edição especial unicamp 50 anos
Pesquisa FAPESP setembro de 2016
setembro de 2016 www.revistapesquisa.fapesp.br
a instituição em números
recursos humanos
Dados comparativos entre 1989, quando começou o regime de autonomia universitária com vinculação orçamentária, e 2015
vagas
matrículas 19.001
2.103
15.651
3.320
Docentes 1.867
Curso diurno 7.280
1.615
Funcionários 10.161
(1989)
6.466
Curso noturno
8.404
(2015)
135
1.140
(1989)
(2015)
pós-graduação
graduação (1989)
(2015)
(1989)
520%
3.246
alunos titulados
Graduação (+ 167%)
2.445
(2015)
foi a variação no número de patentes requeridas entre 1989 (10) e 2015 (62)
Mestrados (+ 230%)
1.348 917
(2015)
(1989)
Doutorados (+ 641%)
993
0.56
(2015)
2,05
234
408 134
publicações (1989)
(1989)
relação citações / publicações*
(2015)
* nos três anos anteriores
matrículas por docente (graduação + Pós-graduação) empreendedorismo 6,5
(1989)
21.995
514
empregos gerados
empresas-filhas criadas
18,6
(2015)
890.928 3 hospitais
consultas atendidas em 2015
310.402 em 1989
Fonte Aeplan/Unicamp
R$ 3 bilhões de faturamento
55.945 intervenções cirúrgicas foram feitas em 2015. um aumento
6.491.601 exames laboratoriais em 2015
de 405% em
871.291
relação a 1989
em 1989
A data de 5 de outubro de 2016 marcará o cinquentenário do lançamento da pedra fundamental da Unicamp, mas a comemoração começou um ano antes. A programação de eventos está disponível em www.50anos.unicamp.br
4 Unicamp – 50 anos, por José Goldemberg 6 Unicamp, 50 anos servindo o Brasil, por Carlos Henrique de Brito Cruz 8 Apresentação 10 Tecnologia
Universidade depositou este ano sua milésima patente
16 Empreendedorismo
Mais de 500 empresas foram criadas a partir da instituição
19 Energia
Desde os anos 1970, pesquisadores examinam alternativas para substituir o petróleo como combustível
22 Física
Diversidade de temas e integração com outras áreas distinguem um dos primeiros institutos da universidade
42 Hematologia
71 Difusão
44 Farmacologia
72 Economia
46 Odontologia
76 Demografia
Equipes identificam mutações causadoras de anemias e propõem tratamentos Pesquisadores estudam mecanismo de ação e estratégias de uso de remédios Unidade de Piracicaba contribuiu para acréscimo de flúor na água da rede de abastecimento
48 Neurologia
Doenças como epilepsia e ataxia são analisadas por meio de imagens
50 Ecologia
Programa de pós-graduação contribuiu para a criação do Biota-FAPESP
54 Genômica e ciências da computação
Grupo de físicos desenvolveu no Brasil sistemas de comunicações ópticas
Biólogos, matemáticos e bioquímicos unem conhecimentos para mapear DNA e impulsionar a medicina de precisão
28 Tecnologia dos ingredientes
58 Ações afirmativas
24 Telecomunicações
Faculdade de Engenharia de Alimentos foi a primeira da América Latina
32 Ginecologia e obstetrícia
Profissionais de saúde investigam problemas reprodutivos e atuam para reduzir casos de gravidez indesejada
38 Fisiologia
Pesquisas do IB e da FCM indicam que fígado e bactérias estão por trás do diabetes e de problemas do coração
Programas aumentam o acesso de estudantes de escolas públicas aos cursos de graduação
64 Organização
Estratégias regulam a carreira acadêmica e a pesquisa interdisciplinar
68 Política científica
DPCT se tornou um polo de reflexão e formação de profissionais
fapesp – fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo
Labjor consolidou-se como um centro de jornalismo científico Especialistas se dedicaram a interpretar o capitalismo brasileiro Núcleos sobre população e políticas públicas oferecem soluções para grupos sociais e órgãos de governo
80 Documentação
Arquivo Edgard Leuenroth se originou de documentos reunidos pelo militante anarquista
81 Antropologia
Temas tradicionais ganharam novos enfoques no Pagu, criado sob o impacto das análises feministas
82 Linguística e teoria literária Interdisciplinaridade caracteriza o Instituto de Estudos da Linguagem
85 Artes cênicas
Áreas de teatro, dança e performance atuam conjuntamente
86 Música
Pioneirismo e tecnologia marcam a história do departamento fundador do Instituto de Artes
88 Origens
Com senso prático e habilidade política, Zeferino Vaz foi o executor do projeto Unicamp
Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo
Presidente José Goldemberg | vice-Presidente Eduardo Moacyr Krieger Conselho Superior Carmino Antonio de Souza, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, João Fernando Gomes de Oliveira, joão grandino rodas, José Goldemberg, Marilza Vieira Cunha Rudge, José de Souza Martins, Julio cezar durigan, Pedro Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski, Suely Vilela Sampaio Conselho Técnico-Administrativo carlos américo pacheco, Diretor-presidente; Carlos Henrique de Brito Cruz, Diretor Científico; Joaquim J. de Camargo Engler, Diretor Administrativo. revista pesquisa fapesp Luiz Henrique Lopes dos Santos, Coordenador científico participaram desta edição Alexandra Ozorio de Almeida, Alexandre Oliveira, Ana Paula Campos, André Julião, Bruno de Pierro, Carlos Fioravanti, Christina Queiroz, Diego Viana, Domingos Zaparoli, Eduardo Cesar, Fabrício Marques, Júlia Cherem Rodrigues, Léo Ramos, Márcio Ferrari, Marcos de Oliveira, Marcos Pivetta, Margô Negro, Maria Cecilia Felli, Maria Guimarães, Mauro de Barros, Mayumi Okuyama, Neldson Marcolin, Ricardo Aguiar, Ricardo Calil, Ricardo Zorzetto, Rodrigo de Oliveira Andrade, Yuri Vasconcelos parte integrante da revista pesquisa fapesp n. 247 | É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização
artigo
UNICAMP – 50 anos José Goldemberg | Presidente da FAPESP
A
niversários são uma ocasião especial em que se costuma fazer um balanço do que ocorreu no passado. Para uma universidade, completar meio século de existência não é, contudo, um aniversário comum, mas uma boa oportunidade para não só olhar o passado e também aferir se os objetivos para os quais foi criada foram atingidos e, em função do resultado dessa avaliação, planejar o futuro. A Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) foi oficialmente fundada em 5 de outubro de 1966 para responder à demanda crescente de pessoal qualificado no estado de São Paulo, ampliando o papel da Universidade de São Paulo (USP), que havia surgido 32 anos antes, em 1934, e para dar início ao processo de interiorização do ensino universitário do estado, que foi depois ampliado com a criação da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) em 1976. O número de profissionais diplomados pela Unicamp soma hoje mais de 40 mil, cerca de metade dos quais trabalhando em cargos de direção em empresas ou instituições públicas. Além do ensino, a Unicamp tem se destacado pela excelência da pesquisa que produz. Cerca de 15% da produção científica nacional é feita ali. A Unicamp é a universidade líder no Brasil em número de artigos per capita publicados em revistas indexadas na base de dados ISI/ WoS e no registro de patentes. A alta qualidade da sua pesquisa é a principal responsável pela presença frequente da Unicamp em rankings internacionais de prestígio sobre instituições de ensino superior. Este ano ela aparece em segundo lugar na lista das 50 melhores universidades da América Latina preparada pela publicação britânica Times Higher Education. Em 2015, ela foi classificada em 11º lugar entre as melhores universidades jovens (com menos de 50 anos) do mundo segundo a consultoria internacional QS Quacquarelli Symonds. Uma das características mais marcantes da Unicamp é ela não ter sido criada como uma agregação de escolas e faculdades preexistentes, como a maioria das universidades brasileiras, inclusive a USP (exceto, nesse caso, pela criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras como base principal da pesquisa científica). Ela foi concebida por Zeferino Vaz, que atraiu dezenas de pesquisadores brasileiros que estavam no exterior, bem como um grande número de visi-
4 | especial unicamp 50 anos
tantes, com grande ênfase na pesquisa científica, não só com a finalidade de avançar o conhecimento, como também para servir de base para a boa qualidade do ensino e do processo produtivo. Zeferino Vaz, médico e professor de zoologia e parasitologia da USP, não tentou duplicar na Unicamp as áreas de pesquisas existentes em sua universidade de origem, mas abriu novas frentes, entre as quais, por exemplo, a digitalização de telefonia, o desenvolvimento de fibras ópticas e suas aplicações, bem como a tecnologia de lasers com suas inúmeras aplicações. Atuando como uma autêntica “usina de pesquisas” e como um centro de formação de profissionais de alta qualificação, a Unicamp atraiu para suas imediações todo um polo de indústrias de alta tecnologia, quando não gerou ela própria empresas a partir de seus nichos tecnológicos, por meio da iniciativa de seus ex-alunos ou de seus professores. Segundo levantamento recentemente divulgado, nos últimos 25 anos foram criadas 358 empresas por alunos, ex-alunos e professores da Unicamp, que geraram uma receita de R$ 3 bilhões em 2015 e criaram 19 mil empregos. Portanto, a existência desse polo, aliada à continuidade do esforço da Unicamp, tem produzido grandes e benéficas alterações no perfil econômico da região onde estão localizados seus três campi (nas cidades de Campinas, Piracicaba e Limeira), seus 23 núcleos e centros interdisciplinares e seus dois colégios técnicos, além de diversas unidades de apoio, que envolvem, todos juntos, cerca de 50 mil pessoas. A tradição da Unicamp na pesquisa científica e no desenvolvimento de tecnologias deu-lhe a condição de universidade brasileira com maiores vínculos com os setores de produção de bens e serviços. Ela mantém centenas de contratos para repasse de tecnologia ou prestação de serviços tecnológicos a indústrias na região de Campinas, onde está seu campus original e central, um dos principais centros econômicos e tecnológicos do país, condição atual que se deve em grande parte ao que a Unicamp tem feito nesse seu meio século de vida. A Unicamp é ainda a universidade brasileira com maior índice de alunos na pós-graduação – 48% de seu corpo discente – e responde por aproximadamente 12% da totalidade de teses de mestrado e doutorado em desenvolvimento no país. Graças a essas características é que ela conquistou o segundo lugar no ranking da Times Higher Education das melhores universidades da América Latina, superando universidades muito mais antigas como a Universidade Católica do Chile, Universidade Autônoma do México e Universidade Federal do Rio de Janeiro. A USP ocupa o primeiro lugar neste ranking. O sucesso desse trabalho, que procurei resumidamente demonstrar neste artigo, comprova que os objetivos para os quais a Unicamp foi criada têm sido atingidos, e que ela deve perseverar nessa direção, apesar das dificuldades conjunturais que o sistema universitário enfrenta. A FAPESP tem sido desde a fundação da Unicamp uma das principais fontes de financiamento das pesquisas nela realizadas e orgulha-se de ter contribuído para o seu êxito. especial unicamp 50 anos | 5
artigo
Unicamp, 50 anos servindo o Brasil Carlos Henrique de Brito Cruz | Diretor científico da FAPESP
C
riada há 50 anos, a Unicamp é hoje uma das melhores e mais internacionalmente reconhecidas universidades brasileiras. Em 2015, 2.445 jovens concluíram ali seus cursos de graduação, 1.348 concluíram seus mestrados e 993 seus doutorados. Egressos da Unicamp criaram, nos últimos 30 anos, mais de 500 empresas, que faturaram mais de R$ 3 bilhões em 2015. Milhares de outros formados na universidade atuam em empresas, governo e organizações sociais, contribuindo para o desenvolvimento econômico e social do país. A universidade é detentora de mais de mil patentes, registra anualmente mais patentes do que a maior parte das empresas no Brasil e tem obtido ótimos resultados em licenciá-las, criando assim desenvolvimento baseado em conhecimento em empresas brasileiras e estrangeiras. Noventa e nove por cento do corpo docente tem o doutorado completo. Além, é claro, de sua fundação em 1966, sob a liderança do reitor Zeferino Vaz, outro evento definidor da vida institucional da Unicamp foi o estabelecimento no estado de São Paulo, a partir de 1990, do regime de autonomia com vinculação das receitas orçamentárias à arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) paulista. A vinculação permitiu, e continua permitindo, que a universidade exerça de forma completa a autonomia garantida pelo artigo 207 da Constituição Federal. Os resultados deste regime de funcionamento têm sido extremamente positivos. Consideremos, por exemplo, que: de 1989 a 2015 a quantidade de docentes caiu em 11% (de 2.103 para 1.867) e o de funcionários caiu 17% (de 10.161 para 8.404), e, ao mesmo tempo, o número de vagas duplicou, o de alunos matriculados nos cursos de graduação cresceu 161% e na pós-graduação, 142%. Os doutorados defendidos anualmente cresceram 641% e o número de publicações científicas em revistas cadastradas no Web of Science cresceu 1.287%. Essa produção científica é reconhecida, usada e bem citada no mundo todo, e no período de 2013 a 2015 os artigos com autores na Unicamp foram os mais citados internacionalmente dentre as universidades brasileiras. Usando as prerrogativas da autonomia universitária, a Unicamp criou nos anos 1970 uma das primeiras incubadoras de empresas de base tecnológica do país, a Codetec. Nos anos 1980, criou os núcleos interdisciplinares de pesquisa, para facilitar o engajamento dos professores em pesquisa orientada a problemas; há mais de 30 anos foi normatizada a possibilidade de professores serem regularmente licenciados do Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa (RDIDP)
6 | especial unicamp 50 anos
para criar empresas. No acesso ao ensino de graduação, a Unicamp usou a autonomia para idealizar e implementar o Programa de Ação Afirmativa para Inclusão Social (PAAIS). Criado em 2004, associou o objetivo de mais inclusão social com o compromisso da universidade com o mérito e qualificação dos estudantes selecionados. Baseado num estudo cuidadoso sobre os determinantes do desempenho acadêmico dos estudantes selecionados pelo vestibular, o PAAIS levou a Unicamp a ter 47,4% dos matriculados em 2016 oriundos de escolas públicas, sem usar sistema de cotas. Com objetivo similar, o Programa de Formação Interdisciplinar Superior (Profis) busca os melhores alunos dos cursos públicos de ensino médio na região de Campinas, oferecendo-lhes vaga em um curso sequencial de dois anos e, em seguida, dependendo do desempenho, em cursos de graduação regulares da universidade, sem necessidade de prestar o exame vestibular. Ainda no exercício da autonomia universitária, a Unicamp deu os primeiros passos nos anos 1980 para estimular a criação de um acervo de patentes, e a partir de 2004, com a criação da sua agência de inovação, a Inova, estabeleceu um modelo que vem sendo seguido por muitas outras universidades no país. A Unicamp tem sido, juntamente com a Universidade de São Paulo (USP), uma das duas instituições brasileiras mais bem classificadas nos vários rankings internacionais de universidades, garantindo boa visibilidade internacional, o que facilita colaborações, abre oportunidades para os estudantes e aumenta a qualidade da pesquisa. Mesmo com todas as realizações, os desafios atuais são enormes. A própria ideia de universidade pública está sob forte ataque no Brasil. A crise instalada no país, econômica e de valores, adiciona complexidade aos desafios. As expectativas dos contribuintes e de seus representantes sobre os resultados das universidades, especialmente sobre as melhores delas, se elevam a cada semana e variam de acordo com a pauta nacional. Se o problema é zika, espera-se que a universidade o resolva em algumas semanas. Quando sai um novo ranking internacional, cobra-se porque nossas melhores instituições não foram mais bem classificadas, mesmo que as universidades estrangeiras com as quais são comparadas tenham orçamentos muito mais elevados. Quando o debate é orçamento público critica-se porque universidades custam muito. Se as empresas não avançam a tecnologia, espera-se que as universidades o façam em seu lugar. Quando a escola fundamental não tem qualidade, deseja-se que as universidades admitam os alunos sem estarem preparados e façam o milagre de compensar 12 anos de má educação em um ou dois. A Unicamp, assim como as melhores universidades brasileiras, pode e deve enfrentar e superar os desafios colocados. E tem feito isso sempre, beneficiando a sociedade com excelência em educação e criação de conhecimento por meio da pesquisa. O presente suplemento da revista Pesquisa FAPESP busca mostrar algumas das contribuições da Unicamp ao Brasil, colocando-as numa perspectiva histórica. Ao lê-lo, fica claro que a cada ano a Unicamp obtém mais resultados e se torna mais reconhecida nacional e mundialmente. Em sua trajetória de 50 anos, a comunidade da Unicamp tem se empenhado, na maior parte do tempo com sucesso, para que valores de natureza acadêmica sejam determinantes nas decisões da universidade. Graças a este compromisso a Unicamp tem sido um dos bons exemplos a defender a ideia de universidade pública no Brasil. especial unicamp 50 anos | 7
APRESENTAÇÃO
uma trajetória original Alexandra ozorio de almeida | Diretora de redação
A
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) é uma instituição jovem de ensino superior e de pesquisa que se destaca no cenário nacional ao lado de instituições mais antigas e mais tradicionais. Sua relevância se deve, em grande medida, à forma original de sua criação. Universidades como a de São Paulo (USP), a Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Federal de Pernambuco (UFPE), entre outras, formaram-se principalmente nos anos de 1930 e 1940 a partir da fusão de faculdades ou escolas superiores preexistentes. A Unicamp começou do zero, tal como a Universidade de Brasília (UnB), mas o radical projeto do antropólogo Darcy Ribeiro e do educador Anísio Teixeira para a nova capital federal foi rapidamente reformulado, não sobrevivendo à radicalização do regime militar. Um improvável elo entre as duas experiências foi o médico parasitologista Zeferino Vaz. Figura onipresente nos anos de formação da Unicamp, Zeferino, como era conhecido, foi bem-sucedido na execução do projeto paulista por aliar uma visão inovadora de universidade com um ótimo trânsito político. Havia fundado e dirigido a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP, modernizando o ensino da medicina ao dar ênfase em áreas como bioquímica e farmacologia, conta Simon Schwartzman no livro Um espaço para a ciência – A formação da comunidade científica no Brasil (MCT, 2001). Em 1964, foi nomeado pelo presidente Castello Branco para comandar a UnB, substituindo Anísio Teixeira, que deixou o cargo com a instauração do governo militar. Malvisto por muitos pela proximidade com o novo regime, prosseguiu com a implantação da estrutura inovadora da instituição. O projeto era resultado das ideias do Conselho Federal de Educação, onde despontavam nomes como Teixeira, Newton Sucupira (o “pai” da pós-graduação no país) e Maurício Rocha e Silva (um dos fundadores da SBPC). A UnB não adotou o sistema de cátedra, organizando-se em torno de institutos centrais responsáveis por ensino e pesquisa em determinadas disciplinas. Em 1965, Zeferino deixou a reitoria e logo depois foi indicado para presidir o comitê organizador da nova universidade estadual em Campinas. Zeferino era próximo do economista João Paulo dos Reis Velloso, responsável pela criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) em 1969, ano em que assumiu a pasta do Planejamento, da qual foi titular por 10 anos. De lá vinha a maior parte dos recursos públicos para pesquisa científica e tecnológica, o que tornava a aliança essencial para o estabelecimento da nova universidade. Reis Velloso participou pessoalmente desse esforço – foi à Califórnia negociar a volta do físico Sergio Porto ao Brasil, para assumir uma posição na Unicamp. Schwartzman também lista como importantes aliados da iniciativa nomes como Delfim Netto (ministro da Fazenda dos governos Costa e
8 | especial unicamp 50 anos
77,7 mil
candidatos no vestibular 2016
6
2.146
docentes
1.094
linhas de pesquisa
campi
28
66
cursos de graduação
2,9 bi
recursos (2015, R$)
153
3,3 mil
vagas oferecidas no vestibular (2016) fonte aeplan / unicamp – dados de 2015
cursos de pós-graduação
bibliotecas
6.008
19.001
projetos com financiamento
alunos matriculados
62
patentes requeridas
47,4%
alunos advindos de escolas públicas (2016)
Silva e Médici) e José Pelúcio Ferreira (BNDE e Finep). O apoio federal complementava o significativo apoio estadual, representado pelo secretário de Finanças, Dilson Funaro (ver reportagem sobre a formação da Unicamp na página 88). A criação das universidades brasileiras nas primeiras décadas do século XX foi justificada em nome da cultura e da civilização. No pós-guerra, a ciência passou a ser vista como ferramenta essencial para o desenvolvimento econômico do país. Para Schwartzman, a partir de então foram criadas algumas instituições de elite nos campos de pesquisa e ensino que serviram de modelo e inspiração para reformas mais amplas que foram tentadas nos anos seguintes. Iniciativas como o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), a Unicamp e o Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa em Engenharia (Coppe, da UFRJ) compartilhavam características como uma liderança pessoal bem definida (Zeferino, Coimbra e Richard Smith, primeiro reitor do ITA) e o fato de serem instituições novas (e não reformadas), o que as poupou de disputar espaços com interesses estabelecidos e rotinas institucionais. A Unicamp não conseguiu escapar completamente da estrutura conservadora do passado, mas a trajetória original percorrida resultou em uma instituição cinquentenária vigorosa, como ilustram os números acima. O desafio é manter o equilíbrio entre seu caráter inovador e as rotinas institucionais, que por sua própria natureza privilegiam caminhos estabelecidos em detrimento da ousadia. As 26 reportagens que compõem este suplemento especial, junto com os artigos do presidente da FAPESP, José Goldemberg, e de seu diretor científico, Carlos Henrique de Brito Cruz, não esgotam a rica história da Unicamp. A – difícil – escolha de alguns temas ou áreas não representa demérito ou desconhecimento de outras. A revista Pesquisa FAPESP, como diz o nome, tem como recorte o universo da investigação científica, o que a levou a uma concentração maior nessas atividades, sem desmerecer o ensino e a extensão, que com a pesquisa compõem o tripé em que a universidade se baseia. especial unicamp 50 anos | 9
Tecnologia
Mil patentes Universidade, que tem como diretriz o compromisso com a inovação baseada em pesquisa, depositou este ano seu milésimo registro de propriedade intelectual Yuri Vasconcelos
A
Unicamp atingiu, em julho deste ano, a marca de mil patentes ativas, no Brasil e no exterior, depois do depósito no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) de registro referente a levedura modificada geneticamente. Desse total, 125 estão licenciadas para o mercado, segundo a Agência de Inovação Inova Unicamp, órgão responsável pela gestão da propriedade intelectual e transferência de tecnologia da universidade. Um levantamento feito pelo INPI em 2015 mostrou que a
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instituição é a terceira maior patenteadora do país. De autoria do professor Gonçalo Amarante Guimarães Pereira, do Instituto de Biologia (IB), e de Leandro Vieira dos Santos e Renan Augusto Siqueira Pirolla, a milésima patente está relacionada ao desenvolvimento de uma levedura industrial geneticamente modificada para o processo de obtenção de etanol de segunda geração, visando ao aproveitamento de açúcares presentes na palha, bagaço, folhas e caule da cana-de-açúcar. O processo de proteção da patente contou com apoio da FAPESP.
“É significativo atingir a milésima patente no ano em que a Unicamp comemora seu cinquentenário. Na Inova trabalhamos não somente para proteger as tecnologias desenvolvidas no âmbito da universidade, mas também para levá-las ao mercado”, afirma Milton Mori, diretor-executivo da Agência de Inovação. “Nosso grande desafio agora é licenciar essas patentes.” Um olhar em retrospectiva para a história da Unicamp permite ver que sua trajetória é marcada pela naturalidade
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1. Plástico de poliuretano de açaí 2. Chip 3. Experimento de mediação de espalhamento de luz 4. Laboratório Central de Tecnologias de Alto Desempenho 5. Telescópio Solar-T
fotos eduardo cesar, léo ramos e miguel boyayan
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no relacionamento com a indústria, pelo diálogo com as agências de fomento e por sua rápida inserção no processo produtivo. Desde sua criação, a universidade realizou pesquisas com alto potencial para o setor industrial e em benefício da sociedade. De seus laboratórios surgiram, entre outras inovações, fibras ópticas, lasers e aparelhos para as áreas de telecomunicações e microeletrônica, equipamentos e processos para o setor energético (exploração de petróleo, produção de biocombustíveis, aperfeiçoa-
mento da energia solar), novos produtos, ingredientes e formulações para o segmento alimentício e tecnologias para o campo, entre elas ferramentas geotecnológicas que impulsionaram no país o avanço da agricultura de precisão. Ao atuar como uma fonte de pesquisas inovativas, a instituição atraiu para seus arredores um polo de alta tecnologia, que acabou por estimular o surgimento de uma série de instituições dedicadas à inovação. Entre elas destacam-se o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento
em Telecomunicações (CPqD), um dos maiores polos de pesquisa e desenvolvimento (P&D) em telecomunicações e tecnologia da informação (TI) da América Latina, e o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), responsável pela gestão de quatro laboratórios nacionais: de Luz Síncroton (LNLS), de Ciência e Tecnologia de Bioetanol (CTBE), de Biociências (LNBio) e de Nanotecnologia (LNNano). O LNLS é detentor de um acelerador de partículas usado como fonte de luz, o primeiro especial unicamp 50 anos | 11
O governador Laudo Natel (de terno escuro, embaixo do carro) em visita ao Centro de Tecnologia da Unicamp, em 1975
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Criada em 1976, a Codetec foi a primeira incubadora de empresas do país
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instalado no hemisfério Sul. As fontes de luz síncrotron são equipamentos planejados para produzir um tipo de radiação capaz de penetrar a matéria e revelar sua estrutura molecular e atômica. Muito em razão da existência da Unicamp, Campinas também se tornou a sede do Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer, unidade de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), que atua em áreas de fronteira do conhecimento do setor de Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), do Biofabris, uma das unidades integrantes da rede de Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs) do governo federal, cujo foco é o desenvolvimento de biomateriais, dispositivos biomédicos e substitutos biológicos para órgãos humanos, e do Parque Empresarial Techno Park, um condomínio que abriga mais de 60 companhias de diversos setores da economia. A MARCA DO CRIADOR
A ideia de que a Unicamp deveria ser uma instituição superior voltada a estimular o surgimento de avanços tecnológicos e com atuação próxima ao setor empresarial já era defendida por Zeferino Vaz, que conduziu a implantação da uni12 | especial unicamp 50 anos
versidade e foi seu primeiro reitor. “Zeferino foi um dos primeiros a compreender que a crescente industrialização do país criava uma demanda nova por pessoal qualificado, sobretudo no estado de São Paulo, que na época detinha 40% da capacidade industrial brasileira e 24% de sua população economicamente ativa”, relatou o jornalista Eustáquio Gomes no livro O Mandarim – História da infância da Unicamp (Editora Unicamp, 2006). O jornalista foi o responsável pela implantação da Assessoria de Comunicação da Unicamp em 1982 e foi seu coordenador por mais de duas décadas. Até os anos 1960, o sistema de ensino superior estava direcionado para a formação de profissionais liberais que eram demandados pelo processo de urbanização, entre eles médicos, advogados e engenheiros. “Naquela ocasião, era bem-vinda uma universidade que desse ênfase à pesquisa tecnológica e, ao mesmo tempo, tivesse vínculos, ainda que indiretos, com o setor de produção de bens e serviços”, afirma o engenheiro eletrônico José Ellis Ripper Filho, que fez parte do grupo de profissionais convidados por Zeferino Vaz para o nascente Instituto de Física. Ripper foi o responsável pela montagem na universidade do primeiro Departamento de Física Aplicada do Brasil.
Ao longo dos primeiros 10 anos da Unicamp, o compromisso assumido por Zeferino de valorizar a inovação tecnológica e estreitar os vínculos da instituição com o setor produtivo foi expresso em vários momentos. Uma das primeiras unidades de ensino criadas na universidade campineira, por exemplo, foi a Faculdade de Tecnologia de Alimentos, depois renomeada Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA). Pioneira na América Latina, a unidade começou a funcionar em 1967. “Ela iniciou o processo de institucionalização de um novo campo de estudos no país, o da engenharia de alimentos. E hoje é reconhecida como um polo aglutinador de pesquisas, inovações e tecnologias nesse campo do conhecimento”, afirma a pró-reitora de Pesquisa Gláucia Maria Pastore, professora titular da FEA. A criação da faculdade se deu graças ao empenho do engenheiro-agrônomo André Tosello, que havia articulado anos antes a implantação do Centro Tropical de Pesquisas e Tecnologia de Alimentos (CTPTA), depois renomeado para Instituto de Tecnologia de Alimentos (Ital), um dos principais centros científicos e tecnológicos do setor de alimentos e embalagens do país (ver reportagem na página 28). Ainda no início da década de 1970, a Unicamp criou seu Centro de Tecnologia
fotos 1 e 2 arquivo central / siarq 3 Divulgação Inova Unicamp 4 léo ramos
(CT), um órgão de apoio aos institutos e faculdades e de prestação de serviços a terceiros. No CT, estudavam-se modelos, projetos e soluções para a indústria, especialmente a dos setores mecânico e metalúrgico. “O Centro de Tecnologia desempenhou um papel importante. Seu objetivo era ajudar as empresas na resolução de gargalos tecnológicos”, aponta Gláucia Pastore. Na área automotiva, os pesquisadores do CT participaram de estudos sobre o uso do álcool combustível para substituir o petróleo e da construção do primeiro motor a álcool puro. Naquela mesma época, a universidade começou a oferecer seus primeiros cursos de tecnologia, com a criação das graduações em tecnologia sanitária e em tecnologia da construção civil. As aulas eram ministradas na antiga Faculdade de Engenharia Civil (FEC), que funcionava na cidade vizinha de Limeira. No final da década de 1980, os dirigentes campineiros criaram formalmente o Centro Superior de Educação Tecnológica (Ceset), que incorporou os diversos cursos de tecnologia da instituição. Em 2009, o Ceset foi transformado em uma unidade de ensino e pesquisa e mudou sua denominação para Faculdade de Tecnologia (FT), ainda hoje sediada em Limeira. “Mantendo os ideais de sua criação, nossa faculdade tem como finalidade promover novos caminhos para solucionar dificuldades que atingem a sociedade, encarando-as como desafios tecnológicos que necessitam do desenvolvimento de dispositivos, sistemas ou processos inovadores para superação”, conta a diretora da Faculdade de Tec-
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Prédio do Centro de Inovação do Parque Científico e Tecnológico no campus central
nologia, Luísa Andréia Gachet Barbosa. Professores e alunos da unidade têm realizado pesquisas nas áreas de meio ambiente e sustentabilidade (reaproveitamento de resíduos da construção civil), recursos hídricos (tratamento e distribuição de água), informática, telecomunicações e sensoriamento. experiência pioneira
Processo de soldagem de placa eletrônica da Padtec, outro empreendimento nascido na universidade
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Em 1976, Campinas foi palco de uma experiência pioneira no país com a criação da Companhia de Desenvolvimento Tecnológico (Codetec). Apontada por muitos como a primeira incubadora tecnológica do país, ela foi inspirada em um movimento protagonizado pela Universidade Stanford, na Califórnia, no início dos anos 1950, em que a articulação entre a própria universidade, empresas de microeletrônica e instituições de pesquisa deram origem ao Vale do Silício. “A Codetec surgiu a partir de uma reunião promovida pelo Ministério da Indústria e Comércio na Unicamp”, recorda-se o físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite, idealizador e dirigente da instituição por cerca de duas décadas. Segundo ele, dessa reunião foi formada uma comissão que elaborou a proposta de criação de uma companhia privada, com sólida ligação com a Unicamp, voltada para apoiar o estabelecimento de pequenas empresas surgidas na universidade capazes de gerar tecnologia apropriada às condições brasileiras. De acordo com Cerqueira Leite, dezenas de empresas de base tecnológica de origens e segmentos distintos surgiram na incubadora e ganharam vida, dentre elas a Termoquip, que atuava na área de especial unicamp 50 anos | 13
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Ao lado, técnico da Alibra prepara amostras para análise de proteína em um destilador de nitrogênio. Acima, pesquisadores trabalham em laboratório da AsGa.
