era considerada uma novidade para época. O surgimento da rede virtual de laboratórios também abriu um novo capítulo na colaboração científica no Estado de São Paulo. Sem um esforço simultâneo de um conjunto de grupos de pesquisa, não teria sido possível antecipar o final do projeto Xylella, como acabou ocorrendo. Em 6 de janeiro de 2000, todo o genoma estava completo. Antes disso, às 17h46 do dia 9 de novembro de 1999, os pesquisadores já tinham certeza que as partes mais complexas do genoma da bactéria já estavam seqüenciadas. A Xylella foi a décima quarta bactéria a ser decifrada no mundo. Mas o Brasil entrou para a história como o país que seqüenciou o primeiro fitopatógico – uma bactéria causadora de uma praga em uma planta de importância econômica. Na esteira da Xylella, surgiram novos projetos. O segundo, iniciado no ano seguinte, 1998, foi o seqüenciamento do genoma da cana-de-açúcar, outra cultura de relevância no Estado. Desta vez, o objetivo não era identificar todos os genes, como foi feito com a Xylella, mas apenas 50 mil deles. A meta dos pesquisadores era descobrir os genes envolvidos especialmente com o crescimento, desenvolvimento, produção e teor de açúcar da planta. No final de 1999, as pesquisas sobre a cana haviam atraído cerca de US$ 30 milhões, contando com a participação, novamente, da Fundecitrus, com US$ 1 milhão, e um parceiro novo, a Copersucar, com mais US$ 500 mil. Para mostrar que o foco inicial da genômica em São Paulo era mesmo o campo, surgiu, em 2000, um terceiro
projeto: o seqüenciamento de outra bactéria, a Xanthomonas citri, causadora do cancro cítrico, viabilizado por meio de um investimento de cerca de US$ 5 milhões. A ciência brasileira integrava-se definitivamente em uma área de ponta do conhecimento científico mundial. Rápida expansão - Restritas no pri-
meiro momento a instituições de pesquisa do Estado de São Paulo, os projetos de seqüenciamento de genomas rapidamente se espalharam pelo Brasil. Atualmente, existem grupos de pesquisas em todas as regiões (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sul e Sudeste) aptos a montar as bibliotecas de DNA e DNA complementar (ou cDNA), na etapa preliminar do seqüenciamento, e a analisar as seqüências dos organismos que resolveram estudar. É o caso da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnológicos, localizada em Brasília, no Distrito Federal. A despeito da polêmica envolvendo os animais transgênicos em todo o mundo, no ano passado a Embrapa conseguiu literalmente uma vitória: o nascimento da bezerra Vitória, o primeiro clone brasileiro por transferência nuclear. Vitória é um dos marcos mais recentes das pesquisas em biotecnologia da reprodução animal brasileira. “A bezerra está saudável, sem nenhum problema de saúde”, explica Luiz Antônio Barreto de Castro, chefe da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia. A diferença essencial entre o animal brasileiro e a famosa ovelha Dolly, o primeiro mamífero a ser clonado, em 1996, é que o clone europeu nasceu das células adultas, ao passo que os pesquisadores brasileiros valeram-se de células embrionárias introduzidas em células anucleadas.
Segundo Castro, não se pretende clonar animais única e exclusivamente com um objetivo genético. A intenção do Brasil, que ainda não detém a técnica utilizada na Dolly, é avançar na pesquisa das chamadas biofábricas – plantas ou animais capazes de produzir medicamentos de uso humano. “Pretendemos chegara um animal geneticamente modificado que tenha a expressão de genes que nos interessem”, diz ele. Após uma história de mais de 20 anos em melhoramento genético de plantas, a Embrapa almeja incorporar os novos métodos também no setor pecuário. “O exemplo dos canadense é emblemático”, observa Castro. “Eles criaram uma aranha que tece uma teia com uma fibra mais resistente que o aço.” Historicamente, a genômica começou em 2000 a se ramificar por todas as regiões brasileiras, com a criação do Projeto Genoma Brasileiro (BRGene) pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). O primeiro trabalho mobilizador da rede de cooperação científica que se formou foi o mapeamento do genoma da Chromobacterium violaceum, uma bactéria encontrada em regiões tropicais que produz compostos como a violaceína e outros que, em princípio, acreditam os cientistas, poderiam ser empregados no tratamento de algumas doenças. Esse primeiro projeto nacional absorveu investimentos da ordem de R$ 26 milhões, metade proveniente do próprio MCT e a outra metade dividida entre as instituições envolvidas. Participaram desse seqüenciamento 160 pesquisadores e 25 laboratórios. Em janeiro do ano passado, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) investiu mais R$ 3 milhões para aperfeiçoar a rede criada com o projeto de seqüenciamento da Chromobacterium violaceum, integrada por 240 pesquisadores de 480 instituições brasileiras. Com esse reforço, foi possível iniciar, no ano passado, o estudo do vírus Mycoplasma synoviae, que ataca bovinos. Avançaram também os projetos regionais, a exemplo do genoma do guaraná (Paullinia cupana), com equipes da Região Norte, entre elas a Embrapa e o Instituto Nacional de Pesquisas Amazônicas (INPA), que deve estar concluído até o final de 2004. Começou também
no ano passado o estudo do genoma de outra planta economicamente importante para o Brasil, o café, analisado por um consórcio formado pela FAPESP e pela Embrapa. A expectativa é que, a um custo de R$ 1,92 milhão, sejam geradas 200 seqüências de genes, com as quais seja possível criar linhagens de plantas mais produtivas ou resistentes a pragas.
