AQUARUM
Piatan Lube
Júlio Tigre
AQUARUM
Prêmio de Artes Plásticas Marcantonio Vilaça – 5ª Edição Galeria de Arte e Pesquisa da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) 16 de julho a 30 de agosto de 2013
“Tudo vem da água” Fernando Pessoa Professor de Filosofia da Ufes O coletivo Duodreno, formado pelos artistas Júlio Tigre e Piatan Lube, apresenta, na exposição Aquarum, a água como obra de arte. Ocupando a Galeria de Arte e Pesquisa da Ufes (GAP) como site specific, o duo perfura um poço semiartesiano, de dezesseis metros de profundidade, dentro da galeria, no qual instala uma bomba manual, do tipo picota, para que o público possa interagir retirando água para beber. Ao abrir um poço de água dentro de uma galeria de arte, o Duodreno propõe com essa instalação pensar as características físicas e metafísicas da água: mostrar o subsolo da arte, revelando o fundo da criação e a proveniência da vida. A obra começa com a perfuração do poço que, registrada em filme, é apresentada em uma tela de vídeo. O propósito de cavar o subsolo de uma galeria de arte é tornar visível o oculto de seu subterrâneo, revelar o seu fundo original, descobrindo os mistérios de sua constituição. Por ser solvente universal e, assim, diluir o material orgânico da terra, a água quando se infiltra no subsolo transporta grande quantidade de sedimentos em seus lençóis freáticos. A deposição desses sedimentos formam diversas estruturas geológicas, que compõem um registro da história da terra. Com a perfuração do poço dentro da GAP, o Duodreno propõe estudar a composição desse território artístico, a fim de conhecer a sua história. De que é feito o fundo de uma galeria de arte? Quantas estórias estão infiltradas neste terreno? Quais são seus sedimentos, seus resíduos, sua composição? Como ler esses vestígios, compreender suas características e
conhecer seus nutrientes? Com esta instalação, além de reorganizar o espaço da galeria de arte com a exposição de seu subsolo, Júlio e Piatan querem contar a história da Universidade Federal do Espírito Santo escondida na memória de sua terra para, assim, conhecer o saber que tem no sabor de suas águas: “A ação proposta é acessar o imaginário através desta perfuração, buscando no subsolo esta memória da cidade e brindando este encontro com a ingestão desta água”. * Em oceanos, mares, fontes, rios, lagos e lagoas, a água cobre 70% da superfície da terra, sendo a fonte geradora e nutriente de tudo o que é vivo. A água é o princípio da vida, o seu alimento elementar; ela é a mãe de todo ser vivo, a matrix mundi. Como seu princípio elementar, a água não só é a origem da vida, mas também a sua provedora, o que possibilita a sua manutenção; ela promove a geração e regeneração do que é vivo. Em seus ciclos hidrológicos, a água alimenta, hidrata, limpa e purifica o homem e o mundo em uma permanente renovação da vida. Seja para saciar a sede e hidratar, seja para cozinhar os alimentos, digerir ou transportar seus nutrientes pelas correntes sanguíneas do organismo, seja na regulação da temperatura pelo suor ou na expulsão das toxinas pela urina, seja para limpar o corpo ou purificar a alma, seja para lavar o céu ou irrigar a terra, a água é a seiva da vida. Por essa característica de ser princípio gerador de vida, em todas as religiões, de todas as épocas e regiões, a água sempre foi associada ao feminino – aqua femina –, sendo sacralizada como deusa da fertilidade. Para os vedas é chamada de mâtrimâh, “a mais materna”. Na mitologia Celta, Sulis é a deusa das nascentes. Em diversas religiões asiáticas, a água é símbolo da fertilidade, da pureza, da sabedoria, de graça e virtude, elemento da regeneração corporal e espiritual. No Hindu-
