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INTRODUÇÂO
Apresentar e orquestrar duas construções artísticas de intervenção urbana: Caminho das águas (ES/SC) e Entre Saudades e Guerrilha (ES), eis o objetivo. Aqui ganham voz seus movimentos de existência com apontamentos fortes na discussão sobre arte hoje. Evidenciando questões conceituais que se hibridizam com as práticas artísticas de ocupação “urbana”, negociando nas paisagens dos afetos construções coletivas. Ações e reações pontuadas que primam nas novas grafias possíveis de “seres desejantes” construindo a teia da realidade. O dispositivo que potencializa esses trabalhos apresentados é sua ação direta na paisagem externa da arquitetura ideológica da arte, galerias /museus, formandose no limite entre vida e arte. As pesquisas dos meus trabalhos invadem questões de valores não artístico, transformando a figura do artista em um sábio que “recodifica" a natureza das linguagens, nas cognições e no desejo de transformar a cidade, locais públicos, em campos de reconhecimento. A prática de conceitos e experiências sobre as escalas geográficas afirma a potência da arte contemporânea, foco desta monografia. Procuro ser sincero e claro dentro das questões do meu pensamento. Razões da própria poética implicam nas mutações das operações de reconhecimento dos elementos elencados aqui. O fator determinado pelo tempo de nossas vidas. Privilegio as vivências como criações no campo de apresentação das obras de arte: dois trabalhos são pontuados como convenções materiais para indicar, cada qual em sua teia de relações, processo das realizações e construções de meu pensamento artístico.
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É fato que a materialização do trabalho se dá indissociável da linguagem que o constitui e transcorre da tomada de atitudes. Assim, a importância de suas camadas processuais para entendimento das atividades; os lugares e/ou situações interagindo aqui com seu próprio discurso, ao mesmo tempo que as intenções se inscrevem como elementos que poderíamos chamar de práxis e de poética in situ. O principio burilador desses trabalhos são suas trajetórias de execução e suas travessias para as respectivas construções, que são aqui apresentadas dentro de uma série poética realizada. O uso do “poder público”1 para a criação das obras obedece a uma dinâmica de aprovação em leis de incentivo governamentais 2 institucionalizadas. Neste trabalho, a escala cartográfica sugerida não simboliza somente as suas inscrições territoriais, mas, sim, e fundamentalmente, suas significações na estratégia de formação da arte no campo social, de “reconformação” do seu próprio território, redimensionando a natureza de sua linguagem em cada investida artística. A cartografia, ou seja, a representação por mapas nos revela sentidos, caminhos, percursos, rastros... Há uma questão estética e conceitual nessa metáfora representacionalista do espaço: não cabe ao analista do desejo sustentar valores, a vida em seu movimento de expansão ou qualquer outra coisa, mas em fazer aflorar novos reconhecimentos num campo de escolhas com traços que indicam suas intenções
1 Aqui pensado como articulação para a construção de arte pública, criando uma moldura institucional para a realização dos trabalhos. 2 São editais lançados no âmbito institucional para aprovação de um número de projetos. São meios de aquisição de financiamento para construção das intervenções. Às vezes, criam, para o artista, uma problemática quanto ao caráter das obras.
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nas novas formas de reconhecer, conviver e relacionar-se com o espaço em que vivemos e nos rodeia. Os trabalhos aqui estudados nutrem-se desse potencial de representação e interação, usando a cartografia em um elo processual com a imersão nos territórios artísticos elegidos, ou a invenção do pensamento criador de aprendizados de experiências. A internacional situacionista ― nas construções e relações, no mapeamento do diferente, na percepção da coletividade das forças que agem e reagem dentro desse corpo- cidade ― é umas das referências de pesquisa e pensamento de que esta monografia faz uso. Nessa perspectiva, certa errância é
condicionada
a interferências artísticas
e a
princípios
dos
mapeamentos. Caminho das Águas ― intervenção artística executada entre 2008 e 2010 nas cidades de Florianópolis (SC) e Vitória (ES), Ilhas capitais e públicas ― aflora da execução/construção de forma coletiva, ocupando, em escala cartográfica imediata, um empreendimento de convívio com a cidade nos seus primores processuais: seus trâmites administrativos, os mapeamentos contínuos com moradores, especialistas, historiadores, artistas, as visitas a lugares e a busca do olhar incansável do artista no “estado de arte” 3, com todas as suas condições de existência ― burocracia, intempéries, fluxos, valores de afetos, de história, de criação em lugares comuns. Entre Saudades e Guerrilha se confirma plenamente concisa na ideia de intervenção artística conceitual no espaço físico-residência Galeria e paisagem urbana do município. A proposição artística aponta para particularidades na quais 3 Termo inventado na execução do trabalho que prenuncia o corpo no estado de espírito de construção artística nas grandes cidades, onde todas as condições comuns de convívio nesse espaço sãos transformadas em dados de pesquisa artística.
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estão
presentes
as
relações
de
ambientes,
coexistência,
memória
e
transformações. Essas obras, no novo jogo de posicionamento da arte, são construções que se apropriam de espaços públicos 4 como suporte para suas inserções. Essas novas práticas artísticas urbanas pensam em transformar os espaços públicos em lugares de convivência mediante a ruptura do ritmo dos transeuntes. A pausa na rotina criaria possibilidades de abertura para interações sociais e do público espectador com a arte, por meio dos artistas e suas obras. Mesmo que rapidamente, poderia acontecer uma quebra da indiferença e do automatismo presentes na sociedade e, em consequência, do espaço público atual, reunido ao corpo das obras. Logo aparece o vocabulário específico do urbanismo, fazendo surgir a figura do artista como etnógrafo, interventor itinerante, o que toma o mundo como um vasto campo para a suas ações pontuais. O pensamento incorpora valores artísticos à existência urbana, à vida e seus princípios básicos, gestos, hábitos, objetos, campos simbólicos fundidos na arte conceitual 5 .