T
anto a Embrapa, que acelerou nos últimos anos suas pesquisas genômicas, como o Grupo Votorantim, que no ano passado investiu US$ 300 milhões na criação da empresa Alellyx, estão de olho em um mercado que movimenta milhões de dólares todos os anos. A importância econômica das pesquisas nessa área, que podem levar a plantas ou animais mais produtivos, pode ser medida por um número: US$ 50 bilhões. É quanto o mercado de biotecnologia, fortalecido pelas inovações da genômica, deve movimentar em todo o mundo. Apenas para o mercado do setor agrícola, a Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia trabalha com a estimativa de US$ 30 bilhões. Os pesquisadores da Embrapa se valem da genômica para identificar, isolar e caracterizar genes que estão envolvidos em processos biológicos que controlam a produtividade de características de importância econômica, em plantas, animais e microrganismos. Além das bibliotecas de DNA e DNA, os esforços dos grupos que trabalham em Brasília estão direcionados para a obtenção de fragmentos de genes, as chamadas etiquetas de seqüências expressas ou ESTs. “É importante que todo esse esforço em genômica tenha um foco”, ressalta Castro. Para ele, depois do respeitável trabalho de seqüenciamento realizado nos últimos anos, “é fundamental que os grupos de pesquisa do Brasil também tenham capacidade para digerir as informações encontradas até agora”. Sem essa interpretação, os dados podem se perder. “Não seria surpresa se os países mais desenvolvidos passarem a usar nosso trabalho de genômica”, diz o chefe da Embrapa Recursos Genéticos. Uma das linhas de pesquisa em andamento da Embrapa retrata o espí-
rito que a biotecnologia tem para a instituição. “Estamos estudando algumas plantas e os vermes que as atacam os vegetais”, comenta Castro. O objetivo desse projeto que ainda não analisa uma planta de importância econômica é identificar, também do ponto de vista gênico, como funcionam os mecanismos de defesa dos vegetais quando eles são atacados por determinados patógenos. À medida que colherem os resultados, os pesquisadores da Embrapa imaginam que será possível transferir esses mecanismos de defesa encontrado em uma Teia de planta para outra espécie que já tenha uma impor- aranha tância econômica. Por mais causa de ações científicas como essa é que a Em- forte do brapa, nos últimos anos, obteve uma conquista que aço apreciável para a agricultura brasileira. “Pelo menos metade das técnicas genéticas usadas atualmente com a soja saiu de nossos laboratórios”, informa Castro. Nova fase - Anunciado em novembro de 2001 e iniciado efetivamente em 2000, o projeto de seqüenciamento do genoma do eucalipto, chamado oficialmente de FORESTS, sigla de Eucalyptus Genome Sequence Projects Consortium, marcou uma nova fase na pesquisa em genômica no Brasil. Com ele, depois da iniciativa de um pequeno grupo de pesquisadores no final dos anos 90, da intenção clara de formar pessoas capacitadas para trabalhar com genomas e da perspectiva de que esses dados pudessem ser usados na prática, por meio da biotecnologia, uma nova forma de pesquisar está se concretizando. A FAPESP entrou com um investimento inicial de US$ 500 mil no projeto genoma do eucalipto, mas não está sozinha. O consórcio formado pela Votoratim Celulose e Papel, Ripasa Celulose e Papel, Suzano de Papel e Celulose e pela Duratex vai investir outros R$ 500 mil nesse trabalho. Como as empresas são muito interessadas no genoma do eucalipto, matéria-prima fundamental para a produção de papel, elas próprias, em uma segunda etapa dessa empreitada, dePESQUISA FAPESP ESPECIAL
■
31
vem investir mais R$ 1,2 milhão. É um exemplo claro do que deve começar a ocorrer em um futuro próximo com as pesquisas na área genômica. As empresas vão começar a investir junto com os demais agentes interessados no tema, para que resultados científicos de qualidade sejam gerados. Nenhum desses projetos que estão em andamento, quer nas instituições públicas de pesquisa, quer nas indústrias, poderiam ocorrer se não fossem as ferramentas e os procedimentos instalados com a revolução genômica que começou em São Paulo e se ramificou pelo país a partir do final da década passada. Com base em toda essa plataforma existente é que a Alellyx trabalha com a possibilidade de lançar, Revolução em breve, um teste de DNA capaz de fazer o genômica diagnóstico precoce da recente ameaça foi iniciada mais dos laranjais paulistas e em São mineiros, a chamada a súbita dos ciPaulo morte tros. A Alellyx assumiu como um de seus primeiros desafios práticos ajudar a combater essa doença. Como o problema é diagnosticado tardiamente nos laranjais, o prejuízo tem sido enorme. Quando a planta começa a dar sinais de que está com essa doença, provavelmente causada por um vírus, ela pode morrer em questão de semanas. Com muita sorte, o produtor consegue colher apenas mais uma safra. Se a criação da Alellyx foi considerada o início do fim do problema – porque o objetivo do projeto genoma era exatamente criar recursos humanos qualificados para alavancar a indústria de biotecnologia molecular no país –, uma vitória em termos práticos deverá significar mais que dividendos para seus acionistas: poderá servir de exemplo para que novos investidores apostem nos resultados futuros da biotecnologia. Além disso, deverá mostrar que fazer ciência na fronteira do conhecimento, com o objetivo de encaminhar as soluções de problemas de relevância econômica, é uma meta a ser perseguida por novos projetos científicos do país. “Sem dúvida, o investimento na Alellyx teve 32
■
PESQUISA FAPESP ESPECIAL
como objetivo colher os resultados futuros que as pesquisas genômicas poderão gerar”, diz João Setubal, bioinformata do Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Um dos pioneiros dos estudos de bioinformática no país, Setubal esteve presente na fundação da Alellyx, mas depois de nove meses na empresa resolveu sair e voltar a se dedicar exclusivamente ao mundo acadêmico.“Continuo acreditando que a iniciativa privada é um dos caminhos viáveis para as pesquisas em biotecnologia. Foi apenas uma decisão pessoal. Decidi que não queria me desligar da universidade. A demanda provocada pela Alellyx impediu que ficasse nos dois lugares”, explica o pesquisador da Unicamp, que ao lado do também bioinformata João Meidanis teve um papel determinante no sucesso obtido pelo projeto da Xylella fastidiosa. Plantas transgênicas - “O investimento maciço em pesquisas na área de biotecnologia na agropecuária e a criação recente de empresas em função das perspectivas otimistas dos últimos 20 anos mostram o potencial dessa área no Brasil”, comenta Marcio de Castro Silva Filho, pesquisador da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, que trabalha com projetos de cana-de-açúcar transgênica. “Esse processo de investimento em larga escala é irreversível”, diz Silva Filho, que este ano está em um período sabático em Melbourne, Austrália. Além dos 50 anos de dupla hélice, o ano de 2003 também tem outra data histórica para a biotecnologia. Em 1983 ocorreu a publicação do primeiro trabalho científico sobre a produção em laboratório de uma planta transgênica. A pesquisa, realizada nos Estados Unidos, conseguiu criar uma espécie de tabaco resistente a drogas usadas na época. Era apenas mais um dos capítulos da melhoria vegetal sendo escrito. Apesar de o debate sobre os transgênicos ainda ocorrer no século 21, tanto tempo depois de Gregor Mendel ter lançado, em 1865, as bases da genética moderna, o ser humano tenta produzir espécies melhores do ponto de vista econômico. Mais produtivas e resistentes.