produção de energia a partir da biomassa, a Criometal, voltada à produção de equipamentos criogênicos, e a Novadata, que iniciou suas atividades produzindo minicomputadores – numa época em que a fabricação de equipamentos do gênero ainda estava engatinhando no mundo. “A Codetec acolhia professores e alunos munidos de boas ideias e custeava despesas durante o período de desenvolvimento e estruturação do negócio”, ressalta Cerqueira Leite. “Se a viabilidade comercial fosse confirmada, o projeto era destacado da Codetec e uma empresa independente era formada.” Ao longo de sua história, a companhia desenvolveu 80 processos de produção de fármacos, dos quais cerca de 20 foram comercializados por diferentes empresas nacionais. Além destes, a Codetec desenvolveu uma tecnologia de produção de etanol a partir do bagaço de cana-de-açúcar por hidrólise ácida para a Indústrias Villares. Hoje, o chamado etanol celulósico ou de segunda geração é uma promissora fonte de energia sustentável e ambientalmente relevante. 14 | especial unicamp 50 anos
A experiência positiva da Codetec serviu de estímulo para a Unicamp criar em 2001 sua própria incubadora, a Incamp, que nasceu com a finalidade de apoiar o surgimento de negócios inovadores de base tecnológica. Desde então, 44 empresas já foram graduadas e outras 25 encontram-se em processo de incubação. Essas startups integram o grupo de 514 “empresas-filhas” da Unicamp, que também inclui companhias formadas por alunos, ex-alunos ou pessoas com vínculo empregatício com a universidade e empreendimentos cuja atividade principal deriva de uma tecnologia licenciada pela Unicamp (saiba mais sobre as empresas-filhas na página 16). Antes mesmo da Lei de Inovação, de 2004, que facilitou a criação de empresas tendo como sócios professores universitários, a Unicamp decidiu liberar seus docentes do Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa (RDIDP) para que abrissem seus próprios negócios, como fizeram o engenheiro eletrônico José Elis Ripper e o biólogo
Paulo Arruda, entre outros, por exemplo (ver reportagem na página 64). A criação da Inova Unicamp em julho de 2003, durante a administração de Carlos Henrique de Brito Cruz (2002-2005), um de seus principais idealizadores, foi consequência natural do movimento da universidade em favor da pesquisa aplicada e do desenvolvimento de novas tecnologias. Para o professor Roberto de Alencar Lotufo, diretor-executivo da Inova entre 2004 e 2013, a agência foi criada com o objetivo de aumentar o impacto do ensino, da pesquisa e da extensão da Unicamp por meio de iniciativas de inovação e empreendedorismo em benefício da sociedade. “A Inova foi pioneira em vários aspectos. Sua missão foi gerir a inovação tecnológica surgida na universidade e intermediar a transferência de tecnologia e as parcerias entre a Unicamp e as empresas”, conta Lotufo. “Creio que foi e é bem-sucedida nesse objetivo.” Desde sua implantação, a Inova é uma das entradas para empresários que querem modernizar seus processos industriais, capacitar recursos humanos ou incorporar a suas linhas de produção os frutos das pesquisas realizadas nos laboratórios da instituição. “A inovação é parte da cultura da Unicamp desde o começo. O ponto forte da agência é a junção de todas as frentes que envolvem inovação tecnológica, como transferência de tecnologia, propriedade intelectual, empreendedorismo, o Parque Científico e Tecnológico e a incubadora de empresas”, afirma Milton Mori. A história da universidade neste ramo teve início em 1984 com a criação da Comissão Permanente de Propriedade Industrial, cujo propósito
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era atender professores inventores da instituição. “A Unicamp é uma universidade jovem e pioneira na gestão da propriedade intelectual e serve como exemplo para outras universidades conseguirem converter o conhecimento gerado em aplicações industriais, favorecendo o avanço tecnológico e a competitividade das empresas”, destaca Patrícia Leal Gestic, diretora da Propriedade Intelectual da Inova. “Desde meados da década de 1980, a propriedade industrial é tema relevante e estratégico para a universidade.”
fotos 1 eduardo cesar 2 miguel boyayan 3 e 4 léo ramos 5 biofabris
PARQUE TECNOLÓGICO
Com a implantação da Incamp e da Inova, o passo seguinte da Unicamp foi estruturar seu próprio parque tecnológico. O projeto de criação do Parque Científico e Tecnológico, inicialmente denominado Polo de Pesquisa e Inovação da Unicamp, foi apresentado à Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo em 2008. Sua construção foi iniciada no ano seguinte e o primeiro convênio com uma empresa parceira, a Cameron do Brasil, foi assinado em 2011. No começo deste ano, o parque obteve o credenciamento definitivo no Sistema Paulista de Parques, entidade do governo que dá suporte à rede de 28 parques tecnológicos existentes ou em implantação em São Paulo. O parque envolve um conjunto de áreas para instalações dedicadas a abrigar competências científicas e tecnológicas e
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Detalhe do transmissor óptico de alta velocidade criado pela BrPhotonics (no alto, à esq.), o Laboratório Nacional de Luz Síncroton (acima) e o laboratório da Biofabris, especializada em próteses de crânio (ao lado)
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laboratórios de inovação voltados ao desenvolvimento e à execução de projetos de pesquisa financiados por instituições públicas e privadas. A primeira unidade a ficar pronta foi o prédio principal, inaugurado há dois anos. Nele, encontram-se em operação laboratórios de pesquisa de multinacionais (Samsung, IBM, Lenovo e Motorola), do Instituto de Pesquisas Eldorado, que atua no desenvolvimento de softwares, hardwares, sistemas e testes de produtos eletrônicos, do Núcleo Softex Campinas, voltado à promoção do software nacional, e da MC1 Tecnologia da Informação, uma empresa-filha da Unicamp. Algumas dessas empresas já faziam parte do Inovasoft, o Centro de Inovação em Softwares da Unicamp, instalado em 2006 em uma área contígua ao campus de Barão Geraldo. Nas negociações para incorporação de novos laboratórios ao complexo há uma regra estrita: só são admitidas iniciativas que
contemplem convênios com grupos de pesquisa da Unicamp. Criado com o objetivo de ser mais um instrumento da Unicamp para fomentar a inovação e o desenvolvimento socioeconômico do país, o parque reflete as diretrizes que nortearam a própria fundação da instituição há 50 anos: manter estreita relação com o setor produtivo por meio do compromisso com a inovação baseada em pesquisa. “A Unicamp nasceu com base em um projeto solidamente sustentado pela indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”, destaca o reitor José Tadeu Jorge. “Desde o início, a universidade estimulou a intensa realização de pesquisa qualificada para que a ponta do conhecimento enriquecesse a formação dos seus alunos, ao mesmo tempo que estabeleceu relações com diversos setores sociais para que esse conhecimento novo chegasse à sociedade de maneira efetiva.” n especial unicamp 50 anos | 15
empreendedorismo
CELEIRO DE NEGÓCIOS Mais de 500 empresas foram criadas a partir da instituição
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os seus 50 anos, além de construir uma história consistente nas atividades de pesquisa, ensino e extensão, a Unicamp se notabilizou também pelo incentivo a atividades empreendedoras. Essa característica pode ser constatada no grande número de negócios que surgiram a partir de seus laboratórios e salas de aula. Levantamento recente feito pela Inova, a agência de inovação da Unicamp, revela que a instituição já deu origem a 514 “empresas-filhas”, das quais 434 estão em atividade. Empresa-filha é a denominação dada a empreendimentos criados por alunos, ex-alunos e pessoas com vínculo empregatício com a universidade, assim como a negócios cuja atividade principal deriva de uma inovação licenciada pela universidade. Juntas, as mais de 400 empresas ativas registraram em 2015 um faturamento superior a R$ 3 bilhões e geraram 22 mil empregos. A maior parcela dos empreendimentos (38% do total) atua na área de tecnologia da informação e cerca de um quarto (28%) presta serviços de consultoria em vários segmentos de mercado. Os negócios voltados para o setor de en16 | especial unicamp 50 anos
genharia são 19% do total e os focados em educação, 10%. A Faculdade de Engenharia Elétrica e da Computação (Feec) e o Instituto de Computação (IC) são as unidades que mais produziram empreendedores – de lá vieram, respectivamente, 23% e 18% das empresas-filhas. Uma em cada 10 startups se originou na Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM). “Uma importante rede de negócios se formou ao redor da Unicamp”, afirma Milton Mori, diretor-executivo da Inova. Por estarem próximos à universidade, os empreendedores têm acesso não só a mão de obra qualificada como também a outros empreendedores que estão dispostos a unir esforços e fazer parcerias. “A Unicamp é o grande alicerce desse sucesso, pois foi aqui que eles se formaram.” Segundo Mori, a Unicamp e os empreendedores cooperam entre si e procuram se ajudar. “Os donos de negócios nascidos na universidade dão mentorias e cursos gratuitamente a nossos estudantes, e a Unicamp, quando solicitada, fornece respaldo público às empresas-filhas”, conta. Ele destaca também a Unicamp Ventures, uma rede de relacio-
namento e colaboração entre empreendedores ligados à universidade. Criada em 2006, durante o 1º Encontro de Empreendedores da Unicamp, a rede objetiva integrar a comunidade de ex-alunos empreendedores e discutir temas relevantes para o fortalecimento da rede de empresas surgidas na Unicamp. ATUAÇÃO NO EXTERIOR
Para mapear o universo das empresas-filhas, a Inova, com ajuda da Diretoria Acadêmica da Unicamp, enviou e-mail para os 62 mil ex-alunos cadastrados na base de dados da universidade – entre os 127 mil formados nos últimos 50 anos. “Recebemos resposta de cerca de 7 mil alunos, o que nos permitiu identificar a existência de 537 empreendedores, dos quais 434 com negócios ativos”, conta Mori. “Se extrapolarmos os resultados obtidos para o universo total de ex-alunos, temos 6 mil deles que se tornaram empreendedores.” O levantamento da Inova mostra que um quarto das empresas-filhas possui algum tipo de inserção no mercado internacional, seja exportando produtos e serviços ou com escritório próprio no
Logomarcas das empresas-filhas ativas
exterior. É o caso da CI&T, uma multinacional brasileira especialista em soluções digitais. Fundada pelos colegas Cesar Gon, Bruno Guiçardi e Fernando Matt, graduados em engenharia da computação, a empresa tem escritórios nos Estados Unidos, no Japão, no Reino Unido, na China e na Austrália, e atende grandes empresas, como Coca-Cola e Motorola, e nacionais, como Netshoes e Alelo. A CI&T foi uma das primeiras a explorar no país a linguagem Java e aplicações web em 1996, apenas um ano depois de ser fundada, e foi pioneira no Brasil na certificação CMMI (sigla de capability maturity model integration), o mais respeitado padrão de qualidade de software no mundo. “A inovação faz parte do nosso DNA e tem impulsionado o contínuo crescimento da CI&T. Nosso mantra é ‘desenvolvemos pessoas antes de desenvolvermos softwares’”, afirma Cesar Gon. “Nossa visão é que essa é a verdadeira essência e a principal tese de diferenciação da CI&T no longo prazo.” Para o engenheiro, o mercado internacional sempre fez parte da estratégia de crescimento da empresa. Com cerca de 2 mil funcioná-
rios, a empresa obteve receita líquida de R$ 340 milhões em 2015, com cerca de 40% dos negócios relacionados à internacionalização. Escolhida parceira do ano para serviços em nuvem pelo Google e reconhecida pela revista Fortune como uma das 100 melhores empresas do mundo em outsourcing, a CI&T figura há 10 anos na lista de melhores companhias para trabalhar no país, segundo estudo da consultoria Great Place to Work em parceria com a revista Época. Outro empreendimento internacional com origem na Unicamp foi a Movile, líder latino-americana em desenvolvimento de plataformas de comércio e conteúdo móvel. Criadora dos aplicativos PlayKids, plataforma que ajuda os pais na educação e no entretenimento dos filhos, iFood, de entrega de comida, e MapLink, de geolocalização, a Movile atua em mais de 100 países e tem unidades nos Estados Unidos, na Argentina, Colômbia, Venezuela, no México e Peru. A empresa foi fundada em 2000 por dois ex-alunos da Unicamp: os cientistas da computação Fabricio Bloisi, atual diretor-executivo, e Fábio Póvoa, que se desligou da Movile em 2009. No começo,
tudo era operado em uma sala da casa de Bloisi e seu primeiro serviço foi um sistema de bate-papo por celular. Com 1.400 funcionários, a companhia atende atualmente, por meio de seus aplicativos, 70 milhões de clientes e projeta elevar esse público para 1 bilhão de pessoas até 2020. FOTÔNICA E TELECOMUNICAÇÕES
O desenvolvimento de dispositivos fotônicos e microeletrônicos para sistemas de comunicações ópticas de alta velocidade, acima de 100 gigabites por segundo, é o objetivo da BrPhotonics, outra empresa-filha da Unicamp. “Criamos a companhia em 2014 como uma joint-venture entre o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD), dona de 51% do negócio, e o grupo norte-americano GigPeak, proprietário de 49%”, explica o engenheiro elétrico Júlio César Rodrigues Fernandes de Oliveira, fundador e presidente da empresa. “Estudar na Unicamp permitiu conhecer o ecossistema de comunicações ópticas de existente em Campinas. Na Fundação CPqD, desenvolvi habilidades técnicas e empresariais. Essa combinação de fatores foi fundamental.” especial unicamp 50 anos | 17
Com clientes no Brasil, Irlanda, Coreia do Sul e Estados Unidos, os principais produtos da BrPhotonics são dispositivos fotônicos integrados, como receptores e moduladores ópticos, itens essenciais em redes de transmissão de dados. Este ano, a empresa participou do 2º European Photonics Venture Forum, realizado na Holanda, e foi considerada uma das seis melhores startups para investir. A fim de atingir o objetivo de ser uma das líderes globais em seu setor, a empresa dedica especial atenção à pesquisa e desenvolvimento (P&D). O plano de negócios da companhia sinaliza que o investimento na atividade será contínuo ao longo dos anos, em torno de 25% da receita bruta. “Nossa meta é disputar o mercado com produtos inovadores”, afirma Júlio Oliveira. Lançar equipamentos pioneiros e inovadores também foi a ambição que levou à criação em 1988 da AsGa pelo engenheiro eletrônico José Ellis Ripper Filho, um dos pioneiros do Instituto de Física Gleb Wataghin (veja reportagem na página 24). A AsGa foi montada para fornecer ao mercado equipamentos para sistemas de telecomunicações com transmissão via fibra óptica. Com sede em Paulínia, perto de Campinas, a empresa foi pioneira no país na produção de multiplexadores, aparelhos que fazem a transmissão de vários sinais, como voz e dados, por uma única via. No início dos anos 2000, a AsGa chegou a dominar 70% desse mercado. “Quando a empresa foi criada, nossa tecnologia estava na fronteira mundial. Eu tinha participado de seu desenvolvimento, primeiro quando trabalhei na década de 1960 no Bell Labs, nos Estados Unidos, e, depois, na Unicamp, com um contrato de P&D financiado em grande parte pela recém-criada Telebras”, recorda-se Ripper. Ao longo de sua trajetória, a AsGa recebeu apoio financeiro da FAPESP por meio do Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe). O sucesso fez com que ela passasse a ser cobiçada por grandes fabricantes globais de aparelhos para o mercado de infraestrutura de rede. Em 2015, a AsGa vendeu para a filial brasileira da japonesa Furukawa sua divisão de soluções de acesso óptico, elétrico, digital e via rádio para redes de telecom. Ela continua com o nome e com outras empresas que pertenciam ao grupo: a AsGa Siste18 | especial unicamp 50 anos
empreendedorismo
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empresas criadas
RECEITAS DE PONTA
21.995 empregos gerados
R$
3 bilhões
de faturamento
26%
com atuação internacional
57%
localizadas em Campinas Principais áreas de atuação
Consultoria 28% 38%
Tecnologia da Informação
19%
Engenharia
10%
Educação Outros 5%
Perfil dos empresários
Alunos ou ex-alunos de graduação
71% 25%
Alunos ou ex-alunos da pós-graduação
Funcionários 1%
mas, que desenvolve softwares, e a AG Placas Eletrônicas, criada para fabricar equipamentos para a própria AsGa e para terceiros.
2% Docentes
Fonte Agência de Inovação Inova Unicamp - 2015
No setor de alimentação, a Alibra, criada pelos ex-alunos da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) Humberto Salvador Afonso, Roberto Stefanini e João Bosco Dias Pinheiro, dedica-se à fabricação de ingredientes alimentícios para indústrias de alimentos e bebidas de diversos segmentos, entre elas Nestlé, Vigor, Bunge, Mococa e Nissin Ajinomoto. O portfólio da companhia, que faturou cerca de R$ 150 milhões em 2015, é formado por mais de 600 ingredientes, usados na formulação de sorvetes, doces, sobremesas, suplementos, pães, biscoitos, laticínios, pizzas e molhos. Há também uma linha de alimentos prontos vendida em supermercados e atacadistas, como achocolatados, farinha láctea e cereais em pó, além de um conjunto de produtos destinados a restaurantes e cozinhas industriais, como alimentos semiprontos. A Alibra foi a primeira indústria nacional a fabricar, em 2009, um alimento análogo ao queijo, com as mesmas características físicas e sensoriais do laticínio, mas cuja matéria-prima principal não é o leite. “Dominamos a técnica de fabricação do análogo a partir de proteínas lácteas funcionais, amidos especiais de milho ou mandioca e gorduras vegetais”, explica o diretor-presidente, Humberto Afonso. A Alibra também desenvolveu o primeiro óleo em pó do país, em 2014, uma alternativa para indústrias que buscam ingredientes ricos em ácidos graxos essenciais, e inovou ao elaborar uma linha de ingredientes para a fabricação de sorvetes fortificados, feitos com nanopartículas de ferro e vitamina C (ver reportagem na página 28). No ano passado, a empresa adquiriu o controle da Genkor, companhia especializada na fabricação de microingredientes (corantes, estabilizadores, espessantes e emulsificantes). “A compra fez parte de um investimento de R$ 23 milhões iniciado em 2014 para diversificar a atuação da Alibra, que hoje vende seus produtos para mais de 20 países”, destaca o diretor-executivo da empresa, Roberto Stefanini. A exportação respondeu por 17% do faturamento em 2015. n Y. V.
Energia
Convergência para fontes renováveis Desde os anos 1970, pesquisadores estudam alternativas para substituir o petróleo como combustível domingos zaparolli
O
fotos eduardo cesar
Usina privada produtora de etanol (acima); bagaço de cana, resíduo que é objeto de vários estudos
professor Gonçalo Pereira, do Instituto de Biologia (IB), preserva a conta do restaurante da Fundação de Desenvolvimento da Unicamp (Funcamp), com o verso riscado por ele em 2011, como um símbolo da capacidade da universidade de conectar sua produção científica à demanda pública e privada por inovações em energia. O papel em questão conceitua o roteiro de avanços técnicos necessários para a produção comercial do etanol de segunda geração, o E2G, a partir de biomassa de novas variedades de cana-de-açúcar com maior conteúdo energético, assim como do bagaço e da palha da cana. Pesquisas realizadas nos laboratórios da Unicamp buscam aperfeiçoar a biomassa utilizada no E2G. A partir de 1975, especialistas da universidade participaram do Programa Nacional do Álcool, o Proálcool, iniciativa do governo federal que visava diminuir a dependência do petróleo e incentivar o desenvolvimento de motores a etanol. Hoje, pesquisadores da instituição desenvolvem novas varie-
dades de cana, como é o caso de Anete Pereira de Souza, do Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética (CBMeg), além de tecnologias de mecanização da lavoura, de pré-tratamento da biomassa, da hidrólise, fermentação e destilação do E2G. Os estudos abrangem o uso do etanol na indústria química e na investigação de motores mais eficientes. O esforço para o avanço energético do país vale para outros biocombustíveis como o butanol, o biodiesel e o bioquerosene. Além disso, também se investe no hidrogênio veicular e em tecnologias para ampliar a vida útil e elevar a produção de poços petrolíferos. “Em 1973 e 1979, o mundo viveu duas crises na oferta de petróleo. Mesmo jovem, a Unicamp respondeu à demanda do país por desenvolvimento científico e tecnológico e geração de conhecimento na área de energia”, diz Rubens Maciel Filho, professor da Faculdade de Engenharia Química (FEQ). A Unicamp é hoje um reduto de desenvolvimento de combustíveis de fontes renováveis e referência em sustentabilidade energética. especial unicamp 50 anos | 19
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A posição da universidade nessa área tem participação no interesse que levou os empresários Bernardo Gradin e Alan Hiltner à mesa do refeitório da Funcamp em 2011, para uma conversa com o professor Gonçalo Pereira. O resultado foi a fundação da GranBio, empresa brasileira voltada à produção do E2G. Outro exemplo atual dessa parceria são as pesquisas realizadas no Laboratório de Genômica e Expressão (LGE) do IB. Lá é gerada a base científica para apoiar o desenvolvimento na empresa de um novo tipo de cana com maior densidade energética, a cana-energia, com potencial de produção entre 250 e 300 toneladas (t) por hectare, enquanto a tradicional gera cerca de 100 t. Entre os principais desafios para a viabilidade da produção do E2G está o desenvolvimento de leveduras produtoras de enzimas capazes de processar a xilose – tipo de açúcar presente na hemicelulose – contida na biomassa e, desse modo, disponibilizar maior quantidade de açúcares à produção do etanol. Pesquisas realizadas no final da última década pelo LGE sobre o genoma da levedura Saccharomyces cerevisiae, chamada de Pedra 2, permitiram ao centro de pesquisas BioCelere, spin-off da GranBio, chegar a uma levedura geneticamente modificada. A primeira usina de E2G do país, a Bioflex 1, em Alagoas, foi inaugurada em 2014 e teve sua produção interrompida para ajustes da tecnologia. Está prevista para voltar a produzir no final de 2016. 20 | especial unicamp 50 anos
Estudos sobre exploração e produção de petróleo estão concentrados no Cepetro desde 1987
Além das pesquisas de Gonçalo Pereira, há numerosas contribuições na Unicamp para o desenvolvimento do E2G, como resultado de um convênio entre a FEQ e a Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) com o Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), órgão federal de pesquisa localizado em Campinas. Um dos trabalhos sob a coordenação de Rubens Maciel é um processo de pré-tratamento hidrotérmico da biomassa de cana. A ideia é reduzir a quantidade de água utilizada e tornar o processo mais sustentável. Em outras frentes de trabalho, busca-se desenvolver novos coquetéis enzimáticos para melhorar a hidrólise e os procedimentos de fermentação. BUTANOL DO BAGAÇO
Rubens Maciel também coordena um grupo que pesquisa butanol – um tipo de álcool que pode ter uso como combustível – e outro que procura desenvolver bioquerosene para aviação. “O butanol possui características mais próximas da gasolina do que o etanol”, explica. No momento, o foco é o aprimoramento de um processo de fermentação a vácuo mais eficiente em relação à fermentação convencional e o uso do bagaço da cana
para produção de butanol mais competitivo. Sobre o bioquerosene para aviação, Maciel diz que foi desenvolvido na Unicamp um processo flexível, compatível com matérias-primas de diferentes regiões do país ou do exterior. Entre os insumos possíveis estão óleos de soja e de palma, gordura animal, óleo de açúcar ou etanol. Segundo o pesquisador, o bioquerosene desperta interesse global, uma vez que a aviação comercial internacional assumiu o compromisso de cortar suas emissões de carbono pela metade até 2050, tendo como base os índices de 2005. A Unicamp está inserida nas pesquisas do biodiesel no Brasil desde 1978, quando o então vice-presidente, Aureliano Chaves, convocou um grupo de pesquisadores para criar o Pró-Óleo. Especialista em catálise de óleos vegetais, Ulf Friedrich Schuchardt, professor do Instituto de Química (IQ), comprovou a viabilidade do bio-óleo, um combustível altamente oxigenado obtido a partir de materiais celulósicos – na ocasião, o bagaço de cana. Em 1982, o pesquisador empenhou-se por desenvolver o diesel a partir de óleos vegetais. “Por falta de constância de recursos, o Brasil perdeu o pioneirismo mundial do biodiesel, mas a retomada dos investimentos nos últimos anos foi importante”, diz o agora aposentado Schuchardt. No Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético (Nipe), coordenado pela engenheira bioquímica Telma Teixeira Franco, pesquisadores da FEQ e da FEM avaliam o potencial energético de microalgas marinhas como fonte de biodiesel. Trabalhos realizados pela equipe do Laboratório de Engenharia Bioquímica, Biorrefino e Produtos de Origem Renovável (Lebbpor), da FEQ, demonstraram que o biodiesel feito a partir da microalga atende às principais especificações da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Segundo Telma, que coordenou os estudos, o combustível ainda não tem viabilidade comercial. Espera-se maior eficiência energética a partir de altas concentrações de microalgas alimentadas com resíduos agroindustriais. O Nipe foi criado em 1992 com o objetivo de organizar e apoiar as pesquisas de energia da Unicamp. Em 1998 estabeleceu um convênio com a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel)
Vega: carro adaptado pelo LH2 para trafegar com hidrogênio. Para aviação, bioquerosene com óleos vegetais
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para desenvolver pesquisas na área de regulação do setor elétrico onde trabalharam pesquisadores do Instituto de Física (IFGW), do Instituto de Economia (IE) e da FEM. Em 2002, um projeto de produção por pirólise (decomposição por calor) de bio-óleo combustível destinado à geração de energia elétrica e para uso na indústria química deu origem a empresa Bioware. No cardápio de pesquisa atual do Nipe, um dos destaques é o Projeto Resíduos, que faz um inventário do potencial energético de lixões e aterros sanitários para a produção de bioenergia e biocombustível.
desenvolvimento dos veículos a hidrogênio está basicamente nas mãos da indústria automobilística. Por enquanto, o carro a hidrogênio custa o dobro do elétrico, que por sua vez é quase o dobro de um carro médio comum a gasolina. “A produção em escala nivelará os preços”, prevê Ennio Peres. Para o pesquisador, o hidrogênio é o futuro. “Um veículo a hidrogênio tem autonomia de 500 quilômetros e é abastecido em pouco mais de três minutos. Os elétricos estão longe de chegar a esse desempenho.” Segundo Peres, o LH2 poderá ter um papel importante desenvolvendo tecnologias para a produção de hidrogênio em postos de abastecimento, como o reformador, um equipamento que obtém hidrogê-
fotos 1 STEFERSON FARIA / PETROBRAS 2 unicamp 3 embraer
HIDROGÊNIO no motor
O Nipe agora se prepara para abrigar o Laboratório de Hidrogênio, o LH2. O laboratório foi criado em 1975 também com o objetivo de buscar alternativas à gasolina. Ainda nos anos 1970, adaptou dois veículos para hidrogênio, uma camionete Toyota Bandeirante e uma Kombi, o primeiro originalmente com motor a diesel e o segundo, a gasolina. Nos anos 1980 o preço do petróleo baixou, e com ele o interesse por combustíveis alternativos e os recursos para pesquisa no setor. Ennio Peres da Silva, coordenador do LH2, relata que a manutenção das atividades do laboratório veio da produção de hidrogênio ultrapurificado para uso na análise cromatográfica e na produção de semicondutores e fibras ópticas, em parceria com o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Telebras, o antecessor da atual Fundação Centro de Pesquisa e Desenvolvimento de Telecomunicações (CPqD). Na década seguinte, com o ressurgimento do interesse global pelos veículos a hidrogênio, um grupo multidisciplinar formado por pesquisadores do IFGW, da FEM e da Faculdade de Engenharia Elétrica (FEEC) foi formado para pensar o futuro do carro a hidrogênio. Hoje, o
nio a partir do etanol, da gasolina ou da glicerina, um subproduto do biodiesel. A Unicamp também desenvolve estudos sobre o petróleo, a principal fonte de energia para veículos no mundo atual. A principal interlocução da universidade com a indústria petrolífera ocorre por meio do Centro de Estudos de Petróleo (Cepetro), criado em 1987 e abrigado na FEM como resultado de uma parceria com a Petrobras. “Até então a Unicamp tinha uma presença pequena e isolada no setor. Hoje somos uma das principais universidades do país nessa área. Temos projetos em parceria com a maioria das grandes empresas de petróleo que atuam em exploração e produção no país e participamos de várias redes de pesquisa da Petrobras”, diz Denis José Schiozer, diretor do centro. Entre os projetos do Cepetro estão os relacionados com o gerenciamento de reservatórios e o desenvolvimento de técnicas capazes de aumentar a vida útil dos campos de petróleo. Em 1990, a parceria entre a Petrobras e a Unicamp resultou no primeiro programa no mundo de mestrado em geoengenharia de reservatórios de petróleo, unindo experiências de geólogos e engenheiros. Na mesma década, desenvolveu linhas de pesquisa sobre gerenciamento de reservatórios e sobre explotação, a técnica de perfurar, estimular e bombear o petróleo, área em que o Cepetro se tornou referência mundial. n
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física
visão de campo Diversidade de temas e integração com outras áreas marcam as pesquisas de um dos primeiros institutos da universidade Carlos Fioravanti
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ésar Lattes (1924-2005) já era um cientista famoso em 1967, quando começou a trabalhar como professor do Instituto de Física, uma das primeiras unidades da universidade nascente. Convidado pelo também físico Marcello Damy de Souza Santos, expoente da ciência brasileira convocado por Zeferino Vaz para implantar o instituto, Lattes logo viu que as instalações não seriam como na Universidade de São Paulo (USP), onde trabalhava. Como os prédios do campus novo ainda não estavam prontos, ele e outros recém-contratados instalaram seus laboratórios nos porões do então chamado Ginásio Industrial Bento Quirino, no centro de Campinas, onde hoje funciona o Colégio Técnico de Campinas (Cotuca), que é parte da Unicamp. Ali o físico – que em 1947 havia participado da descoberta do méson pi, partícula importante para a compreensão do mundo subatômico – observou e estudou fenômenos alta22 | especial unicamp 50 anos
Em laboratório: produção de nanofibra óptica afunilada para uso em comunicações
mente energéticos relacionados à interação entre raios cósmicos e a matéria, as bolas de fogo, que havia começado a estudar na USP. As equipes se sucederam e o instituto hoje ocupa 12 prédios no campus da universidade. “O que fazemos hoje está tão na fronteira do conhecimento quanto o que Lattes fazia na época dele”, diz Carola Dobrigkeit Chinellato, professora do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW), assim chamado em homenagem ao cientista ítalo-ucraniano que ajudou a organizar a física no Brasil. Carola é hoje a representante do Brasil no conselho que preside a Colaboração Pierre Auger, responsável pela operação do Observatório Pierre Auger de Raios Cósmicos. Da Unicamp participam também Anderson Fauth, Ernesto Kemp e José Augusto Chinellato. Ainda que com um objetivo similar – estudar a origem e a natureza dos raios cósmicos, as partículas mais energéti-
cas do universo –, a dimensão espacial do experimento e as escalas de energia são muito maiores do que na época de Lattes. Reunindo hoje cerca de 500 pesquisadores de 16 países, o Observatório Pierre Auger começou a ser construído em 1998 em uma área de 3 mil quilômetros quadrados no município de Malargüe, Argentina, e a registrar informações sobre raios cósmicos em 2004. Em 2015 o acordo internacional responsável pelo financiamento do trabalho foi renovado e estendido por mais 10 anos, permitindo a modernização dos equipamentos. Os experimentos medem os chuveiros gigantes de partículas relativísticas, resultantes da colisão dos raios cósmicos, que chegam do espaço, com a atmosfera terrestre. Jun Takahashi e outros pesquisadores da Unicamp participam também de experimentos no Cern, o acelerador de partículas de Genebra, Suíça. Quem circular pelo IFGW encontrará com relativa facilidade estudos que evo-
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fotos 1 eduardo cesar 2 arquivo central / siarq
Conceitos e materiais que vão reger as luem e se renovam. Em 2001, os especia- vivos por meio de modelos computaciolistas em supercondutores – materiais nais, encontrou um padrão estatístico máquinas das próximas décadas tomam capazes de transmitir corrente elétrica que reproduz o processo de formação forma e suas propriedades são conhecicom zero de resistência – testavam um de espécies, a chamada especiação. Ou- das e ajustadas, passo a passo, por difetipo de grafite sintetizado a temperaturas tro grupo, de José Joaquim Lunazzi, tem rentes equipes do IFGW. Amir Caldeira, próximas a 3.000º Celsius, que havia se investigado os espelhos construídos em Sílvio Vitiello, Marcos César de Oliveira mostrado promissor. Esse trabalho levou pedra polida pelos povos da América do e outros pesquisadores trabalham com computação quântica e spintrônica, duas à identificação de propriedades elétricas Sul há 3 mil anos. abordagens possíveis para ampliar o dede outro composto cristalino de carbono, sempenho e a velocidade de computao grafeno, descritas em 2015 na Nature fibras Ópticas e computadores Communications, com a participação do Há muitas histórias de pioneirismo. Na dores. Outras, como as de Hugo Fragnipesquisador do IFGW Yakov Kopelevich. década de 1980, o laboratório de pes- to e de Carlos Henrique de Brito Cruz, Além disso, emergiram duas novas quisas fotovoltaicas, coordenado por criam versões mais rápidas e eficientes famílias de supercondutores, uma à ba- Francisco Marques, foi o primeiro da de equipamentos a laser e fibras ópticas se do elemento químico cério e outra à América Latina a fabricar células so- (ver reportagem na página 24). Na física base de ferro. Buscam-se materiais ca- lares de silício monocristalino e poli- médica, Alessandra Tomal, Mario Bernal pazes de funcionar a temperatura am- cristalino totalmente nacionais a partir e Gabriela Castellano, com suas equipes, biente, já que hoje os supercondutores do silício metalúrgico. Nas décadas de trabalham no aprimoramento de tomósão mantidos em hélio líquido, a quase 1990 e 2000, Íris Torriani ganhou reco- grafos e outros aparelhos, em conjunto 270º Celsius negativos. “Quando conse- nhecimento internacional em sua área, com os especialistas da FCM. Os resultados se devem em boa parte a guirmos compostos que funcionem em a cristalografia. Em dezembro de 2001, nitrogênio líquido, a 196º C negativos, Edison Zacarias da Silva, da Unicamp, uma particularidade do instituto, segunaté os exames de ressonância magnética, com dois físicos da USP, Antônio José do seu atual diretor, Newton Frateschi: feitos em aparelhos que usam hélio líqui- Roque da Silva e Adalberto Fazzio, apre- dois terços dos professores são da área do, ficarão mais baratos”, explica Pascoal sentaram uma proposta teórica para ex- de física experimental, que demanda Pagliuso, que coordena pesquisas nesse plicar as possibilidades de rompimento altos investimentos em laboratórios e campo. Marcelo Knobel, Kleber Pirota e de nanofios de ouro, um provável compo- equipamentos, e um terço da teórica, enFanny Berón igualmente trabalham em nente dos semicondutores das próximas quanto em instituições similares os dois novos materiais no laboratório de mag- gerações de computadores. O trabalho campos compartilham proporções mais netismo e baixas temperaturas. ganhou a capa da Physical Review Let- próximas. Segundo ele, não são, porém, Carlos Lenz César, com sua equipe, ters e foi complementado pelos estudos mundos estanques, porque um grupo começou a usar a óptica para analisar experimentais de Sérgio Legoas, Douglas precisa do outro para avançar. A cada quatro anos, o instituto faz um sistemas biológicos, a chamada biofo- Galvão e Daniel Ugarte, em colaboração tônica, há mais de 20 anos. Fez pinças com colegas do Laboratório Nacional de planejamento estratégico de contratação de professores, que define as prioridades ópticas – delicados feixes de laser que Luz Síncrotron (LNLS). a serem perseguidas e immanipulam o interior das céplantadas. O mais recente lulas – e hoje trabalha com 2 determinou a criação de aparelhos e métodos que lhe um grupo de pesquisa em permitem examinar a interacosmologia observacional. ção de proteínas em células “Ainda não estamos nescardíacas, como em estudo sa área”, diz Frateschi, “e publicado em 2014 na Natuqueremos começar”. Não re Communications em coné um espaço inteiramente junto com equipes da Faculinexplorado, porque desde dade de Ciências Médicas a década de 1990 Marce(FCM) e do Laboratório Nalo Guzzo, Orlando Peres cional de Biociências (LNe Pedro de Holanda, com Bio), próximo à Unicamp. suas equipes, examinam “Agora podemos ver as reaas propriedades e transções em uma única molécula formações dos neutrinos, dentro de uma célula viva”, partículas elementares que conta o pesquisador. se formam no espaço e a Os especialistas do IFGW todo momento chegam à vão além da física. Entre as Terra. O senso de ousadia muitas linhas de pesquisa do e empreendedorismo que instituto, pode ser mencionamarcou a construção do do o grupo coordenado por instituto continua forte, Marcus Aguiar, que, exploquase 50 anos depois. n rando a evolução dos seres César Lattes em uma aula em 1967: sucessores mantêm a ousadia especial unicamp 50 anos | 23
Telecomunicações
Conexão via lasers e fibras ópticas Grupo de físicos desenvolveu pioneiramente no Brasil sistemas de comunicação com luz no lugar de elétrons Marcos de Oliveira
U
ma das revoluções tecnológicas do fim do século XX foi a introdução de fibras ópticas e lasers nos sistemas de comunicação para substituir cabos e fios de cobre e permitir um maior tráfego de voz, dados e imagens. Gradativamente, esse sistema de transformar informações em sinais de luz passou a prevalecer na interligação de grandes distâncias e nos cabos submarinos que unem os continentes. Agora, as fibras ópticas começam a ser instaladas nas residências, levando sinais de TV, telefonia e acesso à internet. No Brasil, a pesquisa em comunicações ópticas começou na Unicamp, no início dos anos 1970, quase ao mesmo tempo que nos Estados Unidos. Foi uma trajetória contínua, em que o conhecimento gerado contribuiu para a formação de especialistas e resultou em pelo menos 10 empresas, criadas por ex-alunos e professores ou diretamente influenciadas pelos estudos realizados na universidade. 24 | especial unicamp 50 anos
Criado em 1967, o Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) reuniu um grupo de pesquisadores que estavam fora do país para criar uma área de física aplicada. Foram convidados nomes como o físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite e o engenheiro elétrico José Ellis Ripper Filho, pesquisadores do Bell Telephone Laboratories (Bell Labs), o centro de pesquisa das empresas American Telephone & Telegraph (AT&T) e Western Electric, nos Estados Unidos. Os dois são formados no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). “O Rogério liderava um grupo de jovens brasileiros que estudavam ou trabalhavam nos Estados Unidos e todos pensavam em voltar para o Brasil. Ele tentou nos trazer para a Universidade de Brasília (UnB) e para a Universidade de São Paulo (USP), mas não deu certo. Conseguiu com a Unicamp e nós viemos também porque seria criada uma espécie de polo tecnológico em Campinas, como
Experimento de medida de espalhamento de luz no Laboratório de Fibras Ópticas
nos disse o professor Zeferino Vaz”, diz Ripper. “Ele tratou pessoalmente com cada um da vinda para a universidade.” O projeto de unificação das telecomunicações foi um dos desdobramentos da política de integração nacional, avaliada pelo regime militar da época como condição fundamental para o desenvolvimento. Para os militares, era importante unir o país pelas telecomunicações. Em 1972, foi criada a Telecomunicações Brasileiras (Telebras) para reunir as empresas estaduais de telefonia e a Embratel. Antes de criar um centro de pesquisa, a Telebras decidiu investir em grupos na universidade. No ano seguinte, a estatal já firmava os três primeiros contratos. Um foi com a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) para um projeto de antenas. Dois foram com a Unicamp: o Projeto de Transmissão Digital, sob a coordenação do professor Rege Scarabucci, da Faculdade de Engenharia Elétrica e Computação (Feec), e outro com o IFGW, sobre sistema de comunicação por laser, coordenado por Ripper. Apenas para o último foram destinados no começo dos trabalhos o equivalente a US$ 290 mil, em valores da época.