Gera
novas matrizes de criação. O surgimento de um novo
banquete de matéria para trabalhos de arte. Os cardápios das obras apresentam uma linha de intenções conceituais diversas do território artístico, nutrindo-se
4 Estamos classificando de “semipúblicos” os locais privados que seriam de livre acesso, mas se veem restringidos pelas regras privadas quanto à aparência, classe social e outras limitações que selecionam pessoas “aceitas” para neles circular. 5 O artista minimalista norte-americano Sol LeWitt (1928-2007) definiu-a: “Em arte conceptual, a ideia ou conceito é o aspecto mais importante da obra. Significa que todo o planejamento e as decisões são tomados antecipadamente, sendo a execução um assunto secundário. A ideia torna-se máquina que origina a arte”. Para mais esclarecimentos sobre o pintor citado, conferir www.wikipedia.com.br
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desses itinerários e vendo nas cartografias do desejo de convívio com nossa civilização a sua potência existencial. No final da década de 1960 aparece uma nova radicalidade na práxis da escultura de vanguarda, com experimentações estéticas que se seguiriam durante os anos de 1970, as peças de fundamentação da prática land/earth art, process art, instalação, arte conceitual, performance/body art e várias formas de crítica institucional apontadas em trabalhos, ganhando potência no contexto da arte pública. Essas reflexões estão em confluência com os pensamentos de Guy Debord e se relacionam ao universo de transformação urbana pela proposição da prática, além da teoria, de intervenções para criar situações de relações sociais resistentes às estruturas do poder. Mas aqui a esfera mais fiável é o site-specificity-art6, em que o pensamento nasce de contestações de obras que trabalham com a era pósinstituição/função da arte. Na voz de Miwon Kwon (1996): “Site-specificity costumava implicar algo enraizado, atrelado às leis da física. Frequentemente lidando com a gravidade, os trabalhos site-specificity costumavam ser obstinados com a ‘presença’, mesmo que fossem materialmente efêmeros e inflexíveis quanto à imobilidade, mesmo em face do desaparecimento ou destruição. Fosse dentro do cubo branco ou no deserto de Nevada, orientada para a arquitetura ou para a paisagem, a arte site-specificity inicialmente tomou o ‘site’ como localidade real, realidade tangível, com identidade composta por singular combinação de elementos físicos constitutivos: comprimento, profundidade, altura, textura e formato das paredes e salas; escala e proporção de praças, edifícios ou parques; condições existentes de iluminação, ventilação, padrões de trânsito; características topográficas particulares.”
A construção dessas experiências força a transfiguração do olhar para nós mesmos, pois, ao produzir um trabalho de arte urbana, estamos praticando o
6 Cf. http://en.wikipedia.org/wiki/Site-specificity-art
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conceito e teorizando a cidade como a polis edificada e vivida por todos e para todos. Pensar a prática da deriva 7 dentro desse jogo de reconhecimento é fenômeno iniciado aqui. Uma postura contra a espetaculosidade e a banalização dos reais valores da existência humana não cabe ainda, basta inteirar-se dos saberes que as práticas artísticas vão criando, ações e reações dentro de uma cadência existencial da arte. Talvez, uma composição que só poderia nascer nas circunstâncias temporais e geográficas do corpo. Esse corpo do artista que hoje é intuição artística. É dele que brotam campos de experiência que idealizam e desejam arte. As vozes que o atravessam transformam-no. “Mas se a crítica do confinamento cultural da arte (e do artista) pela via de suas instituições foi a ‘grande questão’, um impulso dominante de práticas orientadas para o site, hoje é a busca de maior engajamento com o mundo externo e a vida cotidiana ― uma crítica da cultura que inclui os espaços não especializados, instituições não especializadas e questões não especializadas em arte (na realidade, borrando a divisão entre arte e não arte.” (KWON, 1996).
O binômio arte e vida, com seus limites agora codificadamente apagados, transfigura-se em aumentativos nos princípios dessa pesquisa. A matéria real dessa investigação são as escolhas, as efetivas vibrações, cirandas na prática das obras. Sua poética está na voz dos trabalhos em divulgação formal, apontando possíveis fenômenos de entendimento nos embates provocados, nas virtudes apresentadas, nos pensamentos multiplicados. Talvez a mais harmoniosa hoje, dentro da minha visão, seja a postura do artista como etnógrafo8 diante da vida.
7 DEBORD, 1997, p. 37. 8 “A etnografia (do grego έθνος, ethno: nação, povo, e γράφειν, graphein: escrever) é por excelência o método utilizado pela antropologia na coleta de dados. Baseia-se no contato intersubjetivo entre o antropólogo e o seu objeto, seja ele uma tribo indígena ou qualquer outro grupo social sob o qual o recorte analítico seja feito”. Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Etnografia.
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Falar das obras não nos remete apenas aos domínios próprios da arte ou da estética, mas a uma viagem de encontro com a vida, com todas as suas transversalidades postas em ação: essa é a construção artística. Penso nessas vias da experiência artística como campos de experiência9. Assim, esta monografia foi pensada a partir das narrativas e apreensões das obras que proporcionaram um nível de pesquisa no campo da realidade.
9 “Campo de experiência” talvez seja a verdadeira essência da obra de arte contemporânea, para todos que habitam esses lugares idealizados para a construção de tais trabalhos.