“A contribuição da genômica e da era pós-genômica está ainda na fase inicial, de modo que vale a pena usarmos a imagem de um iceberg”, diz Silva Filho. “O que se vê hoje não reflete o que está por baixo.” Na primeira fase desta era genômica, o seqüenciamento de organismos inteiros proporciona atualmente uma quantidade excepcional de informações. Todo dia, os pesquisadores do mundo inteiro enviam cerca de 50 milhões de seüências genéticas ou mesmo genes aos bancos de dados internacionais como o Genebank, nos quais as descobertas ficam depositadas. Por mês, há, portanto, 1,5 bilhão de seqüências novas de animais e plantas. Com base nesses números, pode-se ter uma idéia de quantos genes de interesse econômico estão sendo objetos de estudo para uma possível aplicação direta, na forma de plantas transgênicas, por meio da incorporação de novas características, ou mesmo para o projeto de novos medicamentos de uso humano, que começam a ser elaborados em função das seqüências de DNA já identificadas. Para Silva Filho, o Brasil pode ser considerado um modelo não apenas para os países em desenvolvimento. “É um exemplo mesmo para nações do Hemisfério Norte”, diz.
N
o estudo do genoma da cana, ao qual a equipe do laboratório de Silva Filho se dedica, já podem ser percebidas algumas aplicações potenciais. “Já identificamos promotores de genes que são ativados quando a planta é atacada por insetos”, diz o pesquisador. “Esses promotores serão utilizados para dirigir a expressão de genes com propriedades inseticidas.” A utilização de microssatélites nos programas de melhoramento genético de plantas é outra aplicação derivada dos estudos com a cana-de-açúcar transgênica. Conceitualmente, microssatélites são pequenas seqüências de DNA repetidas ao longo do genoma de um organismo. São importantes porque, quando corretamente identificados, podem auxiliar nos programas de melhoramento genético. Por estarem localizados geralmente próximos a genes que controlam caracte-
rísticas de interesse dos pesquisadores, os microssatélites ajudam os pesquisadores a selecionar os materiais de estudo. Nos cruzamentos de plantas, essas seqüências seguem junto com as características de interesse que os pesquisadores estão estudando. Não se pode negar os avanços e as iminentes aplicações da genômica, embora também sejam claros os obstáculos à frente da biotecnologia e mesmo das pesquisas básicas do setor agropecuário. Por causa do debate sobre os transgênicos, as pesquisas nesse setor estão com os seus ritmos comprometidos. Além disso, ainda não está resolvida a polêmica sobre o direito de acesso aos dados das pesquisas, obtidos tanto pelas instituições públicas quanto pelas empresas privadas. As pesquisas em genômica no mundo inteiro sofreram, porém, com um erro originado do discurso das empresas de agribussines voltadas às pesquisas de biotecnologia. “No início, muita publicidade foi veiculada de forma distorcida ou mal-intenciona-
da”, diz Silva Filho. “Prometia-se resolver todos os problemas com as novas tecnologias.” As conseqüências do erro - Na visão do pesquisador da Esalq, as próprias empresas do segmento subestimaram a percepção pública sobre o assunto, na medida em que acreditaram que a aceitação popular das plantas transgênicas seria incondicional, como resultado de seus propagados benefícios. “Esse foi um erro e até hoje as empresas estão pagando por ele. Criou-se um vácuo entre a nova tecnologia e a aprovação popular.” Mesmo assim, conforme um relatório recém-divulgado pelo International Service for the Acquisition of Agri-Biotech Applications (ISAAA), instituição sem fins lucrativos localizada em Cornell, Estados Unidos, os produtos provenientes das plantas transgênicas estão se espalhando pelo mundo. Independentemente do erro de cálculo das empresas do setor biotecnólogico e agropecuário, a genômica, por causa do esforço científico inicia-
do no Estado de São Paulo e depois expandido para o Brasil, já é uma realidade. Mais do que isso: o conhecimento gerado e a forma como ele foi obtido viraram referência internacional. Vários trabalhos que vêm sendo realizados em diversos estados se encontram em estágio avançado. Nota-se uma tendência consolidada de pesquisa quer, por exemplo, na Bahia, no estudo do genoma do fungo Crinipellis perniciosa (causador da vassoura-de-bruxa, doença que devasta os cacaueiros do sul daquele Estado), quer, no Rio de Janeiro, com a bactéria Gluconacetobacter diazotrophicus (microrganismo fixador de nitrogênio em culturas como a cana e o café). O objetivo almejado pelos idealizadores do projeto genoma da Xylella foi alcançado: Iniciativa novos grupos estão sendo formados e a inicia- privada se tiva privada também interessa está interessada nessa área. Pode-se retomar a em investir imagem do iceberg para lembrar que os pesqui- na área sadores do mundo todo têm agora uma idéia de quão grande promete ser o trabalho e como deve demorar para ser concluído. Foi justamente a noção de tempo que parece ter faltado para algumas empresas que resolveram apostar todas as suas fichas na genômica. É o caso da empresa norte-americana Celera Genomics, que fez um seqüenciamento do genoma humano paralelo ao conduzido por um consórcio de instituições públicas. Desse modo, embarcou na idéia de que o bloco insinuado pelo iceberg seria logo conhecido e renderia lucros rapidamente. A realidade foi diferente. “Não sei se a Celera errou”, observa João Meidanis, bioinformata da Unicamp que atua também em sua empresa, a Scylla. A Celera ainda não ganhou dinheiro vendendo informações sobre o genoma humano e hoje é uma empresa praticamente igual a qualquer outra da indústria farmacêutica. Mas uma coisa é certa, segundo Meidanis: se não fosse a pressão exercida pela Celera, dificilmente o consórcio público já teria concluído o seqüenciamento do genoma humano. PESQUISA FAPESP ESPECIAL