ísmo, o Rio Ganges é personificado como uma deusa, sendo a ablução em suas águas um ritual de purificação da vida. Na mitologia iorubá, Iemanjá é a rainha das águas salgadas, a senhora do mar, é o próprio mar divinizado; representa a beleza, a família, a maternidade e o amor, sendo considerada como mãe de todos Orixás. Já a sua filha com Oxalá, Oxum é a deusa das águas doces, senhora dos rios e das cachoeiras. Oxum rege o ventre das mulheres, controlando sua fecundidade; por isso, é essencialmente o Orixá das mulheres, quem preside a menstruação, a gravidez e o parto. Como Orixá da maternidade, Oxum ama as crianças e protege a vida com suas curas. Oxum que me cura com água fresca Sem gota de sangue Dona do oculto, a que sabe e cala No puro frescor de sua morada Oh! Minha mãe, rainha dos rios Água que faz crescer as crianças Dona da brisa de lagos Corpo divino sem osso nem sangue1 A mitologia grega possui diversas divindades da água, todas associadas à fecundidade e à geração. Ponto é a primeira, que surge como força primal das águas e é personificado como o mar primitivo. Ponto nasceu de Gaia por partenogênese, e teve com ela várias divindades marinhas como Fórcis, Ceto, Taumante, Euríbia, Proteu e Nereu. Nereu, que vivia no fundo do mar, casou-se com Dóris, filha do titã Oceano, com quem teve cinquenta filhas, as Nereidas. Por sua vez, Oceano, filho de Urano e de Gaia, casou-se com a sua irmã Tétis, que gerou três mil ninfas, as chamadas Oceânidas. Poseidon, filho de Cronos e de Reia, com a derrocada do reinado de seu pai, tornou-se o senhor dos mares. Não podemos esquecer Afrodite que, gerada pelo esperma de Urano nas águas do mar, é a deusa do amor e do prazer sexual, o divino arquétipo da graça feminina; nem das sereias, ninfas e musas que encantam os homens com a delícia de seus cantos.
1. Louvação a Oxum
E, por fim, o mais adorado pelas mulheres, Dioniso, o deus da vida. Sua manifestação se dava com o jorrar de fontes de água e vinho, leite e mel. Com a sua chegada, as mulheres deixavam suas casas para, em procissões, subirem as montanhas a fim de celebrar o deus, comungando, em rituais extáticos, a embriagues de sua loucura. Por essa loucura (mania) divina, as mulheres que cultuavam Dioniso eram chamadas de ménades. Como afirma um dos maiores estudiosos dos deuses gregos, Walter Otto, em seu livro sobre Dioniso: “No elemento da água, do qual emanam os espíritos da feminilidade com toda a magia da beleza, da maternidade, da música, da profecia e da morte, encontramos a origem das mulheres dionisíacas, de modo que, em última instância, representam a imagem da feminilidade primigênia do mundo”. * Pela fecundidade de sua umidade, a água constitui o elemento feminino da criação: a aqua femina é matrix mundi. Nela a vida prolifera de diferentes modos, constituindo múltiplos organismos biológicos e diversas simbologias religiosas. Considerando esses dois horizontes da compreensão da água, o físico e o metafísico, o coletivo Duodreno ocupa a GAP para servir a água de seu poço para o público beber. Com esse gesto simples de doação e cordialidade, Júlio e Piatan nos convidam a degustar a memória geológica da terra, saboreando na água a história de seus componentes minerais, bem como a experimentar atavicamente a característica simbólica, arquetípica, da fecundidade feminina. Laureada com a quinta edição do Prêmio Marcantônio Vilaça da Funarte, a instalação Aquarum, concebida e realizada pelo coletivo Duodreno, ao apresentar a água como obra de arte, recorda a primeira frase da história da filosofia, proferida pelo antigo grego Tales de Mileto, lembrando que “tudo vem da água”.