eduardo cesar
físicos repatriados
Ainda em 1972, chegou ao IFGW, a convite de Zeferino, o físico Sergio Porto, professor da Universidade do Sul da Califórnia (EUA). Além de criar o Departamento de Eletrônica Quântica, Porto formou um grupo de fibras ópticas que incluiu outro brasileiro repatriado dos Estados Unidos, José Mauro Leal Costa, que havia feito doutorado na Universidade Católica da América sobre vidro para fibra óptica. Também participaram do grupo os físicos James Moore e Collin Rouse, norte-americanos, Ramakant Srivastava, indiano, Eric Bochove, holandês, Willy Meyer, suíço, e Wolfang May, alemão. Ao mesmo tempo, em 1973, a empresa norte-americana Corning Glass, que viria a ser a líder mundial no desenvolvimento de fibras ópticas, anunciou a primeira fibra óptica comercial de baixa perda de luz ao longo da trajetória. Antes, em 1970, Zhores Alferov, do Instituto de Física Ioffe, na Rússia, inventara o laser de semicondutor que operava a temperatura ambiente. Logo depois, o Bell Labs anunciou que também havia desenvolvido esse dispositivo. Assim, em 1975, já existiam os dois ingredientes para as comunicações ópticas: a especial unicamp 50 anos | 25
fibra e o laser a diodo. No fim daquele ano, a primeira conexão não experimental foi realizada em Dorset, na Inglaterra. “Para quem trabalhava na área, tornou-se óbvio que esse sistema seria dominante”, lembra Ripper. Dois anos depois, a Telebras decidiu criar o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD), com o objetivo de desenvolver e produzir equipamentos para a expansão da telefonia, principalmente uma estação telefônica digital, que seria chamada de Trópico, a primeira do país. O local escolhido foi Campinas, devido à promessa de Zeferino ao presidente da Telebras, general José Antônio de Alencastro e Silva, que a cidade seria um polo tecnológico. “A instalação do CPqD junto à Unicamp se deu porque lá existia um núcleo de profissionais que conheciam a área e porque a Telebras já tinha investido em grupos de pesquisa da universidade”, comenta a socióloga Maria Conceição da Costa, do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp. “Mas em primeiro lugar estava a vontade política de desenvolver tecnologia nacional”, explica a pesquisadora, que apresentou a sua dissertação de mestrado, em 1991, sobre a política de telecomunicações no país entre 1962 e 1987.
COMUNICAÇÕES ÓPTICAS em campinas As tecnologias e os conhecimentos gerados na Unicamp e desenvolvidos no CPqD foram transferidos para a iniciativa privada ano
Unicamp
Fibras ópticas (FO) criação do CPqD
Óptica não-linear (Onl)
1983 1986 1990
Planta-piloto FO
Acopladores de fibra
Xtal: produção fo
Pontos quânticos
Acopladores de fibra
Amplificadores de érbio (EDFA)
EDFA
1996 1997
onl
Polímero MZM
Xtal e AGC: EDFA WDM
Sistemas WDM
CPqD cessa desenvolvimento de tecnologia básica Contrato Unicamp-CPqD para estudos do sistema WDM
NExFot
1998
26 | especial unicamp 50 anos
Embratel: WDM Embratel: onl Optolink: EDFA
Privatização das telecom
2000
cepof
Padtec Contratos com Corning e Ericsson
2005
kyatera
2009
fotonicom
BRLAbs e R4F
celeiro de inovações
O CPqD viria a ser nos anos seguintes um grande desenvolvedor de tecnologia para empresas do setor. Muitas dessas tecnologias começaram a ser elaboradas para o mercado brasileiro na Unicamp. Em 1977, foi finalizada no IFGW a primeira fibra óptica dedicada a sistema de telecomunicações. A tecnologia foi repassada para o CPqD, que montou uma fábrica-piloto de fibras ópticas. Ao longo dos anos, a parceria entre a Unicamp, responsável pela formação de pessoal e pela demonstração de conceitos da fotônica, e o CPqD, focado no desenvolvimento de protótipos e modelos pré-industriais, gerou novas tecnologias e deu origem a várias empresas de comunicações e sistemas ópticos (confira no quadro acima). Muitos pesquisadores da universidade se transferiram para o centro para dar continuidade a seus projetos. Um deles foi José Mauro Costa, que foi trabalhar no CPqD e depois se transferiu para a empresa ABC Xtal, para montar a primeira fábrica de fibras ópticas, com sede em
AGC: acopladores de fibra
Polímero MZM
Sólitons
1995
indústria
Contrato Unicamp-telebras para desenvolvimento de fibras ópticas, lasers de diodo e sistemas ópticos integrados
1974 1977
cpqd telebras
BRPhotonics: Polímero MZM
2014 Projetos e iniciativas para o setor
Campinas, ao lado do campus do CPqD. O primeiro lote de 500 quilômetros de fibra óptica foi produzido em 1984. Outros como Ripper e Scarabucci foram trabalhar na Elebra, empresa nacional de equipamentos eletrônicos. Em 1989, Ripper criou a AsGa, uma empresa que inicialmente produziu lasers para comunicações ópticas. Depois focou na área de equipamentos que, por exemplo, amplificam o sinal dos lasers nas redes de fibras ópticas ou transformam os elétrons dos fios de cobre das redes tradicionais em sinais de luz e vice-versa. Mais tarde, Scarabucci ocupou o cargo de diretor de pesquisa e desenvolvimento da empresa. Com a saída de vários professores do grupo de comunicações ópticas, novos pesquisadores começaram a se fixar no IFGW para dar continuidade à área de
Fatos marcantes
fonte hugo fragnito/unicamp
lasers e comunicações ópticas. Um deles é Carlos Henrique de Brito Cruz, atual diretor científico da FAPESP e reitor da Unicamp (2002-2005). Formado em engenharia eletrônica no ITA, fez mestrado e doutorado, entre 1978 e 1983 no IFGW, tendo o laser como tema. Outro é Hugo Fragnito, graduado em física na Universidade de Buenos Aires, que veio fazer o doutorado na Unicamp também em lasers, finalizado em 1984. Um terceiro é Carlos Lenz, com mestrado e doutorado na Unicamp. Os três fizeram pós-doutorado no Bell Labs e voltaram para o IFGW como professores. Eles foram responsáveis, junto com pesquisadores como Luiz Carlos Barbosa, pela segunda geração de estudos em lasers e comunicações ópticas. A preocupação era trabalhar com fenômenos e interações da
arquivo central / siarq
Sergio Porto em uma mesa de experimentos com laser na década de 1970
luz com os materiais das fibras ópticas, por exemplo. “No início dos anos 1990, reconhecemos que o mais importante naquele momento era ter amplificadores ópticos, porque o gargalo nas comunicações ópticas eram os repetidores”, lembra Fragnito. Esses equipamentos, ao longo de alguns quilômetros, fazem a amplificação da luz após o decaimento da energia luminosa. “Transmissores e receptores dos lasers operavam a baixas taxas de transmissão de bits.” A perspectiva no fim dos anos 1990 era de aumento do uso da internet. Com isso, a pesquisa se direcionou para amplificadores, principalmente para seu uso em sistemas DWDM, ou Multiplexação Densa por Divisão de Comprimento de Onda, que aumenta a capacidade de transmissão das fibras ópticas O avanço nos estudos ganhou impulso com a aprovação em 2000 do Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (Cepof ), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP, que durou até 2014 e teve investimento de R$ 24 milhões. “Dedicamo-nos à tecnologia DWDM, conseguimos trazer temas relevantes cientificamente na área de comunicações ópticas e partimos para a formação de pessoas de alto nível. Também
criamos uma infraestrutura moderna para fazer pesquisa de ponta para design e fabricação de chips e dispositivos fotônicos. Muitos desses equipamentos foram usados em testes de campo na rede Kyatera”, diz Fragnito. A Kyatera foi uma rede de fibra óptica financiada pela FAPESP para experimentos de novas aplicações em internet com altas velocidades de transmissão. TRANSFERência de tecnologias
Parte do conhecimento gerado nos amplificadores ópticos e sistemas DWDM está hoje nos aparelhos da empresa Padtec, criada em 2001 pelo CPqD para fabricar e comercializar equipamentos para redes ópticas. Novamente entrou em ação a sequência de geração de conhecimento na Unicamp, o desenvolvimento no CPqD e o repasse da tecnologia para a indústria. Outro caso similar é o da BrPhotonics, também criada no CPqD sob inspiração de pesquisas feitas no Cepof. Ela produz chips integrados a transmissores com laser e modulador óptico destinados a aplicações de longo alcance e altas taxas de transmissão (100 gigabits por segundo). Durante o Cepof, também avançaram os experimentos de lasers em biologia
molecular, ou biofotônica, com o grupo de Carlos Lenz. Outro ganho do Cepof foi a criação de fibras de cristal fotônico, uma nova geração de fibras que podem ser usadas como sensores na biologia e na química, na análise de gases e líquidos, por exemplo. Os estudos realizados pelo Cepof continuaram no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Fotônica para Comunicações Ópticas (Fotonicom) também sob a liderança de Hugo Fragnito. Na Faculdade de Engenharia Elétrica e da Computação (Feec), um resultado importante foi alcançado este ano, quando pesquisadores bateram o recorde mundial de transmissão de dados em sistemas ópticos. Segundo Fragnito, que se aposentou da Unicamp, o Cepof também deixou como legado uma nova geração de pesquisadores que continua com os desenvolvimentos em comunicações ópticas no Brasil e no exterior. É o caso de Cláudio Mazzali, ex-aluno de graduação e doutorado do IFGW, que hoje é vice-presidente de tecnologia da área de Comunicações Ópticas da Corning, nos Estados Unidos. “A empresa me convidou para trabalhar quando fazia meu pós-doutorado junto ao CPqD”, recorda-se Mazzali. “Sem a formação de excelência recebida na Unicamp não teria chegado onde cheguei.” Alguns ex-alunos trabalham hoje no próprio IFGW. “Os professores mais velhos estão dando lugar a novos contratados. São pessoas novas liderando projetos de vanguarda”, conta Paulo Dainese, que ocupa a chefia do laboratório no lugar de Fragnito. Depois de fazer mestrado e doutorado na Unicamp, o físico trabalhou por sete anos na Corning. O grupo se prepara para inaugurar um prédio novo dedicado à fotônica, que ficará pronto em dezembro deste ano. Para Dainese, os desafios científicos e tecnológicos nas comunicações ópticas ainda são grandes. “Os desafios estão nas pontas, em equipamentos para interconectar e distribuir os sinais de luz em grandes distâncias. Outro problema é o crescimento exponencial do serviço de internet e transmissão de dados. Em cinco anos, uma fibra óptica se torna obsoleta. As pesquisas se direcionam cada vez mais para o aumento da capacidade de transmissão das fibras ópticas. E esse aumento pode criar enormes problemas que precisarão ser resolvidos”, comenta. n especial unicamp 50 anos | 27
Tecnologia dos ingredientes
Receitas da Academia FEA foi a primeira faculdade de engenharia de alimentos da América Latina Marcos pivetta
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o final do ano passado, a Unicamp contabilizava 125 patentes licenciadas, que lhe renderam R$ 1,9 milhão em ganhos econômicos e royalties, um recorde na história da instituição. O invento que mais gerou divisas em 2015 foi um novo tipo de óleo vegetal, com baixos teores de ácidos graxos saturados, desenvolvido para substituir o uso da gordura trans em vários produtos da indústria de alimentos, como bolachas, bolos, sorvetes e salgadinhos de pacote. Licenciado em 2014 para a multinacional Cargill, que possui um acordo de cooperação com a universidade, o ingrediente é fruto do trabalho de dois pesquisadores do Laboratório de Óleos e Gorduras da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA), Lireny Aparecida Guaraldo Gonçalves e Renato Grimaldi. Empregada para melhorar a consistência e aumentar a durabilidade dos produtos, a gordura trans é prejudicial à saúde e seu uso tem sido proibido ou restringido no exterior. No Brasil, des28 | especial unicamp 50 anos
de o início de 2014, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) passou a regular de forma mais rígida o emprego de informações nutricionais complementares, como as expressões “baixo em gorduras saturadas” e “não contém gordura trans”, nos alimentos processados. “Quando a legislação mudou, já tínhamos chegado ao novo óleo vegetal”, afirma Grimaldi. Detalhes técnicos do óleo e o valor monetário gerado pelo licenciamento são mantidos em sigilo. A história do desenvolvimento desse novo ingrediente ilustra algumas das características mais marcantes da FEA, que, como a Unicamp, comemora meio século de existência em 2016. O pioneirismo é uma delas. A Unicamp foi a primeira instituição de ensino superior da América Latina a criar um curso de engenharia de alimentos. Inaugurou no país um campo de estudos que cresceu em paralelo à expansão da indústria alimentícia. “Hoje há mais de 80 cursos superiores de engenharia de alimentos
diretor da divisão de Solos, Mecânica Agrícola e Tecnologia do Instituto Agronômico de Campinas (IAC). Defensor da ideia de que o Brasil deveria também se ocupar do estudo e do processamento de sua grande produção agrícola, esteve à frente do projeto que, em 1963, criou em Campinas o Centro Tropical de Pesquisas e Tecnologia de Alimentos (CTPTA), que seis anos mais tarde viria a ser rebatizado de Instituto de Tecnologia de Alimentos (Ital). A instalação do centro
Pesquisadores criaram óleo vegetal com baixo teor de gordura saturada para uso na fabricação de bolos, bolachas e salgadinhos
léo ramos
no Brasil”, diz Antonio José de Almeida Meirelles, diretor da faculdade. Outro traço presente desde os primórdios da faculdade é sua proximidade com as empresas do setor. Além de acordos e parcerias de pesquisas com a indústria, a FEA formou empreendedores. Empresas especializadas em fornecer ingredientes para o setor de alimentos, como Sun Foods, Alibra e Carino, foram fundadas por ex-alunos da instituição. A atuação do engenheiro agrônomo André Tosello (1914-1982) foi crucial para o estabelecimento em 1966 da Faculdade de Tecnologia de Alimentos (FTA), nome original da instituição. Amigo de Zeferino Vaz, primeiro reitor da Unicamp, e dono de uma empresa de máquinas agrícolas, Tosello foi no final dos anos 1950
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Notícia sobre o equipamento que produz leite de soja (alto) e jabuticaba: FEA estimulou a produção de novos alimentos e estudo de frutas brasileiras
serviu de apoio para o processo de estruturação da FTA, da qual Tosello foi o idealizador e o primeiro diretor. A pesquisa esteve presente na história da FEA desde os primeiros anos. Em 1970, a faculdade formou seu primeiro doutor, Ricardo Sadir. O título da tese, orientada por Tosello, é ilustrativo de um país que, na época, combatia a desnutrição e buscava novas fontes de nutrientes: “Estudo de um fermentador para produzir proteínas dos derivados do petróleo”. Em 1971, Tosello criou uma entidade jurídica de direito privado, a Fundação Centro Tropical de Pesquisas e Tecnologia de Alimentos (FCTPTA), que servia de apoio à faculdade e a aproximava
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de representantes da indústria. Após a morte de seu mentor, a entidade passou a se chamar Fundação André Tosello. Leite de soja na merenda
Nas primeiras duas décadas da faculdade, a atuação de seus professores e pesquisadores esteve voltada principalmente para o desenvolvimento de novos processos físicos, químicos e de engenharia para o setor alimentício. “Até os anos 1960, havia poucos alimentos industrializados no país”, lembra Gláucia Pastore, coordenadora do Laboratório de Bioaromas e Compostos Bioativos da FEA e pró-reitora de Pesquisa da Unicamp. A proteína texturizada de soja passou a fazer parte da dieta de uma parte dos brasileiros em razão de estudos de pesquisadores da faculdade. Em 1977, o professor Roberto Hermínio Moretti, hoje aposentado, obteve a patente de um equipamento capaz de produzir cerca de 200 litros de “leite de soja” por hora. Nascia a “vaca mecânica”. Até hoje as novas versões do equipamento carregam esse apelido. Entre outros usos, a vaca mecânica foi empregada para promover o leite de soja na merenda escolar de alunos de escolas públicas. Ao longo da história da FEA, a merenda foi alvo de estudos que ajudaram a estabelecer políticas públicas para a alimentação oferecida na rede pública de ensino. Em 1981, começou uma iniciativa que viraria uma referência internacional no setor: o banco de fontes de carotenoi-
Inauguração de um novo bloco da unidade em março de 1973: expansão da pesquisa em nutrição e saúde
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fotos 1 e 3 arquivo central / siarq 2 léo ramos
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des, pigmentos naturais que dão a cor amarela, laranja ou vermelha para os vegetais, muitos dos quais comestíveis, como a cenoura, o milho e o tomate. Os carotenoides funcionam como agentes antioxidantes, reforçam o sistema imunológico e alguns deles são precursores da vitamina A. À frente do projeto estava a professora Delia Rodriguez-Amaya, pesquisadora filipina que trocara os Estados Unidos pelo Brasil no fim dos anos 1970. Em 2008, ao lado de Jaime Amaya-Farfan, seu marido e também professor da FEA, e Mieko Kimura, ex-aluna de graduação e pós-graduação da FEA e professora do campus de São José do Rio Preto da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Délia publicou o livro Fontes brasileiras de carotenoides, com informações sobre 270 frutas e hortaliças que contêm o pigmento. Uma versão desse trabalho foi traduzida para o inglês e publicada no Journal of Food Composition and Analysis. Alimentos funcionais
Os trabalhos com os chamados alimentos funcionais ou bioativos, cujas propriedades nutritivas podem ser benéficas para prevenir ou minorar o apareci-
mento de certos problemas de saúde, representam hoje uma linha importante de pesquisas da FEA. Em uma sociedade marcada por uma população urbana cada vez mais sedentária e obesa, que consome em demasia comida ultraprocessada, esse tipo de estudo tem espaço para se multiplicar. Muitos aditivos provenientes da química de síntese, que hoje funcionam como conservantes ou aportam sabores aos alimentos, poderiam ser substituídos por compostos naturais. Nutrição e saúde andam lado a lado nesses estudos. Apesar de salientarem que comida não deve ser confundida com remédio, os pesquisadores afirmam que as características de uma dieta podem ser um fator promotor de boa saúde. “Os alimentos podem promover uma revolução silenciosa”, opina Gláucia Pastore. “No exterior, há as cranberries [fruta vermelha rica em antioxidantes que seria útil para combater infecções urinárias]. No Brasil, temos muitos vegetais e frutas com potencial para serem alimentos funcionais.” Nativa do Brasil, a jabuticaba é um caso interessante de alimento tipicamente nacional que tem sido alvo de trabalhos a respeito de possíveis benefícios à saúde. O pesquisador Mário Roberto Maróstica Junior, coordenador do Laboratório de Nutrição e Metabolismo da FEA, estuda os possíveis benefícios da ingestão da casca da fruta para combater inflamação intestinal e obesidade e para reduzir a resistência à insulina em diabéticos. “A casca hoje é jogada fora, embora seja rica em substâncias fenólicas, com efeitos antioxidantes”, explica Maróstica, que também estuda as propriedades terapêuticas dos frutos do tucum, palmeira típica da Mata Atlântica. “Mas não adianta comer churrasco todo dia e achar que a jabuticaba vai ser a salvação.” n
Uma faculdade para a engenharia agrícola Em 1985, a engenharia de alimentos gerou um filhote: a Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri), que então se tornou uma unidade independente na Unicamp. Desde 1975, havia um departamento e um curso de engenharia agrícola funcionando na então Faculdade de Engenharia de Alimentos e Agrícola (FEAA), última designação formal da atual FEA. Em depoimento ao livro comemorativo A construção do saber – A história da FEA, publicado em 2012, o engenheiro de alimentos José Tadeu Jorge (atual reitor da Unicamp), que coordenou a redação do projeto de criação da Feagri, disse que “as duas áreas são muito distintas e seria mais difícil o crescimento de ambas se elas permanecessem juntas” (livro disponível em https://issuu. com/ascom.unicamp/docs/ livrofea). Dessa forma, o corpo docente do antigo Departamento de Engenharia Agrícola foi deslocado para a nova unidade, que ficou com os equipamentos e prédios que já utilizava. A unidade engloba o curso de graduação, pesquisas sobre água e solo, construções rurais, equipamentos agrícolas, sustentabilidade rural e tecnologia de pós-colheita. “Além das áreas em que historicamente temos tido destaque, como biocombustíveis e máquinas e implementos agrícolas, queremos desenvolver mais estudos nos próximos anos em sensoriamento remoto, agricultura de precisão, biotecnologia agroindustrial e laser biospeckle [método usado para medir o pico da maturação de frutas]”, diz o professor Gustavo Mockaitis, presidente da comissão de pesquisa da Feagri. especial unicamp 50 anos | 31
GINECOLOGIA E OBSTETRÍCIA
Pela saúde integral das mulheres Profissionais da área médica investigam problemas de saúde reprodutiva e associados à gestação e atuam para reduzir os casos de gravidez indesejada e aborto inseguro Ricardo Zorzetto
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uando não está percorrendo os leitos da maternidade, orientando os residentes ou dando aulas para o 5º e o 6º anos de medicina, o médico José Guilherme Cecatti pode ser encontrado na sala que divide com dois colegas em um dos prédios do Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism) da Unicamp. Nos últimos tempos ele tem dedicado boa parte de seus dias para analisar as informações de um megaprojeto que coordena desde 2009: a rede nacional de vigilância de morbidade materna grave, um dos maiores estudos sobre a saúde da gestante já feito no país. De julho de 2009 a junho de 2010, Cecatti e seus colaboradores coletaram informações sobre 82.388 partos reali32 | especial unicamp 50 anos
zados em 27 maternidades brasileiras. A maioria das gestações transcorreu sem problemas, mas 9.555 grávidas (11,6% do total) tiveram complicações que poderiam levar à morte – destas, 140 mulheres morreram. Investigando esses casos, os pesquisadores tentam mapear os principais problemas de saúde que atingem as gestantes atendidas em alguns dos hospitais mais bem preparados do país, para onde são encaminhados os casos complexos, e conhecer como médicos e enfermeiros lidam com eles. O objetivo é identificar o que poderia ou deveria ser feito e propor ações para melhorar a qualidade do atendimento às grávidas. Os pesquisadores esperam com essas medidas reduzir os índices nacionais de
mortalidade materna, que se encontram estáveis há quase uma década: em média, são 58 mortes em cada grupo de 100 mil nascidos vivos – essa taxa deveria estar abaixo de 35 por 100 mil, se o Brasil tivesse cumprido as Metas de Desenvolvimento do Milênio das Nações Unidas. “A morte materna deveria ter uma taxa muito próxima a zero porque atinge pessoas jovens e saudáveis e existe conhecimento para evitá-la”, explica Cecatti. De modo semelhante a essa pesquisa, os estudos conduzidos no Caism sempre tiveram um forte viés epidemiológico. Essa vocação, porém, nunca afastou os médicos que trabalham ali do objetivo de converter cada avanço no conhecimento em um atendimento melhor e
léo ramos
mais respeitoso. “Acho que é por causa desse respeito que essa maternidade tem sido bem qualificada pelas pacientes”, afirma o obstetra Anibal Faúndes, professor emérito do Departamento de Tocoginecologia da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp. Em plena atividade aos 85 anos, Faúndes nasceu no Chile e se naturalizou brasileiro. Ele se instalou na universidade em 1976, três anos depois de ter de deixar seu país de origem por causa do golpe militar em que o general Augusto Pinochet assumiu o poder. Nesses anos todos, Faúndes foi, ao lado de colegas brasileiros e argentinos, uma figura-chave na estruturação do ensino e da pesquisa em ginecologia e obstetrícia na Unicamp, o
único programa de mestrado e doutorado nessa área a receber a nota mais elevada (7) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). No Chile, Faúndes realizava estudos em colaboração com grupos internacionais, alguns com apoio da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização Pan-americana da Saúde (Opas), e levou essa cultura para o Departamento de Tocoginecologia da Unicamp. O departamento foi criado às pressas no início de 1966 para ensinar obstetrícia e ginecologia aos alunos da primeira turma da FCM, que na época iniciavam o 4º ano de medicina. Naquele tempo, tudo era novo e cheio de improviso. O próprio curso médico se estruturava se-
Mãe acompanha a recuperação de bebê internado na UTI neonatal do Caism, onde já foram realizados 84 mil partos
especial unicamp 50 anos | 33
Em 1964, alunos da medicina participam de aula de microscopia (ao lado) e de anatomia (abaixo)
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grantes libaneses, Neme nasceu em Piratininga, no interior do estado, e concluiu na Universidade de São Paulo (USP) o curso médico iniciado na Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói. Antes de ir para a Unicamp, já havia dirigido o Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto e ajudado a reestruturar a clínica obstétrica da Faculdade de Medicina de Sorocaba. partos na madrugada
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gundo a necessidade. Em 28 de dezembro de 1962, o então governador de São Paulo, Carlos Alberto de Carvalho Pinto, sancionou a lei estadual que criava a Faculdade de Medicina de Campinas, atendendo a um pedido da população. A faculdade, que viria a se chamar Faculdade de Ciências Médicas, foi a primeira unidade de uma nova instituição, a Universidade de Campinas (atual Universidade Estadual de Campinas), e devia começar a funcionar já no ano seguinte (ver reportagem na página 88). Um vestibular realizado em abril de 1963 selecionou, entre 1.600 inscritos, os primeiros 50 alunos do curso médico, iniciado em maio, antes mesmo de o quadro de professores estar completo. Sem uma sede própria, a faculdade funcionou inicialmente em um espaço emprestado do prédio em construção da Maternidade de Campinas, onde foram instalados seus primeiros departamentos, como o de farmacologia (ver reportagem na página 44). 34 | especial unicamp 50 anos
Mais tarde, o curso médico mudou para as instalações da Santa Casa de Campinas, de onde só saiu definitivamente em 1986, quando o último laboratório migrou para o campus da universidade no distrito de Barão Geraldo – por volta dessa época, os departamentos com seus laboratórios e centros de pesquisa já estavam instalados, muitos fazendo pesquisa de ponta em áreas como a hematologia (ver reportagem na página 42) e o estudo de doenças metabólicas (ver reportagem na página 38). A criação da Faculdade de Enfermagem, aprovada em 1966, ficou a cargo da FCM e se concretizou em 1978. À medida que o curso médico avançava, os departamentos iam sendo criados e os professores, contratados. Em abril de 1966, o obstetra Bussâmara Neme, aprovado no concurso para professor titular, começou a organizar a tocoginecologia da Unicamp, um mês após o início das atividades da neurologia (ver reportagem na página 48). Filho de imi-
Neme morava com a família em São Paulo e viajava todos os dias a Campinas. Algumas vezes na semana ele dormia na maternidade, em uma pequena sala ao lado da enfermaria, e realizava partos de madrugada. Para ajudá-lo nas atividades didáticas e administrativas, ele contava com quatro médicos auxiliares que havia levado para Campinas: José Samara, Jessé de Paula Jorge, Eduardo Lane e José Aristodemo Pinotti. Quando Neme retornou definitivamente a São Paulo em 1970, para assumir a cadeira de obstetrícia da USP – e realizar o sonho adiado por quase três décadas de disputas –, foi Pinotti quem o substituiu na Unicamp. A tocoginecologia da universidade começava, então, a ganhar os ares que a diferenciaram das demais por muito tempo. “Rapidamente começamos a pôr em prática uma ginecologia e uma obstetrícia mais modernas não só no conceito de tecnologia, mas, principalmente, na forma de abordar a atenção integral à saúde da mulher”, afirmou Pinotti em depoimento publicado em 2002 no livro Caism, a história de sua implantação, da jornalista Clarice Almeida Rosa, disponível on-line na página do Caism. A ideia de que a mulher merece receber atenção e cuidado por si só, e não pelo fato de ser mãe, atraiu a atenção de Waldyr Arcoverde, ministro da Saúde de 1979 a 1985, que convidou Pinotti e Faúndes para auxiliarem na formulação do Plano de Assistência Integral à Saúde da Mulher (Paism), lançado em 1984. O plano inovou ao propor ações educativas, preventivas, de diagnóstico, tratamento
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e recuperação para a mulher em todas as etapas da vida e influenciou a formulação do Sistema Único de Saúde (SUS) ao propor a descentralização, a hierarquização e a regionalização dos serviços. “Os programas de saúde da mulher que existiam eram programas que usavam a mulher, mas não eram para a mulher”, contou Faúndes em uma entrevista recente à Pesquisa FAPESP. “Esses programas tinham outros objetivos e a mulher era usada como meio para atingi-los.”