■
33
DUPLA HÉLICE 50 ANOS
A revolução da bioinformática Nos próximos anos, haverá mudanças em todas as ciências em torno da biologia molecular E DUARD O G ERAQUE
A
s áreas biológicas, ao longo da história, assistiram várias revoluções. Seja com as pesquisas de Charles Darwin (1809-1882), no século retrasado, ou com a descoberta da dupla hélice há 50 anos, muitas dessas novidades revolucionárias foram incorporadas na rotina dos laboratórios que estudavam a vida. Na década passada, antes do século e do milênio terminarem, mais uma onda revolucionária apareceu. As pesquisas genômicas, que investigaram desde o DNA do homem até o das bactérias, transformaram para sempre algumas áreas da biologia. Nos próximos anos, essas transformações vão se irradiar e atingir toda a ciência que gravita ao redor da biologia molecular. “Podemos fazer uma analogia deste atual momento com o que ocorreu no final dos anos 70, início dos 80”, explica Sandro de Souza, coordenador de Bioinformática do Instituto Ludwig de São Paulo, entidade ligada ao Hospital do Câncer. Para o bioinformata, que trabalha com a análise de seqüências de DNA humano, assim como há mais de 20 anos a biologia molecular passou a fazer parte da rotina de quase todos os laboratórios de biologia no mundo, o mesmo vai ocorrer com a bioinformática no futuro próximo. “Houve uma mudança cultural agora. Em breve, todo o laboratório vai ter alguém fazendo alguma pesquisa com bioinformática”, diz o cientista. Para ele, uma das grandes conseqüências do início da era genômica está na mudança de visão dos biólogos em relação às áreas da estatística e da informática. “Os biólogos não gostam normalmente dessas abordagens mais quantitativas. Mas essa maneira de pensar mudou totalmente com os
34
■
PESQUISA FAPESP ESPECIAL
projetos genomas”, diz Souza. “O volume de dados gerados e as abordagens possíveis de pesquisa no futuro são enormes. A bioinformática, pelo menos na área biomédica, é um caminho sem volta.” Essa superavaliação da bioinformática não está exagerada. As ferramentas metodológicas desenvolvidas por essa área do conhecimento a partir de 1995 foram essenciais para que o sucesso dos projetos genomas desenvolvidos no Brasil e no mundo dessem certo. A conclusão do seqüenciamento do genoma humano, por exemplo, teve o seu prazo reduzido em quase cinco anos. No Brasil, o grupo de bioinformatas montado para integrar a rede Onsa (Organization for Nucleotide Sequencing and Analysis) também teve um papel decisivo para que o emblemático seqüenciamento da bactéria Xylella fastidiosa (trabalho que mereceu capa da revista Nature em 13 de julho de 2000) fosse vitorioso. No edital de convocação para o projeto da Xylella existia uma vaga para um laboratório de bioinformática. A Unicamp acabou como a vencedora. À frente do laboratório de bioinformática da instituição estavam os jovens João Setubal e João Meidanis. Um outro João, o Kitajima, também fazia parte do time. Não se tratava apenas de receber os pedaços de DNA seqüenciados, colocar no computador e pronto. Além de afinar as técnicas metodológicas, os apenas informatas daquele tempo tiveram até que aproximar as rotinas de trabalho deles com as dos biólogos moleculares. Essa nova rotina em que se transformou a vida dos cientistas da informática que participaram do Projeto Genoma também só existiu porque houve coragem científica. Se depen-
desse de um dos consultores internacionais escolhidos pela FAPESP para compor o comitê científico internacional do projeto da Xylella, todos os trabalhos de bioinformática teriam sido feitos no exterior. Para André Goffeau, o cientista francês que coordenou o seqüenciamento do genoma da levedura encerrado em 1996, naquela época, teria sido melhor contratar um especialista europeu para tocar a bioinformática do seqüenciamento da Xylella. Ele conhecia vários, afinal, o projeto da levedura havia reunido 100 laboratórios europeus. Mais uma vez, os líderes brasileiros resolveram apostar na mão-de-obra nacional e não se arrependeram. Até mesmo Goffeau reconheceu o mérito do Brasil também nessa área quando o projeto foi terminado em 2000. Toda essa revolução causada pelo início da era genômica, e que o Brasil teve um papel fundamental pelo menos no caso dos projetos da área agrícola, está muito mais próxima do início do que fim. É como se a oceanografia conseguisse estudar até hoje apenas os 10 primeiros metros da coluna de água do oceano. “Se nós fossemos imaginar uma pirâmide invertida, o seqüenciamento do DNA e das proteínas estão apenas na ponta inferior dessa figura”, diz João Setubal, do Instituto de Computação da Unicamp. Apesar de dentro dessa mesma fase alguns problemas metodológicos ainda existirem por causa, muitas vezes, da complexidade do objeto estudado, como é o caso do genoma humano, uma nova fase dentro da bioinformática também já está em andamento. “Ao caminharmos para o topo dessa pirâmide invertida, um segundo estágio é o estudo da interação entre as moléculas de uma mesma célula”, diz
Setubal. As pesquisas conhecidas por “estudo do proteoma” estão inseridas nesse trecho da hipotética pirâmide invertida da bioinformática. “Em hipótese alguma, as novas ferramentas e as novas técnicas da bioinformática excluem as antigas. Essas novidades caminham em paralelo. O novo não retira a importância do velho”, diz o cientista da Unicamp.