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CAPÍTULO 1 - INTERFERÊNCIAS URBANAS: CIDADE, CORPO E ARTE
Os primeiros passos no entendimento da cidade como campo de vivência para a realização artística, foi um projeto da matéria da Profª. Raquel Garbelot Escultura 1 2007/2, (CEMUNI II-UFES). Trata-se de uma intervenção conceitual, com esboços como proposições interventivas, rascunhados sobre desenhos de representação da cidade de Vitória, ES. O suporte de tal intervenção é a cidade, ou melhor, é a representação da cidade, como encontramos no livro O Olhar 10, dos alunos do curso de Arquitetura 2002, onde vários croquis sobre o centro de Vitória estão grafados, criando um ambiente fértil para interação e intervenção. À primeira vista, cria-se uma atmosfera criativa para reinterpretar as cidades. Exercer o poder de criação artística, de reinventar os espaços, os volumes, a cor... E se essas intervenções existirem em nome de um religamento de nossos desejos, de nossos afetos a esses lugares caóticos? Levantar questões relacionadas às megalópoles, ao frenesi, ao movimento? E se a cidade voltasse a ser minha? Nossa? A cidade é um espaço cultural de mediação das diferenças e de formação de subjetividades. Grande parte da existência de cada indivíduo transcorre dentro das cidades e, provavelmente, tal vivência é fonte das imagens experimentadas e reinventadas na memória pessoal e coletiva. As pessoas são testemunhas dos fatos sociais e estes, por sua vez, dependem das versões e dos olhares humanos para se configurarem como tais, em certo tempo e lugar. O urbano é constituído também como é percebido, e isto vem sendo utilizado pelo “campo de poder” que 10 O olhar, livro realizado por um grupo de alunos da UFES, do curso de Arquitetura, com croquis da área urbana da ilha de Vitória, desenhos rápidos que referenciam lugares valorados ou não da cidade.
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institui um discurso político no sentido de reforçar a história oficial e monumentalizada de certos grupos e partidos hegemônicos. Para clarear o conceito campo de poder, cito Bourdieu (2007): “...empregarei o termo campo de poder (de preferência a classe dominante, conceito realista que designa uma população verdadeiramente real detentora dessa realidade tangível que se chama poder) entendendo por tal as relações de forças entre as posições sociais que garantem aos seus ocupantes um quantum suficiente de força social ― ou de capital ― de modo que estes tenham possibilidade de entrar nas lutas pelos monopólios do poder, entre os quais possuem uma dimensão capital as que têm por finalidade a definição da forma legítima do poder (penso, por exemplo nos confrontos entre ‘artistas’ e ‘burgueses’ no século XIX).”
Penso nesse processo pela primeira vez... subjetividades que instauram modos de habitar, de sentir, de pensar, de criar, de se relacionar. Neste sentido, a construção do espaço urbano como território existencial, em seus aspectos materiais e imateriais, propicia a homogeneização cada vez mais forte da vida, ameaçando de paralisia os procedimentos de subjetivação. Obras que problematizam essa nossa cidade por meio de ocupações artísticas parecem ter nascido dessa permissão, desse exercício feito na disciplina de Escultura I, tocando em uma rede de afetos e de liberdade de criação que aguça, a cada tentativa, a reinvenção do urbano. Em um processo de negociação com a estrutura administrativa, rígida, fixa, burocrática, indiferente aos fluxos contínuos de movimento afetivo propostos, em velocidade assustadora, na era da globalização, esses tecidos (corpo/cidade) ganham nova forma, As ruas, os lugares de multidões no século XIX, hoje locus de não permanência, espaço de trânsito intenso, nesse momento a arte a invade criando atritos. A rua perde a identidade na modernização e progresso de séculos anteriores, e, hoje apática, ela se transforma em um lugar ameaçador e de
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multidões impessoais. Isso toca profundamente nas correntes poéticas que engrenam este trabalho, no sentido de dar afeto, humanidade aos espaços ocos de concreto que sevem só de passagem. Os trabalhos artísticos nascem para a cidade, mapeando a memória nos escombros, de onde ouço ainda os lamentos e gritos dos que nas ruas vendiam frutas, ervas, leite, farinha, peixe, água... ouço a água do rio, hoje canalizado, embaixo da rua, penso que seja essa a promessa da arte, que, dentro de sua poética com o real, nasce destilando essas emersões, novas significações do mundo. Um corpo é um volume no espaço ― é o corpo que habita a cidade (e a cidade não é apenas cenário; ela ganha corpo quando é experimentada). O corpo é paisagem. Não somente uma imagem pregada no horizonte, mas ela é sensações, desejos, desterros... Nós somos a paisagem... A intervenção artística na paisagem é uma intervenção no modo de habitar, reconhecer dentro do humano essa paisagem que, como artista, crio.
Intervenção, campo de
experiências... A experiência de viver a cidade fica inscrita na pele. As histórias que os corpos contam mostram as práticas cotidianas do espaço vivido. Assim, interessa-me investigar uma política de subjetivação que vem sendo produzida pelo “capitalismo mundial integrado (CMI)”11: o corpo na cidade é bombardeado por um turbilhão de forças de todo tipo ― principalmente para poder corresponder às necessidades de mercado, do efêmero, da constante novidade ― e nos parece que o que se tem produzido são modos de vida que tendem a
11 “O capitalismo é mundial e integrado porque potencialmente colonizou o conjunto do planeta, porque atualmente vive em simbiose com países que historicamente pareciam ter escapado dele (os países do bloco soviético, a China) e porque tende a fazer com que nenhuma atividade humana, nenhum setor de produção fique de fora de seu controle.” (GUATTARI, 1981).
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buscar uma “domesticação” dessas forças, coisificando os entes do mundo, e, muitas vezes, acabando por tirar os significantes maiores dos elementos para darlhes função. Essa função, com o tempo, ganha a ilusão de ente estabelecido. O que mais sobressai, nos posicionamentos criativos e sensíveis em relação a essas novas propostas urbanas é a arte, buscando a cooperatividade em sua essência por evocar novas emblemas de pertencimentos e reconhecimento. Não só sensível aos espaços que, ocos de nosso convívio, restam desencarnados, apáticos... mas ao outro, o povo, o corpo, criando essas vozes que cartografam uma outra cidade dentro dessa de nosso dia a dia. Felix Guattari (1992) afirma que: “Os objetos arquitetônicos, bem como a cidade, apresentam-se como portadores de uma função subjetiva que não deve ser abandonada ‘ao sabor do mercado imobiliário, das programações tecnocráticas e ao gosto médio dos consumidores’. Tal advertência não se faz ao acaso. Ao contrário, pretende-se ativar uma reflexão acerca do potencial tanto de espetacularização, criação de cenários de vida estéreis e de perda da própria corporeidade, quanto de um coeficiente de liberdade criadora, passível de ‘ultrapassamentos, de transformações no próprio jogo das forças’.”