A Santa Casa de Campinas, que até 1986 abrigou o curso médico da Unicamp, e o ginecologista José Aristodemo Pinotti
fotos 1, 2 e 3 arquivo central / siarq 4 Antoninho perry
controle do câncer
Em 1968 o departamento iniciou um programa regional de controle do câncer de colo do útero, uma das formas de câncer feminino mais frequentes e que mais matam – em média, de 10 a 15 mulheres em cada grupo de 100 mil morriam em decorrência do câncer de colo do útero no país. Pinotti era especialista em câncer feminino e, com sua equipe, começou a rastrear na população feminina de Campinas as lesões no colo do útero. Em poucos anos a procura cresceu muito e os médicos perceberam que era preciso expandir o serviço. Na época o sistema de saúde brasileiro ainda não estava bem estruturado e os atendimentos eram concentrados nos hospitais. Aos poucos, o grupo da Unicamp auxiliou os municípios a implantar clínicas pú-
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blicas capazes de fazer coletas e procedimentos mais simples, deixando para o Caism os casos de maior complexidade. Hoje ao menos 51 municípios dispõem de equipes e serviços capazes de realizar exames um pouco mais complexos e oito, de atender ao menos parte dos casos graves. “Esse programa contribuiu para a redução da morte por esse tipo de câncer em Campinas e em 89 municípios vizinhos”, afirma o ginecologista Luiz Carlos Zeferino, ex-diretor-executivo do Caism e ex-superintendente do Hospital de Clínicas da Unicamp. Hoje a taxa de mortalidade por câncer de colo de útero na região é de 2,2 mulheres em cada 100 mil, menos da metade da média nacional. A demanda por atendimento oncológico rapidamente tornou insuficientes os 36 leitos da tocoginecologia na Santa Casa. Pinotti, Lane e Faúndes começaram, então, a planejar a construção de um hospital só para as mulheres no campus da universidade: o Centro de Controle do Câncer Ginecológico e Mamário, embrião do Caism, hoje renomeado Hospital da Mulher José Aristodemo Pinotti e considerado pela OMS referência em saúde feminina na América Latina. No período em que Pinotti foi reitor da Unicamp, de 1982 a 1986, a área construída da universidade praticamente dobrou e foram erguidos os prédios do Caism. Hoje especial unicamp 50 anos | 35
com 136 leitos, o hospital, o primeiro dedicado exclusivamente à mulher no país, serve uma população de quase 5 milhões de pessoas que vivem em Campinas e em 41 municípios próximos. De 1986 a 2015, seus médicos realizaram 1,9 milhão de consultas (480 mil de emergência), 247 mil internações, 99 mil cirurgias, 1 milhão de aplicações de radioterapia e 342 mil de quimioterapia. Cerca de 84 mil bebês já nasceram no Caism, que exerce uma influência importante sobre a atenção à saúde feminina em todo o estado. Nos anos recentes, apenas uma em cada três mulheres (29% do total) que passam por consultas ambulatoriais no hospital vive em Campinas. As demais vêm de fora da cidade: 54% são de municípios vizinhos; 15%, de cidades mais distantes no estado; e 2%, de outros estados.
O trabalho dos profissionais do Caism também foi fundamental para ajudar a estruturar, ali e no resto do país, o atendimento às vítimas de violência sexual. Em meados dos anos 1990, os coordenadores do Caism convidaram professores de ginecologia e obstetrícia, medicina legal e ética médica de várias instituições brasileiras, além de representantes do Ministério da Saúde e da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), para discutir como lidar com o problema. Por volta daquela época, o ginecologista Aloisio Bedone criou e implantou no Caism uma rotina unificada de atendimento que assegurava às vítimas de violência sexual o tratamento, a proteção e o suporte emocional necessários para superar o trauma e prevenir doenças sexualmente 1
Médicos do Caism durante cirurgia: quase 99 mil intervenções em 30 anos de atividade 36 | especial unicamp 50 anos
transmissíveis ou uma eventual gravidez. Pouco depois, Bedone foi convidado a integrar o grupo de especialistas que auxiliou o Ministério da Saúde a redigir uma norma técnica definindo o protocolo de atendimento às vítimas de violência sexual no Brasil. “Quando começamos a estruturar esse serviço na Unicamp, só quatro hospitais do país atendiam vítimas de violência sexual que engravidavam, mas nenhum dava atendimento de emergência à mulher estuprada”, lembra o médico, que coordenou por mais de uma década o Ambulatório Especial do Caism. Hoje cerca de 400 serviços prestam esse tipo de atendimento no Brasil. planejamento familiar
Desde a origem do departamento, seus médicos sempre se dedicaram a realizar atendimentos e pesquisa em uma área pouco prestigiada da tocoginecologia: contracepção e planejamento familiar. Inicialmente as consultas eram feitas em um ambulatório no Jardim das Oliveiras, bairro da periferia de Campinas, porque o tema “feria os princípios” da irmandade da Santa Casa. Após a transferência para o campus da universidade, o ambulatório se tornou referência internacional na avaliação da eficácia de métodos contraceptivos. No final dos anos 1970, Faúndes coordenou os testes no país do primeiro método contraceptivo de ação prolongada reversível: o dispositivo intrauterino (DIU) de cobre. Também ali foram testados o primeiro anticoncepcional feminino injetável de ação mensal, o Cyclofem; o primeiro contraceptivo implantável sob a pele, o Norplant; e o primeiro DIU liberador de hormônios. “Participamos de estudos internacionais gigantescos antes que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, liberasse o registro para a comercialização no país”, conta o ginecologista ar-
O dia a dia agitado no hospital da mulher: 1,9 milhão de consultas e 247 mil internações de 1986 a 2015
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gentino Luis Guillermo Bahamondes, que por quase uma década coordenou o Ambulatório de Planejamento Familiar do Caism. Com a participação nesses projetos, a tocoginecologia obtinha financiamento de fundações estrangeiras e revertia parte da verba para melhorar as condições de atendimento às mulheres no ambulatório, que ficava fora do prédio do Caism. “Entre os alunos, o ambulatório passou a ser chamado de Cancún, um lugar distante e lindo, no qual só se falava espanhol”, lembra o pesquisador. No final de 2014, Bahamondes e seus colaboradores publicaram na revista Human Reproduction uma extensa análise do impacto social e econômico dos contraceptivos de ação prolongada reversível, os Larc, na vida das quase 50 mil mulheres atendidas em 30 anos de
atividade do ambulatório. Esses métodos incluem os DIUs e os implantes hormonais. Apenas na última década, eles teriam evitado 547 abortos inseguros, 60 mortes maternas e 400 mortes de bebês por problemas no parto ou após o nascimento (ver Pesquisa FAPESP nº 227). Bahamondes critica há tempos a falta de uma política clara de planejamento familiar no país. Sem as definições em nível nacional, afirma, o sistema público de saúde não oferece acesso aos Larc, nem informação sobre esses métodos. Ele calcula que apenas 6% das brasileiras em idade reprodutiva usem algum desses métodos, os mais eficazes para evitar a gravidez. Essa proporção é bem inferior à da Europa, onde esses métodos são adotados por quase um quarto das mulheres na mesma faixa etária. De acor-
do com seus números, no Brasil haveria 47 milhões de mulheres necessitando ou querendo usar contraceptivos, mas apenas 12 milhões tomam pílula; 200 mil usam anticoncepcionais injetáveis; e 1 milhão, Larc. A consequência? “Estimamos que ocorram no país quase 2 milhões de gestações não desejadas, que podem resultar em 160 mil abortos espontâneos, 48 mil induzidos e 312 mortes maternas”, relata o ginecologista argentino. De acordo com seu raciocínio, levando esses números em consideração, o custo dos Larc não superaria o da pílula, com a vantagem de serem mais eficazes para evitar a gravidez indesejada. “Decidir quantos filhos ter e quando ter é um direito de todos”, diz Bahamondes. “De homens e mulheres.” n
fotos 1 NederPP / caism 2 e 3 léo ramos
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especial unicamp 50 anos | 37
fisiologia
atores da saúde metabólica Pesquisas do IB e da FCM indicam que fígado, cérebro e até bactérias intestinais estão por trás do diabetes e de problemas cardiovasculares André Julião
A
bióloga Helena Coutinho Franco de Oliveira, professora do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, estuda há quase 30 anos o papel do fígado no desenvolvimento da aterosclerose, chamada por alguns especialistas de doença hepática do coração. Isso porque são produzidos no fígado alguns fatores que podem causar a doença nas artérias. Um deles é a VLDL, lipoproteína que, quando cai na corrente sanguínea, se transforma na LDL, um tipo de colesterol que em quantidades elevadas pode se depositar nos vasos sanguíneos e causar problemas cardiovasculares. Em um artigo publicado recentemente na revista Oxidative Medicine and Cellular Longevity, pesquisadores comandados por Helena perceberam que, em camun-
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Pesquisador extrai RNA de células do pâncreas no Laboratório de Biologia Molecular
dongos propensos a desenvolver aterosclerose, a produção hepática de oxigênio reativo está relacionada ao tamanho das lesões vasculares. “O fígado desses animais produzia VLDL já oxidada, que se transformava em LDL também oxidada e piorava a aterosclerose”, explica. A doença consiste no adensamento das paredes das artérias, o que restringe o fluxo sanguíneo e pode levar ao infarto e ao acidente vascular cerebral. Quando foi contratada na Unicamp em 1996, depois de um estágio de pós-doutorado na Universidade Columbia, nos Estados Unidos, Helena encontrou guarida para dar continuidade a essa linha de pesquisa, desenvolvida ao longo da graduação e da pós-graduação na Universidade de São Paulo (USP), no
laboratório do biólogo Antonio Carlos Boschero, também professor do IB. Ele foi um dos primeiros pesquisadores da Unicamp a estudar as causas de doenças metabólicas como obesidade e diabetes, no fim dos anos 1960. Outro pesquisador pioneiro na Unicamp é o médico Anibal Vercesi, atualmente professor da Faculdade de Ciências Médicas (FCM). As pesquisas de ambos, junto com as de outros colegas, ainda nos primeiros anos da universidade, abriram caminho para profissionais como Helena Oliveira e Mario Saad, professor da FCM que veio da USP nos anos 1980 e fez importantes contribuições para o estudo do diabetes. “Naqueles primeiros anos havia muitas dificuldades para fazer pesquisa no Brasil”, lembra Boschero, um aposentado
léo ramos
“em plena atividade”, como diz. Não havia tantos pesquisadores e a importação de equipamentos e insumos era quase impossível. Sair do país era a solução para realizar experimentos mais complexos e trocar ideias com quem fazia pesquisa de ponta em universidades nos Estados Unidos e na Europa. Entre 1976 e 1978, o biólogo realizou estágio de pós-doutorado na Universidade Livre de Bruxelas, na Bélgica. “Esse período no exterior serviu para fortalecer os laços entre as duas universidades que duram até hoje.” Em dois períodos (1976-1977 e 19791981), Vercesi foi para a Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, também para um pós-doutorado. Quando voltou, inaugurou na Unicamp uma linha de pesquisa na qual mostrou que
os íons de cálcio e o estresse oxidativo estavam associados à formação de poros na membrana da mitocôndria, a usina de energia das células. A abertura desses poros gera uma disfunção bioenergética na mitocôndria e induz a morte das células em enfermidades como a aterosclerose, o diabetes e a obesidade. “Foram trabalhos pioneiros demonstrando que esse é um processo sinalizado por íons de cálcio e estresse oxidativo, hoje bem estabelecido”, conta Vercesi. Cérebro e OBESIDADE
A troca de experiências com pesquisadores estrangeiros foi essencial para os primeiros passos da biologia na Unicamp, que tinha a pesquisa como cerne de seu projeto. O enfermeiro Everardo Maga-
lhães Carneiro, hoje professor do IB, beneficiou-se ainda no mestrado nos anos 1980 de uma colaboração que já vinha de seu orientador, Boschero, com os Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH, na sigla em inglês). “Nos três meses que passei lá pude responder perguntas que não conseguia com a tecnologia que havia aqui”, conta Carneiro. Esse período no exterior e outros, como o estágio de pós-doutorado na Universidade Miguel Hernandez, na Espanha, já na década de 2000, proporcionaram ao laboratório da Unicamp uma metodologia para quantificar os níveis de insulina de forma mais eficiente, fundamental para pesquisas sobre o efeito da desnutrição e da obesidade para a secreção desse hormônio. Os resultados mosespecial unicamp 50 anos | 39
fotos léo ramos
Pâncreas em escrutínio: preparo de membranas para analisar a expressão proteica (ao lado); e separação de células produtoras de insulina (acima)
tram que indivíduos que passaram por uma privação de nutrientes, mesmo que num período inicial da vida, têm mais facilidade para engordar e desenvolver um quadro de diabetes. “A desnutrição gera danos ao pâncreas, o que atrapalha a produção de insulina”, explica. Carneiro é um dos pesquisadores integrantes do Centro de Pesquisa em Obesidade e Comorbidades (OCRC, na sigla em inglês), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP. Criado em 2013, o centro é um testemunho da formação de um grupo sólido trabalhando nessas questões – com uma estrutura própria fica mais fácil realizar pesquisas de longo prazo, com maior complexidade e impacto. O OCRC tem como pesquisador responsável o médico Lício Velloso, professor da FCM. Com graduação na própria faculdade e doutorado na Universidade de Upsalla, na Suécia, Velloso faz parte de um grupo que chamou a atenção de pesquisadores do mundo inteiro para o cérebro, mais especificamente para a região do hipotálamo, como uma das partes envolvidas nas causas e nas consequências da obesidade e do diabetes. Velloso iniciou essa linha de pesquisa no pós-doutorado, sob a supervisão de Mario Saad, um dos primeiros na Unicamp a se aprofundar nos mecanismos de ação da insulina e de resistência a ela, principalmente após concluir um pós-doutorado na Universidade Harvard, em 1992 (ver edição especial FAPESP 50 anos). Um artigo publicado pelo grupo em 2011 na revista Endocrinology foi um 40 | especial unicamp 50 anos
dos primeiros a sugerir que o hipotálamo de camundongos obesos apresentava inflamações, e mesmo morte de neurônios, causadas pelo consumo de gordura saturada. Isso fazia com que os animais se tornassem resistentes à insulina e à leptina, abrindo caminho para que o diabetes se instale. A insulina carrega a glicose para dentro das células, onde o açúcar é transformado em energia, e a leptina induz à saciedade. “Até então os grupos que pesquisavam obesidade prestavam mais atenção ao tecido adiposo. A partir daí, passaram a olhar também para o cérebro”, conta Velloso. Recentemente, outro estudo chefiado por ele constatou que camundongos que ingeriram ácidos graxos insaturados, como o ômega 3, passaram a ter menor mortalidade de neurônios causada pela gordura saturada (ver Pesquisa FAPESP nº 240). A descoberta poderá ajudar a desenvolver fármacos que usem essa via para tratar a obesidade e o diabetes. Velloso também colabora com grupos de pesquisa da Faculdade de Educação Física (FEF), como o de Claudia Regina Cavaglieri. microbiotA intestinal
Outro trabalho de destaque do grupo de Saad revelou que as bactérias dos intestinos contribuem para tornar as células resistentes à insulina, condição que antecede o desenvolvimento do diabetes. A resistência à insulina se instala quando há uma proporção muito alta de bactérias do grupo Firmicutes, composto de dezenas de espécies, nos intestinos.
Essas e outras bactérias formam a microbiota intestinal e podem contribuir para gerar uma inflamação no tecido adiposo, que inicia um processo de ganho anormal de peso. Embora a criação de fármacos não seja o objetivo imediato desses pesquisadores da Unicamp, a busca por moléculas que possam ter efeito sobre obesidade, diabetes, aterosclerose e outras doenças metabólicas não é ignorada. Mesmo antes da criação do OCRC foram patenteados uma pomada cicatrizante e um colírio para diabéticos. A produção de moléculas com potencial farmacológico é um dos trabalhos do químico Ronaldo Pilli, professor do Instituto de Química (IQ) e coordenador de educação e difusão do conhecimento do OCRC. “Queremos entender como algumas moléculas agem no organismo, seja atuando em uma inflamação ou diminuindo a glicemia, por exemplo”, conta. Para isso, Pilli separa de produtos naturais ou de medicamentos já existentes moléculas com potencial terapêutico para serem testados. “Se há um chá que a literatura diz que diminui a glicemia, fazemos a síntese em laboratório e testamos para ver se de fato funciona.” Tudo, portanto, passa pela pesquisa básica. Os resultados dos trabalhos desenvolvidos na Unicamp sobre obesidade, metabolismo e aterosclerose já mostram que só se pode pensar em pesquisa avançada nesse campo com a colaboração de profissionais de diversas especialidades, como endocrinologistas, neurologistas, biólogos, químicos e bioquímicos. n
hematologia
Avanços no diagnóstic0 Equipes identificam mutações causadoras de anemias e propõem novas formas de tratamento
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m 2015, os pesquisadores do laboratório de doenças genéticas ligadas à hemoglobina da Faculdade de Ciências Médicas (FCM), no segundo andar do Hospital de Clínicas (HC) da Unicamp, lutaram para descobrir a origem da grave anemia de uma criança de 1 ano de idade encaminhada por médicos do Rio de Janeiro. Os testes iniciais não indicaram nenhuma anormalidade. “Foi um caso muito difícil”, conta Maria de Fátima Sonati, coordenadora do laboratório. “Quase desistimos.” Quatro meses depois dos primeiros testes, a equipe de Campinas encontrou no DNA da criança uma mutação nos genes das cadeias alfa da hemoglobina, proteína contida nas hemácias que transporta oxigênio para os tecidos. A hemoglobina mutante era muito instável e induzia à destruição as hemácias mais jovens, produzidas na medula óssea. O bebê, que depende de transfusão de sangue em média a cada três semanas, poderá ser curado da doença quando receber células-tronco da medula óssea 42 | especial unicamp 50 anos
dos irmãos, segundo Maria de Fátima. “Foi a primeira descrição no mundo de um paciente com um quadro tão grave de talassemia, uma forma de anemia hereditária frequente em povos do Mediterrâneo, causada por mutação estrutural em dois dos quatro genes alfa.” A história desse laboratório – criado em 1979 pelo médico Fernando Ferreira Costa, então recém-saído da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da Universidade de São Paulo (USP) – registra a identificação de 15 novas variantes da hemoglobina humana e de outras 70 formas raras, algumas com um único caso descrito no mundo. Essas descobertas são resultado da análise de quase 400 mil amostras de sangue de pacientes com suspeita clínica de alterações genéticas relacionadas à hemoglobina, encaminhados por médicos de todo o Brasil e de outros países da América Latina. Há dois grupos principais: as talassemias, que acometem cerca de 1% dos descendentes de povos mediterrâneos (no Sudeste brasileiro, principalmente
Exame eletroforese de hemoglobina (acima): em busca da origem das doenças
os italianos), e as chamadas hemoglobinopatias estruturais, entre as quais a principal é a anemia falciforme, forma grave de anemia herdada – seus portadores são geralmente assintomáticos e a mutação do gene que a causa atinge uma prevalência entre 6% e 8% na população nacional de afrodescendentes. O laboratório do HC investiga em média 300 casos por mês por meio de métodos complementares de análise (hematológicos, bioquímicos, proteicos e moleculares). “Nunca liberamos o diagnóstico com base apenas em um único método. Usamos pelo menos dois, já que existem mais de mil variantes estruturais da hemoglobina, muitas delas com comportamentos bioquímicos muito similares”, explica Maria de Fátima, que começou no laboratório em 1981 e fez mestrado e doutorado com Costa e pós-doutorado na Universidade de Londres. A bioquímica Susan Jorge, no laboratório desde a iniciação científica e agora no pós-doutorado, desenvolve uma nova frente de pesquisa e de análise. Ela se
propõe a avaliar as alterações de função das hemoglobinas mutadas por meio de métodos biofísicos, em colaboração com equipes do Instituto de Química (IQ) da Unicamp, do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, próximo à universidade, e da Universidade de Buenos Aires, Argentina. Os possíveis diagnósticos e tratamentos dos casos analisados no laboratório do HC são discutidos em conjunto com as equipes de Costa e de Sara Saad. Ambas são do Centro de Hematologia e Hemoterapia (Hemocentro), próximo à Faculdade de Ciências Médicas, de onde provém boa parte das amostras de sangue. Criado em 1985, o Hemocentro atende por ano cerca de 25 mil pessoas e realiza 50 transplantes de medula óssea.
fotos eduardo cesar
tRatamentos
No Hemocentro desde 1990, quando voltou da temporada de dois anos na Universidade Yale, Estados Unidos, Costa comemora a modernização dos métodos de trabalho: “Era muito difícil fazer diagnóstico clínico, laboratorial e molecular”. Reitor da universidade de 2009 a 2013, Costa trabalha com Nicola Conran Zorzetto, pesquisadora de seu grupo da Unicamp, em uma nova proposta terapêutica para crises agudas de anemia, de tratamento difícil. A nova abordagem consiste no uso da hidroxiureia, medicamento adotado no controle da anemia crônica, mas interrompido nas situações críticas. Em seu doutorado, sob orientação de Nicola, a bióloga Camila Almeida verificou que, em camundongos transgênicos
Em análise: lâmina com amostra de sangue e microscopia intravital (na tela, microcirculação de camundongo)
com anemia falciforme, a hidroxiureia, por meio de mecanismos bioquímicos que ainda não haviam sido observados, poderia induzir a produção de óxido nítrico e reverter os processos inflamatórios que caracterizam a anemia falciforme. Era uma indicação de que a hidroxiureia poderia ser usada para reverter a crise aguda. Em outro trabalho, também publicado na revista Blood, Camila mostrou que a hidroxiureia também poderia reverter os efeitos inflamatórios da hemólise, a destruição das hemácias, verificados na malária, na sepse e em outras doenças. Os trabalhos abrem caminho para testes em seres humanos. Segundo Nicola, essa estratégia terapêutica deve começar a ser avaliada nos próximos meses em pacientes com anemia falciforme que sofrem de crises agudas dolorosas, em colaboração com equipes do Rio de Janeiro. Se der certo, segundo Costa, a substância poderia ser indicada para deter a perda de glóbulos vermelhos verificada também em malária, em transfusões de sangue ou em infecção generalizada. A equipe da médica Sara Saad, pesquisadora do Hemocentro, estuda anemias
e outras doenças do sangue, as chamadas mielodisplasias. Resultantes de alterações nas células-tronco da medula óssea, essas doenças geralmente evoluem para leucemias agudas. Também pode ocorrer o oposto: medicamentos utilizados no tratamento de câncer podem danificar o material genético (DNA) das células e levar ao desenvolvimento de mielodisplasia. “Desenvolvemos um protocolo de terapia celular com o uso de células dendríticas do próprio paciente para o tratamento da mielodisplasia com alto risco de virar câncer. Também delineamos um estudo clínico com uso de produtos naturais em pacientes de baixo risco”, conta Sara. “Por virem de grupos mais experientes, Fernando e Sara valorizaram e reforçaram a pesquisa e a cooperação internacional no Hemocentro da Unicamp. Com eles, fazer mestrado e doutorado, formar pessoas e ter um laboratório de vanguarda tornou-se obrigatório”, comenta Joyce Bizzacchi, pesquisadora do Hemocentro que investiga as causas e possíveis tratamentos de problemas ligados à coagulação do sangue. n C. F. especial unicamp 50 anos | 43
Farmacologia
Medicamentos em detalhes Pesquisadores do departamento criado por Oswaldo Vital Brazil estudam mecanismo de ação e estratégias de uso de remédios
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Rodrigo de Oliveira Andrade
Toxinas presentes no veneno de serpentes são pesquisadas há mais de 50 anos 44 | especial unicamp 50 anos
m meados de 2010, em uma conversa informal com biólogos em um macacário no Rio de Janeiro, o médico e farmacologista Gilberto De Nucci surpreendeu-se ao descobrir que os répteis talvez tenham sido os primeiros animais a desenvolver pênis, e que as cascavéis são capazes de manter uma ereção por até 20 horas. Na época, De Nucci trabalhava na produção de um medicamento para tratar a disfunção erétil e passou a tentar entender como funcionavam em diferentes espécies animais os mecanismos relacionados à ereção, evento fisiológico complexo que, no caso dos seres humanos, envolve a ação orquestrada de aspectos psíquicos, neurais e vasculares. Em uma de suas linhas de pesquisa no Departamento de Farmacologia da Faculdade de Ciências Médicas (FCM), sua equipe estuda canais de sódio acoplados à musculatura lisa do corpo cavernoso do pênis, que nas cobras e serpentes é um órgão bifurcado, chamado hemipênis. O pênis humano e o de outros mamíferos produz a ereção quando seus corpos cavernosos relaxam e se enchem de sangue. Esse efeito é consequência
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O médico Oswaldo Vital Brazil (à esq.) e a farmacologista Julia Franceschi (de blusa clara) na década de 1970
fotos 1 eduardo cesar 2 arquivo central / siarq
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da ação de compostos que bloqueiam os canais de sódio, como a tetrodotoxina, uma potente neurotoxina. Logo que começou a trabalhar com as cascavéis, De Nucci e seu grupo observaram que o mecanismo de ereção desses répteis era diferente. De modo diverso ao que ocorre com os mamíferos, a tetrodotoxina não causa relaxamento e intumescimento do hemipênis das cobras e de outros répteis. “Entender como funcionam esses e outros mecanismos associados à ereção desses animais pode ampliar a perspectiva de desenvolver novas formas de tratamento para a disfunção erétil em humanos”, diz o pesquisador, que há 20 anos trabalha na concepção de fármacos e já desenvolveu três medicamentos, um deles, o lilalfil, produzido pelo laboratório nacional Cristália. Os répteis ocupam hoje um lugar central na vida de De Nucci, assim como o fizeram na do farmacologista Oswaldo Vital Brazil (1912-2008), fundador do Departamento de Farmacologia da Unicamp, em 1964 – àquela época o departamento integrava a Faculdade de Medicina de Campinas, criada em 1963. Filho do herpetólogo e higienista Vital
Brazil (1865-1950), primeiro diretor do Instituto Butantan, em São Paulo, Oswaldo estudou os efeitos neurotóxicos de peçonhas de cobras, aranhas e escorpiões. relaxante muscular
Natural de São Paulo, Oswaldo Vital Brazil formou-se em medicina no Rio de Janeiro, onde fez pesquisas com botânicos, químicos, médicos e veterinários no Instituto Vital Brazil, em Niterói, fundado por seu pai. Um dos trabalhos de Oswaldo Brazil resultou na identificação da ação neuromuscular da estreptomicina, um composto identificado pelo bioquímico ucraniano Selman Waksman nos anos 1940 e por muito tempo usado como antibiótico contra a tuberculose. “O estudo que identificou o mecanismo de toxicidade aguda da estreptomicina foi publicado em 1957 no Journal of Pharmacology and Experimental Therapeutics e revelou-se uma das pesquisas de maior relevância em farmacologia na década”, afirma a farmacologista Julia Prado-Franceschi, fundadora da Sociedade Brasileira de Toxinologia em 1989 e que durante 40 anos trabalhou com o pesquisador na Unicamp.
Oswaldo Vital Brazil chefiou o Departamento de Farmacologia de 1964 a 1982. Nesse período, sua equipe esclareceu os mecanismos de ação de diversos venenos e toxinas das serpentes. Entre as principais contribuições estão a caracterização farmacológica da crotoxina, da crotamina e da convulxina, importantes neurotoxinas da peçonha da cascavel, e a da bothropstoxina-I, do veneno da jararacuçu, realizada pela farmacologista Lea Rodrigues Simoni. As pesquisas em toxinologia, reconhecidas internacionalmente, criaram as condições para os estudos em farmacologia clínica, área que investiga o mecanismo de ação e as estratégias de administração de fármacos. “Essas são hoje as duas linhas de pesquisa que se destacam no departamento”, afirma o farmacologista Edson Antunes, que estuda, em modelos experimentais, a fisiopatologia da incontinência urinária e a asma alérgica no diabetes tipo 2. Antunes está no departamento desde 1981. Segundo ele, o trabalho em farmacologia clínica permitiu formar no início dos anos 1990 uma geração de pesquisadores especializados em ensaios de bioequivalência – subárea da farmacologia, então quase desconhecida no Brasil. Os testes de bioequivalência avaliam se duas preparações liberam no organismo as mesmas quantidades de um determinado composto, mantendo sua eficácia e segurança. Esse tipo de ensaio é fundamental para garantir que medicamentos genéricos funcionem tão bem quanto os originais ou medicamentos de marca. Para Antunes, a consolidação dessa especialidade na Unicamp ajudou a conscientizar o Ministério da Saúde, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a indústria farmacêutica da importância de criar meios para monitorar a qualidade dos medicamentos. “Isso permitiu criar leis federais específicas para o controle da qualidade dos fármacos no Brasil e a introdução da lei de genéricos, o que proporciona enorme economia para os governos federal e estadual”, afirma o farmacologista. n especial unicamp 50 anos | 45
odontologia
Cáries sob controle Estudos da faculdade de Piracicaba contribuíram para acréscimo de flúor na água da rede de abastecimento
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A
Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP) foi criada em 1957 – é, portanto, nove anos mais velha do que a Unicamp, instituição a qual foi incorporada em 1967. A escola se destaca pela produção científica de qualidade e pela excelência de sua pós-graduação, implantada em 1962, bem antes da implementação em larga escala dos programas de pós-graduação no país. Em suas quase seis décadas de existência, um dos trabalhos de maior impacto que realizou – e que ajudou a projetá-la no cenário nacional e internacional – foi a defesa da fluoretação da água de abastecimento público, uma das medidas mais eficazes para o controle da cárie dentária. Segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), dos Estados Unidos, o poder preventivo da água fluoretada chega a 70% em crianças e reduz a perda de dentes em adultos em até 60%.
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Análise de água com eletrodo especial
“O Brasil é um dos dois únicos países com uma legislação federal (datada de 1974) que obriga a fluoretação da água pelas estações de tratamento – o outro é a Irlanda”, conta o pesquisador Jaime Aparecido Cury, coordenador do Laboratório de Bioquímica da FOP, referência nessa área. “Esta foi uma decisão fundamental para melhorar a saúde bucal do brasileiro, e nossos pesquisadores participaram intensamente desse processo.” Os estudos realizados na escola a partir dos anos 1970 ajudaram a compreender a importância da adição do flúor na água e os parâmetros para o uso seguro do produto. A FOP também teve papel marcante na mudança do nível de flúor em cremes dentais. “O primeiro trabalho mostrando que os dentifrícios brasileiros tinham baixa qualidade de flúor foram feitos aqui”, recorda-se Guilherme Elias Pessanha Henriques, atual diretor da faculdade. Até 1988 apenas 25% dos cremes
dentais eram fluoretados e não havia regulamentação no país sobre a quantidade a ser acrescida nos produtos. Graças às pesquisas realizadas na FOP, a maioria dos dentifrícios vendidos no país passou a ser fluoretada. HISTÓRIA
Criada pelo governo paulista em 1957 como Faculdade de Farmácia e Odontologia de Piracicaba, a FOP funcionou como um instituto isolado até 1967, quando passou a fazer parte da Unicamp. A incorporação foi fruto da estratégia de Zeferino Vaz, idealizador e o então reitor da Unicamp, que buscava fortalecer a recém-inaugurada universidade campineira anexando instituições de ensino superior já consolidadas. Nessa empreitada, ele contou com um firme aliado, o professor Carlos Henrique Robertson Liberalli, primeiro diretor da então faculdade piracicabana.