N
essa evolução constante da bioinformática e da genômica, a interação entre biólogos e informatas, como bem mostrou os projetos desenvolvidos pela rede Onsa, parece ser um atalho para novas descobertas. “Novas ferramentas dependem de um intenso e próximo contato entre as áreas de computação e biologia, envolvendo ao máximo os pesquisadores”, diz João Meidanis, da Unicamp. O cientista, que, além de continuar na universidade, também atua na sua própria empresa de bioinformática, a Scylla, se utiliza mais uma vez dos ensinamentos dos primeiros
projetos de seqüenciamento genético para analisar o momento atual. “No laboratório de bioinformática da Unicamp, durante os projetos genoma, nós metíamos a mão na massa de verdade com os colegas biológicos. Nem todos os pesquisadores novos, que entraram nessa área mais recentemente, fazem questão dessa relação mais estreita. Os biólogos se ressentem.” A “outra face da moeda”, como diz Meidanis, também existe. “Alguns dizem que nós ‘acostumamos mal’ os biólogos, pois demos tudo de graça para eles. E agora se criou um clima de que isso é para ser dado de graça mesmo.” Apesar dessa falta de harmonia em alguns casos, o próprio cientista da Scylla reconhece que novas ferramentas de bioinformática estão sendo criadas. “O Projeto Cage (Cooperation for Analysis of Gene Expression), do Instituto de Química da USP, já apresentou alguns resultados interessantes.” Até chegar à base – que na verdade seria o topo do processo – da pirâmide proposta por Setubal, mais cinco níveis terão que ser ultrapassados. Isso
mostra apenas que o caminho a ser seguido, tanto pelos bioinformatas como pelos biólogos moleculares, ainda é infinitamente longo. “Estamos agora entrando na fase de estudar o funcionamento das estruturas dentro de uma mesma célula”, explica Setúbal. A evolução natural das pesquisas ainda vai chegar à análise das células de um tecido ou de um órgão, antes de ter como objetivo de estudo um indivíduo completo. E depois, continua Setubal, haverá uma demanda para que as populações e a biosfera como um todo seja investigada pela genômica. Possivelmente, quando esse futuro distante chegar, haverá alguém que utilizará o termo biologia de sistemas computacional para substituir o que hoje se convencionou chamar de bioinformática. Ciência Esse caminho apresentou, e continuará busca sendo assim, muitos obs- estimular táculos. Apesar de o seqüenciamento genético economia ter virado uma rotina em vários laboratórios do Brasil de São Paulo e do Brasil, depois das terríveis dificuldades dos processos iniciais, algumas limitações metodológicas ainda não foram transpostas, mesmo em nível mundial. “O seqüenciamento do genoma humano, por exemplo, está pronto. Mas ninguém sabe ao certo quanto genes ele tem. Foi possível apenas chegar a uma aproximação de 30 mil”, diz Setubal. Mesmo com a falta dessa informação, os dados gerados pelo seqüenciamento do DNA do homem já podem ser usados para que a pesquisa genômica avance. “Este problema do número de genes ocorre porque o genoma humano é bastante complexo. Não é algo simples, apesar de todas as técnicas eficientes que nós temos hoje, encontrar esses genes”, explica Sandro de Souza, cientista que tem em seu currículo a participação na invenção do método Orestes (Open Reading frames EST Sequences) de seqüenciamento genético. Por causa exatamente dessas outras formas de análise dos trechos de DNA é que, mesmo sem se saber o número correto de genes do ser humano, esse trabalho de seqüenciamento genético não apenas detonou a revolução genômica dos PESQUISA FAPESP ESPECIAL
■
35
falta de pessoas para ensinar essas novidades, no futuro próximo uma outra questão diferente poderá ter que ser resolvida. Acomodar todos esses bioinformatas poderá ser um dos desafios em breve. Um dos caminhos para resolver esse problema já começou a ser trilhado, pelos mesmos cientistas que desenvolveram essa área no Brasil. Enquanto Setubal ajudou na fundação da empresa de biotecnologia Alellyx, mas hoje voltou a se dedicar de forma exclusiva à universidade, Meidanis continua a querer alcançar os seus objetivos também na iniciativa privada. “Acreditamos que toda a sociedade vai se beneficiar da transmissão do grande conhecimento gerado nos projetos genomas para as empresas. Mas a luta é árdua. Primeiro porque é novidade e segundo porque muitas empresas dessa área do Brasil são multinacionais e elas executam as pesquisas lá fora”, diz Meidanis. Para ele, as poucas empresas que resolvem investir nesse campo devem ser parceiras no processo em que a ciência busca, indiretamente, impulsionar a economia nacional.
A ciência brasileira como você nunca viu
CLAUDIUS
anos 90 como também mostrou ter uma utilidade muito grande para o próprio homem. Os sinais dentro do território nacional de que essa revolução está consolidada são os centros de bioinformática que estão se formando em várias regiões do país. Segundo Meidanis, além dos já tradicionais pólos de pesquisa paulistas (Unicamp, USP, Unesp e Instituto Ludwig), novos centros podem ser citados. “Estão sendo formadas pessoas em vários pontos. Também foram criados cursos de pós-graduação e, em alguns lugares, novos núcleos, como o do LNCC (Laboratório Nacional de Computação Científica de Petrópolis, RJ), da UFRGS, da UFPE e da UFMG. No mês de maio, a realização do Primeiro Congresso Brasileiro de Bioinformática será uma oportunidade importante para os cientistas da área atualizarem os conhecimentos, e os resultados, desse segmento no país. A grande demanda por profissionais da bioinformática é um indicador que sozinho mostra o aumento de projetos nessa área. Se o problema em alguns lugares atualmente está na
Pesquisa FAPESP traz, a cada mês, mais de 90 páginas de informações novas sobre a ciência e a tecnologia produzidas nas universidades, institutos de pesquisa e empresas do Brasil. As reportagens que você lê primeiro nesta revista retratam a construção do conhecimento que será fundamental para o desenvolvimento do país. Ler Pesquisa FAPESP é acompanhar essa evolução sem perder nenhum movimento.
www.revistapesquisa.fapesp.br
Complete sua coleção da revista: tel. (11) 3038-1438 36
■
PESQUISA FAPESP ESPECIAL
DUPLA HÉLICE 50 ANOS
Ciência genética e ação digital Gerações futuras descobrirão que há pouca distância entre a invenção do computador e a descoberta do DNA J OÃO C ARLOS S ETUBAL *
N
a década de 1940 foi inventado o moderno computador digital. Ele se chama “digital”, porque sua operação se baseia no alfabeto binário, em que a informação é armazenada e manipulada usando-se apenas zeros e uns. O computador é uma criação da mente humana, uma encarnação da matemática, a mais abstrata das ciências. Algo, portanto, bastante distante do mundo biológico. Qual não foi a surpresa então quando se descobriu na década de 1950 que a informação genética também é basicamente digital! (Sendo que o “alfabeto biológico” tem quatro símbolos, em vez de apenas dois.) Gerações futuras talvez achem extraordinária a pequena distância temporal que separa a invenção do computador digital da descoberta da hélice dupla do DNA. A informação genética nos permanecia inacessível. Sabíamos que estava lá, entendíamos sua estrutura, mas não tínhamos métodos eficientes para lê-la. Isso mudou nos anos 90, quando modernas máquinas seqüenciadoras de DNA passaram a permitir a leitura de vastas quantidades desse tipo de informação. Durante esses 40 anos em que o seqüenciamento demorou a decolar, os computadores e a ciência da computação também tiveram seu progresso fenomenal, como é bem sabido. Como resultado, assim que as máquinas seqüenciadoras passaram a despejar inumeráveis cadeias de A’s, C’s, G’s e T’s, pudemos lançar mão de um poderoso arsenal de computadores e técnicas computacionais, matemáticas e estatísticas para montar, analisar e tentar entender a informação genética. Essa atividade se chama bioinformática, e é um dos ramos mais novos e promissores da ciência moderna. Tal como a proverbial cobra que come o próprio rabo, a mente humana projetada no silício passou a devorar a substância primal de sua própria origem.