Observa-se esse conceito se tornando presente em projetos nos quais o corpo da cidade entra em relação de composição com o corpo humano. Assim, o objeto arquitetônico ou urbanístico é a própria interferência urbana, emissor de afetos, que, longe do espetaculoso, fala da consolidação de outros modos de existência, modos comprometidos com a construção do comum. São ciclos de completude sob a perspectiva da criação. Arte no tecido urbano que assume a materialidade do cotidiano e suas questões conceituais ― o efêmero, a velocidade, a desconvivência ― como problemas, a fim de atuar na rotina da cidade. Nas pesquisas, a obra se faz a cada instante, na troca com o outro, no convencimento, pela via de invocações orais.
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“De toda maneira, a arte conceitual ajudou artistas e críticos a repensar seu caráter material, o que abriu as portas para novas experimentações, práticas e reflexões sobre o que é arte e quem são os artistas. Mesmo que não se possa classificar a arte contemporânea como conceitual, há um conceitualismo presente que rejeita a ideia do objeto de arte autônomo e defende uma estratégia e uma forma de pensar a arte e sua relação com a sociedade.” (COSUTH)
Transformar é, com certeza, a energia de vibração maior na nossa competência de artista. A intervenção Caminho das Águas ganha todas as camadas de interpretações possíveis. Muitas faces, perguntas, valores, funções lhe foram atribuídas em toda sua extensão. De maneira consciente, até certo ponto, o projeto Caminho das Águas manipulou situações do cotidiano pensadas e executadas para saírem do domínio artístico e passarem ao domínio coletivo, colaborativo; a força de cada olhar transformando essas pesquisas em paisagem, em realidade, em vida... Ao se converter sempre e sempre em coisas maiores, codificadas e identificadas pelo artista, Caminho das Águas tornou-se, em alguns aspectos, sua própria representação. Em Florianópolis (SC), foi notícia no jornal mais lido da cidade, na crença de que o artista fazia parte do time de futebol da ilha, Avaí, e pessoas deram entrevistas sobre isto. Ou seja, a intervenção em espaço público tira sua força conceitual da real presença no mundo, de seus significados e da dinâmica possível, nutrindo-se do desejo inerente a seus usuários de reinventar a cidade. A matéria manipulada pelo artista é gerada nas construções; a arte, na nossa escala, abre-se às “falas emudecidas de nossa história”12. As premissas que nos são direcionadas e discutidas pelas pesquisas e pelo trabalho, Guy Debord as explicita quando trata da deriva8 como um modo de alterar essa condição humana 12 MAIA, Rubiane. Escritora, artista, performer. Graduada em Artes Visuais e Mestre em Psicologia Institucional pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
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na paisagem, e as práticas artísticas descritas nesta monografia experimentaramnas. “Ao realizarem a deriva, os sujeitos poderiam criar modos relacionais para lidarem com a alteração de suas óticas e comportamentos, de adentrarem ou construírem furos, ou ruídos, de transformações, ou, como Jameson denomina, fissuras na estrutura do poder. [...] Durante a deriva, ou qualquer ação artística, mesmo que o patrimônio esteja regido por interesses individuais, um grupo não perde a noção de coletivo em detrimento à noção de mercado. Na deriva, todas as relações devem se dar espontaneamente, ou serem permeadas pela busca do espontâneo.” (DEBORD, 1960).
À medida que a prática desse deslocamento ganha uma vivência aprofundada pela imanência e uma reflexão, pela crítica e autocrítica, será possível visualizar obras formuladas e nascidas dessas frentes de contato convivente pela capacidade transformadora de todos os seres conscientes. São campos de paisagens de afetos, são campos de corpo-paisagem, são campos de paisagensexperimentos, paisagens humanas, paisagens coletivas, horizontes para uma boa arte. Mais que respostas, perguntas: paisagem hoje é pertencimento? Qual é o significado real das cidades nas nossas vidas? Somos consumidores de paisagem? Ou cidadãos da paisagem? E o corpo é subjetivação de que, na paisagem?
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CAPÍTULO 2 - CAMINHO DAS ÁGUAS 13
Uma obra construída dentro do conceito de intervenção urbana e site-specificity 14 - ilha capital invade o corpo da cidade com uma linha azul, aonde o mar vinha antes dos aterros? mapeando modificações do traçado ao longo tempo da borda d’água destas ilhas. São plásticas que ocultam identidades geológicas, são meios de uniformizar todos os lugares do mundo e tudo virar um acúmulo de caixas, umas bonitas e outras não, nas operações de urbanização. Tenho que me corrigir sempre ao afirmar estas intervenções numa linha especifica de trabalhos artísticos, exemplo intervenção urbana. Ela é muitas outras coisas... Um conjunto de fatores é corpo de sentidos, com a nossa experiência urbana e também suas identificações sensoriais, é corpo de afetos quando essa cidade só existe pela via de nossa existência emocional, psíquica, física. A força desses territórios é humana. Trata-se, portanto, de rememorar o antigo limite entre mar e terra em uma releitura poética. Talvez a exploração continuada de recursos naturais não renováveis seja uma procura de justificativa para algumas obras, mas vejo-as como efeito das energias do mundo... Na voz de Borem, estudante de Artes da UFES e nosso colaborador na intervenção artística, “este trabalho só poderia existir hoje... depois do mar aterrado...” Acaba por ser mais um ciclo natural das coisas do mundo. Cabe à obra um redimensionamento. Intervir nos jogos de força que compõem a cidade, ser mais uma voz no turbilhão de informações e movimentos, o silêncio de
13 LUBE, 2010. Projeto aprovado em 2008 na Bienal do Mar, lançado pela Casa Porto de Artes Plásticas, Vitória, ES, edital Arte e Patrimônio/2009, em sua segunda edição pelo MINC, Paço Imperial, patrocinado pela Petrobras. Obra de intervenção urbana construída em Vitória (ES) e Florianópolis (SC). 14 Cf. KNON, 1996.