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Acima, o serviço odontológico oferecido pela escola. Ao lado, pesquisador no Laboratório de Bioquímica
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“Para convencer Piracicaba das vantagens da anexação, Liberalli, que fora colega de Zeferino no Conselho Estadual de Educação (CEE), levou-o pela mão a cada gabinete político e a cada clube de servidores onde porventura prosperassem resistências à ideia. Nesses debates, o reitor prometia investimentos em pesquisa e a atração de mais professores para a faculdade”, relata o jornalista Eustáquio Gomes no livro O Mandarim – História da infância da Unicamp (Editora da Unicamp, 2006).
fotos 1 e 2 léo ramos 3 cesar maia / fop unicamp
VOCAÇÃO PARA PESQUISA
Desde o início, a FOP desenvolveu vocação para a pesquisa. “Hoje, respondemos por cerca de 25% da produção científica nacional em odontologia, com trabalhos importantes na pesquisa básica e clínica”, ressalta o professor Edgard Graner, do Departamento de Diagnóstico Oral. A instituição colabora com importantes centros médico-odontológicos do exterior, entre eles o Forsyth Institute, filiado à Harvard Dental School, e o Dana-Farber Cancer Institute, da Harvard Medical School, ambos em Boston, a Universidade de Oulu, na Finlândia, e a Universidade de Sheffield, na Inglaterra. Um trabalho relevante feito na faculdade e que revela seu caráter inovador envolve uma parceria com a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP) na prospecção de moléculas ativas em produtos
naturais. Liderada na FOP pelo professor Pedro Luiz Rosalen, a pesquisa, iniciada há duas décadas, buscou identificar o potencial bioativo da própolis brasileira, de frutas nativas, como bacupari-mirim, araçá-piranga e cereja-do-rio grande, e de resíduos agroindustriais, como borra de vinho, bagaço de tomate e pele do amendoim. “O foco do trabalho é a saúde bucal e sistêmica. Procuramos moléculas ativas com poder antioxidante, antimicrobiano e anti-inflamatório”, afirma Rosalen. “Os estudos deram origem a cinco patentes e mais de 100 artigos, e agregaram valor econômico e social a certos produtos naturais, como a própolis vermelha.” A escola também é reconhecida como um celeiro de dentistas clínicos e pesquisadores em odontologia, tendo formado mais de 3.500 profissionais apenas na graduação. “Nossos ex-alunos compõem o quadro docente de universidades públicas e privadas do Brasil, de países da América Latina e dos Estados Unidos”, destaca o diretor Guilherme Henriques. Desde a implantação da pós-graduação, em 1962, 1.800 mestres e 1.250 doutores foram titulados na instituição. “Dos sete programas de pós, quatro são considerados de excelência pela Capes, sendo três deles com nota 6 e um com conceito 7; é o único programa no Brasil na área odontológica com essa classificação”, conta Henriques. Este é um dos fatores que fizeram com que a faculdade figurasse no 20º lugar entre as melhores escolas
de odontologia no ranking deste ano da QS World University Ranking by Subjects, divulgado pela Quacquarelli Symonds, consultoria britânica especializada no ensino superior. Outro curso da Unicamp, o de engenharia agrícola da Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri), também foi listado entre os 50 melhores do mundo na sua área, ocupando a 30ª posição. ATIVIDADES DE EXTENSÃO
Embora o forte da FOP seja a produção científica, ela também se sobressai por programas voltados à comunidade. Por ano, são realizadas na escola 200 mil consultas odontológicas gratuitas. O serviço dentário da instituição é capacitado para o tratamento de portadores de câncer bucal, pacientes com doenças infectocontagiosas e HIV positivos. A atuação da faculdade contribui para que Piracicaba, de 364 mil habitantes, tenha um dos menores níveis de cárie do país. “Um importante legado da Faculdade é o Centro de Diagnóstico e Tratamento de Doenças Bucais, o Orocentro”, destaca Edgard Graner. Criado nos anos 1980 pelos professores Lourenço Bozzo, já aposentado, e Oslei Paes de Almeida, o centro é referência no país e no exterior no tratamento de lesões de boca. “O Orocentro atende mensalmente mil pacientes portadores de enfermidades, algumas bastante graves, como o câncer bucal, que não costumam ser diagnosticadas em consultórios odontológicos”, diz Graner. n Y. V. especial unicamp 50 anos | 47
neurologia
Meio século dedicado ao cérebro Doenças como epilepsia e ataxia são analisadas por meio de imagens
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om uma aula inaugural sobre as causas das doenças do cérebro, o Departamento de Neurologia da atual Faculdade de Ciências Médicas (FCM) foi inaugurado em março de 1966. A atividade foi conduzida por seu primeiro professor titular e chefe do departamento, Oswaldo de Freitas Julião (1912-1973), que, por anos, lecionara na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP). O médico tinha o hábito de transportar, em seu próprio carro, até a faculdade os pacientes de fora de Campinas que eram apresentados como estudos de caso aos alunos nas aulas. Além da fama de dedicado docente, Julião se tornara conhecido por ter descrito, em uma família de origem portuguesa, uma rara enfermidade genética neurodegenerativa que afeta o sistema nervoso periférico, hoje denominada formalmente como Polineuropatia Amiloidótica Familiar (PAF). A patologia é 48 | especial unicamp 50 anos
popularmente conhecida como a Doença dos Pezinhos, por serem os membros inferiores os primeiros a manifestar os sintomas, e tem alta incidência em pequenas cidades da região do Porto, norte de Portugal. Em 1974, Julião, postumamente, e dois colegas da Unicamp publicaram um artigo no periódico European Neurology em que afirmam terem sido os primeiros a descrever um caso de PAF na literatura científica em 1940, antes mesmo de pesquisadores portugueses terem oficialmente descoberto e batizado a doença. O perfil híbrido de Julião, com dedicação ao ensino e à pesquisa, não foi o predominante nas duas primeiras décadas do departamento. A neurologia da Unicamp seguiu uma característica geral da FCM: a ênfase estava voltada mais na área de educação médica do que na investigação científica. “A vocação inicial da faculdade era formar médicos para o interior de São Paulo e do Brasil.
Muitos professores tinham consultório na cidade e experiência com a clínica médica”, recorda Fernando Cendes, professor do departamento e coordenador do Instituto Brasileiro de Neurociências e Neurotecnologia (Brainn), um dos 17 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. “Na neurologia, o maior destaque era dado para a área de cirurgia.” Esse foi o tom dominante até 1986, quando a FCM foi integralmente transferida dos arredores da Santa Casa para o campus central da Unicamp, no distrito de Barão Geraldo, onde também passariam a funcionar o Hospital de Clínicas e o Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher, o Caism (ver reportagem na página 32). A mudança de endereço abriu espaço para o crescimento da faculdade e a renovação e ampliação do seu corpo docente. O Departamento de Neurologia não foi exceção. “A faculdade estava acanhada no centro da cidade”, conta Marilisa Manto-
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Reconstrução em 3D das veias sobrepostas ao cérebro: departamento se destaca por trabalhos com neuroimagem
vani Guerreiro, especialista em neurologia infantil e atual chefe do departamento. No final da década de 1990, a neurologia recebeu seu primeiro aparelho de ressonância magnética. A chegada do equipamento permitiria o desenvolvimento de uma linha de pesquisa que viria a ser um dos pontos fortes do departamento: o uso de imagens do cérebro em funcionamento para o estudo de problemas neurológicos. Parcerias com o Departamento de Genética Médica (DGM) da FCM e outras unidades da Unicamp, como o Instituto de Física Gleb Wataghin, também impulsionaram os estudos. Nos últimos 15 anos, a produção científica da neurologia da FCM deu contribuições importantes para o entendimento de algumas formas de epilepsia e de ataxia, doença neurodegenerativa de progressão lenta que provoca a perda do controle muscular. Fernando Cendes e Iscia Lopes-Cendes, professora do DGM e especialista em neurogenética, ajudaram
a determinar no início da década passada as bases clínicas e moleculares da epilepsia do lobo temporal mesial familiar. Essa variante da doença responde por cerca de 5% dos casos de epilepsia e, até a publicação dos estudos da Unicamp, não era claramente associada a fatores genéticos. “Fizemos imagens de ressonância do cérebro de famílias com a doença e também análises do DNA desses indivíduos”, afirma Iscia. Por ora, os trabalhos do casal e de seus colegas indicaram que o defeito genético causador dessa forma de epilepsia se encontra no cromossomo 18. Falta identificar qual é o gene que ocasiona o problema. O estudo das ataxias espinocerebelares (ou SCA, sigla em inglês), um conjunto de doenças que afeta uma a cada 100 mil pessoas, é outra área em que se destaca a neurologia da FCM. Divididas em cerca de 30 tipos, as SCA provocam danos ao cérebro e ao cerebelo. Frequentemente causam sintomas parecidos –
fotos 1 brainn 2 arquivo central / siarq
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Sala de espera dos pacientes da neurologia na Santa Casa nos anos 1970
andar cambaleante, falta de coordenação motora, fala enrolada, problemas de visão e de deglutição – e são difíceis de serem distinguidas entre si apenas por testes clínicos. Essa situação faz com que os exames de imagem por ressonância magnética e as análises genéticas se tornem ferramentas importantes para a obtenção de um diagnóstico mais preciso e para monitorar do avanço da doença. Iscia acompanha 150 famílias com casos de ataxia; alguns pacientes são monitorados há duas décadas. “Trabalhamos mais com as formas hereditárias da doença”, diz. “Em alguns casos, a patologia pode ser causada por uma alteração em apenas um gene, mas nem sempre é o mesmo gene que está implicado na doença.” Estudos com as famílias de pacientes mostraram que a SCA do tipo 3, também denominada Doença de Machado-Joseph, responde por cerca de 70% dos casos de ataxia espinocerebelar no Brasil. Por sediar o Brainn, que envolve cerca de 50 pesquisadores, a neurologia da Unicamp conta com um forte apoio para continuar suas pesquisas nos próximos anos. “Temos também boas parcerias internacionais e uma ótima estrutura dedicada à pesquisa”, afirma Fernando Cendes. O Cepid tem hoje, por exemplo, um aparelho de ressonância magnética funcional moderno, de 3 tesla, para uso em pesquisa. Além das linhas de investigação mais antigas, outros temas estão ganhando espaço no Brainn, como o estudo das conexões cerebrais e do acidente vascular cerebral, o popularmente conhecido derrame. n M. P. especial unicamp 50 anos | 49
ecologia
do campo às políticas públicas Com enfoque evolutivo e ênfase em cursos práticos, programa de pós-graduação contribuiu para a criação do Biota-FAPESP
Maria Guimarães*
A
Unicamp foi uma das primeiras universidades brasileiras a criar um programa de pós-graduação em ecologia, em 1976, com uma particularidade: sem um departamento dedicado à especialidade. “A sede era a Zoologia, hoje Departamento de Biologia Animal”, conta o ecólogo norte-americano Woodruff Benson, um dos professores pioneiros do programa do Instituto de Biologia (IB). “Os botânicos davam disciplinas e contribuíam para o enfoque de campo.” Pesquisadores em zoologia e botânica ainda são maioria no programa, que também conta com geneticistas, parasitologistas e fisiologistas de plantas.
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Benson chegou ao Brasil em 1971, pouco depois de terminar o doutorado na Universidade de Washington, e foi trabalhar na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com o químico Keith Brown em suas viagens para coleta de borboletas. Quando Brown foi convidado a integrar o nascente programa de ecologia da Unicamp, em 1975, sugeriu que Benson também fosse contratado. Com sua experiência em cursos de campo na Organização de Estudos Tropicais (OTS) na Costa Rica, Benson contribuiu para instituir expedições obrigatórias na formação dos ecólogos, realizando o desejo do então chefe do Departamento de Zoologia, Paulo Buhrnheim (1937-2001).
Nos primeiros anos o curso de campo acontecia na Amazônia, em parceria com o curso criado na mesma época no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). “Durante as duas primeiras semanas os estudantes trabalhavam em uma área de campina, com solo arenoso, com vegetação anã e flora muito diferente”, lembra. Lá, desenvolviam pesquisa individual ao longo de uma semana, além de visitarem os rios Amazonas e Negro a bordo de um barco do Inpa. “Eles tinham que aprender a lidar com uma diversidade de situações e obter resultados em pouco tempo e depois elaboravam um relatório nos moldes de um artigo científico; vários viraram temas de tese.”
Origens preservadas: borboletas coletadas pelo pioneiro Keith Brown integram a coleção de pesquisa
Hoje a prática continua a ser obrigatória e acontece em reservas de Mata Atlântica e Cerrado mais próximas a São Paulo. Aposentado, Benson há cinco anos deixou de participar dessa atividade. “São alunos interessados, que acordam às 5 da manhã e dormem à meia-noite, saem na chuva sem reclamar.” Ele destaca que os ecólogos formados na Unicamp se espalharam por todo o Brasil, com exceção de poucos estados.
léo ramos
Da teoria à prática
Duas décadas depois da formação do programa de ecologia, o conjunto de profissionais e de objetivos reunidos contribuiu significativamente para a criação do
Programa Biota-FAPESP, que permitiu a pesquisadores se unirem para fazer inventários da biodiversidade paulista. O botânico Carlos Alfredo Joly, do IB, esteve à frente desse esforço, quando trabalhou na Secretaria de Estado do Meio Ambiente nos anos 1990. “Havia um estímulo para criar programas que unissem os institutos, e o conhecimento científico resultante poderia servir para detectar espécies ameaçadas e estabelecer áreas de conservação”, conta. Joly e o zoólogo Naércio Aquino Menezes, do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), levaram a discussão à FAPESP e, em 1996, reuniram quase 100 pesquisadores para discutir a ação.
A inspiração vinha do projeto “Flora Fanerogâmica do Estado de São Paulo”, coordenado pelo botânico Hermógenes de Freitas Leitão Filho, que reunia boa parte dos taxonomistas de plantas do estado e rende frutos até hoje: recentemente foi publicado o oitavo volume do inventário, disponível on-line. Por ter um escopo maior, abarcando todos os organismos, o Biota não cabia nas categorias vigentes de financiamento da Fundação e foi preciso criar um programa, modelo que terminou aplicado a outros temas que exigem projetos coordenados que gerem frutos em conjunto. “Os primeiros projetos do Biota foram aprovados em 1999 e nenhum era de plantas, porque especial unicamp 50 anos | 51
todos os botânicos estavam no Flora Fanerogâmica”, lembra Joly, cujo projeto visava estruturar o banco de informações que reuniria os dados do programa. Os resultados do Biota-FAPESP serviram de base para a formulação de mais de 20 instrumentos legais – entre eles leis, decretos e resoluções – em políticas públicas ambientais. O que ainda falta, de acordo com Joly, é melhorar o impacto na educação. “A Unicamp deu todas as condições para que acontecesse, permitindo que os professores fizessem atividades além de ensino e pesquisa”, conta, ressaltando a dedicação necessária para dar forma ao programa. Para ele, o ambiente da universidade estimula as interações, uma característica central à pós-graduação em ecologia criada ali. Foi também na Unicamp que a ecologia nacional ganhou uma vertente pouco explorada no país. Em 1982 o sociólogo e demógrafo norte-americano Daniel Hogan (1942-2010) liderou a criação do Núcleo de Estudos em Pesquisas Ambientais (Nepam), em que os pesquisadores das ciências naturais começaram a interagir com os das ciências sociais e humanas. Sociólogos, antropólogos e historiadores passaram a cooperar em estudos voltados para entender o impacto das populações humanas no ambiente. “Em geral a ecologia não inclui 52 | especial unicamp 50 anos
o lado humano”, afirma o antropólogo cubano Emilio Moran, professor da Universidade Estadual de Michigan, nos Estados Unidos, pesquisador-visitante no Nepam e responsável por um projeto do programa São Paulo Excellence Chairs (Spec) da FAPESP. “Essa visão começou a mudar com a criação de centros que procuram formar pessoas capazes de levar em consideração a ação humana em estudos ambientais”, explica Moran, que há quatro décadas estuda a ocupação humana da Amazônia e seus efeitos sobre a floresta. As pesquisas do Nepam, inicialmente mais voltadas para a ecologia humana, com o tempo tornaram-se mais interdisciplinares. Em 2006, a segunda geração de pesquisadores do núcleo – entre eles Joly, o ecólogo Thomas Lewinsohn e as sociólogas Lúcia da Costa Ferreira e Leila da Costa Ferreira – inaugurou o programa de doutorado em Ambiente e Sociedade, que passou a contar com professores do IB, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp, além de colaboradores estrangeiros, como Moran e o antropólogo Eduardo Brondizio, da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos. “Esse é o primeiro curso de pós-graduação interinstitucional e interdisciplinar da Unicamp; o que nos diferencia
dos demais é trabalhar com as dimensões biológicas e humanas da sustentabilidade”, afirma a socióloga Leila da Costa Ferreira, que atualmente estuda as medidas políticas e institucionais adotadas no Brasil e na China para combater as mudanças climáticas. “Os biólogos que estudam a flora, por exemplo, também tentam entender o impacto que o desflorestamento de determinada região pode causar na sociedade, assim como o sociólogo que investiga como uma população percebe as mudanças climáticas também tem de estudar as condições biogeoquímicas em que essas pessoas vivem.” Ecologia e evolução
Além do enfoque no campo e na ecologia humana, o programa da Unicamp se destacou pela visão evolutiva introduzida por Woodruff Benson. “A adaptação é o aspecto central da ecologia, é aí que tudo começa”, conta. Foi esse olhar que há 40 anos atraiu Lewinsohn para a primeira turma do mestrado, que realizou sob orientação de Benson. Agora prestes a se aposentar, mas não a parar de trabalhar, Lewinsohn e sua equipe estão coletando material na serra do Espinhaço, Minas Gerais, em lugares nos quais, 20 anos atrás, ele havia coletado amostras das compostas (as plantas da família das margaridas e dos girassóis). “Esbarrei
fotos léo ramos
Formigas e lagartas de mariposas mantidas no laboratório ajudam a desvendar aspectos de sua biologia
na realidade cruel da diversidade dos trópicos: a maioria das espécies é muito rara”, conta Lewinsohn, outro pioneiro do Biota-FAPESP. Foram mais de 600 espécies de plantas coletadas, metade delas encontrada uma única vez. “A intenção do projeto não era fazer um levantamento; eu coletava interações entre as plantas e os insetos que as consomem.” Agora ele pretende testar as conexões das especializações alimentares e genéticas entre insetos e plantas em colaboração com colegas alemães, incluindo as bactérias do trato gastrointestinal das moscas. “Estamos ampliando o conceito de especialização ecológica.” Outro descendente acadêmico de Benson, o ecólogo Paulo Oliveira estava preocupado com um pesquisador norte-americano que queria fundir duas espécies de formigas do Cerrado brasileiro. “Ele só as conhecia alfinetadas no museu, mas eu sabia que eram espécies diferentes porque tinha visto como se comportam no campo.” A questão se resolveu quando a estudante Marianne Azevedo o procurou com a ideia de unir ecologia e comportamento à genética. “Podemos olhar como a genética do bicho varia na paisagem, como muda com alterações no ambiente”, ele conta. Camponotus renggeri faz ninhos subterrâneos ou em troncos mortos na for-
mação mais típica do Cerrado, conhecida como sensu stricto, que mistura pequenas árvores retorcidas e capins, e também na floresta de maior porte conhecida como cerradão. A outra espécie, C. rufipes, vive só no Cerrado sensu stricto e constrói ninhos de palha seca. A análise dos dados moleculares de forma integrada com a distribuição na paisagem deixou claro que são linhagens distintas, o que justifica serem mantidas em duas espécies, conforme mostraram a doutoranda Mariana Ronque e Marianne, hoje no mestrado, além de outros pesquisadores, em artigo publicado em janeiro na revista Zoological Journal of the Linnean Society. Oliveira está interessado em integrar seus estudos à conservação. Segundo ele, a relação entre as formigas e os frutos muda em florestas fragmentadas. “Quero mostrar como afetamos as relações pelas quais me interessei tempos atrás e como a floresta se regenera”, explica. está no DNA
O uso de genética na ecologia não é novo para André Freitas, especialista na diversidade de borboletas na América do Sul e também integrante da coordenação do Biota-FAPESP. Nos últimos anos ele vem usando os chamados códigos de barra de DNA para identificar espécies novas e fazer inventários de grupos menos conhecidos. É o caso das mariposas, cujas asas menos chamativas do que as das borboletas não atraem tanto a atenção das pessoas, biólogos inclusos. Em artigo de fevereiro na PLOS ONE, Freitas,
o biólogo Mauricio Zenker e outros integrantes do grupo compararam a confiabilidade de análises genéticas e morfológicas para identificar mariposas da subfamília dos arctiíneos em uma área da serra do Mar paranaense. O DNA se saiu tão bem quanto a morfologia e a combinação dos métodos aumentou a confiabilidade. “Não é uma panaceia, mas uma ferramenta útil e que deve ser usada”, conclui. Seu grupo também usou genética de populações para ajudar a entender a ecologia de populações da borboleta-da-praia (Parides ascanius), cada vez mais isoladas em áreas do estado do Rio de Janeiro. Especializada na floresta de restinga, junto à costa, sua circulação é restrita pelos avanços da mancha urbana. O estudo, do qual participou a ecóloga Noemy Seraphim Pereira, detectou diferenças marcadas no DNA das borboletas a leste e a norte do município carioca, em artigo publicado em junho na Conservation Genetics. Avenidas arborizadas e o cultivo na zona urbana das plantas nativas de que as borboletas dependem podem garantir sua circulação, mesmo com os obstáculos naturais impostos pela baía da Guanabara, e representar a chance de sobrevivência para essa espécie, que foi a primeira entre os invertebrados reconhecida como ameaçada de extinção no Brasil. “Reunir evolução, sistemática, ecologia temporal e histórica e filogeografia é o legado da minha formação com Keith Brown, um químico interessado em história natural”, conta Freitas, atualmente chefe do Departamento de Biologia Animal. Recentemente ele participou da elaboração de guias de identificação de borboletas da Amazônia, da Mata Atlântica e do Cerrado, assim como de procedimentos de campo para coleta dos insetos. Todos baseados em imagens, acessíveis até para quem não sabe ler, para serem usados em diagnóstico ambiental. “Algumas borboletas são características de áreas mais preservadas, outras toleram florestas degradadas”, explica. Integrantes de seu grupo participaram do treinamento de agentes em Unidades de Conservação no país todo, gerando dados que agora começam a ser usados pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). “Os padrões acabam resultando em políticas públicas.” n *Com colaboração de Ricardo Zorzetto
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Genômica e Ciências da computação
pela saúde das pessoas e das plantas Biólogos, matemáticos e bioquímicos unem conhecimentos para mapear DNA, estudar proteínas e impulsionar a medicina de precisão Ricardo Aguiar
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eficácia de um medicamento depende também do organismo de quem o toma. O poder de ação de um fármaco é influenciado pelas características genéticas de cada indivíduo, razão pela qual um mesmo composto pode, às vezes, causar efeitos distintos, e até contrários, em pessoas diferentes. Um exemplo da ação heterogênea de medicamentos foi observado recentemente em um estudo conduzido pelo biólogo Daniel Martins-de-Souza, pesquisador do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp. Ele e seus colaboradores na Alemanha avaliaram o desempenho de três medicamentos antipsicóticos em 58 pessoas com esquizofrenia, doença neuropsiquiátrica que atinge 1% da população e é marcada pela ocorrência de alucinações e delírios. Tratados com doses diárias de olanzapina, quetiapina 54 | especial unicamp 50 anos
ou risperidona por seis semanas, 36 participantes (62% do total) apresentaram uma redução importante dos sintomas, enquanto os demais não melhoraram. Os pesquisadores também analisaram o sangue de quem participou do estudo em busca de um possível marcador biológico de resposta ao tratamento, algo capaz de predizer se a medicação produziria ou não o efeito desejado. Eles mediram o nível de 985 proteínas e observaram que o grupo que respondeu bem à medicação produzia duas classes de proteínas em concentrações diferentes das pessoas para quem o tratamento não havia surtido o efeito desejado. Os indivíduos que haviam se beneficiado do uso de antipsicóticos produziam níveis mais baixos de proteínas associadas ao metabolismo de ácidos nucleicos e de proteínas que processam outras proteínas, enquanto quem
não respondia bem ao tratamento apresentava concentrações sanguíneas mais elevadas desses dois grupos de proteínas. Combinando o que encontraram em um caso e no outro, Martins-de-Souza e seus colegas chegaram a um conjunto de 42 proteínas que talvez possa indicar quem responderia melhor à medicação, antes mesmo do início do tratamento. A esperança dos pesquisadores é chegar a um exame de sangue que permita ao médico identificar a medicação mais adequada para cada pessoa de modo a melhorar o índice de sucesso dos tratamentos. “Hoje não há ferramentas que auxiliem o médico a encontrar a medicação mais eficaz”, afirma Martins-de-Souza. “Ele descobre o que funciona na base da tentativa e do erro.” Ajudar na busca de um marcador biológico de resposta ao tratamento é apenas
fotos léo ramos (laranja); nature 2000 (sequenciamento)
O primeiro genoma: de 1997 a 2000, equipes do IB ajudaram a sequenciar a praga dos laranjais
uma das possíveis aplicações da proteômica, área da biologia que estuda o perfil de produção de proteínas dos organismos. “Estudamos o que acontece na esquizofrenia, mas, em princípio, essa estratégia poderia ser utilizada para avaliar o melhor tratamento para qualquer doença.” Os trabalhos em proteômica ainda são recentes no Brasil, onde a área foi introduzida há pouco mais de uma década, logo após os primeiros estudos de genômica. O IB foi um dos centros nacionais pioneiros nas duas áreas. Antes dos trabalhos em proteômica, seus pesquisadores participaram do Projeto Genoma-FAPESP, que de 1997 a 2000 sequenciou o material genético da bactéria Xylella fastidiosa, causadora do amarelinho, ou clorose variegada dos citros (CVC), praga que afeta laranjais do estado de São Paulo e causa grandes prejuízos econômicos.
Esse foi o primeiro genoma de um microrganismo causador de doença em plantas (fitopatógeno) sequenciado no mundo. No projeto, os pesquisadores determinaram a ordem dos 2,7 milhões de pares de bases nitrogenadas (adenina, timina, citosina e guanina, ou A, T, C e G) que compõem o material genético (DNA) da Xylella. “Esse projeto foi um divisor de águas, pois equiparou as pesquisas brasileiras feitas nessa área às pesquisas internacionais”, diz Martins-de-Souza. “Na época, o Brasil tinha poucas iniciativas de sequenciamento de genes, nenhuma tão grande como essa”, conta o biólogo Paulo Arruda, professor do IB e um dos coordenadores do projeto. Cerca de 190 pesquisadores de 35 laboratórios do estado de São Paulo participaram do projeto, no qual interagiam por meio de uma plataforma chamada Organização
para Sequenciamento e Análise de Nucleotídeos (Onsa, na sigla em inglês). No projeto, equipes de diferentes instituições aprenderam técnicas de sequenciamento, o que acelerou significativamente o desenvolvimento da genômica no país. “Realizar o projeto nos permitiu acompanhar a evolução da área de forma extremamente efetiva”, diz Arruda, que hoje usa a genômica para tentar desenvolver plantas resistentes à seca, como milho e soja, em parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Bioinformática
À medida que se acumulava a enorme quantidade de informações do genoma, foi preciso desenvolver a capacidade de analisar e processar os dados, tarefa da bioinformática, área que usa estratégias computacionais para analisar dados bioespecial unicamp 50 anos | 55
lógicos. Na época do Genoma-FAPESP, a bioinformática ainda era uma área muito recente no Brasil e chegou-se a pensar em trazer especialistas do exterior para colaborar com o projeto. Mas dois jovens pesquisadores do Instituto de Computação (IC) da Unicamp à época, João Meidanis e João Carlos Setubal, trabalhavam com isso e chamaram a atenção dos coordenadores do Genoma-FAPESP. Com a entrada de Meidanis e Setubal no projeto, o IC começou a desenvolver expertise em uma nova área, assim como já havia feito quase três décadas antes, ao formar a primeira turma de cientistas da computação no Brasil. A Unicamp foi a segunda universidade a criar um curso de ciências da computação, em 1969, um mês depois da Universidade Federal da Bahia. Os dois pesquisadores implementaram técnicas e desenvolveram softwares que permitiram o reagrupamento de trechos do DNA da bactéria sequenciados por laboratórios diferentes, como peças de um quebra-cabeça gigante. “Além disso, criamos sistemas de transmissão de dados via web para que todos os pesquisadores pudessem acompanhar o andamento do projeto a partir de seus próprios laboratórios”, conta Meidanis. “No Brasil, nada semelhante havia sido feito antes.” Em 2000, os bioinformatas receberam com outros pesquisadores a Medalha do Mérito Científico e Tecnológico do Governo do Estado de São Paulo pela sua participação no Genoma-FAPESP. Em 2009, também foram homenageados com o prêmio Distinguished Innovators Award da Business Software Alliance pelo trabalho com bioinformática no mesmo projeto. Proteoma
Concluído o sequenciamento da Xylella, o passo seguinte foi a realização do Projeto Genoma Funcional da bactéria. Vinte e um laboratórios começaram a investigar a função dos quase 2,8 mil genes e das proteínas por eles produzidas com o objetivo de compreender como a Xylella infecta as laranjeiras e cresce no interior dos vasos que permitem o transporte de nutrientes. Um desses grupos foi coordenado pelo biólogo José Camillo Novello, do IB. Sua equipe mapeou o proteoma total da bactéria e descobriu que a Xylella não dispõe de um mecanismo que permi56 | especial unicamp 50 anos
O mapa das diferenças: essas proteínas são produzidas em concentrações distintas por quem responde bem e quem reponde mal ao uso de antipsicóticos
te produzir proteínas de forma rápida, comum em outras bactérias. Essa característica, identificada pelo biólogo Marcus Smolka, atualmente professor na Universidade Cornell, nos Estados Unidos, ajudou a explicar o crescimento lento do microrganismo, que demora de oito a 10 horas para se dividir em dois. Só para comparação, a Escherichia coli não leva mais de 20 minutos para se duplicar. O grupo de Novello identificou 142 proteínas e estudou em detalhe 30 delas, potenciais alvos para o desenvolvimento de compostos contra o amarelinho. O conhecimento gerado nesses projetos propiciou a produção de testes para detectar a presença da bactéria em mudas de plantas. Esses testes foram importantes para o controle da doença e para ajudar a reduzir as perdas – muitas vezes o amarelinho só se manifesta anos depois que a muda é plantada. Iniciado em 2000 e concluído com sucesso dois anos depois, o Genoma Funcional da Xylella foi o primeiro projeto a gerar um proteoma completo na América Latina. “Ele abriu as portas para novas pesquisas em proteômica no Brasil”, diz Novello. O conhecimento conquistado nos anos 1990 com o sequenciamento do material genético de plantas, animais
e microrganismos auxiliou na investigação do genoma humano. Vencidas as barreiras tecnológicas iniciais, hoje a genômica é usada corriqueiramente na área médica. Em 2015, cinco Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP se uniram e criaram a Brazilian Initiative on Precision Medicine (BIPMed), a primeira base de dados genômicos do país, que integra um consórcio internacional de bancos genômicos associados à saúde humana. O objetivo é desenvolver terapias talhadas para cada paciente. Estão disponíveis na base da BIPMed o exoma completo de 29 pessoas. O exoma é a parte do genoma que codifica proteínas e, portanto, qualquer mutação que venha a sofrer pode ter como consequência o aparecimento de uma doença. Os grupos que integram a BIPMed já identificaram 209 variantes genéticas que não haviam sido descritas, mas ainda não se sabe se essas variações genômicas estão relacionadas a doenças. A base também abriga informações sobre mais de 1 milhão de marcadores moleculares de polimorfismo de base única de 200 indivíduos de uma população de referência. Essas variações não costumam causar doenças, mas podem fornecer
imagem elliot kitajima / usp mapa proteômico daniel martins-de-souza / unicamp
ArchC, um software para testar processadores
Colônia de bactérias Xylella fastidiosa obstrui vasos condutores de seiva em laranjeira
informações sobre a estrutura genética da população. “Essa iniciativa dará maior visibilidade aos dados brasileiros na comunidade científica internacional”, conta o físico Munir Skaf, pesquisador do Instituto de Química (IQ) da Unicamp e coordenador do Center for Computational Engineering and Sciences (CCES), um dos Cepids envolvidos na BIPMed. Criação de empresas
Um dos desdobramentos do Genoma-FAPESP foi a criação de empresas a partir da universidade. Observando o potencial de aplicação na indústria das pesquisas em genômica e proteômica, Arruda e Setubal se uniram a três outros pesquisadores – Ana Cláudia Rasera da Silva, João Paulo Kitajima e Jesus Ferro – e fundaram em 2002 a Alellyx, empresa de pesquisa e desenvolvimento de produtos de biotecnologia e geração e comercialização de patentes na área de genômica aplicada. Por meio da manipulação de genes, a empresa conseguiu conferir a uma variedade de cana-de-açúcar resistência a uma doença conhecida como mosaico. Em 2008, a Alellyx foi comprada pela multinacional Monsanto. Pouco mais de um mês depois da criação da Alellyx, Meidanis e quatro alu-
nos – Zanoni Dias, Guilherme Pimentel Telles, Marília Dias Vieira Braga e Alexandre Corrêa Barbosa – fundaram a empresa Scylla para atuar na área de bioinformática. Entre outras realizações, a empresa desenvolveu o Sinbiota 2.1, a segunda versão do software usado pelo programa Biota-FAPESP. A atualização lançada em 2013 integrou a ferramenta Google Maps ao programa e permite aos pesquisadores registrar de maneira simples a localização de plantas e animais do estado de São Paulo. Até o momento, 404 usuários de 154 projetos já registraram mais de 126 mil espécimes no software. Atualmente, a principal demanda da Scylla é em metagenômica, área da ciência que realiza o sequenciamento de genomas encontrados em determinado ambiente. O desafio, no caso, é identificar os diferentes organismos que vivem ali. “Também temos interesse em medicina personalizada, área promissora que pode, no futuro, se tornar a maior demanda por parte de empresas”, diz Arruda. Para ele, a genômica e a proteômica se tornaram essenciais para responder a perguntas biológicas da maneira mais precisa. “A genômica deixou de ser uma barreira para se transformar em uma ferramenta”, afirma. n
Está cada vez mais complicado produzir os circuitos eletrônicos do processador de um computador. O número de transistores que integram um chip cresceu tanto nos últimos tempos – os atuais podem ter mais de 10 milhões de transistores por milímetro quadrado – e as funções desempenhadas por eles se tornaram tão complexas que é inviável fabricar uma peça primeiro e só testá-la depois. Agir dessa forma pode significar perda de tempo e dinheiro. Acompanhando essa tendência de miniaturização dos componentes há bastante tempo, os pesquisadores Sandro Rigo, Guido Araújo e Rodolfo Azevedo, todos do IC, decidiram desenvolver no início dos anos 2000 uma linguagem que permite aos projetistas e engenheiros simularem o funcionamento de um processador antes de sua fabricação. Essa linguagem, a ArchC, é, segundo Rigo, a única criada no Brasil e uma das poucas produzidas no mundo para essa função e no formato open source, que permite ao usuário baixar o programa gratuitamente e alterá-lo de acordo com suas necessidades. Desde que foi criada, a ArchC já foi – e continua sendo – usada por pessoas e instituições de cerca de 35 países, incluindo universidades como a de Cambridge, na Inglaterra. “Estimo que a ArchC deva ter milhares de usuários em todo o mundo, o que é muito para um nicho tão específico”, diz Rigo. Em 2016, a linguagem ArchC foi selecionada para o Google Summer of Code, programa do Google que financia alunos para trabalharem no desenvolvimento de projetos open-source selecionados mundo afora. Neste ano o programa recebeu cerca de 30 propostas de estudantes e escolheu as duas melhores para aprimorar a ArchC. especial unicamp 50 anos | 57
Ações afirmativas
Para ampliar a porta de entrada Programas pioneiros aumentam o acesso de estudantes de escolas públicas aos cursos de graduação
Fabrício Marques
O
vestibular de 2016 da Unicamp alcançou um marco na inclusão social de estudantes. Pela primeira vez, mais da metade (51,9%) dos 3,3 mil aprovados fez o ensino médio em escolas públicas, em contraste com uma média histórica na casa dos 35% nos últimos 10 anos. Desde 2004, por meio do Programa de Ações Afirmativas para Inclusão Social (Paais), a Unicamp concede um bônus sobre a nota da segunda fase do vestibular de alunos egressos de escolas públicas, com pontos 58 | especial unicamp 50 anos
extras para os que tenham ascendência africana ou indígena. A novidade foi a decisão de ampliar em 50% a bonificação, num total de 90 pontos para egressos do ensino público e de outros 30 pontos para alunos da rede pública autodeclarados pretos, pardos ou indígenas. E também foi concedido um bônus na primeira fase do vestibular, a fim de aumentar o número de concorrentes aptos para a segunda fase: foram 60 pontos adicionais para estudantes do sistema público e mais 20 pontos para pretos, pardos ou indígenas.