O advento da bioinformática está provocando uma “matematização/ Dados informatização” da biologia molecular: esta cada vez mais se torna uma genéticos ciência quantitativa/informática. A também análise das cadeias de DNA é apenas o começo. O próximo passo, já em são dados curso, inclui uma compreensão essencialmente quantitativa/computa- digitais cional dos processos que ocorrem dentro de uma célula. Esta, apesar de microscópica, é um sistema bastante complexo, e uma compreensão do que se passa dentro dela de forma profunda e satisfatória vai ainda exigir muitas décadas. A bioinformática tem um rico e longo futuro pela frente. Se por um lado a matematização da biologia molecular nos permite entender melhor esse fenômeno fundamental de nosso planeta que é a vida, por outro reforça a dependência cada vez maior que temos dos computadores e de seus manipuladores, os informatas. Isso deve ser particularmente ressaltado no caso das aplicações clínicas da biologia molecular derivadas da revolução genômica. Já chegou o dia em que certos resultados de um “laboratório de análises clínicas” não vêm (apenas) de um experimento de laboratório, com tubos de ensaio e reações químicas, mas vêm (também) da saída de um programa de computador. Isso significa que estão vindo para essas áreas aplicadas todos os aspectos “bons” (rapidez, capacidade de processamento de grandes quantidades de dados, etc.) e “ruins” (erros de diagnóstico causados por software defeituoso, depreciação do julgamento humano, etc.) do uso dos computadores. Cabe à sociedade se organizar para que os aspectos “ruins” estejam devidamente sob controle, de modo que o casamento da hélice dupla com o computador esteja a serviço da humanidade, e não esta a serviço daquele.
* JOÃO CARLOS SETUBAL foi coordenador de bioinformática do Projeto Genoma da Xylella fastidiosa, é professor associado do Instituto de Computação da Unicamp e coordenador do Laboratório de Bioinformática no mesmo instituto. Este artigo é um resumo da palestra do autor na mesa-sredonda “50 Anos da Dupla Hélice do DNA” (Livraria Cultura do Shopping Villa-Lobos, no dia 10 de abril). PESQUISA FAPESP ESPECIAL
■
37
DUPLA HÉLICE 50 ANOS
A cultura ameaçada pela natureza Genoma Humano pode mostrar que problemas em nosso comportamento têm base genética
FABIO COLOMBINI, PRANCHA DO LIVRO DE JOHANN B. VON SPIX, ARQUIVO JEFFREY JON SHAW, MIGUEL BOYAYAN, EDUARDO CESAR, IBMP, E. KITAJIMA/USP, GAL MASCARENHAS, MARINEZ FERREIRA DE SIQUEIRA/CRIA
R ENATO J ANINE R IBEIRO *
* RENATO JANINE é professor titular de Ética e filosofia Política da Universidade de São Paulo e autor, entre outros livros, de A Sociedade contra o Social – o Alto Custo da Vida Pública no Brasil. 38
■
PESQUISA FAPESP ESPECIAL
N
os últimos 200 anos, vivemos uma separação entre natureza e cultura que, grosseiramente, definiu os limites das ciências biológicas e “exatas” com as humanas. Essas fronteiras nunca foram pacíficas, movendo-se ao sabor de escaramuças intermináveis – mas, em linhas gerais, funcionaram1. A emergência da idéia de Bildung¸ ou formação, no século 18, foi decisiva para gestar o que hoje chamamos ciências humanas. Elas consideram que o homem não é um ser dado por natureza, mas constituído – em larga e indefinida medida – pelo seu entorno também humano. Daí nasceram idéias como educação e cultura. Até aquela época, não tínhamos nada comparável ao que denominamos educação. Às vésperas da Revolução Francesa, aparecem três idéias mestras, conjugadas, que vão mudar o mundo. Uma é a de educação, ou seja, a de que o indivíduo humano é mutável, conforme foi criado ao longo de seus decisivos anos de formação. Quem melhor a formula é Rousseau, no Emílio. Outra é a de história como ciência – a idéia de que a coletividade humana muda segundo a época: o moderno é diferente do antigo. Saint-Just pode assim dizer que “a felicidade é uma idéia nova na Europa”, e conclamar os franceses a acabar com a injustiça do regime monárquico. Uma terceira idéia é a de revolução: é possível mudar, deliberadamente, toda a organização da própria sociedade. Até então, essa palavra indicava os movimentos dos astros, cumprindo sempre a mesma trajetória – portanto, tudo voltava ao mesmo lugar, nada mudava, somente se perturbava um pouco a estabilidade. Mas, com as revoluções Americana e Francesa, o termo revolução passa a designar uma mudança radical – e, para muitos, promissora. Poderíamos acrescentar outras idéias, todas tendo em comum que o ser humano seja passível de modificação – não seja dado de uma vez por todas. Ele é visto como uma criação de si próprio, mediante um trabalho específico, ligado à convivência social, à ação de uns sobre os outros (e reciprocamente). É nesse quadro que os antropólogos, mas não só eles, se especializaram na idéia de que a cultura é a
dimensão característica do ser humano. Como, enquanto isso, deslancham as ciências da natureza, mais velhas, porque começam no século 17, entende-se que o homem se torne uma exceção às ciências naturais. É claro que o ser humano pode ser objeto da biologia – mas o que ela considerará, em nós, não é o mesmo que as ciências humanas. Porém, a fronteira vai sempre ser problemática. Se adoeço, como vou me tratar? O óbvio, se a moléstia afeta meu corpo, é medicar-me. Mas sabemos que há doenças de base psicológica. Serei tratado por um médico ou por um psicoterapeuta? Essa questão, pela qual devem ter passado em sua vida pessoal muitos dos leitores de Pesquisa FAPESP, encena na esfera micro a pergunta macro sobre as fronteiras entre natureza e cultura. Quando um amigo meu, psicanalista, cada vez que tenho um problema físico, brinca, dizendo: “Sempre achei que a psicanálise sai mais barato”, ele toma posição em favor da cultura. Quando outro amigo, neurocientista, diz que: “Gostaria de ter conhecido o cérebro das bailarinas russas famosas do começo do século 20”, ele se coloca do lado da natureza.