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uma demarcação que vai seguindo a cidade, um risco azul que arranca um mar de lembranças, um mar de afetos, uma cidade que não existe mais. A ação poderia habitar muitas cidades litorâneas brasileiras que viram a transfiguração dos aterros. Sua matéria é a investigação das urbes perdidas no tempo. Apropriar-se do território público como uma convocação antropológica da existência. Resgatar o pertencimento ou a capacidade de transformação. Nossos espaços urbanos sofrem com sua monumentalidade oca, engrenagens em rumo da solidez cinza do concreto, “progresso” aqui entendido como dominação inconsciente15 da natureza. Mas é na ilha que a obra encontra seu caminho. Partindo da análise geológica, uma porção de terra cercada de água por todos os lados. Lembrando o processo econômico histórico do Brasil, o porto foi sempre fundamental para exportação de matéria-prima para países “desenvolvidos”. A água é um fator determinante para o território, haja vista que o interior do país só veio a ser ocupado posteriormente. Nesse sentido, as ilhas, com seu posicionamento geográfico privilegiado relativamente ao continente e ao oceano, se tornam “capitais”, em um enfrentamento de conexões identitárias com o lugar. A Federação, quando entra nas engrenagens do desenvolvimento acelerado, às ilhas impõe as barbáries geográficas conhecidas, aterros, pontes, toda uma característica geológica transfigurada brutalmente, pois a capital de um estado tem que crescer a qualquer custo. A cidade se alastra, tomando do mar seu espaço. Demandas crescentes da população, da habitação, dos aparatos administrativos não cessam. 15 Inconsciente no que tange ao sistema harmônico e complexo de equilíbrio da vida no planeta Terra.
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Instigar, caminhar, perceber, conhecer, ambicionar, lembrar, imaginar, ver, flagrar, escutar, conversar, interagir, pintar são ações do processo de intervenção que não se esgotam de imediato. É um processo que visa ao conhecimento, à interação, ao trabalho físico, à participação emocional, ao elo, ao estimulo da memória, ao sentido de ocupação, à revolta, à razão. Ele traz um novo enfoque a uma antiga história de luta por espaço que acompanha o homem frente ao mar. Cidades costeiras e montanhosas costumam retirar do mar o seu espaço de ampliação e Vitória não é diferente. Sem aterros quase não haveria cidade na ilha. A linha, ação física na própria paisagem, problematiza o espaço urbano, força questionamentos coletivos, um enfrentamento entre tempo e memória que se elege em uma investida híbrida na questão patrimonial, à medida que cria uma materialidade efêmera sobre a teia da própria paisagem, apontando para um embate homem/natureza. Faz-se consciente de sua condição, graças à sua não permanência e ainda convida a cidade a vivenciar ela mesma outras perspectivas temporais, físicas, biológicas, geológicas. Logo, conduz a cidade a imaginar outro território em outra temperatura, outra arquitetura, de vielas com cheiro de mar... Enfim, elementos antes tão afastados. Trazendo a ação para o cerne do movimento urbano, tanto sob o ponto de vista da poética quanto dos embates políticos ou, ainda, das premissas “proféticas”, a linha simbólica traçada no concreto sugere um caminho a ser percorrido e faz deslocar para o chão e o infinito o olhar do transeunte. As apropriações físicas e sensoriais que o compelem a múltiplas questões não conseguem ser somente apreendidas pelo olhar. A própria escala geográfica propõe um passeio por todas essas paisagens. Aciona um pertencimento ao lugar que, também, suscita ritualizações de seu uso mediante práticas e códigos que identificam esses
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territórios para os grupos. “O olhar hoje é um embate com uma superfície que não se deixa perpassar” (PEIXOTO, 2001). É fator que exerce a sua importância física e geográfica, mapeando a gramática do espaço e do corpo que fica impressa na cidade por meio de uma espécie de palimpsesto nas camadas de existência e paisagem.
Caminho das Águas, Arte e Patrimônio. Arq. do artista, 2009
Os apontamentos dessa obra são fortes: um olhar de prospecção, um olhar de saudade, de vontade, de origem; um olhar de invenção, de reconhecimento; uma vontade de pintar, de intervir, usando para isso uma voz como dispositivo de arte pública, uma inter-relação que joga com realidades similares, porém singulares. Assim, considerando os dois vieses, os trabalhos fazem aflorar, na genealogia dos lugares, suas intransferíveis estruturas poéticas: o nome antigo das ruas, as casas, as famílias tradicionais... A linha é uma possibilidade de produção de agenciamentos os mais diversos. Passa a existir trazendo questões aos códigos de conduta da cidade,
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transfigurando a responsabilidade de territórios privado e público. A única real liberdade quanto à forma está no desvio da noite, pois esses códigos de conduta são todos inscritos em lugares como o centro das capitais que, de dia, vivem infernalmente tumultuados, cheios de carros, pessoas, e, à noite, solidão é a palavra. Todos os atentados poéticos devem acontecer de noite; é uma forma de guerrilha. Outra cartografia é inscrita na cidade. Um convite para uma travessia, um passeio sobre as outras cidades que habitam ali. Logo são formadas novas escritas no corpo do território. Com o passar do tempo, a presença do corpo investiga o caminho das águas. O questionamento poético da antropologia do território, buscando a identidade natural dessa cidade, vem lembrar os espaços outros que integram esses lugares, dando-lhes valores e significados. Juntas, cidade e sociedade criam e refletem novas identidades. “Os processos de mudança social, político e econômico transformam a paisagem e contam a sua história, marcas de ocupação, embora não haja um limite preciso entre espaço, paisagem e lugar como fenômenos experienciados, a realidade urbana contemporânea é composta desses fragmentos materiais e temporais, fragmentos sintonizados e em constantes movimentos interligados pela malha de identidade social.” (MARINATO, 2001).