“Fizemos simulações sobre o tamanho da bonificação necessária para conseguir atingir os 50% de alunos oriundos de escolas públicas, definidos nas metas de inclusão social para 2017 estabelecidas pelo Conselho Universitário. O nosso cálculo foi certeiro”, diz Edmundo Capelas de Oliveira, professor do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica (Imecc) e coordenador-executivo da Comissão Permanente para os Vestibulares (Comvest) da Unicamp. Encerradas as matrículas, o percentual
léo ramos
caiu um pouco: escolas públicas são a origem de 47,4% dos calouros em 2016. “É comum que uma parte dos aprovados siga outros caminhos, pois prestam vestibular em várias instituições”, afirma. A ampliação do bônus foi a estratégia encontrada pela reitoria da Unicamp para acelerar o ingresso de alunos de escolas públicas sem abrir mão da filosofia que marca seus programas de ação afirmativa: a de que a admissão esteja relacionada ao mérito e ao desempenho dos estudantes no vestibular, em con-
traposição ao sistema de cotas vigente em outras universidades que pode, em tese, permitir a entrada de alunos com formação muito precária, principalmente em cursos pouco concorridos. O Paais inspirou programas de outras instituições, como a Universidade de São Paulo (USP), que concede um bônus equivalente a 15% sobre a nota obtida no vestibular de candidatos que fizeram o ensino fundamental e o médio em escolas públicas, além de 5% para pretos, pardos ou indígenas.
Turma de calouros de medicina que ingressou na Unicamp no último vestibular: 65,5% dos matriculados vieram de escolas públicas
especial unicamp 50 anos | 59
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os primeiros semestres da graduação costumam ser os mais difíceis para os estudantes egressos de escolas públicas
sidade receber alunos de classes sociais diferentes”, diz Capelas, da Comvest. Joana Bastos, coordenadora associada do curso de graduação da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, vê um impacto positivo na diversidade de alunos, visível na presença de quase um terço de estudantes autodeclarados pardos (27,3%) e negros (3,6%) – em turmas anteriores, a soma de pardos e negros oscilava entre 3% e 14% – e de mais de uma dezena de alunos com mais de 26 anos, entre os 110 aprovados em 2016. “Nosso objetivo é formar médicos com postura ética, visão humanística, senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania. Esses alunos trarão uma pluralidade de olhares sobre o curso, uma vez que muitos são usuários do SUS e provêm de diferentes classes sociais, etnias e regiões do país”, diz a professora. Segundo ela, o entrosamento da turma de calouros da FCM com esse novo perfil é tão bom quanto o das turmas anteriores. Mas a novidade gerou manifestações de preconceito. Numa competição entre estudantes de medicina na cidade de Lins, realizada em março, cinco torcedores da equipe da Faculdade de Medicina de Jundiaí pintaram o rosto de preto e escreveram no corpo as letras da palavra “cotas” para provocar o time adversário, formado por alunos da Unicamp. “Foi chato o
que aconteceu, mas aqui na Unicamp me sinto bem acolhida”, diz a estudante de medicina Belisa Brunow Ventura, de 19 anos, uma das beneficiadas pelo Paais. Ela fez o ensino médio numa escola técnica de Curitiba e obteve pontuação no Enem para cursar medicina na Universidade Federal do Paraná, mas optou pela Unicamp. “Estou gostando do curso. A principal dificuldade é viver longe da família”, explica. Do total de calouros de medicina beneficiados pelo PAAIS, 61,5% vieram de escolas técnicas. revisões
Segundo Edmundo Capelas, a experiência de mais de uma década do Paais mostra que a maioria dos egressos de escolas públicas consegue superar suas eventuais deficiências no decorrer da graduação. Mas afirma que a estratégia adotada em 2016 ainda está sendo avaliada e pode sofrer ajustes. Segundo ele, nas disciplinas de cálculo, por exemplo, as primeiras aulas do semestre foram dedicadas a revisões da matemática do ensino médio, numa tentativa de preencher lacunas na formação dos novos alunos. Os primeiros semestres frequentemente são os mais difíceis para alunos egressos de escolas públicas. “Fiz o ensino médio numa escola técnica federal e tive uma formação voltada para a resolução de problemas. Não estava preparado para o grau de abstração em matemática exigido na universidade”, reconhece Gleyson Roberto do Nascimento, 35 anos, aluno de graduação do curso de engenharia elétrica, que entrou na Unicamp em 2009 com ajuda do Paais. Filho de um cobrador de ônibus e de uma dona de casa, Nascimento já tinha concluído o curso técnico havia quatro anos quando decidiu fazer o vestibular da Unicamp. “Trabalhava como técnico, mas ficou claro para mim que, se eu quisesse progredir e ajudar mais minha família, deveria fazer engenharia”, diz. Segundo ele, o apoio que recebe da Unicamp como aluno vinculado ao Paais – uma bolsa de trabalho de cerca de R$ 800, moradia numa república e alimentação gratuita – foi essencial para seguir o curso. “Minha expectativa é me formar no ano que vem e arrumar um emprego que me permita fazer também mestrado ou doutorado.” O Paais começou a ser concebido em 2003, na gestão do reitor Carlos Henri-
foto Antoninho Perri / Ascom – Unicamp
A Unicamp mantém um segundo programa de ação afirmativa, o ProFIS (sigla para Programa de Formação Interdisciplinar Superior), que seleciona os melhores alunos do 3º ano de ensino médio público de Campinas, com base nas notas do Enem, e lhes oferece um curso de dois anos com conteúdo multidisciplinar, num projeto de formação geral semelhante ao que é feito em universidades da Europa ou dos Estados Unidos. Ao final do curso, estudantes que concluíram o ProFIS podem ingressar na graduação da Unicamp sem passar pelo vestibular. “O Paais e o ProFIS são complementares. Enquanto o Paais atrai um público oriundo de colégios técnicos, que são escolas públicas de alta qualidade frequentadas também pela classe média, o ProFIS atrai estudantes pobres que, em sua maioria, nem cogitariam disputar o vestibular da Unicamp”, explica Marcelo Knobel, professor do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW), um dos responsáveis pelo lançamento do ProFIS em 2011, quando era pró-reitor de Graduação da Unicamp. Como é comum em iniciativas de ação afirmativa, a bonificação ampliada nas notas do vestibular de 2016 gerou controvérsias. A estratégia teve um efeito exacerbado em carreiras concorridas como medicina e arquitetura, atraindo um contingente de alunos de escolas públicas bem maior do que a média. Ocorre que, nesses cursos, a abundância de candidatos muito bem preparados faz com que a diferença de pontos entre eles seja muito pequena – é comum que décimos de pontos separem os aprovados daqueles que aguardam a segunda ou a terceira chamadas. Por isso, a bonificação de até 120 pontos na segunda fase deu uma vantagem significativa para os alunos de escolas públicas. Na medicina, eles foram 88,2% dos aprovados – o percentual de matriculados foi de 65,5%. Um grupo de pais de candidatos que vieram de escolas particulares e não obtiveram aprovação foi à universidade reclamar. Alguns sugeriram a adoção de cotas, para que a reserva de vagas para alunos de escolas públicas não ultrapassasse os 50% – esse é o limite definido para as universidades federais por uma lei de cotas, de 2012. “Apresentamos aos pais os critérios adotados, mostramos que os calouros entraram por mérito e justificamos que é importante para a univer-
Alunos do ProFIS em sala de aula: ponte entre o ensino médio em escolas públicas e a graduação da Unicamp, sem passar pelo vestibular
que de Brito Cruz, hoje diretor científico da FAPESP. Na época, o debate sobre ações afirmativas ganhava expressão no país, depois que o governo fluminense sancionou uma lei reservando 50% das vagas no vestibular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro para alunos de escolas públicas. “Surgiram projetos na Assembleia Legislativa de São Paulo propondo cotas e eles foram enviados às universidades para discussão”, conta Renato Pedrosa, professor do Instituto de Geociências da Unicamp, que era coordenador de pesquisa da Comvest. “Lembro-me de uma reunião na reitoria em que se discutiu o que fazer. Combinou-se que daríamos uma resposta, dizendo se apoiávamos, se éramos contra ou se proporíamos algo diferente com lastro acadêmico”, recorda. Pedrosa e sua equipe passaram a analisar o desempenho dos alunos de escolas públicas no vestibular da Unicamp e a trajetória acadêmica dos que entravam na universidade.
“Fomos olhar a nota no vestibular e as notas ao longo do curso para ver o que havia de diferente entre egressos de escolas públicas e de particulares”, diz. potencial acadêmico
A análise mostrou que a nota do vestibular era um prenúncio da performance do aluno no primeiro ano de graduação, mas não no restante do curso. Muitos dos egressos de escolas públicas que se classificavam para as últimas vagas melhoraram seu desempenho ao longo do tempo e terminavam o curso em melhor posição no ranking da turma. Essa evidência deu base à ideia do bônus na pontuação. “Os dados mostravam que alguns alunos de escolas públicas, provenientes de um contexto socioeconômico desfavorável e com um capital educativo mais baixo, tinham um potencial acadêmico maior do que a nota do vestibular descrevia. Se déssemos um bônus na pontuação, corrigiríamos esse desequilíbrio na entrada, permitindo que esses bons candidatos entrassem na universidade”, afirma Pedrosa. Uma comissão foi composta para elaborar uma proposta. Em relação aos negros e indígenas, havia dúvidas em relação à forma de definir quem poderia se beneficiar – se haveria uma instância para dizer se o candidato se encaixava nessas categorias raciais ou se a autode-
claração seria suficiente. Por sugestão do sociólogo Octavio Ianni, que integrava a comissão, optou-se pela autodeclaração. A bonificação foi aprovada pelo Conselho Universitário em 2004 e aplicada no vestibular de 2005. Inicialmente, o bônus era de 30 pontos para alunos de escolas públicas, com 10 extras para pretos, pardos ou indígenas. A proporção de alunos de escolas públicas subiu de 29% em 2004 para 34% em 2005. A expectativa da Comvest era que esse percentual aumentasse nos anos seguintes até superar os 50% de aprovados, graças ao crescimento do número de candidatos oriundos de escolas públicas. “Tínhamos motivos para acreditar nessa evolução, porque o número de concluintes do ensino médio havia dobrado entre 1994 e 2003”, lembra Pedrosa. Isso, contudo, não aconteceu. No estado de São Paulo, há uma década a proporção de pessoas que concluem o ensino médio permanece na casa dos 66% – no Brasil, o índice é de 55%. “Houve estagnação no ensino médio no Brasil, que se refletiu nos resultados do Paais. Depois do salto inicial, não conseguimos avançar de modo vigoroso.” Em 2013, o bônus na segunda fase do vestibular foi ampliado pela primeira vez, dobrando em relação ao patamar definido em 2004. Em 2016, houve novo aumento, além da oferta de bônus também na primeira fase. especial unicamp 50 anos | 61
Da rede pública para a universidade Porcentagem e número de calouros oriundos de escolas públicas entre os matriculados na Unicamp em 2016 – em 12 cursos selecionados % números de alunos
Ciência da Computação
81,8
45
Medicina 65,5
72
Geologia 60
12
Estatística 56
42
Arquitetura e urbanismo 53,3
16
Química 52,1
37
Engenharia civil
39
48,1
da Unicamp, que foi responsável pelo projeto de 1999 e integrou a comissão do ProFIS, 10 anos depois. “A formação geral permite criar um profissional cidadão, que não se verá só como um técnico ou um especialista. Essa formação interdisciplinar era defendida por Zeferino Vaz nos primórdios da Unicamp.” A grade curricular proposta tem 28 disciplinas obrigatórias de diversas áreas, de ética à evolução, da língua inglesa aos grandes textos da literatura, da matemática às tecnologias de informação. O curso é integral. “O objetivo é garantir o domínio de várias habilidades e também fazer o aluno do ProFIS circular por toda a universidade e escolher de forma bem informada o curso que gostaria de seguir”, conta Elisabete, que aponta outras inovações no projeto, como a avaliação continuada, a cargo do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (Nepp) da Unicamp a partir de 2011. Pontos críticos
Nutrição 44,1
26
História 42,5
17
Odontologia 35,1
27
Administração 24,4
44
Dança 24
6
Fonte Comvest/Unicamp
Já o Programa de Formação Interdisciplinar Superior (ProFIS) utiliza as notas do Enem para identificar os melhores alunos de 96 escolas públicas de ensino médio de Campinas. Como o curso de dois anos de duração oferece 120 vagas, alguns colégios estão representados por mais de um estudante. Esse público era escassamente atendido pela universidade. Dados da Comvest mostram que 55% das escolas públicas de Campinas não tiveram nenhum aluno matriculado na Unicamp entre 2008 e 2009, enquanto outros 20% só tiveram um aluno aprovado no vestibular. “A ideia foi criar um curso de formação geral em nível superior, que lidasse em parte com as deficiências dos alunos no ensino médio, mas tivesse como objetivo principal mudar 62 | especial unicamp 50 anos
a visão de mundo e tornar o aluno um cidadão melhor”, explica Knobel. O projeto do curso de formação interdisciplinar foi definido por uma comissão composta por professores de várias unidades da Unicamp, que funcionou entre 2009 e 2010. O grupo resgatou uma discussão feita no final dos anos 1990, quando o então reitor Hermano Tavares encomendou um projeto de curso de graduação capaz de dar uma formação geral aos estudantes, a exemplo dos colleges dos Estados Unidos. O projeto não foi adiante na época. “Entenda-se por formação geral um conjunto de disciplinas e conhecimentos de diversas áreas sobre o qual o aluno depois vai especializar-se”, diz Elisabete Monteiro de Aguiar Pereira, professora da Faculdade de Educação
Os relatórios do Nepp classificam os resultados do programa como positivos, especialmente pela implantação de um curso de educação geral interdisciplinar em uma universidade intensiva em pesquisa. Os alunos avaliam o ProFIS de forma positiva e mostram-se satisfeitos com a experiência, inclusive aqueles que saíram do programa antes da conclusão. Alguns pontos críticos apontados referem-se ao currículo denso com carga horária considerada excessiva, que dificulta tanto a atividade de iniciação científica, obrigatória no programa, quanto a dedicação ao estudo individual ou em grupo. A taxa de evasão do ProFIS foi alta na primeira turma (49%), mas diminuiu nas posteriores. O principal motivo alegado pelos alunos que deixaram o programa foi a dificuldade de acompanhar a grade curricular. De acordo com Ana Maria Alves Carneiro da Silva, pesquisadora do Nepp que coordenou a avaliação do ProFIS, a taxa de evasão das cinco primeiras turmas foi, em média, de 33,6%. “Não é uma taxa alta para um programa de ação afirmativa que recebe alunos das escolas públicas cuja qualidade é baixa em geral e precisa lidar com essa realidade. Além disso, no levantamento dos ingressantes em todos os cursos da Unicamp de 2003, vimos pelo menos oito cursos com taxas de evasão maiores do que essa”, afirma. O aproveitamento dos alunos do ProFIS
que chegam ao final do curso é elevado. A maior parte ingressou na Unicamp: 63% da primeira turma e 75% da segunda. Também houve quem entrasse em outras universidades, públicas ou privadas. De acordo com o pró-reitor de Graduação da Unicamp, Luis Alberto Magna, o ProFIS foi submetido recentemente a um processo de avaliação externa que recomendou mudanças. “Em que pese seu inegável mérito inclusivo pelo mecanismo de admissão dos alunos, o ProFIS requer reavaliação de seu projeto político-pedagógico”, afirma. Na sua avaliação, a proporção de concluintes é baixa e isso se deve em boa medida ao fato de o ProFIS não conferir diploma de nível superior aos egressos, caso eles optem por não continuar os estudos no nível superior. “Essa característica é, em grande parte, determinante da alta evasão que caracteriza o programa desde a sua implantação.” Segundo Magna, a ideia é transformar o curso em algo semelhante aos bacharelados interdisciplinares oferecidos em algumas universidades federais, garantindo um diploma de graduação para os estudantes. De to-
do modo, diz o pró-reitor, mantém-se a meta de que os alunos passem para um dos cursos de graduação da Unicamp quando concluírem o programa. desafios
A história de Bárbara Cardoso Miran da, de 22 anos, estudante do curso de fonoaudiologia da Unicamp, resume os desafios enfrentados pelos alunos do ProFIS. Ela concluiu o ensino médio em 2011 numa escola pública de Campinas e chegou a passar no vestibular de uma faculdade particular, no curso de biomedicina. Mas sua nota no Enem a habilitou a participar do programa da Unicamp, que recrutava sua segunda turma. “Entrar numa universidade pública não estava no meu horizonte. As pessoas diziam que era preciso ter dinheiro para se manter na Unicamp e eu não podia”, diz ela, filha de um motorista de ônibus, hoje aposentado, e de uma cobradora, que se conheceram no trabalho. Optou pelo ProFIS e se manteve no curso graças a uma bolsa e à gratuidade da alimentação e do transporte. Achou o curso puxado. “Tinha dificuldade com
ciências exatas e precisei fazer três vezes a disciplina pré-cálculo. Mas quando precisei rever esses conteúdos no curso de fonoaudiologia foi muito mais fácil.” Uma lembrança negativa era a ansiedade de não saber o que iria acontecer no final do curso, se seu desempenho seria ou não suficiente para ingressar na Unicamp. Hoje, a um ano e meio de terminar a graduação, já toma contato com o mercado de trabalho. “Faço estágio num hospital-escola”, conta. Para Marcelo Knobel, o balanço dos primeiros anos do ProFIS mostra que seus objetivos foram cumpridos. “O programa fornece uma formação geral, de caráter multidisciplinar, e está formando cidadãos com visão crítica e sensíveis para a construção de uma sociedade mais democrática e justa”, afirma. Na sua avaliação, é um equívoco pensar que o curso faz com que os alunos desperdicem dois anos, tendo em vista o déficit de aprendizado no ensino médio. “Seria um equívoco admitir os alunos na graduação sem essa formação complementar, pois dificilmente teriam condição de acompanhar o curso”, conclui. n
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organização
Inovações institucionais Estratégias regulam a carreira acadêmica e a pesquisa interdisciplinar
A
Unicamp adotou, com sucesso, experiências inovadoras de caráter institucional que se destacaram no ambiente das universidades brasileiras. Na década passada, por exemplo, foram criados dois programas de ação afirmativa que ampliaram significativamente o número de estudantes de graduação oriundos de escolas públicas sem que fosse preciso adotar um sistema de cotas – o ingresso continuou a depender do mérito dos aspirantes a uma vaga na graduação (ver reportagem na página 58). A criação de centros e núcleos interdisciplinares de pesquisa é outro exemplo de inovação institucional. O sistema foi concebido em 1982, com o objetivo de promover pesquisa que superasse as fronteiras entre as disciplinas. Na época já havia alguns núcleos funcionando – o primeiro deles foi o Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência, criado em 1977. “A ideia era que atuassem em áreas nas quais os departamentos não estivessem trabalhando e
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congregassem uma ou mais unidades em torno de temas transversais”, explica o coordenador-geral da Unicamp, Álvaro Crósta, professor do Instituto de Geociências. Hoje, há 21 centros e núcleos ativos. Eles promovem pesquisas em temas que vão dos estudos de gênero aos relacionados à exploração de petróleo, da pesquisa sobre teatro à informática aplicada à educação. “Eles surgiram para responder alguns desafios que inspiraram a concepção da Unicamp. Os discursos do reitor Zeferino Vaz registravam a preocupação em interligar as áreas do conhecimento na universidade e em promover um diálogo com a sociedade”, conta Jurandir Zullo Júnior, responsável pela Coordenadoria dos Centros e Núcleos Interdisciplinares de Pesquisa (Cocen) da Unicamp. Alguns centros e núcleos, em especial os de áreas tecnológicas, têm boa capacidade de captar recursos externos para financiar seus projetos de pesquisa. É o
caso, por exemplo, do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Estratégico (Nipe). Ou ainda do Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas (CPQBA), instalado em um distrito industrial de Paulínia, uma das duas unidades que operam fora da Unicamp – a outra é o Lume, de pesquisas teatrais, que funciona em uma casa no bairro de Barão Geraldo, perto do campus. “Já os centros e núcleos da área de humanidades têm menos capacidade de captar recursos de empresas, mas são aquinhoados com recursos de agências de fomento e algumas impactam consideravelmente o campo das políticas públicas”, afirma Zullo. Ele menciona exemplos como os núcleos de Estudos de População (Nepo) e de Políticas Públicas (Nepp) (ver reportagem na página 76), ou ainda do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam). A Unicamp investe 2% de seu orçamento na estrutura dos núcleos e centros, notadamente em salários de pesquisadores
fotos léo ramos
Instalações e estação meteorológica do Cepagri, um dos 21 centros e núcleos de pesquisa da Unicamp
e técnicos. Mas o caminho é de duas mãos: um percentual dos recursos que arrecadam é destinado a um fundo de apoio ao ensino, à pesquisa e extensão da universidade, o Faepex, e responde por mais de 30% do seu total. A cada cinco anos, os centros e núcleos passam por um processo de avaliação, que já levou à extinção e à fusão de alguns deles. O Núcleo de Estudos Constitucionais, criado em 1987 quando começaram os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, foi encerrado em 1995. Foram criados e depois extintos centros sobre temas como direito educacional, estudos psicológicos, melhoria do ensino de ciências, automação industrial, estudos estratégicos, entre outros. O de Política Científica e Tecnológica deixou de existir para se agregar a um departamento com o mesmo nome do Instituto de Geociências (ver reportagem na página 68). Também houve um caso de fusão, envolvendo o Centro de Documentação de Música Contemporâespecial unicamp 50 anos | 65
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Bancos de espécies do Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas, em Paulínia: melhoramento genético em busca de medicamentos fitoterápicos
nea e o Núcleo de Integração e Difusão Cultural, dando origem ao atual Centro de Integração, Documentação e Difusão Cultural (Ciddic), que também incorporou a Orquestra Sinfônica da Unicamp e a Escola Livre de Música. Cerca de 300 docentes da Unicamp têm vínculos com centros e núcleos interdisciplinares de pesquisa, mas o número oscila de acordo com os projetos de pesquisa vigentes. Para garantir seu funcionamento mesmo quando há poucos docentes trabalhando em projetos neles sediados, a Unicamp produziu uma outra inovação: criou uma carreira de pesquisador. O concurso exige como nível mínimo de formação o doutorado, e hoje são cerca de 90 pesquisadores contratados, dos quais apenas dois atuam em departamentos, e não em núcleos ou centros. “Os departamentos podem contratar pesquisadores, mas em geral optam por abrir concursos para docentes”, esclarece Crósta. Os pesquisadores ganham por volta de 85% do salário de um docente com formação equivalente. A carreira surgiu da necessidade de ordenar mais de 66 | especial unicamp 50 anos
16 funções distintas de técnicos que envolviam trabalho de pesquisa e reuniam químicos, biólogos, especialistas em informática, entre outros. No início dos anos 1990, elas foram reunidas na figura do técnico especializado de apoio à pesquisa cultural, científica e tecnológica. “Era estranho ter doutores trabalhando como pessoal de apoio, mas a carreira permitia o ingresso com nível de graduação e algumas áreas necessitavam criar os próprios quadros”, lembra Zullo. Apenas em 2005 é que a universidade instituiu oficialmente a carreira de pesquisador. “Não é uma carreira de passagem para a carreira docente, embora eventualmente alguns pesquisadores prestem concurso para professor e sejam aprovados. A maioria quer trabalhar exclusivamente com pesquisa.” Zullo é ele próprio um pesquisador de carreira. Ingressou em 1987 no Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura (Cepagri), que fornece a previsão do tempo na região de Campinas e promove pesquisas em temas como mudanças climáticas e zoneamento agrícola. O centro funciona dentro de
uma unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) instalada na Unicamp. Regime flexível
Na década de 1990, a universidade instituiu um formato de avaliação de desempenho dos docentes que pode resultar na perda do Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa (RDIDP), com a consequente redução de salário, para professores cuja avaliação indique que seu desempenho não alcançou o nível determinado pelos critérios estabelecidos. Na Unicamp, as vagas para docentes são sempre abertas em regime de tempo parcial. Os aprovados nos concursos, depois de apresentarem um plano de atividades, podem ser autorizados a ingressar no regime de tempo integral, o que não garante o direito de permanecer definitivamente nessa categoria. A cada três anos, o novo docente tem de apresentar um relatório de atividades, que é analisado primeiro pelo departamento e depois por uma câmara de avaliação composta por representantes de várias unidades.
Aula do curso de engenharia mecânica: licenciamento do regime de tempo integral permitiu que docentes abrissem ou administrassem empresas
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Caso o desempenho seja considerado insuficiente, o docente é chamado a se justificar e ganha um prazo para corrigir os problemas identificados, que podem estar relacionados a sua performance em ensino, pesquisa e/ou extensão. Se não corrigir, pode ter seu regime funcional alterado para tempo parcial. “Os casos de perda de RDIDP são raríssimos, porque o sistema de avaliação funciona muito bem para que sejam feitas as devidas correções antes de atingir esse ponto”, assegura Crósta. “Tudo é feito com o máximo cuidado e todos sabem o que esperar dessas regras. Atribuo a essa estratégia o fato de termos a maior produção científica por docente entre as universidades brasileiras.” A avaliação trienal vale apenas para os docentes contratados há poucos anos. “Depois, o espaçamento aumenta para quatro anos e os docentes mais experientes entregam relatórios a cada cinco anos.” Muito antes da Lei de Inovação, de 2004, que favoreceu a criação de empresas a partir do conhecimento produzido pelas universidades e a atuação empreendedora de pesquisadores, a Unicamp autorizava o licenciamento do regime RDIDP para que docentes pudessem abrir negócios ou administrá-los (ver reportagem na página 12). Em 1983, José Ellis Ripper Filho, então professor do Instituto de Física Gleb Wataghin, foi autorizado a trabalhar em regime de tempo parcial para assumir a área de desenvolvimento da Elebra, empresa que
produzia equipamentos de telecomunicações e periféricos de computadores. “Não era preciso explicar a razão para pedir a licença de tempo integral, mas não fiz segredo do que ia fazer e continuei cumprindo a minha carga didática.” Dois anos depois, Ripper aposentou-se na Unicamp e consolidou a carreira de empresário. A Elebra enfrentou uma crise após o Plano Cruzado e decidiu se desfazer do segmento de microeletrônica. Ripper, com o suporte de investidores, assumiu essa parte do negócio e fundou a AsGa, fabricante de equipamentos para transmissões via fibra óptica. investimento de risco
Outro exemplo é o de Paulo Arruda, professor do Instituto de Biologia da Unicamp, que entre 2003 e 2009 obteve licença para trabalhar em regime de tempo parcial e se tornou sócio-fundador das empresas Allelyx e Canavialis, spin-offs do Projeto Genoma-FAPESP (ver reportagem na página 10). Arruda foi um dos organizadores do programa. A Allelyx e a Canavialis, criadas graças a investimentos da Votorantim Novos Negócios, foram adquiridas pela Monsanto em 2008 e, após um período de transição, Arruda voltou a trabalhar em regime de tempo integral. Ele está convencido de que a universidade também saiu ganhando com essa experiência. “Há uma tendência de ver o pesquisador que cria uma empresa como alguém que quer ganhar dinheiro, mas o que nos propusemos a
fazer – duas empresas de biotecnologia avançada que envolviam genômica aplicada – foi um investimento de altíssimo risco e essa experiência foi enriquecedora para todos”, diz Arruda. “Hoje, eu coordeno projetos grandes na Unicamp, alguns de alto risco, que se beneficiam muito da experiência que tive. O empreendedorismo deveria ser um componente importante das atividades das universidades, seguindo, é claro, regras que garantam que a inovação seja uma meta e que a sociedade se beneficie com o desenvolvimento de novos produtos.” Outra inovação institucional da Unicamp foi criada em abril de 1985, quando uma deliberação do Conselho Universitário permitiu que candidatos em concursos de livre-docência apresentassem, em vez da tradicional tese escrita sem supervisão, o conjunto de sua produção científica para avaliação de uma banca. Desde então, centenas de professores utilizaram esse recurso. Um exemplo recente é o de Rodrigo Ramos Catharino, 39 anos, professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas. Em dezembro de 2015, tornou-se livre-docente depois de apresentar um documento descrevendo a trajetória de sua carreira, além da uma seleção comentada de alguns dos mais importantes trabalhos científicos. Os membros da banca avaliaram sua contribuição e sugeriram estratégias para que Catharino se habilitasse, em alguns anos, a concorrer a uma vaga de professor titular. “Eles apontaram lacunas, como a necessidade de reforçar colaborações com colegas de outros países, e me ajudaram a traçar um caminho novo para a minha carreira”, conta. Segundo o pesquisador, a avaliação do conjunto da produção também permite aproximar o livre-docente daquilo que a política universitária espera dele. Os conselhos da banca levaram-no, por exemplo, a assumir responsabilidades administrativas, uma experiência dentro da carreira acadêmica que ele evitara até então. “Não é trivial fazer um inventário da carreira e é preciso ter um conjunto da obra consistente para enfrentar um concurso”, diz. n F. M. especial unicamp 50 anos | 67
política Científica
Os canais que ligam a ciência e a sociedade DPCT se tornou um polo de reflexão e de formação de especialistas na área
A
partir dos anos 1980, a Unicamp ocupou um espaço na produção do conhecimento sobre desenvolvimento científico e tecnológico e na formação de recursos humanos dedicados a esta área no Brasil. O Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT), criado no Instituto de Geociências (IG), tornou-se um polo de estudos interdisciplinares sobre as relações entre ciência e sociedade e de reflexões sobre os obstáculos que limitam a capacidade de inovação do país e as estratégias possíveis para enfrentá-los. O cardápio de suas linhas de pesquisa é extenso. Nos primeiros tempos, o foco estava sobre temas como o impacto das mudanças tecnológicas no trabalho e no meio ambiente e a identificação de áreas do conhecimento promissoras nas quais o país deveria investir. Depois, outras vocações se desenvolveram, como a avaliação de instituições do sistema de ciência, além de estudos sobre ciência e
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gênero, interações entre pesquisadores e o setor privado, ou ainda as chamadas tecnologias sociais, que compreendem técnicas e soluções para problemas e demandas da sociedade. Docentes do DPCT também estão vinculados ao Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), iniciativa da Unicamp para produzir pesquisas e formar especialistas em jornalismo científico (ver reportagem à página 71). O lançamento dos programas de mestrado do DPCT, em 1988, e de doutorado, em 1995, multiplicou a capacidade de reflexão – até hoje, a pós-graduação gerou 223 dissertações e 123 teses. Segundo o economista André Tosi Furtado, professor do DPCT, o departamento contribuiu, ainda nos anos 1980, para estudos sobre a competitividade industrial encomendados pelo governo federal e foi pioneiro na produção de indicadores. Ele destaca, por exemplo, os estudos feitos em parceria com o Núcleo de Economia
Novo prédio do Instituto de Geociências da Unicamp: estudos interdisciplinares
léo ramos
Industrial e da Tecnologia (Neit), vinculado ao Instituto de Economia (IE), e o Centro de Estudos de Petróleo (Cepetro), para organizar a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) nos anos 1990, que regula as atividades do setor. “Para reduzir os impactos da desregulamentação do setor, sugerimos a criação de um fundo setorial para investimento em pesquisa e desenvolvimento no setor de petróleo. Esse fundo, que infelizmente foi extinto recentemente, inspirou o governo federal a criar outros fundos setoriais que se tornaram essenciais para o financiamento da atividade científica do país”, conta Furtado.