O
que tem isso a ver com o DNA? Nenhum avanço científico recente teve talvez tanto destaque na mídia quanto um desdobramento da descoberta que ora completa 50 anos. É a pesquisa sobre o Genoma Humano que por sinal levou a FAPESP a ter, como destaque em sua imagem pública, estudos brasileiros sobre o genoma. O salto qualitativo que isso representa, nas ciências, não pode ser ignorado. A decifração do genoma permitirá detectar e tratar doenças antes de eclodirem – já no feto, talvez. Poderemos, quem sabe, pôr fim à miopia. Isso não apenas substituirá toda uma parte da medicina, que sairia do software (remédios) para entrar no hardware (uma intervenção cirúrgica preventiva que lembra a engenharia), como pode pôr em xeque todo um campo das ciências humanas. O grande exemplo disso é o que se discute sobre o homossexualismo. Nos últimos anos, seja como by-product das pesquisas sobre o genoma, seja em decorrência de outras, mas certamen-
te inspiradas pelo exemplo daquelas, alguns cientistas afirmaram ter encontrado a base natural para a homossexualidade. O assunto é controverso. Psiquiatras relatam casos de gêmeos univitelinos, dos quais um é homossexual e outro, não – o que contesta a tese da fundamentação natural da homossexualidade. De todo modo, o Genoma Humano fez cintilar a expectativa de que uma gama de problemas que costumamos atribuir à cultura ou à educação, isto é, à formação humana do ser humano, poderia ter Mídia faz bases genéticas – e assim as poderíamos identifi- alarde de car e quem sabe resol- revelações ver. Por isso é que pode mudar a linha divisória do entre natureza e cultura. As escaramuças de fron- DNA teiras continuariam, mas o traçado delas seria outro. Espanta-me que essa não seja a principal discussão hoje nas ciências humanas. Se o conjunto de propósitos reunido no Projeto Genoma Humano se confirmar, o papel das humanas diminuirá. As disciplinas mais afetadas serão provavelmente as mais ligadas à idéia de cultura, a antropologia e a psicanálise. Por isso mesmo, elas deveriam conhecer e discutir melhor o DNA. Evidentemente, se as expectativas do projeto derem certo, deveremos ser os primeiros a aceitar seus resultados. Não se trata de combatê-los em nome de qualquer corporativismo de área. Mas precisamos discutir o que isso significa. E por isso devemos explicitar os argumentos que fazem muitos de nós sermos algo céticos em relação às promessas do Genoma Humano. Em primeiro lugar, a publicação dos seus resultados em fevereiro de 2001 foi um anticlímax. Esperava-se que a decifração do genoma resolvesse uma série de mistérios sobre o ser humano; viu-se que falta ainda muita pesquisa. Por isso, embora a mídia de divulgação científica não tenha propriamente feito a crítica daquelas expectativas, ela discretamente reduziu o alcance dado a elas. Três anos atrás, o Genoma Humano aparecia como uma enorme promessa, um divisor de águas; hoje, um pouco menos. PESQUISA FAPESP ESPECIAL
■
39
CLAUDIUS
substitua meu papel de sujeito pelo de objeto. Um antidepressivo pode ter essa singela função. Quando tomo um Prozac ou um Lexotan, renuncio à posição de sujeito da minha vida psíquica e converto-a em objeto de ordem natural.
S Mas ele haverá de trazer resultados, que espero permitam vencer muitas doenças e insuficiências humanas. Pessoalmente, sou entusiasta dessas perspectivas. Porém, devo expor qual o grande argumento para o ceticismo das humanas: há uma enorme tendência do ser humano a querer considerar-se coisa, objeto. Aceitar que somos indeterminados naturalmente, que seremos lapidados pela educação e a Mito cultura, que disso decorrem diferenças relepor vantes e irredutíveis aos é muito difícil. trás do genes Significa aceitarmos que Genoma há algo muito precário condição humana. Humano na Parte pelo menos dessa precariedade ou indeterminação, alguns chamarão de liberdade. Porém, nem mesmo a liberdade é tão valorizada quanto se imagina. Ela implica responsabilidades. E diante disso é comum desejar-se algo que resolva nossos problemas independentemente de nós mesmos. São inúmeros os relatos 40
■
PESQUISA FAPESP ESPECIAL
de psicoterapeutas, psiquiatras e psicanalistas sobre pessoas que querem “curar” seus problemas psíquicos com um remédio. São também incontáveis os doentes que fazem exame após exame sem encontrar etiologia física para seus males, levando o próprio médico a recomendar uma terapia. Parece que se busca conforto na condição de coisa. Se eu for um objeto, isto é, se eu for natureza, meus males independem de minha vontade. Aliás, o que está em discussão não é tanto o que os causou, mas como resolvê-los: se eu puder solucioná-los com um remédio ou uma cirurgia, não preciso responsabilizar-me, a fundo, por eles. Tratarei a mim mesmo como objeto. A postura das ciências humanas e da psicanálise é outra, porém. Muito da experiência humana vem justamente de nos constituirmos como sujeitos. Esse papel é pesado. Por isso, quando ele entra em crise – quando minha liberdade de escolher amorosa ou política ou profissionalmente resulta em sofrimento –, posso aliviarme, procurando uma solução que
abemos todos, ainda mais numa sociedade estressada e histérica como a nossa, como é difícil sustentar a responsabilidade e a liberdade pela vida pessoal. Daí que se deseje a passividade, a renúncia à liberdade. Ora, esses assuntos foram amplamente discutidos pelas ciências humanas. Ou seja, com todo o respeito pelas verdades que o Projeto Genoma Humano traga à luz, temos nas ciências humanas elementos para trabalhar o que é o mito por trás dele. Que dizer, então? Precisamos, nós de humanas, nos preparar para a mudança de fronteiras. Mas também temos muito a dizer aos colegas que decifram o código genético. Podemos mostrar-lhes o quanto há de mito na imagem pública de seu projeto. Podemos discutir como esse mito atende a um público de pessoas que querem – paradoxalmente – livrar-se de sua liberdade, a um mercado que por isso mesmo vende bem, a empresas que lucram com isso, a poderes públicos que preferem esse approach ao, muito mais cheio de dúvidas, das ciências humanas. Penso que esse diálogo respeitoso entre as duas partes seria muito rico. E, se o Brasil apostar nisso, ele fará algo que praticamente não se fez no resto do mundo. 1 Algumas idéias deste artigo foram desenvolvidas por Adauto Novaes (org.), em O Homem-Máquina, São Paulo, Companhia das Letras, no prelo (previsto para junho).