É uma releitura do próprio desenho territorial, prevendo-o como fenômeno histórico e geográfico, antinatural, patrimônio material das nossas cidades, uma peregrinação artística. Cidades fantasmas, memórias aterradas na dimensão das relações humanas, obra que cava o concreto com pincéis, procurando e fazendo nascer afetividade desses territórios.
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2.1 O início A obra Caminho das Águas foi imaginada para uma situação específica, um site orientado: o salão de arte Vitória Bienal do Mar, 2008. O que fez nascer esse trabalho? Com o tema “mar”, o salão, limitando o território, ofereceu uma proposição, um lugar para ocupações artísticas e um financiamento para execução de dez projetos em nível nacional.
Bienal do Mar, proposição de obras em relação à cidade. Arquivo do projeto municipal, 2008
Morando na ilha, eu fazia um curso no programa Circuito Cultural, pela prefeitura de Vitória, com o arquiteto Pedro Canal Filho16, com oficinas para reconhecimento da memória da cidade. Com sua bagagem prospectiva dada pelo ofício de restaurador, esse mestre falava das construções, dos monumentos e de suas localizações históricas em relação ao desenho original da ilha. A Capela Santa Luzia, Cidade Alta, em Vitória, fora construída de frente para o mar, e hoje não se tem mais essa referência visual. Ali, dentro das circunstâncias territoriais 16 Diretor-presidente do Instituto Goya (Cidade Alta, Vitória, ES)
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definidas, começaram meus desenhos de construção do enredo artístico. Onde o mar passava? Vasculhar a cidade e seus documentos para encontrar o caminho das águas aterrado na ilha.
2.2
Edital Arte e Patrimônio, IPHAN - 2009
Apontou-se o corpus de conceitos para a prática interventiva, com seus alongamentos. Nutrido, nas suas primeiras investidas, com a experiência de outra cidade, esse conjunto faz nascer, dentro de códigos relacionais, as identidades territoriais e culturais brasileiras, para as investigações e suas reverberações nas multiplicidades possivelmente utilizadas para se pensar a questão artística no âmbito urbano. A obra e seus desdobramentos provocam um enfrentamento com campos de valor, na intersecção entre arte contemporânea e patrimônio. Enveredam por uma direção de aglutinação e efemeridade, sendo o ponto de partida os registros históricos das alterações das áreas urbanas, sobrepondo-se mapas antigos aos atuais e verificando-se os acréscimos territoriais nas áreas urbanas. Aglutinação, porque insere mais uma camada (a linha contínua azul) no tecido urbano; efemeridade, porque a linha será diluída pelo tempo, ofertando uma multiplicidade de embates com a memória. Falando de outro modo, a proposta da intervenção Caminho das Águas é pintar uma linha azul em duas capitais brasileiras (Vitória, ES, e Florianópolis, SC) que foram aterradas ao longo dos anos em um processo de ocupação urbana, e modificado o seu traçado pela ação humana. Trata-se, portanto, de rememorar o antigo limite entre mar e terra em uma releitura física.
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Redesenhar na própria cidade as beiras naturais entre mar e terra, limite transfigurado pelo progresso em forma de aterro, simboliza uma mudança no imaginário coletivo da relação com esse espaço na identidade visual e toda uma valoração de cidades outras que moram debaixo dessa. Em uma atuação poética no espaço, “escutar o lugar”, perceber o movimento de adaptação do sítio natural às ruas onde caminhamos hoje, num enfrentamento a essa paisagem, a obra habita representações cartográficas do mesmo lugar com tempos diferentes, a articulação limítrofe de uma paisagem que não existe, que foi aterrada pelas dragas e pedras, em uma pré-inscrição da linha azul (cartográfica) que se desvela nessa pintura, materialização de uma trama de conversações imateriais,
subjetivas,
interdisciplinares,
afetivas,
políticas,
administrativas.
Mapa da intervenção, Vitória, 2010
econômicas,
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Intervenção em Florianópolis, Arte e Patrimônio - Arq. do artista, 2009
A obra suscita algumas indagações. A primeira, possivelmente, é o motivo para mais uma interferência visual em espaços já bastante atingidos por informações de toda ordem, e de mais um ruído dentre os inúmeros que disputam sua percepção. Entretanto, a continuidade da linha, que não pode ser toda apreendida pelo seu campo visual, atravessando, como novas artérias, a cidade, indica outras direções para a questão inicial. Provoca e deixa em suspenso a proposta artística para todo aquele que desconhece seu papel de assinalar, na evolução urbana, as ordenações, as relações com o ambiente de urbanização, por meio de um conceito experimental. Aqui, a investida é em reinventar possibilidades de conexões intelectuais e afetivas com a cidade. Antes de bairros e avenidas tomarem o espaço da baía, as ilhas de Vitória ― do Príncipe, de Santa Maria, de Monte Belo, do Boi ― eram ilhas, isto é, terras cercadas de água por todos os lados. O panorama foi se alterando ao longo do
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século XX, com os primeiros aterros na região do Parque Moscoso, Jucutuquara e Ilha de Santa Maria. A conclusão desse processo se deu nos anos 1980, já na Praia de Santa Helena e na Praia do Suá, com a construção da segunda ponte e da nova rodoviária na região da Ilha do Príncipe.