Em meados dos anos 1990, o DPCT foi convocado a produzir um estudo sobre a competitividade da Petrobras e mostrou que a capacidade de inovação da empresa estava atrelada a seu tamanho e coesão. “Havia um debate sobre o desmembramento da estatal, seguindo um modelo executado na Argentina e no Peru, mas mostramos que a força tecnológica da empresa era sua coesão. Essa ideia foi vitoriosa”, afirma. O conteúdo de artigos, dissertações e teses do DPCT, observa Furtado, frequentemente gera repercussão. Ele menciona, por exemplo, estudos sobre o programa espacial brasileiro segundo os quais o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) se
legitimou após o fim do governo militar, ao se dedicar a atividades com impacto na sociedade e na economia. “O Inpe criou uma política de desenvolvimento de equipamentos de satélites por meio de empresas que ajudou a desenvolver tecnologia nacional no setor aeroespacial no Brasil”, diz Furtado. Um campo que tradicionalmente mobiliza o DPCT é o dos estudos sociais da ciência e da tecnologia, área interdisciplinar com forte contribuição das ciências humanas que analisa a produção do conhecimento como uma construção social, inserida no processo histórico e afetada por fatores econômicos, políticos e culturais. “Somos herdeiros da socioloespecial unicamp 50 anos | 69
gia, mas hoje nosso campo reúne pesquisadores de muitas áreas, como matemáticos, antropólogos e economistas”, diz a cientista política Maria Conceição da Costa, professora titular do DPCT, que se dedica a pesquisas em estudos sociais da ciência desde o início dos anos 1980. Em agosto de 2014, Conceição coordenou um evento, sediado no DPCT, que atraiu pesquisadores e estudantes de 17 países. Financiada pela FAPESP, a Escola São Paulo de Ciência Avançada em Biotecnologia, Biossociabilidade e Governança em Ciências da Vida discutiu desafios e implicações de tecnologias que estão na fronteira do conhecimento, tais como a transgenia e a biologia sintética. Outra contribuição se deu no campo da avaliação com a criação em 1995 do Laboratório de Estudos sobre Organização da Pesquisa e da Inovação (Geopi), que desenvolveu estudos de prospecção tecnológica em setores como o elétrico e o de produção de etanol, além de indicadores e metodologias para avaliação de políticas, programas e instituições científicas. “A avaliação é um tema que permeia o trabalho de muitos colegas do DPCT”, diz o professor Sérgio Salles-Filho, fundador e coordenador do Geopi, que reúne 20 pesquisadores. “Nosso laboratório criou uma competência, que foi investigar e desenvolver metodologias de avaliação em várias dimensões do impacto de políticas e programas científicos e de inovação”. Em meados dos anos 1990, o grupo apresentou um projeto no primeiro edital do Programa de Pesquisa em Políticas Públicas da FAPESP, que resultou num 70 | especial unicamp 50 anos
software capaz de medir o impacto do investimento em projetos científicos, adotado por empresas como a Petrobras e a Sabesp. “Já havia experiência no país de medir o retorno do investimento em pesquisa em agricultura. Criamos o grupo para entender como esse tipo de avaliação era construído e testar novos métodos”. A FAPESP é um dos objetos de estudo do Geopi. O laboratório fez a avaliação do impacto de vários programas da Fundação. pensador do desenvolvimento
Uma figura central na trajetória do DPCT foi o geólogo argentino Amílcar Herrera (1920-1995), pensador do desenvolvimento latino-americano que trabalhava na Unidade de Pesquisa em Política Científica (Spru, na sigla em inglês) da Universidade de Sussex, no Reino Unido. Ele foi recrutado pelo reitor Zeferino Vaz em 1979 para montar um instituto para as geociências, de caráter multidisciplinar e dedicado a áreas pouco desenvolvidas no país, como economia mineral, geoquímica, educação em geociências e política científica e tecnológica. Herrera era conhecido como um dos criadores do Modelo de Bariloche, segundo o qual os problemas mais prementes do planeta não eram físicos, como a ameaça de esgotamento de recursos naturais, mas sociopolíticos, baseados na distribuição desigual de riqueza e poder em nível internacional e regional, cujos resultados incluiriam a degradação ambiental. A princípio, o grupo dedicado à política científica e tecnológica aglutinou-se em um núcleo de pesquisa em 1981, que
se converteu em departamento em 1985. “Ainda hoje tem gente que pergunta o que pesquisadores de política científica estão fazendo num Instituto de Geociências. Damos a mesma resposta que o professor Herrera dava: que um campo interdisciplinar como esse poderia surgir em vários departamentos e o Instituto de Geociências chegou primeiro”, diz a socióloga Leda Gitahy, pesquisadora do DPCT desde o início dos anos 1980. O caráter inovador do departamento e do curso transformou o DPCT num polo de formação de pesquisadores na área. “Nossos ex-alunos têm uma formação diferenciada e podemos dizer que deram origem a ‘spin-offs’ em outras universidades”, diz Furtado, referindo-se a grupos de pesquisa nas universidades federais do Paraná (UFPR) e de São Carlos (UFSCar), cujas lideranças fizeram parte de sua formação em Campinas. “Temos ex-alunos trabalhando em universidades, na gestão da inovação em empresas públicas e privadas e em órgãos de governo ligados à ciência e à tecnologia”, diz Leda. A rede tem inserção internacional. “Desde o início, graças a bolsas concedidas pela Universidade das Nações Unidas, tivemos estudantes de outros países, na maioria da América Latina”, afirma. Ao longo da trajetória do Departamento, discutiu-se a possibilidade de criar um curso de graduação em política científica e tecnológica. A ideia ainda não vingou, mas os pesquisadores do DPCT ministram várias disciplinas para as turmas de graduação em geologia e geografia do IG – e para outros cursos da Unicamp. A mais popular é a disciplina Ciência, Tecnologia e Sociedade, que atualmente tem oito turmas, atendendo alunos de pós-graduação do DPCT, de graduação da Unicamp e do Programa de Formação Interdisciplinar Superior (ProFIS), um curso para alunos formados em escolas públicas de ensino médio de Campinas (ver reportagem à página 58). “É só abrir a turma que ela logo está cheia”, diz Leda Gitahy. n F. M.
arquivo central / siarq
O geólogo argentino Amilcar Herrera, no início dos anos 1980
difusão
A comunicação da pesquisa
Simpósio realizado em comemoração aos 20 anos do laboratório em 2014
Labjor consolidou-se como um dos principais centros de jornalismo científico no país Bruno de Pierro
marcos rogério pereira
U
m dos principais centros de referência em divulgação e jornalismo científico no Brasil e na América Latina, o Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp começou a ser idealizado na Europa. Em 1992, o jornalista Alberto Dines trabalhava em Lisboa, Portugal, e escreveu para o então reitor da instituição, o linguista Carlos Vogt. Queria propor um projeto. “Disse ao Vogt que talvez pudéssemos fazer uma coisa precursora”, disse Dines à Pesquisa FAPESP em 2012. Vogt aproveitou uma viagem a Paris e passou um final de semana em Lisboa. Ali, estabeleceram algumas das bases do centro. “A iniciativa coincidiu com uma demanda da Unicamp, que nunca havia oferecido graduação em comunicação social e buscava criar um programa de pós-graduação na área”, explica Vogt, presidente da FAPESP entre 2002 e 2007. O Labjor foi fundado dois anos depois, em 1994, em seminário realizado em Campinas, que reuniu empresários e pesquisadores, entre eles José Marques de Melo, professor da Universidade Metodista de São Paulo. Em mais de 20 anos, o Labjor já formou cerca de 400 profissionais – dos
quais 110 foram bolsistas do programa Mídia Ciência da FAPESP. Além de oferecer um curso de especialização lato sensu em jornalismo científico, o laboratório foi pioneiro ao criar, em 2008, um programa de mestrado em divulgação científica e cultural que produziu 130 dissertações até agora. “O Labjor contribuiu para o amadurecimento da pesquisa em divulgação científica no país”, diz Vogt. Uma das preocupações do laboratório é oferecer uma noção ampla em várias disciplinas, tais como sociologia, filosofia e política científica. Parte da faceta multidisciplinar do Labjor se deve às parcerias estabelecidas com outras unidades da Unicamp, como o Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT), o Instituto de Geociências (IG) e o Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), que abriga o programa de mestrado. Pesquisadores dessas unidades atuam como docentes no Labjor. No início, o laboratório oferecia cursos de capacitação voltados para várias áreas do jornalismo. Essa primeira fase forneceu as bases para o lançamento, em 1996, do Observatório da Imprensa, um veículo on-line coordenado por Dines e dedicado à crítica da mídia. A decisão
de direcionar o Labjor para a divulgação científica ganhou força a partir de 1997. “Acreditava que o Labjor deveria buscar uma identidade acadêmica, que permitisse desenvolver um trabalho de pesquisa articulado com questões da ciência e da tecnologia”, explica Vogt. Em 1999, o Labjor lançou o curso de especialização em jornalismo científico, em parceria com o DPCT. A jornalista Simone Pallone de Figueiredo foi uma das alunas da primeira turma do curso e, em seguida, fez mestrado e doutorado no DPCT. Hoje ela é pesquisadora no Labjor e foi editora da revista ComCiência, publicada pelo laboratório em parceria com a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). “A ComCiência nasceu em 1999, para que alunos do curso de especialização pudessem praticar o jornalismo científico”, explica Simone, que hoje edita a revista Inovação – uma parceria entre o Labjor e a Agência de Inovação da Unicamp – e coordena o programa de rádio Oxigênio, junto com a Web Rádio Unicamp. “Essa produção está correlacionada com o ensino, porque é uma oportunidade para os alunos experimentarem novos formatos e linguagens”, diz Simone. n especial unicamp 50 anos | 71
Instituto de Economia da Unicamp: diagnóstico original e estudos sobre as particularidades do capitalismo brasileiro 72 |  especial unicamp 50 anos
economia
A Escola de Campinas Pesquisadores se dedicaram a interpretar o capitalismo brasileiro
léo ramos
O
Instituto de Economia (IE) é conhecido pela produção de um pensamento crítico da teoria econômica ortodoxa, que teve como ponto de partida as reflexões sobre o desenvolvimento latino-americano feitas nos anos 1950 e 1960 pela Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal) e se debruçou sobre particularidades do capitalismo brasileiro, ao propor um diagnóstico e um receituário diferentes dos que prevalecem nos países centrais. Recorrendo a um conjunto de autores clássicos como John Maynard Keynes, Karl Marx ou Joseph Schumpeter, os economistas da Unicamp formaram o que se convencionou chamar de Escola de Campinas, que, em seus primórdios, ajudou a compreender, por exemplo, as origens da industrialização brasileira ou a formação do mercado de trabalho no país. Mais tarde, seus pesquisadores ampliaram a diversidade de temas e se aprofundaram em linhas de pesquisa como inovação tecnológica, economia agrícola e desenvolvimento regional e urbano. Os economistas da Unicamp sempre tiveram a ambição de influenciar o debate econômico do país e pode-se di-
zer que tiveram sucesso. O conjunto de professores do IE, hoje na casa dos 65 docentes, tem sido flutuante, pois é comum que quadros sejam cedidos para postos em governos nas esferas municipal, estadual e federal. Fundadores como João Manuel Cardoso de Mello e Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo ajudaram a formular o Plano Cruzado, programa de controle da inflação que estabeleceu o congelamento de preços e uma reforma monetária, levado a cabo no governo de José Sarney, em 1986. Já o economista Paulo Renato Souza foi ministro da Educação durante os oito anos do governo de Fernando Henrique Cardoso, e Luciano Coutinho, secretário-executivo do primeiro Ministério da Ciência e Tecnologia (no governo Sarney) e presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) por nove anos, nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT). As eleições presidenciais de 2010 foram disputadas, no segundo turno, por dois economistas ligados, ainda que por curtos períodos, ao IE: José Serra, candidato do PSDB, que foi professor do instituto, e Dilma Rousseff, do PT, ex-aluna de mestrado e doutorado.
O economista Otaviano Canuto, que fez o doutorado e foi professor do IE entre 1990 e 2003 e atualmente é diretor do Banco Mundial, avalia que a habilidade dos pesquisadores da Unicamp de situar o pensamento econômico no tempo e no lugar históricos criou um ambiente intelectual vigoroso, atraindo profissionais com orientações diversas. “O IE tem economistas que, assim como eu, reconhecem a atualidade da teoria econômica convencional”, afirma. Segundo Canuto, a análise dos economistas de Campinas foi fundamental na época da ditadura por criticar o modo simplista como a teoria econômica era aplicada no Brasil. “Hoje, o pensamento econômico evoluiu e não creio que ainda caiba o esforço em distinguir entre ‘nós e eles’. Mas o espírito crítico do instituto segue como um requisito importante para o avanço no conhecimento.” A Escola de Campinas teve início em 1968, com a criação do Departamento de Economia e Planejamento Econômico (Depe). Em plena ditadura militar, o reitor Zeferino Vaz fez uma escolha ousada: criou um departamento bastante crítico às políticas econômicas vigentes e ao próprio modelo econômico. Na concepção de Zeferino, a universidade tinha a prerrogativa de trilhar caminhos diferentes, sem obrigação de seguir o mainstream. A aposta foi bem-sucedida: ao longo de sua trajetória, a Escola de Campinas construiu contribuições importantes para pensar a economia brasileira e propor caminhos para o desenvolvimento do país. O Depe ofereceu cursos até dar início à graduação em economia, em 1970, e integrava a estrutura do Departamento de Planejamento Econômico e Social, embrião do atual Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), do qual se desmembrou, em 1984, formando o IE. Em comum, os fundadores haviam participado de um curso intensivo de quatro meses sobre planejamento e desenvolvimento econômico organizado em São Paulo, em 1965, pela Cepal. Entre os professores estavam os economistas Wilson Cano, Ferdinando Figueiredo e Lucas Gamboa. E, no rol dos alunos, Cardoso de Mello, Belluzzo, Carlos Eduardo do Nascimento Gonçalves e Osmar Marchese. especial unicamp 50 anos | 73
Uma figura-chave foi o filósofo Fausto Castilho, incumbido pelo reitor Zeferino Vaz de criar a área de humanidades na Unicamp. “Zeferino queria um instituto de ciências humanas que integrasse as ciências sociais, a filosofia e a economia, mas não tinha ideias específicas sobre o que fazer e delegou a tarefa a Castilho”, conta Belluzzo. Castilho participara do curso da Cepal e decidiu chamar o grupo para criar o Depe. Em 1969, Cardoso de Mello e Belluzzo obtiveram autorização da Unicamp para trabalhar como assessores da Secretaria de Planejamento do Estado de São Paulo, comandada pelo empresário Dilson Funaro. “Com a nossa ajuda, o Dilson aproximou o Zeferino Vaz do governador Abreu Sodré, que deu impulso na construção do campus da Unicamp e na contratação de professores”, lembra Belluzzo. Um marco na Escola de Campinas foi a criação do mestrado em 1974 – o doutorado viria três anos depois –, reforçado pela chegada de economistas retornados do Chile, tangidos pelo golpe militar que derrubou o presidente Salvador Allende, como Carlos Alonso, Liana Aureliano e José Carlos Braga. Maria da Conceição Tavares, Antônio Barros de Castro e Carlos Lessa também voltaram do Chile, onde haviam trabalhado na Cepal. Luciano Coutinho voltou de um doutorado na Universidade Cornell, nos Estados Unidos. “O mestrado e o doutorado eram cursos inovadores, que abrangiam os fundamentos quantitativos da ciência econômica e buscavam
resgatar grandes clássicos da economia política”, diz Coutinho, um dos organizadores da pós-graduação em economia nos anos 1970. Para Mariano Laplane, ex-diretor do IE e atual presidente do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), a proposta dos cursos de graduação e pós-graduação da Unicamp atraiu jovens estudantes e pesquisadores em economia. “Logo se espalhou que havia em Campinas abordagens e leituras novas do que estava acontecendo no país e no mundo”, conta o pesquisador, nascido na Argentina, que ouviu falar da Unicamp pela primeira vez em 1982, quando cursava o mestrado na Universidade da Califórnia, Estados Unidos. Decidiu fazer os créditos do curso de doutorado em Campinas e acabou se radicando no Brasil. Nos primeiros tempos, a produção dos economistas da Unicamp buscava compreender as origens do capitalismo brasileiro, com obras como os clássicos O capitalismo tardio, tese de doutorado de Cardoso de Mello, e Raízes da concentração industrial em São Paulo, de Wilson Cano, ambas publicadas em 1975. “Queríamos entender o capitalismo no Brasil, último país independente a extinguir a escravidão, e discutir instituições para promover desenvolvimento socioeconômico com relativa autonomia tecnológica e financeira”, diz Fernando Nogueira da Costa, professor do IE, que chegou a Campinas em 1975 como aluno de mestrado. Sua dissertação, orientada por Wilson Cano e defendida em 1978,
é um exemplo do esforço nessa direção: explicou por que o estado de Minas Gerais tinha sido sede das maiores instituições bancárias privadas do Brasil. Nos anos 1970, teve início o ativo engajamento político de um grupo de economistas da Unicamp, que passou a assessorar o presidente do partido de oposição à ditadura, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), liderado por Ulysses Guimarães. O grupo não era homogêneo, mas se reuniu em torno de um objetivo compartilhado. “Em comum, queríamos superar a ditadura e apresentar propostas para sair dela”, recorda-se Belluzzo, que participava das reuniões com Ulysses ao lado de Coutinho e Cardoso de Mello. SEPARAÇÃO
Nos anos 1980, a economia desmembrou-se do IFCH. Não foi uma separação amigável. Professores como Sergio Silva e Jorge Miglioli permaneceram no IFCH. “Havia uma crise e concluímos que a separação seria uma saída melhor para a institucionalização do curso”, diz Belluzzo, que, contudo, lamenta o abandono da ideia de manter juntos os cursos de humanidades. “Foi uma pena, embora o IE mantenha um diálogo com outros campos do conhecimento bem maior do que outras escolas de economia.” Nessa fase, o número de professores passou de cerca de 40 para uma centena – boa parte dos novos docentes havia sido formada no instituto, que hoje tem dois programas de pós-graduação, em economia e em desenvolvimento econômico. O IE se manteve como referência em economia heterodoxa – denominador comum em torno do qual orbitam diferentes correntes, como a estruturalista, mais alinhada à tradição da Cepal, a marxista, a pós-keynesiana ou a neo-schumpeteriana. “Se não tivéssemos nos desmembrado do IFCH, talvez a identidade heterodoxa fosse menos expressiva. Em outras unidades da Unicamp existe uma multiplicidade de abordagens maior do que aqui”, diz André Biancarelli, atual vice-diretor do instituto. “Hoje, não há
Dilson Funaro (discursando), secretário da Fazenda no final dos anos 1960, atraiu economistas e aproximou o reitor Zeferino Vaz e o governador Abreu Sodré 74 | especial unicamp 50 anos
fotos arquivo central / siarq
Escola Bento Quirino, em Campinas, que abrigou os pesquisadores do Departamento de Economia e Planejamento Econômico quando a universidade foi criada, no final dos anos 1960
um pensamento propriamente uniforme, mas se mantém viva uma tradição crítica, que parte da ideia de que nem sempre as políticas adotadas por economias centrais são adequadas para o Brasil.” No início dos anos 1990, a saída de Mario Possas, diretor do IE entre 1989 e 1993, resultou de uma dessas discordâncias. Mestre e doutor pela Unicamp, ele se transferiu para a Universidade Federal do Rio de Janeiro queixando-se do que considerava endogenia no instituto. “Terminei meu mandato de diretor com dificuldade, porque havia resistência a iniciativas como a criação de mecanismos de cobrança da produção científica dos pesquisadores ou a contratação de pesquisadores com formações diversas”, lembra Possas, que vê nessa crise um reflexo do insucesso do Plano Cruzado. “O instituto fechou-se em uma postura defensiva política e ideológica. Isso é ruim porque, na ciência, é preciso publicar resultados e se expor ao questionamento alheio o tempo todo”, diz o pesquisador, especialista em teoria econômica, cuja análise combina abordagens pós-keynesiana e neo-schumpeteriana. Entre os professores que deram continuidade a essa agenda de pesquisa em teoria econômica estão David Dequech e Antonio Carlos Macedo e Silva. A consolidação do IE foi marcada pela diversificação de temas de pesqui-
sa, a exemplo dos estudos do Núcleo de Economia Agrícola e Ambiental (Nea), do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit) ou das pesquisas do Núcleo de Economia Industrial e da Tecnologia (Neit). “Foi a evolução natural do projeto do instituto, com o aprofundamento em temas que buscavam compreender o mundo real”, afirma Luciano Coutinho, que nos anos 1980 ajudou a criar o Neit, que se notabilizou por estudos como o da competitividade da indústria brasileira. “Esse amadurecimento demonstra que o instituto não era um centro onde existiam mantras e ausência de contraditório ou de debate. Havia uma constante busca de ideias, liberdade de pensar e muita criatividade, tanto no plano da pesquisa como da teoria”, diz. Coutinho também ressalta a contribuição do Centro de Estudos de Relações Econômicas Internacionais (Ceri). “O centro sempre esteve conectado a grandes pensadores de linha heterodoxa e recebeu vários deles na Unicamp, como Joan Robinson, Hyman Minsky, Jan Kregel e Christopher Freeman”, diz o professor, referindo-se a notáveis economistas pós-keynesianos e neo-schumpeterianos. Outro exemplo é o Nea, referência em pesquisas aplicadas em temas como segurança alimentar, governança da terra, entre outras. “Usamos bastante a
estatística e a matemática para fortalecer as nossas análises, mas, em comum com as origens do instituto, avançamos por caminhos críticos à economia ortodoxa”, informa José Maria da Silveira, coordenador do núcleo e professor do instituto, que trabalha com temas como biotecnologia e propriedade intelectual. O Nea reuniu um time de pesquisadores com competências complementares, como Rodolfo Hoffmann, cujo trabalho é conhecido pelo rigor estatístico com que aborda a questão da desigualdade de renda, Antonio Marcio Buainain, que estuda pobreza rural e economia agrícola, ou José Graziano da Silva, atual diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). “Estamos conseguindo atrair jovens pesquisadores para atualizar nossas linhas de pesquisa à medida que a primeira geração de pesquisadores do núcleo se aposenta”, diz Silveira. Na avaliação de Mariano Laplane, não há como negar que, sem a Unicamp, o espaço para a pesquisa em economia heterodoxa no Brasil seria muito menor. André Biancarelli observa que o IE hoje reparte o protagonismo acadêmico no campo heterodoxo da economia com outros centros, mas segue como a referência principal. “Formamos doutores que hoje trabalham em universidades do país inteiro”, explica. n F. M. especial unicamp 50 anos | 75
demografia
Reflexões sobre a População Núcleos de estudos oferecem alternativas para grupos sociais e órgãos de governo
Márcio Ferrari
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raças à interdisciplinaridade que caracteriza o projeto da Unicamp desde o início, foi possível criar centros e núcleos de pesquisas em áreas que se encontravam em estágio pouco desenvolvido nas universidades brasileiras. Foi o caso da demografia e do estudo de políticas públicas. Fundados em 1982, durante a gestão do reitor José Aristodemo Pinotti (19821986), o Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó” (Nepo) e o Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (Nepp) produzem conhecimento com atividades regulares de coleta e interpretação de dados, compartilhamento de técnicas e constituem instâncias de reflexão permanente. As finalidades principais dos dois núcleos são contribuir para a ciência e dar subsídio à atuação dos órgãos públicos e movimentos sociais. Nenhum dos dois começou totalmente do zero. No caso do Nepp, pesquisadores de várias áreas das ciências humanas, como sociólogos, economistas, cientistas políticos e educadores, já se organizavam em encontros sobre assuntos específicos na área de ações do aparelho estatal. O Nepo se inspirou numa experiência
léo ramos
O estudo de grupos popuplacionais é um ponto forte da instituição, com o Nepo e o Departamento de Demografia
anterior organizada pela matemática e demógrafa Elza Berquó na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), onde dirigia o Departamento de Bioestatística. Por sua iniciativa, foi gestado ali, em 1966, o Centro de Estudos de Dinâmica Populacional (Cedip). Para a constituição do Cedip, Elza contou com a assessoria da Organização Pan-americana de Saúde (Opas), que enviou ao Brasil a demógrafa norte-americana Irene Tauber, da Universidade de Princeton (Estados Unidos), para orientar um grupo de quatro fundadores de diferentes formações a construir um polo de estudos de demografia. Integrava esse grupo uma das principais pesquisadoras da história do Nepo, a socióloga Neide Patarra, especialista em migrações. Com a edição do Ato Institucional número 5 (AI-5), em 1968, Elza foi aposentada compulsoriamente pelo governo militar – o centro de estudos foi “ferido em seu voo pioneiro”, na frase que a pesquisadora costuma usar. No ano seguinte, um grupo de professores aposentados compulsoriamente, entre eles o sociólogo e futuro presidente da Re-
pública Fernando Henrique Cardoso, criou o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) em São Paulo, do qual Elza passou a ser pesquisadora. Lá, ela deu continuidade aos estudos de demografia com apoio de instituições internacionais como a Fundação Ford e os Institutos Nacionais de Saúde (NIH), ambos norte-americanos. conhecimento em construção
Anos depois Elza Berquó foi convidada por Pinotti a organizar o Nepo e recebeu carta branca para compor seus quadros. “Pinotti percebeu que em uma universidade nova a demografia era fundamental, ainda mais porque se tratava de um conhecimento ainda em construção no país”, lembra. “Eu disse a ele que não queria ser nomeada professora da Unicamp nem me ligar a nenhum órgão burocrático. Minha intenção era criar um núcleo e ficar exclusivamente associada a ele.” Além de fundadora do Nepo, Elza foi sua primeira coordenadora, entre 1982 e 1994. À época, quase não havia centros de pesquisa e ensino na área de demografia, além da Escola Nacional de Estatística do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e, no âmbito de pós-graduação, no Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar), ligado à Universidade Federal de Minas Gerais – duas instituições com as quais o Nepo mantém diálogo e intercâmbio até hoje. Integrantes do núcleo fazem parte, desde sua fundação, das comissões de planejamento dos censos populacionais do IBGE. No plano internacional, a grande referência e o principal interlocutor é o Centro Latino-americano e Caribenho de Demografia (Celade), divisão de população da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal). O Nepo foi formado quase exclusivamente por pesquisadores de outras instituições. Um nome da própria Unicamp convidado por Elza foi o do geógrafo norte-americano Daniel Hogan (19422010), que, antes de vir para o Brasil, havia estudado a demografia da cidade de São Paulo em seu doutorado na Universidade Cornell. Como pioneiro dos estudos das relações entre ambiente e demografia, foi encarregado de criar essa área de pesquisas no Nepo, hoje uma das mais ativas. Hogan viria a ser coordenador do especial unicamp 50 anos | 77
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núcleo entre 1998 e 2002 e depois pró-reitor de Pós-graduação da Unicamp. A vontade de que houvesse formação mais constante de “prata da casa” levaria Elza a sugerir a criação de um Departamento de Demografia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), que começou a funcionar em 1993. Espaço compartilhado
O Nepo e o Nepp começaram dividindo a mesma casa em Barão Geraldo, distrito de Campinas que sedia o campus principal da universidade. Foi nesse espaço que Elza criou um grupo de estatística médica cujos trabalhos tiveram repercussão internacional. A ênfase em saú78 | especial unicamp 50 anos
de, que permanece sobretudo na linha de pesquisas de reprodução e saúde da mulher, deve-se, de acordo com a pesquisadora, em parte ao fenômeno da “grande revolução estatística da segunda metade do século XX”: a queda da taxa de fertilidade seguida da redução da mortalidade infantil, com forte impacto nas configurações familiares e sociais. Embora tenha sido um fenômeno iniciado nos anos 1960 e Elza já estivesse atenta a ele desde o período na FSP-USP e depois no Cebrap, só pôde ser estudado plenamente com os resultados do Censo de 1960, cujos resultados saíram apenas em 1978 em razão das tensões no interior do regime militar.
Elza e a atual coordenadora do Nepo (desde 2015), a antropóloga Marta Azevedo, são enfáticas em afirmar que o “rigor científico e o conhecimento humanizado” do núcleo não podem conviver com partidarismos políticos, o que não impede a tomada de posição firme em algumas questões polêmicas. O núcleo é contrário a políticas de planejamento familiar – pelo princípio de que os direitos sexuais e reprodutivos fazem parte dos direitos humanos – e favorável à inclusão do quesito cor, com autodeclaração, nos questionários dos censos. O então chamado planejamento familiar foi objeto de discussões acaloradas no país até que a constatação da queda natural de fecundidade enfraquecesse os argumentos pelo controle da natalidade. Já a questão da cor foi suprimida no Censo de 1970 por ser considerada racista, mas retomada nos demais. A inclusão da categoria indígena nos questionários dos censos demográficos, a partir de 1991, colaborou, quatro anos depois, para a iniciativa de uma das grandes pesquisas do Nepo, a contagem em campo da população indígena da região do Alto Rio Negro, na Amazônia. Estimativas anteriores variavam entre 3 mil (dado do governo do Amazonas) e 30 mil (do Conselho Indigenista Missionário – Cimi). A nova contagem, conduzida pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, com assessoria de Marta Azevedo, resultou em 25 mil pessoas em 400 aldeias. O Nepo também abriu um grande espaço para as pesquisas sobre a população negra. Nessa área, duas conclusões importantes foram resultado de pesquisas do Nepo: a existência de características de saúde próprias dos negros e a desigualdade dos determinantes de saúde entre negros e brancos no interior das mesmas classes sociais. O núcleo tem hoje um setor de tecnologia da informação que permite um
fotos 1 léo ramos 2 Paulo Whitaker / Folhapress
Setor de tecnologia da informação do Núcleo de Estudos de População: capacidade de lidar com grande número de dados
pesquisas do nepo influíram diretamente nas formulações dos censos
trabalho minucioso de processamento de grandes volumes de dados. Seus coordenadores têm por hábito encaminhar as conclusões e sugestões de políticas públicas em encontros científicos e instâncias de debates organizados por órgãos públicos. “Além disso, uma tradição do núcleo é conhecer os dados de população para informar e interpretar informações para a imprensa e, assim, fazer com que cheguem à população em geral”, conta Marta. O fenômeno das migrações é, desde 2009, objeto de um projeto temático no Nepo, com apoio da FAPESP, o “Observatório das Migrações em São Paulo”, cuja pesquisadora responsável é Rosana Baeninger, professora do Departamento de Demografia do IFCH. Segundo ela, o observatório possibilita “desenhar o mosaico das migrações em São Paulo no século XXI”, com pesquisas sobre temas como os deslocamentos temporários de nordestinos para trabalhar na lavoura e as migrações de latino-americanos, haitianos, refugiados e profissionais qualificados. O projeto reuniu outras 11 ins tituições, sete delas do Nordeste.
A fundadora do núcleo, Elza Berquó, em foto de 1984: pioneirismo nos estudos demográfiicos
AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS
Diferentemente do que ocorre no Nepo, e na maioria dos institutos e faculdades da Unicamp, as pesquisas do Nepp, segundo a médica Carmen Lavras, coordenadora do núcleo desde 2011, originam-se na maior parte de demandas diretas da sociedade. “Trabalhamos como um organismo de articulação da universidade com a sociedade”, afirma. “Isso se traduz em apoio técnico, cursos de extensão e atividades de treinamento, entre outros.” As demandas vêm de todas as esferas públicas, sobretudo de secretarias municipais, mediante convênios pagos. Uma das quatro grandes áreas de atuação do núcleo é a avaliação de políticas públicas.
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As outras três são as pesquisas de serviços de saúde; as da área de educação; e os estudos de enfrentamento da pobreza, assistência social, trabalho e renda. A atividade de avaliação nessa área é uma especialidade rara no Brasil, e para exercê-la o Nepp criou metodologias e formou pesquisadores e professores, muitos dos quais hoje ocupam cargos de docência em institutos e faculdades da Unicamp. Como exemplo dos setores avaliados pelo núcleo, Carmen cita a formação de professores de cidades da região de Campinas. “A prática de avaliações ganha importância conforme avança a tendência de regionalização das políticas sociais”, conta. Em outro exemplo, Carmem ressalta a importância do Nepp em coordenar a oferta de serviços nas redes do Sistema Único de Saúde (SUS). “A falta de comunicação entre os órgãos e profissionais cria situações frequentemente caóticas.” Fundado por um grupo ligado às ciências humanas – entre eles o sociólogo Geraldo Di Giovanni, as cientistas políticas Sonia Draibe e Maria Hermínia Tavares de Almeida e o economista Paulo Renato Souza (1945-2011), que viria a ser reitor da Unicamp (1986-1990) –, em pouco tempo o Nepp agregou pesquisadores da área da saúde, a mais ativa do núcleo. Seu conselho superior é formado por representantes da Faculdade de Ciências Médicas (FCM), dos institutos de Economia (IE) e IFCH e das faculdades de Educação (FE) e Ciências Aplicadas (FCA, com sede em Limeira). O Nepp é composto por pesquisadores contratados e pesquisadores associados. Estes se agregam ao Nepp como bolsistas se tiverem seus projetos aprovados. Convivem no núcleo profissionais de várias áreas e em diferentes estágios de formação na universidade. “A interdisciplinaridade é uma construção cotidiana”, conclui Carmen. n especial unicamp 50 anos | 79
documentação
Um tesouro da história social Arquivo Edgard Leuenroth se originou de documentos reunidos pelo militante anarquista
paulista de Mogi Mirim Edgard Leuenroth (1881-1968) foi jornalista, tipógrafo, militante anarquista, líder da primeira greve geral brasileira, em 1917, e organizador de um vasto arquivo sobre as atividades dos movimentos sociais durante o período de formação do proletariado no Brasil. O acervo reunido por Leuenroth foi transferido em 1974 para o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp depois de percorrer um caminho que começa logo após a morte de seu organizador, com o depósito dos documentos num galpão do bairro paulistano do Brás, que “vivia sob ameaça de bombas e incêndio”, segundo o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro. Com o historiador Michael Hall, ele foi um dos primeiros intelectuais a conhecer o depósito. Pinheiro fez contato com o filho de Leuenroth, Germinal, com o intuito de levar a documentação para um lugar seguro. Ele sabia que o criador do IFCH, Fausto Castilho, tinha o desejo de formar um arquivo de documentação social. Os herdeiros de Leuenroth, contudo, viam os visitantes com desconfiança, 80 | especial unicamp 50 anos
rompida pela intervenção do sociólogo Azis Simão (1912-1990), amigo e companheiro de ativismo do líder anarquista. Para proceder à transferência do arquivo para a Unicamp, Simão pediu a ajuda do crítico literário Antonio Candido, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), que havia participado da criação do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), e este conseguiu que o reitor Zeferino Vaz encampasse a ideia. O projeto de aquisição do acervo foi apresentado à FAPESP. “Hoje o AEL [Arquivo Edgard Leuenroth] tem o maior acervo da América Latina dedicado à história social e é referência para o mundo todo”, relata Álvaro Bianchi, seu diretor e professor do Departamento de Ciência Política do IFCH. Desde a chegada à Unicamp, o acervo cresceu muito, com o acréscimo, por exemplo, da documentação do projeto Brasil Nunca Mais, que reúne documentos de mais de 700 presos políticos do regime militar, além dos acervos do Partido Comunista Brasileiro e do Teatro Oficina.