Uma nova hidrografia Aquarum sapientorum1 Júlio Tigre Artista Na agua doada, perdura a fonte. Na fonte perdura todo o conjunto das pedras e todo o adormecimento obscuro da terra, que recebe chuva e orvalho do céu. Na agua da fonte, perduram as núpcias de céu e terra.2 O título desta proposta surge a partir de uma constatação um quanto óbvia: estamos mergulhados numa substância universal que está presente em todo elemento e meio existente neste planeta em que vivemos, seja interna ou externamente. É uma constatação natural ainda que acreditemos em estados sólidos da matéria, o fato é que a ausência desse elemento agua, matéria viva, nos reporta a aniquilação. Minha memória está constituída de parte dessa experiência, nascemos mergulhados nesse meio dentro da placenta de nossas mães. Quando recebemos o batismo inaugural não podemos evitar o pranto ao dar com as dores e com o estranhamento de ter o pulmão pela primeira vez preenchido de ar. Depois de adaptados, voltamos um dia a experimentar num mergulho a impossibilidade de respirar debaixo d’água. Aprendemos a dinâmica do fluido e nos deslocamos agarrando com as mãos este elemento mais denso que o ar. É também com as mãos em forma de concha que colhemos uma porção fresca e transparente de uma nascente e matamos nossa sede, esta outra memoria é que me faz pensar num encontro, um lugar para onde convergem energias e pessoas buscando vida. A fonte que um dia matou a minha sede é também fonte de poesia e comunhão, essas águas cristalinas já percorreram raízes, cheiraram as profundezas, passaram pelos mais
recônditos e inimagináveis interiores, saindo de corpos e leitos, terras e pedras, penetrando noutros corpos, perpassando a todos e estabelecendo um fluxo continuo de energia proporcionando trocas de sentidos diversos. A memória presente na água de sua pregnância, daquilo que se impõe ao nosso espírito e de sua viagem pelos sistemas acaba por nos unir a tudo, fazendo de nós uma pequenina parte deste universo. Aquarum se insere no espaço expositivo como um gesto simples mas preciso, sua dimensão se dá na reverberação deste gesto que propõe à participação coletiva transformar este espaço de exibição em espaço de ações e vivências. O contato com este subterrâneo se dá através deste elemento universal, que nos une, que nos forma e transforma – uma metáfora para o reconhecimento desses territórios interiores. Ao perfurar o solo revolvemos um passado, ali estão os vestígios de uma outra ocupação, seus dejetos, matéria orgânica em eterna decomposição, a massa opaca e obscura, e nos surpreendemos por encontrar nela um elemento cristalino, como um diamante em seu garimpo, em meio a lama surge uma água transparente como um intocável espírito da terra. O que caracteriza nossa experiência na construção de um lugar é o encontro de duas naturezas, interligadas, nos colocando como parte do sistema. Aquarum propõe mais do que romper mecanicamente os limites do espaço expositivo de uma galeria, o encontro de águas interiores, os variáveis setenta por cento de nossa constituição física, com a fonte que faz parte do manancial desse planeta e suas memórias. Uma memória ancestral permeando a nossa existência. Elemento essencial à vida no planeta, a água é elemento constituinte de nossa história. Também nos tornamos fontes, água que retorna ao seu ciclo quando abandonamos este mundo, incluídos na construção de uma nova hidrografia.
1. Expressão alquímica presente na obra de Carl Gustav Jung. 2. HEIDEGGER, Martin. A coisa. In_______ . Ensaios e conferências.. Ed. Vozes: Petrópolis, 3˚ Edição, p.150. 2006.
Ao perfurar nas coordenadas S20˚16.675’, O40˚18.159’ retirando sua camada superficial de concreto encontramos um solo instável formado por uma profunda e quase homogênea camada de areia. Dos vinte e cinco metros perfurados, somente dezesseis ficaram. Depois das infrutíferas tentativas de construir uma parede resistente, foi nesta profundidade de dezesseis metros que encontramos a água, não aquela que almejávamos como um cristal na escuridão da terra, mas uma água surrada, densa, contaminada pela função e consumo humano, uma água usada, literalmente carregada de cultura, tanto bacteriana como pelos vestígios do que foi o seu emprego anterior. Para torná-la compatível com a proposta ela teve que sofrer uma série de intervenções, primeiro ser fervida até uma temperatura de 100º para liberar completamente a amônia contida nela como também para eliminar presença de bactérias não resistentes. Depois ela foi destilada até se transformar numa substância incolor e inodora totalmente inócua, mas ainda água, esvaziada de sua função primordial de matar a sede, ela provoca a sede, uma sede que não satisfaz nossas necessidades físicas, mas sim a sede de conhecimento e transformação. A água, tornou-se, essencialmente, uma página branca que retira de nós os minerais que um dia ela nos ofereceu. De forma inversa nós a remineralizamos, devolvendo a dádiva obtida quando a ingerimos de forma simbólica. Ela agora estará conosco, um fazendo parte do outro, numa troca de experiências e de estados plenos de significados.