2.3 Poética in situ Essa obra está em processo de significação, de multiplicação, de continuação. Deve prolongar-se para outras cidades, outros estados, outros países, prospectando outras águas, com possibilidades infinitas de atuação, tal como o embate do homem com a natureza. As cidades guardam em seu manifesto urbano uma teia de agentes, significados e significantes em constante multiplicação e movimento, em construção e desconstrução permanentes de fragmentos, produtos de infindas e múltiplas percepções que coabitam os mesmo lugares, resultados da globalização, que
Intervenção Vitória - Arq. do artista, 2010
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atuam em uma troca muito intensa de pessoas. mercadorias e áreas em transição, valores, marcas, referências e identidades. Em questionamento poético de antropologia do território, buscando a identidade natural dessa cidade, Caminho das Águas vem lembrar os espaços outros que integram essas regiões, dando-lhes valores e significados. Juntos, cidade e sociedade criam e refletem novas identidades, assim “paisagens contêm lugares e lugares contêm outras paisagens" (SANTOS, 1991). Tornar possível diante dessa paisagem atual todas as outras paisagens que também habitam esse mesmo lugar, adormecidas; é a reconstrução simbólica da memória dessas cidades, patrimônio foco de atuação do Caminho das águas, pela sua vitalidade social e seus infindos ares de reverberação. Como Mnemosine, a deusa da memória na Grécia antiga, que dava aos poetas e adivinhos o poder de voltar ao passado, de lembrá-lo para a coletividade, Caminho das Águas assim o faz em um processo físico e intelectual, destrinchando em prospecção a paisagem contemporânea, trazendo todas as outras cidades que vivem embaixo dessa que está à superfície.
Performance interventiva, à luz do dia, Florianópolis, 2009
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A área de atuação desse projeto é de interface interdisciplinar, desdobrando-se em múltiplas especificidades e encontrando, na linha azul, transformações ocorridas nas beiras naturais entre mar e terra por meio dos aterros. O desenho natural foi transfigurado em nome do progresso, no antigo encontro de terra e água, hoje apenas calhas funcionais do fluxo urbano, e acima deste, é que rasgo com tinta e pincel a memória natural desses espaços. Partindo do entendimento de que esse traçado é memória coletiva da realização humana, prevendo a cidade como fenômeno histórico e geográfico em sistema dinâmico, complexo de passado e presente, apresentando os sinais do tempo que nela impregnaram profundas marcas, a delimitação das áreas, no chamado domínio cultural, mapeia todo o processo civilizatório desses espaços, tornando possível, por meio da arte, que o terreno natural em vez de prover o ambiente para uma obra de arte é, ele próprio, trabalhado de modo a integrar-se à obra. Imagem da área da intervenção artística em Florianópolis, 2009
Imagem da área da intervenção artística em Florianópolis, 2009
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A apropriação física supõe ritualização de seu uso, mediante práticas e códigos que identificam esses territórios para um grupo; a globalização dilui a ideia de domínio cultural, ampliada nas ilhas capitais como elemento patrimonial, representando identidade geológica, cultural e a transformação desse espaço exigindo uma ação interdisciplinar de abordagem. Ligam-se memórias geológica, natural e cultural, recosturando narrativas de ocupação e desenvolvimento urbano em seus ciclos. Materializam-se as ideias de cidade, mapeando essas alterações por meio dos aterros que transformaram os desenhos originais dessas ilhas capitais, o poético deste trabalho.
2.4 Descrições operacionais
Caminho das Águas, Arte e Patrimônio, Florianópolis - Arq. do artista, 2009
O trabalho é uma linha azul com 30cm de espessura. Cada capital recebeu uma média de 3 a 5km de linha azul. Vitória, com duas intervenções, totalizou 9km, o percurso das águas, de área demarcada contínua. Planejavam-se três meses para cada cidade, narrando seus passos de modernização, ou seja, descobrindose aonde o mar chegava antes dos aterros, construindo-se uma teia de relações de executoriedade dada somente pelo convívio.
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Essa linha é pintada no chão das avenidas por onde passa o percurso inscrito no mapa, seguindo as formas naturais do arquipélago.
O ato de pintar faz com que a ideia e a força do fazer artístico manual, no meio de tantas tecnologias, parafernálias maquinadas, sejam afirmadas como ponto de orientação da reflexão urbana diária que a intervenção pretende provocar.
O caráter efêmero da medida é para que a cidade continue com seu fluxo de organismo vivo, com pessoas, automóveis, bicicletas...
Azul pela referência ao mar, protagonista e percussor dessa pesquisa.
A linha é o resgate físico e visual de marcas memoráveis da cidade e uma tentativa simbólica de escrever sua história documental.
É uma linha contínua.
Na ilha do sudeste, Vitória, um levantamento parcial foi realizado durante a execução do trabalho no já referido Salão do Mar. Em Florianópolis, a ilha do sul, o processo será iniciado com a análise do mapeamento dos aterros em arquivos públicos, livros de história com descrições físicas dessa capital ao longo dos anos, para que se chegue aos limites originais entre mar e terra. Inscrita no piso da cidade, em meio ao fluxo intenso de pessoas e veículos, a execução só pode ser realizada no período noturno e nos fins de semana, quando diminui o trânsito nas áreas que forem destinadas à intervenção. Esta, por sua vez, somente será realizada após a concessão de licença pela Prefeitura local, que também deverá indicar os responsáveis de cada Secretaria envolvida na realização dos trabalhos, ou seja, orientação sobre o código de posturas da
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cidade, limpeza das áreas de ação do projeto e interdição do trânsito de veículos nos locais previstos no cronograma de trabalho. Apropriando-se da cidade como suporte para a arte, aproximando-a da vida, a equipe de execução demarcou, nas áreas selecionadas, o antigo limite entre mar e terra, utilizando pincéis, rolos, cabos, marcadores e tinta azul para piso. Os habitantes das ilhas, os visitantes, transeuntes irão participar da materialidade efêmera da memória dessas cidades, retirando, com seus passos, a tinta do caminho... o fluxo intenso das cidades desgastará a ação, as vassouras, as rodas dos carros a descascarão, mas os curiosos lembrarão que refizeram o percurso das águas de um mar de nunca mais. Nunca mais... quem sabe? A natureza nem sempre é previsível.