Bianchi destaca um crescimento significativo nos últimos dois anos, com a incorporação de 11 conjuntos documentais, entre eles os do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André e Mauá e do Centro de Pesquisa e Documentação Vergueiro. No período também foi intensificado o trabalho de digitalização de todo o volumoso acervo do AEL, processo que ganhou impulso em 2011, com um auxílio da FAPESP. A presença do AEL na Unicamp influenciou linhas de pesquisa da pós-graduação dos departamentos do IFCH em que há forte presença da história social e da cultura”, conta Bianchi. “O arquivo proporciona a atenção a assuntos que normalmente não estão na agenda de outras instituições e enfatiza, no IFCH, uma abordagem crítico-histórica de seus objetos de investigação.” Segundo o diretor, mais de 500 teses e dissertações já foram produzidas com base nos documentos do AEL. Bianchi lembra que o arquivo mantém vinculação com todos os departamentos do instituto e que já teve diretores vindos da história, da sociologia e da antropologia. n M. F.
Reprodução
O
Protesto de estudantes durante o regime militar em foto do acervo do AEL
antropologia
Temas tradicionais, como a violência,
MáRCIO FERNANDES / AGêNCIA ESTADO / AE
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trajetória do Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu da Unicamp ficou marcada por pesquisas que questionam a visão polarizada do mundo, a sua compreensão binária por categorias como mulher/homem, negro/ branco, homossexual/heterossexual, velho/jovem ou rural/urbano. Segundo a antropóloga Regina Facchini, pesquisadora do núcleo, a partir dos anos 1980 os estudos em ciências humanas passaram a articular gênero a outras categorias de diferença – como classe, raça, geração, nacionalidade e religião –, abrindo novas abordagens às reflexões sobre temas tradicionais, entre eles a violência. O núcleo foi institucionalizado em 1993, a partir do trabalho de um grupo de estudos de professores e alunos de pós-graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH). Uma das motivações foi a participação, em 1988, da pesquisadora Adriana Piscitelli em um curso da antropóloga e militante feminista Kate Young na Inglaterra. O cadernos pagu, revista quadrimensal, foi criado no mesmo ano, divulgando reflexões sobre pesquisas acadêmicas em diálogo com as teorias de gênero e feministas. Uma das mentoras da criação do núcleo foi a antropóloga Mariza Corrêa, autora do livro clássico Morte em família – Representações jurídicas dos papéis sexuais, que inspirou muitas pesquisas sobre violência contra as mulheres. A historiadora Iara Beleli, coordenadora do Núcleo Pagu, explica que o nascimento do núcleo foi pautado por leituras de teóricas feministas que davam centralidade à categoria “gênero”. Segundo ela, hoje despontam outros interesses, como a análise dos novos feminismos que orientam as “marchas das vadias” – protestos contra a ideia de que vítimas de estupro provocaram a violência em razão de comportamento ou vestimenta “inadequados” – e outras ações mobilizadas pela internet. O nome Pagu foi sugerido por Elisabeth Souza-Lobo, então professora do curso de ciências sociais na Universidade
ganharam novos tratamentos no Pagu, criado sob o impacto dos estudos feministas Christina Queiroz
Gênero e diferença
Manifestantes da primeira marcha das vadias em São Paulo, em junho de 2011
de São Paulo (USP) que participava do grupo de estudos que originou o núcleo. Pagu era o apelido de Patrícia Rehder Galvão (1910-1962), escritora e jornalista que defendia a participação ativa das mulheres na sociedade. O Núcleo Pagu está institucionalmente ligado à reitoria da Unicamp, mas mantém estreita ligação com o IFCH . A contribuição dos professores do Departamento de Antropologia tem sido central no debate de ideias e na realização de projetos. Primeiro antropólogo contratado pela Unicamp, Antonio Augusto Arantes, hoje professor aposentado, conta que,
no final dos anos 1960, conheceu os antropólogos Peter Fry e Verena Stolcke – que orientou o mestrado de Mariza Corrêa – durante uma viagem de estudos na Inglaterra. Com eles, fundou o departamento, em 1970. Embora formados pelas teorias centrais da antropologia britânica, os autores incluíram em seus repertórios o pensamento estruturalista de Claude Lévi-Strauss e o trabalho de historiadores como Eric Hobsbawm e Edward Palmer Thompson. O Núcleo Pagu mantém ainda diálogos frequentes com docentes dos departamentos de Sociologia e Ciência Política do IFCH, entre outras unidades. n especial unicamp 50 anos | 81
linguística e teoria literária
Uma ponte entre as ciências Interdisciplinaridade caracteriza o Instituto de Estudos da Linguagem Diego Viana
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orjado no período áureo do estruturalismo, quando pensadores como o linguista Ferdinand de Saussure e o antropólogo Claude Lévi-Strauss influenciavam todas as ciências humanas, o Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) nasceu com o propósito ambicioso de firmar pontes entre as humanidades e as exatas. Na concepção do filósofo Fausto Castilho (1929-2015), que integrou a comissão de planejamento da implantação do campus da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) no final dos anos 1960, o IEL não deveria ser uma faculdade de letras, no formato tradicional, mas a primeira faculdade de linguística do Brasil. “O projeto era não só novo, mas muito inovador, num contexto cultural em que qualquer faculdade de letras se inspirava automaticamente na USP [Universidade de São Paulo]”, afirma o linguista Rodolfo Ilari, professor emérito do IEL, um dos fundadores e ex-diretor do instituto (1991-1995). Flávio Ribeiro de Oliveira, atual diretor do instituto e professor de grego antigo, conta que Castilho fez “questão absoluta de que o instituto não se chamasse Faculdade de Letras da Unicamp”. Mesmo com a ausência do filósofo, que ficou afastado da Unicamp entre 1972 e 1986, a recomendação pesou quando o IEL foi fundado, em 1977. Da decisão decorreram características que fazem do IEL uma escola com perfil único no país. “As mais importantes são a ênfase na pesquisa, desde a graduação, e a interdisciplinaridade, que é nossa vocação”, afirma o diretor. Segundo membros veteranos do instituto, sua fundação se deu em um momento em que a linguística era vista como uma ciência que tinha relações com a área de exatas. O IEL foi gestado no final da década de 1960 na unidade que hoje é sua vizinha no campus, o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), então cha-
léo ramos
mado Departamento de Planejamento Econômico e Social (Depes). Em 1969, já funcionavam separadamente os departamentos de Economia e Planejamento Econômico (em substituição ao Depes), Linguística e Ciências Sociais. O decreto estadual que criou o IEL é de 21 de março de 1977, mas dois de seus departamentos o precederam: o de Linguística (1968) e o de Teoria Literária (1975). Quatro estudantes de letras da USP, ligados ao professor Antonio Candido de Mello e Souza, da mesma universidade, cujas contratações foram pedidas por Castilho a Zeferino Vaz, são considerados os fundadores do IEL: Carlos Vogt (reitor da Unicamp entre 1990 e 1994), Haquira Osakabe, Rodolfo Ilari e Carlos Franchi. Todos foram enviados para fazer mestrado em linguística em Besançon, na França, entre 1969 e 1971. O objetivo era que, na volta, estabelecessem o instituto de linguística concebido por Castilho, primeiro como parte do IFCH, mais tarde como entidade separada. Vogt, de perfil conciliador, era escalado para conversar com Zeferino de modo a tentar convencê-lo que deveria criar um modelo diferente dos tradicionais institutos de letras. “Em uma dessas conversas, ele me disse ‘Se você trouxer o Candido, nós fazemos’”, conta. “Fui ao Antonio Candido e disse que se aceitasse ir para a Unicamp seria a nossa chance de fazer um instituto realmente novo, do jeito que ele queria.” O pesquisador da USP topou e foi o primeiro diretor do IEL, até 1981, quando voltou a dedicar-se exclusivamente à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Como Candido dividia as atenções entre Unicamp e USP, era Carlos Franchi quem despachava, no cargo de diretor-associado. Professor do IEL desde a criação formal do instituto, Alcir Pécora enfatiza o engajamento do corpo docente no período. “O compromisso pessoal era imenso”, conta o pesquisador, que foi monitor de
Haquira Osakabe, já em 1975, no IFCH. “A correção das provas tinha a participação de todos os professores, porque todos interagiam, conheciam os alunos.” Segundo Oliveira, esse foi “o período heroico do IEL, que coincide com o tempo de formação da Unicamp, com Zeferino Vaz”. Nessa época, conta o diretor, as regras de contratação eram mais flexíveis e os fundadores podiam convidar os professores que quisessem para áreas específicas. “Zeferino perguntava quem era necessário, fazia-se um convite e um contrato, e a pessoa vinha.” Desses convites resultaram as chegadas de professores como Aryon Rodrigues, Cláudia Lemos e Roberto Schwarz. apoio em três cursos
A atuação do IEL está apoiada sobre um tripé composto pelos cursos de letras, linguística e estudos literários. “Este último é uma graduação única no Brasil”, diz Oliveira. “Nas outras faculdades, só há a opção de prestar letras.” Enquanto as demais escolas vinculam o ensino e a pesquisa das línguas às literaturas nacionais, no curso de letras da Unicamp a divisão por país e a ligação com idiomas específicos não são centrais. Os eixos principais são as diferentes abordagens teóricas da literatura. É por isso que, na Unicamp, os docentes são frequentemente reconhecidos como especialistas em uma abordagem ou em um pensador específico. É o caso, por exemplo, do alemão Walter Benjamin, estudado no IEL pelos professores Márcio Seligmann-Silva e Jeanne-Marie Gagnebin. A ênfase na pesquisa se traduz no fato de que há tantos pós-graduandos quanto graduandos atualmente matriculados no instituto: cerca de 500 de cada. São 100 ingressantes por ano na pós e outros 100 na graduação. A diversidade também está presente na composição do corpo docente. “Hoje exatamente metade dos professores do Departamento de
Teoria Literária vem de formações em outras áreas de humanidades”, conta Jefferson Cano, docente do departamento e graduado em história. Isabella Tardin Cardoso, professora de letras clássicas e pesquisadora das obras teatrais de autores da Antiguidade, como Plauto e Terêncio, chama atenção para a carga de disciplinas voltadas para a formação em pesquisa. “Ao longo do curso, o aluno vai sendo encaminhado para sua monografia final ao longo de três ou quatro matérias”, diz. “Ele sai da graduação com monografias que muitas vezes têm a qualidade de um mestrado.” A vocação interdisciplinar aparece tanto na pesquisa quanto na docência. Os fonoaudiólogos da Unicamp, por exemplo, são formados pela Faculdade de Ciências Médicas e pelo IEL simultaneamente. Desde 2007, o Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), vinculado ao IEL, oferece um mestrado em divulgação científica e cultural, que forma pesquisadores capazes de atuar tanto na pesquisa quanto na imprensa (ver reportagem na página 71). Já a área de letras clássicas recebeu um impulso importante graças a um pedido do IFCH, cujo curso de filosofia tem quatro semestres obrigatórios de latim ou grego antigo. “O curso de filosofia colaborou para que os cursos de latim e grego se estruturassem de maneira mais científica no IEL”, afirma Isabella. “Na área dos estudos clássicos, o desafio é não só a interação com outros campos de estudos da linguagem, mas ir além do IEL e dialogar com a história, a filosofia e a arqueologia”, comenta o linguista Paulo Sérgio de Vasconcellos, especializado em latim. “É um sonho da área ter uma formação interdisciplinar no sentido amplo.” Vasconcellos é também curador do Centro Cultural do IEL, que oferece palestras, concertos e sessões de cinema abertos para a comunidade universitária e os moradores da região. especial unicamp 50 anos | 83
fotos arquivo central / siarq
Um campo de pesquisa em que o IEL se destaca é o das línguas indígenas. Para a pesquisadora Maria Filomena Sândalo, cujos estudos envolvem tanto os idiomas indígenas quanto o português, uma das melhores estratégias contra a extinção das línguas dos povos autóctones é o ensino bilíngue. “Em uma boa educação bilíngue, as línguas precisam ser detalhadamente estudadas. É importante garantir materiais didáticos de qualidade, que mostrem as diferenças e similaridades dessas línguas com o português, a língua dominante do país”, diz. “Nesse sentido, os trabalhos em descrição e teoria podem ajudar as comunidades.” Um exemplo concreto da ponte imaginada por Fausto Castilho entre humanidades e ciências exatas é o do Grupo de Estudos de Prosódia da Fala, coordenado por Plínio Barbosa, que é engenheiro eletrônico formado pelo Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA). “Como o IEL é aberto para a pesquisa interdisciplinar, o fato de eu ser engenheiro chamou atenção na hora de ser contratado”, relata o pesquisador. “Logo no começo trabalhei em um projeto com colegas da engenharia elétrica.” Usando equipamentos semelhantes aos de um bom estúdio de gravação, o trabalho de Barbosa inclui o uso de algoritmos e modelos computacionais que permitem simular os ritmos e a entonação da fala. “Passamos a maior parte do nosso tempo medindo esses ritmos”, diz. “Mesmo 84 | especial unicamp 50 anos
Carlos Vogt, José Aristodemo Pinotti, Antonio Candido e Paulo Renato Souza (da esquerda para a direita) na inauguração da Biblioteca Central da Unicamp, em 1989; à esquerda, o filósofo Fausto Castilho, que defendeu a criação do Instituto de Estudos da Linguagem
sem conteúdo nenhum, só de ouvir uma fala as pessoas conseguem identificar se parece um discurso político, uma reportagem ou uma pregação religiosa.” Com esse trabalho, o grupo de Barbosa contribui para a formação de peritos da Polícia Federal, na área de “reconhecimento de locutores”, ou seja, a identificação de vozes em gravações. Outra parceria do IEL com a Faculdade de Engenharia Elétrica (hoje Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação, FEEC) da Unicamp resultou na criação e no desenvolvimento, ao longo da década de 1990, com apoio da FAPESP, do programa de computador de conversão texto-fala Aiuruetê, que significa em tupi “papagaio verdadeiro”. A pesquisa foi coordenada por Eleonora Albano, professora de fonética e fonologia do
Departamento de Linguística e coordenadora do Laboratório de Fonética e Psicolinguística (Lafape) do IEL, e por Fábio Violaro, do Laboratório de Processamento Digital da Fala da FEEC. A equipe da engenharia forneceu a tecnologia de conversão digital de texto para fala, mas o som era metálico e sem inflexões. O Lafape deu um timbre humano à voz eletrônica e refinou a pronúncia para que o discurso fosse inteligível e ficasse de acordo com o português falado no Brasil. Isso tornou a fala do equipamento apropriada para ensino a distância e educação de deficientes visuais. Segundo Eleonora, que foi visitante residente do Departamento de Linguística e Análise do Discurso dos Bell Labs, nos Estados Unidos, o programa “era representativo do estado da arte de então”. n
artes CÊnicas
estudos do palco Áreas de teatro, dança e performance atuam conjuntamente Ricardo Calil
Divulgação
E
mbora as pesquisas em música estejam na origem do Instituto de Artes (IA), o estudo de outras atividades artísticas também ganhou importância na Unicamp nas últimas décadas. Os departamentos de Artes Cênicas e de Artes Corporais e o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais (Lume Teatro) completaram 30 anos em 2015. Juntos, são os responsáveis pelo Programa de Pós-graduação em Artes da Cena da universidade, com a proposta de concentrar três áreas de conhecimento: teatro, dança e performance. “O programa foi pensado conjuntamente pelos artistas-pesquisadores”, diz Gilberto Alexandre Sobrinho, coordenador geral da pós-graduação. Fundado em 1985 dentro do IA com o nome de Laboratório Unicamp de Movimento e Expressão, do qual deriva sua sigla, o Lume tornou-se em 1994 um núcleo ligado à reitoria, com sede própria, e foi rebatizado como Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da Unicamp.
Grupo formado pelo Lume apresenta espetáculo de rua: interação com o entorno da universidade
Mas manteve uma relação umbilical com o IA. Dos sete atores-criadores do Lume, três estão credenciados como professores no Programa de Pós-graduação em Artes da Cena, ministrando aulas e orientando estudantes de mestrado e doutorado. Pesquisadores do núcleo já tiveram projeto temático financiado pela FAPESP. Juntos, o IA e o Lume organizam eventos acadêmicos como o simpósio internacional Reflexões Cênicas Contemporâneas, que levam a Campinas pesquisadores de outros estados e do exterior. A simples presença do núcleo também provocou o surgimento de grupos de teatro independentes no distrito de Barão Geraldo, onde se localiza a Unicamp, vários deles com propostas de interação entre prática e pesquisa. Além das fronteiras acadêmicas, o Lume tem a faceta pública de um grupo teatral que criou mais de 20 espetáculos — mantendo 14 em repertório, entre eles Dissolva-se-me, Pupik-Fuga em 2 e
Os bem-intencionados – e apresentou-se em 28 países. Como explica Renato Ferracini, pesquisador do núcleo, o processo de criação do Lume é peculiar: das pesquisas emergem os produtos artísticos, cujo desenvolvimento, por sua vez, alimenta as pesquisas. Ele dá um exemplo atual: em uma pesquisa corpórea sobre gestos cotidianos, o grupo vem estudando o mal de Alzheimer e pretende viajar a Angostura, na Colômbia, que tem 12% da população com a doença, para um possível novo espetáculo. O tratamento especial dado à arte e à comunicação na Unicamp se manifesta em outros setores. Criado em 1985, o curso de graduação em dança foi o primeiro do estado de São Paulo. Nesses 31 anos formou profissionais, artistas e professores que se destacaram no Brasil e no exterior, como Graziela Estela Fonseca Rodrigues, autora do processo de formação “Bailarino-Pesquisador-Intérprete”. n especial unicamp 50 anos | 85
música
Sons inovativos Pioneirismo e alta tecnologia fazem parte da história do departamento fundador do Instituto de Artes
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U
ma bailarina pode dançar e fazer música ao mesmo tempo? Graças à tecnologia, sim. Um programa desenvolvido por pesquisadores do Núcleo Interdisciplinar de Comunicação Sonora (Nics) da Unicamp capta os movimentos da bailarina e os transforma em sons que dialogam com outros, criados por músicos. É uma interface para ser usada além da arte porque pode unir performance, neurociência e musicoterapia ao sonorizar o gestual de crianças com paralisia cerebral, de modo a expandir seu universo interior por meio da música e a ajudar na recuperação de movimentos. Outro exemplo do trabalho desenvolvido no Nics poderá ser conferido na estreia da ópera Descobertas,
fotos divulgação
de autoria do matemático e compositor Jônatas Manzolli para orquestra, dança, coro cênico e cenário interativo – 40 intérpretes em cena, todos do Instituto de Artes (IA) da Unicamp – no Teatro Iguatemi, em Campinas, nos dias 27 e 28 de setembro, como parte das comemorações dos 50 anos da universidade. O Nics desenvolve projetos que congregam pesquisadores de diversas áreas de conhecimento e trabalham na interface entre música e tecnologia. “Esse conceito de interdisciplinaridade desenvolvido nos núcleos da Unicamp continua sendo pioneiro”, conta Manzolli, coordenador adjunto do Nics. A diversidade de disciplinas está visível na origem do núcleo, em 1983, que teve a participação de professo-
res como Raul do Valle, do Departamento de Música do IA, Carlos Arguello, do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW), Jacques Vielliard, do Instituto de Biologia (IB), e Furio Damiani (1943-2016), da Faculdade de Engenharia Elétrica (FEEC). “Como sou músico e matemático, é um sonho encontrar a pluralidade que temos.” Além do Nics, as pesquisas de música têm forte presença em outro núcleo interdisciplinar, o Centro de Integração, Documentação e Difusão Cultural (Ciddic) – ambos ligados administrativamente à Coordenadoria de Centros e Núcleos Interdisciplinares de Pesquisa (Cocen), mas com um diálogo intenso com o IA. O objetivo do Ciddic é intensificar a pesquisa, a execução e a circulação da música contemporânea, com ênfase em compositores brasileiros. Para tanto, promove a interação entre dois de seus órgãos: o Centro de Documentação de Música Contemporânea (CDMC), que tem 6 mil partituras de música contemporânea internacional e 3.500 de compositores brasileiros, e a Orquestra Sinfônica da Unicamp (OSU), que difunde esse acervo em concertos, gravações, registros audiovisuais e transmissões públicas pela televisão ou pela internet. MIDIALOGIA
Formas geradas pela interação de música com tecnologia digital no trabalho do compositor Jônatas Manzolli
A produção de centros como Nics e Ciddic se liga às pesquisas realizadas no Departamento de Música, inaugurado em 1971 como núcleo fundador do IA, em torno do qual se formaram os demais. O primeiro diretor do IA foi o físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite. O Departamento de Música tem hoje 700 dos 1.600 alunos do instituto. Os 150 alunos do programa de pós-graduação, o primeiro no estado a criar doutorado nessa área, desenvolvem pesquisas em música de concerto, popular, contemporânea e experimental. Entre os pesquisadores com estudos que repercutiram além das fronteiras do instituto estão, além de Manzolli, especialista em música eletroacústica, o compositor e pianista José Antônio Rezende de Almeida Prado (1943-2010) e Rafael dos Santos, pesquisador, entre outros temas, da influência do jazz na música popular brasileira.
Em 1989, foi criado no IA o primeiro curso de graduação em música popular do país. “Foi um reconhecimento a uma das mais ricas e prolíficas tradições culturais brasileiras, que permaneceu muito tempo à margem da universidade”, afirma José Roberto Zan, professor do departamento. Além do trabalho de pesquisa em musicologia, há toda uma parte de pesquisas práticas no IA das quais saíram músicos populares, como o violonista Chico Saraiva, grupos, como o Barbatuques, e professores para outras instituições, caso de Ivan Vilela, hoje na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), violeiro e autor da ópera caipira Cheiro de mato e de chão. “Inovação é uma marca da graduação e da pós-graduação do IA”, afirma Gilberto Sobrinho, coordenador-geral da pós-graduação do instituto. A graduação compreende os cursos de bacharelado e licenciatura em artes visuais, dança e música e os bacharelados em artes cênicas e midialogia. Este foi criado em 2004 com a proposta de estudar convergências e especificidades de mídias como fotografia, cinema, televisão, vídeo, rádio e as digitais – o que reflete o empenho do instituto em atender novas demandas trazidas pelos avanços tecnológicos. Como a graduação em cinema do IA é reconhecida sobretudo pela excelência teórica, a área de midialogia tornou-se um polo de produção audiovisual e um dos cursos mais concorridos da Unicamp, com 50 candidatos por vaga, atrás apenas de medicina e arquitetura e urbanismo. Fernando Hashimoto, diretor do IA, antecipa outra inovação: a criação, em 2018, de uma graduação em gestão cultural – segundo ele, “um conhecimento que se tornou fundamental para a produção artística no Brasil do século XXI”. Na pós-graduação, os programas são música, artes da cena, artes visuais e multimeios, que engloba cinema e fotografia. As atividades de pesquisa do IA são incentivadas desde a graduação. “Priorizamos as propostas em que as pesquisas acadêmicas e os processos de criação se alimentem mutuamente”, conclui Hashimoto. n R. C.
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Origens
A concepção de uma universidade Com senso prático e habilidade política, Zeferino Vaz foi o executor do projeto Unicamp neldson marcolin
A
lei que instituiu a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) foi assinada no final do governo de Carlos Alberto de Carvalho Pinto, em 28 de dezembro de 1962. Desde 1946 havia uma campanha em curso, iniciada pelo jornalista Luso Ventura, no Diário do Povo, e apoiada pelos moradores, por uma faculdade de medicina local. Existiam apenas duas cursos de formação de médicos na época, o da Universidade de São Paulo (USP) e a Escola Paulista de Medicina, ambos na capital. Em 1951, a USP abriu uma nova faculdade em Ribeirão Preto, cujo fundador e primeiro diretor foi o médico parasitologista Zeferino Vaz (1908-1981), natural de São Paulo. Zeferino foi o maior opositor da criação do curso em Campinas 88 | especial unicamp 50 anos
durante toda a década de 1950, alegando que as escolas de medicina não deviam ficar próximas umas das outras. A partir de 1965, no entanto, tornou-se a força motriz que planejou e erigiu o projeto da Unicamp, cuja primeira unidade foi a faculdade desejada pela cidade. Pelo menos duas leis foram propostas e criadas entre 1953 e 1958 prevendo a criação da Faculdade de Medicina de Campinas, mas sem a necessária aprovação de recursos para sua instalação. Em 1961, Carvalho Pinto, também responsável pela criação da FAPESP, havia concluído que a reivindicação campineira não poderia mais ser postergada e instituiu uma comissão para estudar a instalação de um núcleo universitário na cidade. No final do ano seguinte o go-
vernador revogou todas as leis anteriores e criou a universidade, à qual foi incorporada a escola médica. Dessa vez não faltou verba e o curso começou a funcionar em 1963 provisoriamente na Maternidade de Campinas (ver reportagem na página 32). Apenas em 1965 foi criada a Comissão Organizadora da Unicamp, cujo presidente foi Zeferino Vaz. Poucos meses antes da nomeação, Zeferino deu por encerrada uma experiência difícil como reitor da Universidade de Brasília (UnB), entre 1964 e 1965. A instituição havia sido atingida por embates com o regime militar então recém-instaurado e do qual o médico foi apoiador de primeira hora. A escolha para planejar a Unicamp tinha a ver com sua ampla experiência como gestor
arquivo central / siarq
5 de outubro de 1966: o presidente do país, general Castello Branco, assina documento no lançamento da pedra fundamental da Unicamp com Zeferino Vaz ao lado
universitário – além da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, esteve envolvido diretamente na organização de escolas médicas em Botucatu e Santos. Havia também razões políticas, como o apoio e a confiança do então governador Adhemar de Barros. Uma vez à frente do projeto, Zeferino declarou que faria uma universidade moderna e eficiente. Achou rapidamente o local para o campus: um canavial de 30 alqueires paulistas perto do distrito de Barão Geraldo, a 12 quilômetros do centro urbano de Campinas, de propriedade do banqueiro João Ademar de Almeida Prado. A gleba foi desapropriada pelo valor simbólico de 1 cruzeiro com a concordância do dono. No dia 5 de outubro de 1966 foi lançada a pedra fundamental
do campus com a presença do presidente da República, general Humberto Castello Branco, e Laudo Natel, o governador que havia assumido no lugar de Adhemar, cassado pelos militares. Montagem da universidade
A experiência na UnB foi curta, mas acabou sendo útil ao projeto da Unicamp por várias razões. A arquitetura da universidade brasiliense indicou a Zeferino o que ele não queria fazer. No relatório que apresentou ao governo do estado o futuro reitor dizia vislumbrar um campus com “edifícios sóbrios, sem fachadas imponentes e sem luxos de acabamento e de espaços construídos sem qualquer utilidade”. De acordo com o jornalista Eustáquio Gomes em seu livro O man-
darim – História da infância da Unicamp (Editora Unicamp, 2006), Zeferino queria evitar prédios como o Instituto Central de Ciências da UnB, projetado por Oscar Niemeyer, com 720 metros (m) de comprimento, 60 m de largura, 120 mil metros quadrados de área construída e apenas 70 mil metros quadrados utilizáveis para laboratórios e salas. Por outro lado, Zeferino mirou-se em alguns exemplo da UnB – originalmente um projeto inovador do educador Anísio Teixeira e do antropólogo Darcy Ribeiro – do que seria uma universidade com uma organização moderna. A nova instituição deveria “ser um organismo, e não uma colônia de organismos”. Os institutos a serem criados seriam um espelho da “interdependência e subordinação recíproca de todas as ciências” e não meramente unidades independentes. A montagem da universidade começou pela contratação de professores que fossem, de preferência, também pesquisadores, algo inovador. Nos anos seguintes, o reitor conseguiu trazer cerca de 230 cientistas estrangeiros da Europa e Estados Unidos para dar aulas e pesquisar em Campinas, segundo entrevista concedida à revista Veja em 2 de fevereiro de 1978; outros 180 brasileiros que estavam em instituições do exterior foram trabalhar no campus de Barão Geraldo. O recrutamento de docentes e pesquisadores ocorreu igualmente no Brasil. A biologia era coordenada por Walter August Hadler, especial unicamp 50 anos | 89
arquivo central / siarq
já docente da Faculdade de Medicina de Campinas, depois Faculdade de Ciências Médicas. Para o Instituto de Física, Zeferino chamou Marcello Damy de Souza Santos, um dos principais nomes da física nuclear da época. A organização do Instituto de Química foi feita pelo italiano Guiuseppe Cilento, pesquisador de prestígio internacional. As engenharias ficaram com o general da reserva e físico com doutorado na Universidade Stanford José Fonseca Valverde. O Instituto de Filosofia e Ciências Humanas começou a ser planejado pelo filósofo Fausto Castilho, que veio da Faculdade de Filosofia de Araraquara. Cursos inovadores
“A universidade foi estruturada inicialmente com os institutos de matemática, física, biologia e química. Os demais vieram um pouco depois”, lembra o matemático Rubens Murillo Marques, que foi para Campinas a convite de Zeferino, primeiro para ser professor de bioestatística na medicina, depois como diretor do Instituto de Matemática, hoje Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica (Imecc), onde criou os cursos de estatística e ciências da computação. “Uma das boas contribuições da Unicamp para o ensino superior foi fundar cursos e faculdades inovadores”, afirma Marques. “Era a visão do Zeferino, que não achava inteligente oferecer aquilo que já estava presente em quase todas as cidades, como escolas de direito e pedagogia.” Atualmente presidente de honra da Fundação Carlos Chagas, em São Paulo, Marques propôs fazer as matrículas por disciplinas e a distribuição dos cursos por módulos semestrais, em vez de anuais, como na tradição das instituições norte-americanas. A Unicamp foi a primeira a adotar esse sistema no país. O senso prático e a forte personalidade do reitor, segundo o matemático, provocavam admiração e ressentimentos. “Ele pegava as ideias no ar, decidia rapidamente e já as colocava em execução”, conta. “Mas era alguém que gostava de fazer valer sua própria opinião, nem sempre para o bem.” Marques lembra que Zeferino tinha trânsito fácil com políticos e militares. “Uma boa amostra disso é que ele conseguiu demitir o general Valverde, então diretor da Faculdade de Engenharia, quando entraram em rota de colisão.” Data da demissão: 90 | especial unicamp 50 anos
Na primeira fila (da dir. para a esq.), Murillo Marques, Damy e Cerqueira Leite na homenagem a Gleb Wataghin em 1971: pioneiros
31 de dezembro de 1969, em pleno recrudescimento da ditadura. Para o linguista Carlos Vogt, na época em que a universidade começou a funcionar e nas circunstâncias em que tudo aconteceu, a Unicamp não teria sido possível sem Zeferino Vaz. “Ele é querido na Unicamp e detestado na UnB. É como se fossem duas figuras diferentes do ponto de vista da relação que teve com a universidade”, testemunha Vogt, reitor da Unicamp entre 1990 e 1994 e um dos responsáveis pela criação do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL (ver reportagem na página 82). “Essa imagem criou um mito em torno de Zeferino: ele seria comprometido com a direita, mas com uma visão aberta do ponto de vista da vida intelectual e acadêmica e, portanto, um homem esclarecido.” Segundo o físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite, um dos pesquisadores que vieram dos Estados Unidos para o Instituto de Física a convite de Zeferino, a habilidade política era uma característica forte do reitor, com quem entrou em choque não poucas vezes. “Ele sabia fazer concessões, convivia perfeitamente com todos e ajudava pessoas de esquerda, que tinham sido presas pelos militares”, conta Leite, atual diretor do Centro
Nacional de Pesquisas em Energia e Materiais (Cnpem). “Ele era alguém necessário para aquele momento.” Cerqueira Leite conta que Zeferino valorizava a interação com a indústria, um dos marcos da Unicamp (ver reportagens nas páginas 10 e 16). “O fato de o reitor aprovar e gostar dessa aproximação ajudou a induzir a atividade na época”, afirma o físico. Durante os anos 1970, Zeferino enfrentou crises, uma parte delas em razão de seu longo período na reitoria. “Ele sempre foi reitor pro tempore, o que era conveniente para mantê-lo no comando porque não havia um mandato de quatro anos para expirar”, lembra Vogt, hoje presidente da Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp). Zeferino deixou a reitoria em 1978, quando os 70 anos o obrigaram à aposentadoria compulsória, e passou a presidir a então recém-constituída Fundação de Desenvolvimento da Unicamp (Funcamp). Plínio Alves de Moraes, professor da Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP), unidade incorporada à Unicamp em 1967, foi nomeado reitor pelo governador Paulo Egydio (1975-1979) graças ao apoio de Zeferino. Foi uma gestão conturbada, com graves problemas econômicos, políticos e até uma intervenção na universidade, em 1981, determinada pelo governador Paulo Maluf. Em 1982 o médico José Aristodemo Pinotti assumiu a reitoria. “A partir daquele momento começou outra fase da universidade”, conclui Carlos Vogt. n
arquivo central / siarq
Idealizado por Zeferino Vaz e criado pelo artista plástico Max Schiefer e pelo arquiteto João Carlos Bross na década de 1970, o logotipo da Unicamp foi desenhado a partir do Plano Diretor da universidade. As três circunferências vermelhas simbolizam o conhecimento humano: ciências exatas, biológicas e humanidades. As 13 listras remetem à bandeira paulista, e a bola branca ao centro representa o ponto de encontro de pessoal e de conhecimento. Atuando em conjunto, o conhecimento se irradia para a coletividade, cumprindo as três funções da universidade: ensino, pesquisa e extensão.
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