logo de Renascente3: meu filho, numa manhã de domingo, ao levar aquele copo d’água contra a luz do sol e, de forma brincalhona, falou deste ciclo, desta passagem do tempo sobre as coisas, das possibilidades, de estar naquele momento fazendo a comunhão com o mundo... essa água que já foi fonte, seiva, urina e nuvens agora vai ser eu! Naquele momento aquele copo d’água era muito mais do que matar a sede, ele se transformou num brinde à vida. Numa água para além do trivial, um alimento para além do material, uma ponte entre matéria e espirito. A água recebeu esta incumbência. Em Aquarum, ela está à espera, ela está sedenta para retornar ao seu ciclo, para voltar à vida. Ao ingeri-la, você participa desse processo, revitalizando-a e devolvendo-a ao mundo através de seu corpo.
Essa água estéril é oferecida como um meio, um rito de comunhão, ela é esvaziada de seus atributos para receber outros numa união com o divino, com os ciclos dos elementos que a transformam em uma substância carregada de memória. Sempre retorno àquela história contada no texto que fiz para o catá-
3. TIGRE, Júlio. Renascente - A memória da água. In______ . Catálogo da 3ª Edição do Programa de Residência Artística - Mas que arte cabe numa cidade?, da Secretaria de Estado da Cultura do Espíriro Santo, Vitória. 2012.
Esta água que corre aqui é a voz da voz da voz do meu bisavô Piatan Lube Artista Acessar o imaginário planetário por meio da perfuração do solo, buscar a memória das coisas do mundo no subsolo e, ao mesmo tempo, brindar, em um estado de comunhão, esse encontro com a ingestão da água retirada do poço: esse é o processo ritualístico de criação de Aquarum. Ao desfrutar da água e de seus significados, o público experimenta um campo de vivências a partir dos lençóis que estão sob a Galeria de Arte e Pesquisa da Ufes (GAP). Trata-se de uma água/memória, água/arte, água/conceito, água/ fenômeno, água/mundo para ser bebida dentro do espaço expositivo de modo a negociar com a institucionalização desse lugar por meio de sua poética. É a fonte de vida na fonte das artes. Em meus anseios primeiros de aspirações poéticas com a água, ela portava, de maneira mais latente, uma função escultórica, desenhou os vales, a geografia deste planeta. Mãe que, em direção ao mar, abriu-se em caminhos significantes. O território ideológico de meus trabalhos de arte é nos seus ventres, site orientado deste trabalho, transfigurada no olhar vertical para além dos limites visíveis, tencionando e problematizando os limites da galeria de arte enquanto tradicional espaço expositivo e acionando água como fonte de encontros e experiências com lugar da arte. A água ancestral toca a memória planetária e é oferecida para a comunhão entre o homem e o planeta através de uma obra de arte. Aqui temos uma nova orientação: capturar a memória do mundo extraí-la, fazê-la percorrer novos circuitos, submetê–la a filtragens e servi-la como espírito do lugar. O olhar de origem é quem faz aflorar este tipo de obra. Vasculhamos as entranhas da galeria de arte, o seu subterrâneo, e ativamos ali sua força vital – na gênese do território da arte.