DUPLA HÉLICE 50 ANOS
DNA: a revanche O escritor e médico escreveu para Pesquisa FAPESP um conto sobre o DNA M OACYR S CLIAR *
T
odo o mundo vibrou com a descoberta da estrutura do DNA, certo? Todo o mundo achou que foi uma grande descoberta científica, certo? Errado. Há pelo menos uma pessoa que não pode ouvir falar em DNA. Que estremece de raiva à simples menção dessa sigla. E que, curiosamente, é um homem que, num instante decisivo de sua vida, esteve ligado, ainda que de maneira indireta, às pesquisas que conduziram à descoberta do DNA. Este homem mora no Brasil. Eu o conheço: é o pai de minha vizinha Lúcia. Nascido em Beja, Portugal, seguiu o rumo de muitos de seus patrícios, emigrando, isto no começo dos anos 50. Foi para a Inglaterra e lá arranjou um emprego no laboratório de pesquisas de uma universidade. Uma ocupação humilde, a dele: junto com outros, fazia a limpeza. Varria o chão, lavava os tubos de ensaio, recolhia o lixo. O salário não era grande coisa, mas pelo menos tinha o que comer, o que vestir e onde morar. Além disso, estava, de alguma forma, ligado a um empreendimento que não entendia bem, mas que sabia tratar-se de algo importante. Os cientistas do laboratório desenvolviam um projeto sigiloso, do qual outros laboratórios rivais nem podiam tomar conhecimento. E o homem, claro, nada perguntava a respeito. Mas não podia deixar de ler certos bilhetes que, de vez em quando, apareciam na cesta de papéis. Um desses bilhetes deixouo particularmente alvoroçado. Escrito pelo diretor do laboratório, uma pessoa que raramente aparecia ali (estava sempre em visita a gabinetes e ministérios), era dirigido a um dos cientistas, justamente o coordenador da pesquisa. O bilhete estava escrito em inglês, mas, àquela altura, ele já conseguia entender razoavelmente o idioma. Foi com o coração batendo forte que leu: “Invistam pesado no DNA. Seguramente nos dará um retorno compensador”. Acontece que o nome do nosso amigo é Deocleciano Natercino Almeida. Um nome de difícil pronúncia, sobretudo para ingleses. De modo que, como é costume nessas situações, ele havia ganho um apelido. Uma sigla, na verdade, formada pelas primeiras letras de seu nome.
* MOACYR SCLIAR é escritor, autor de, entre outros, A Paixão Transformada: História da Medicina na Literatura (Companhia das Letras). É médico, especialista em saúde pública. PESQUISA FAPESP ESPECIAL
■
41
42
■
PESQUISA FAPESP ESPECIAL
SIRIO J. B. CANÇADO
Ele era o DNA. “DNA, traz o balde.” “DNA, limpa esta janela.” “DNA, me alcança a vassoura.” Naquela noite, DNA, ou seja, Deocleciano Natercino Almeida, não dormiu – de pura excitação. Considerava-se um empregado modelo, mas jamais pudera imaginar que fosse tamanha a sua importância. O laboratório investiria nele! Isso significava que tinham planos para seu futuro – talvez quisessem lhe dar um cargo de responsabilidade. Ah, se os seus antepassados, humildes camponeses, pudessem ver aquele bilhete! (Bilhete que, decidiu, mandaria emoldurar para ter sempre em seu quarto.) A partir daí transformou-se. Parecia agora um dínamo. Ninguém mostrava tanta disposição para o trabalho. Ninguém se dedicava tanto à lavagem dos tubos de ensaio, ou à limpeza do laboratório. Era o primeiro a chegar, o último a sair. Às vezes fazia, espontaneamente, plantões no fim de semana. Os outros empregados estavam atônitos, e também irritados: achavam que aquilo era uma espécie de concorrência desleal. Mas os cientistas não lhe poupavam elogios. Um deles chegou a declarar que tal dedicação era um exemplo para todos. E, fosse por influência do DNA (Deocleciano Natercino Almeida) ou por qualquer outra razão, o certo é que todos passaram a trabalhar com muito afinco. E também com nervosismo: apesar de todo o sigilo, ficou claro que as pesquisas estavam entrando na reta final – e não apenas ali, também nos outros centros que disputavam a tão secreta quanto transcendente corrida. E então, em março de 1953, veio a notícia que sacudiu o mundo científico: em Cambridge, Francis Crick e James Watson haviam descoberto a estrutura do DNA. Nesse dia, Deocleciano Natercino Almeida descobriu que ele não era o DNA. Ou, pelo menos, que não era o único DNA. Havia outro. O outro estava nas manchetes dos jornais, no noticiário das rádios, até nas conversas de bar. Ele continuava sendo o humilde e desconhecido empregado de um laboratório. Os colegas, evidentemente, não perderam a oportunidade de debochar dele. Eu, se fosse você, processava esses caras por plágio da marca, disse um servente. Deocleciano Natercino Almeida não achou graça naquela história. Pelo contrário, ficou profundamente deprimido. Rasgou e queimou o bilhete que tinha guardado com tanto carinho. E tomou uma decisão: não trabalharia mais no laboratório. Aliás, nem ficaria mais na Inglaterra. A descoberta do DNA havia sido uma afronta pessoal e ele não permaneceria no país em que tal acontecera. Foi assim que emigrou para o Brasil. Aqui, continuou trabalhando duro. Abriu um restaurante, prosperou, casou, teve filhos e filhas – a Lúcia é a caçula. Mas a sigla continuou a persegui-lo. Lia todas as notícias a respeito, contratou um professor de biologia para dar-lhe aulas particulares sobre o tema. Agora Lúcia está grávida. É uma menina. Segundo me disse, Deocleciano Natercino Almeida está muito feliz. E até propôs um nome para a neta, um nome que Lúcia por razões óbvias não aceitou. O nome proposto é Genoma. Tem a ver com DNA. E é também uma espécie de revanche do Deocleciano Natercino Almeida.