A água é o elemento com o poder do movimento e portador da vitalidade dos seres, transpõe tempos,
lugares e estados físicos. A água é o ciclo de fertilidade do mundo. Suas qualidades físicas lhe conferem a capacidade de adaptar-se facilmente à materialidade do território no qual está inserida, absorvendo-o, refletindo-o, multiplicando-o: a água capta o lugar. Uma das tensões poéticas presentes em Aquarum relaciona-se com a propriedade de reflexão molecular da água, ou seja, sua capacidade de transmitir informações do território do qual ela passa. Ao abrir uma fonte de água dentro da GAP, damos continuidade ao movimento cíclico desse elemento in site, aqui apresentado como obra de arte que, ao ser ingerida pelos visitantes da instalação expositiva usando seus movimentos e corpos, promove um encontro de águas. O poço semiartesiano, cavado no subsolo, revela a memória do território – que foi codificada por ações do tempo na matéria e que pôde ser acessada pelos visitantes durante a exposição. Extraído por meio do bombeamento manual e ingerido pelos frequentadores da intervenção, esse conteúdo mnemônico converte-se no líquido da sabedoria-obra. Com Aquarum oportunizamos um novo contato entre a arte e o espectador, trata-se de uma radical integração ritualística, inscrita por meio da disponibilização desse elemento sagrado para o público – aqui constituído enquanto receptáculo e símbolo vivo de uma nova arte. Assim, a obra não se finda com uma intervenção física, ela ganha continuidade e ampliação de significado após a ingestão da água servida no espaço expositivo. Por meio desse rito de comunhão entre afetos, Aquarum possibilitou a vivência de uma nova orientação entre obra, espaço expositivo e espectador. A intervenção buscou construir uma ponte entre a realidade interior e exterior, entre o racional e irracional, entre a mente e a não mente, entre forma e a ausência de forma. Aquarum atende ao anseio de tornar possível, de dar visibilidade ao invisível, de trazer à superfície as problemáticas existenciais por meio de uma inundação de memórias do lugar e de nós mesmos.
Água mínima
Os Ciclos Sagrados
Nelson Lucero Professor de Psicologia da Ufes Um poço semiartesiano foi perfurado no interior de uma galeria de arte. Como autores, os artistas Júlio Tigre e Piatan Lube. Chegando aos 16 metros a água brotou. Absolutamente contaminada. Reprovada em todos os testes. Mas foi purificada. Decantada, fervida, centrifugada, filtrada, novamente filtrada e, finalmente, teve sua potência de aplacar sedes resgatada. Durante a abertura da exposição, fiquei olhando e pensando: o que é tudo isso? O que querem essas pessoas perfurando a galeria e drenando a água escondida no solo? Escondida sob o solo da produção universitária, sob a superfície que abriga uma profusão criativa de experiências e pensamentos, mas que tem em seu interior água contaminada. Tratava-se de um contágio criativo de experiências e de pensamentos, uma contaminação de águas e terras. Que experiência era aquela que estava acontecendo? A que remetia aquela intervenção? Em um primeiro momento, acessando uma certa camada da experiência, podemos fazer uma leitura simbólica, metafórica: a purificação da água como ideal de purificação (leitura ascética), a carência de água doce e potável no planeta (leitura ecológica), que pode se unir a uma leitura política sobre o manejo dos mananciais e outras tantas questões semelhantes que circulam. Mas, de alguma forma, havia mais ali. Não só uma denúncia moral, política, social ou ecológica. Não estava diante do negativo que precisava ser purificado. Estava diante de uma produção propositiva. De alguma forma,
Gabriela Canale Artista, educadora e curadora a água no corpo dos artistas pedia passagem. Um desejo-água havia se intensificado. Um devir-água da arte. A água sempre serviu ao homem. Água servente. Sempre retirada da terra, utilizada e devolvida suja. Água servida. Água solvente primordial, aliada da arte e da técnica. Então comecei a perceber o algo mais. O acontecimento Aquarum ficou ressoando em mim como uma ação de produção (des)criativa. Quando bebi dessa água fiquei contagiado - não contaminado. E contagiado, fui percebendo que a água agora estava fazendo o caminho inverso. Uma involução. Involução entendida não como volta, mas como um avançar, uma produção. Uma produção (des)criativa que não adicionava, mas que retirava algo. Retirava, diminuía, excluía, não acrescentava nada e daí vinha a potência da intervenção. Afirmar sem precisar negar! A água cinza-esverdeada, extraída do poço, ia sendo despigmentada, afinada na transparência até ser água só. Uma água que não se quer tinta, que não se quer continente. Perturbações redutoras para produzir somente água. Água mínima. Uma metamorfose ao simples. Ação tecnopoiética de intervenção nos fluxos para anular a cor, o sabor, as formas densas e, no final, produzir transparência. Anulação da forma e afirmação do fluxo. Com o fim da intervenção, só as marcas do contágio com a afirmação da arte deverão permanecer, quando tudo tiver se evaporado.
Um dia eu vou pro céu viajar, até me precipitar e me reinserir na cadeia alimentar... Um dia eu vou evaporar Aurélia Hubner Quando recebi o convite para transformar o trabalho Aquarum em palavra, soube imediatamente que não poderiam ser palavras quaisquer. Sabia que mais do que um texto, seria preciso viver um ciclo completo para poder traduzir a obra de Júlio Tigre e Piatan Lube. Comecei me tornando líquida. Aos poucos me fiz inteira água. Escorri pelo ralo do banheiro. Me refiz com copos de água vindos do filtro de acrílico. Caminhei sobre a espuma que arrebenta sobre a areia e o minério. E, muito mais do que tudo, fui inteira água dentro da chuva fina. Ainda em estado líquido descobri que as sabedorias da água são inclassificáveis. Inodora, insipida e incolor, nos ensinaram na escola. Mas Piatan e Tigre vão além, eles nos ensinam que a água é sagrada. Mas que tipo de sagrado? Daquele que respeita o valor e os tempos profundo das coisas. Pois saber que a água é sagrada é respeitar seus ciclos. E são os ciclos e o respeito aos seus tempos que Aquarum revela: para beber é preciso filtrar, para filtrar é preciso encontrar, para encontrar é preciso perfurar.
Para permitir que os ciclos se transformassem em experiência para os participantes de sua obra, os artistas transformaram a galeria em lugar de trabalho. Trabalho no sentido mais amplo do termo (de Karl Marx a William Reich). Usando tecnologia, tempo e desejo, a água sob a galeria veio à tona. Trouxe consigo tudo que com ela se podia misturar. O que chamamos de resíduos se integraram à água e subiram para que pudéssemos vê-los e bebê-los. A galeria se tornou, por meio do trabalho, lugar do sagrado – espaço em que se reconhece o intangível das coisas. Saber ser água é o maior dos aprendizados de Aquarum já que estamos, todos nós, imersos em um gigante Aquarum. Um Aquarum solar, rodopiante, vivo – um lugar em crise. Estamos em tempos de repensar o sagrado das coisas, antes que as outras ideias de trabalho (de Henry Ford a Steve Jobs) nos façam esquecer o sagrado dos ciclos naturais. Enfim, Aquarum nos lembra que podemos trabalhar juntos para a clareza das coisas. E celebrar estando juntos. Sendo, bebendo e compartilhando ÁGUA – o grande ciclo de que somos parte.
EXPOSIÇÃO
GALERIA DE ARTE E PESQUISA DA UFES (GAP)
ARTISTAS Piatan Lube Júlio Tigre
COORDENAÇÃO Marcos Martins
PRODUÇÃO Duodreno TEXTO CRÍTICO Fernando Pessoa ÁUDIOVISUAL Alexandre Barcelos FOTOGRAFIA Alexandre Barcelos Francisco Neto ASSESSORIA DE IMPRENSA e REVISÃO DE TEXTO Paulo Gois Bastos DESIGN GRÁFICO Vinicius Guimarães Distribuição gratuita, proibida a venda
EXECUÇÃO
MONITORIA Ercilia Stanciany e Stanley Oliveira ASSISTENTES Cacá Miled e Wellington Pereira
ARTE-EDUCAÇÃO COORDENAÇÃO Mara Perpétua MONITORIA Tiago Folador
AGRADECIMENTOS professor Kleber Perini Frizzera engenheiro Carlos Augusto C. N. Da Gama bioquimico Antonio Sergio da Silva professora Maria Regina Rodrigues
APOIO
REALIZAÇÃO
Este projeto foi contemplado com o Prêmio de Artes Plásticas Marcantonio Vilaça – 5 edição - 2012