2.5 Residência artística
Operação da obra, aplicação artística da técnica pictórica da intervenção
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Mapa com as representações das ilhas, Vitória e Florianópolis, unidas pela intervenção. Acervo do artista, 2012
Sobreposição territorial, Vitória antiga e Vitória contemporânea. SEDEC-2011
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O período de integração no território, seu mapeamento, assume em residência o “caminho das águas”. As investigações, tanto do processo histórico das capitais em questão quando da engenharia social para a ação da intervenção, fazem nascer uma relação sensorial com as cidades. O trabalho pede mais que conceito, mais que uma experimentação de convívio; pede paixão, pois é árdua a tarefa a executar, e a residência proporciona o fundamento vital que é a escuta do lugar. Um trabalho que se presta a ouvir a memória da paisagem na paisagem, realidade aumentada pela ausência, tornando a cidade habitável novamente. Processos de integração à dinâmica viva da vida em ação artística, experimentando as tramas pendulares da complexidade de cada lugar e do percurso do ato na cartografia, sua realização, a fluidez da tinta e o poder de agir e apropriar-se das diversidades do percurso, cabendo a essas a metafísica desse trabalho. A residência é uma integralidade sensorial, “corpográfica”, espiritual, a matéria da obra. É um estado da arte, que eleva a percepção ao ponto de vista do objeto.
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Essas séries de integração imersivas no tecido urbano são reflexões poéticas que estão além das pesquisas históricas; são acervos da memória coletiva que indagam sobre o processo de urbanização, um dialogo intelectual explorando um território de alma e superfície, de tempo e homem. Processo de escuta, uma busca por aquilo que já foi, um olhar etnográfico, uma arte que vislumbra, com a matéria do tempo, sua experiência com o lugar.
Arquivo do artista - Carta Liberação 2009-Florianópolis-SC
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A investigação artística é o desafio maior, no que tange à memória de paisagens desta cidade, pois o caminho da cartografia que se procura é físico, mas o efeito é afetivo, sentimental, a herança e as perdas humanas. A residência artística vira ponto de contato constante, imersão total no sítio em construção da obra. Ela existe tentando encontrar em cada olhar uma lembrança; em cada fragmento uma mensagem; em cada habitação um hábito ritualístico, identitário da cidade. Nas camadas existenciais sobrepostas, a materialidade de uma cidade se estende e esse trabalho traça duas linhas em seu percurso. Vivenciar esse processo de transformação da paisagem é ver a prospecção da mesma em um palimpsesto, chegando às paisagens submersas. Interação e integração com a paisagem contemporânea e seus componentes (homem, arquitetura, vida biológica, história), em uma espécie de imersão que tem por objetivo decifrar fragmentos poéticos, pensamentos, momentos, a vida e memória dessa paisagem, para relembrá-la na ação interventiva Caminho das Águas. Na tentativa de reviver essa paisagem, a leitura iconográfica da cidade, está o fascínio de mergulhar em todas as representações cartográficas da cidade e ir prospectando, imaginando, intuindo, morando, neste território que não existem realmente mais. Memória e o olhar artístico transformam a cidade em grande centro fenomenológico de questões e reflexões poéticas do existir e das marcas deixadas na terra. Nas palavras de Peixoto (1996): “... O olhar hoje é um embate com uma superfície que não se deixa perpassar. Cidades sem janelas, um horizonte cada vez mais espesso e concreto. Superfície que enruga, fende,
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descasca. Sobreposição de inúmeras camadas de material, acúmulo de coisas que se recusam a partir. Tudo é textura... o skyline confunde-se com a calçada; o olhar para cima equivale a voltar-se para o chão. A paisagem é um muro. Cidades feitas de fluxos, em trânsito permanente, sistema de interfaces. Fraturas que esgarçam o tecido urbano, desprovido de rosto e história. Mas esses fragmentos criam analogias, produzem inusitados entrelaçamentos. Um campo vazado e permeável pelo qual transitam as coisas. Tudo se passa nessas franjas, nesses espaços intersticiais, nessas pregas. Cidades de histórias dotadas do peso e da permanência das extraordinárias paisagens. Horizontes de pedra, em que o mais moderno convive com a decadência; o futuro, com a antiguidade. Um solo arcaico, juncado de vestígios e lembranças. Visões da cidade como um sítio arqueológico”. Pensa-se na construção da paisagem como um processo histórico, no qual as transformações são representadas nas relações e práticas de sociabilidade, em que ideologias se materializam e são criados os lugares. Investindo nessa integração, a arte firma um código vitalício em uma teia de reconhecimentos, entrelaçando-os: identidades, paisagem, lugares, memória, pessoas, tempo, territórios. A memória urbana não existe por si mesma. Ela é produto de uma determinada forma de ver a cidade, constituída coletivamente Por isso mesmo, é importante recuperarmos, do passado, as vertentes ou as origens da construção da paisagem na cidade, de forma a presentificar o tempo, grande cadeia.
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2.6 Textos críticos Os textos foram desenvolvidos ao longo das ações do projeto artístico e invocações dos seus fenômenos. Dentre tantas travessias, interações, o trabalho cresce e renasce milhares de vezes por dia quando é tocado pelo olhar, e, mesmo sumida em alguns pedaços da cidade, a linha se acende na sua potência de percursos e de memórias afetivas, indo ao encontro da cidade em sua nova concepção. 2.6.1 Aguinaldo Farias17 Com Caminho das Águas, Piatan Lube dá à memória a forma discreta de uma linha contínua de um azul-claro bem vivo pintada sobre o chão, com trinta centímetros de largura: os limites originais da cidade, as beiras naturais da terra e do mar. Quem hoje sabe disso? pergunta o artista. Aterramos o mar com a mesma inevitabilidade com que sepultamos nossos heróis, nossos traidores, nossos antepassados mais anônimos, enfim, as vozes e feitos daqueles que nos precederam, tenham sido eles dignos ou não, pouco importa. Recobrimos o território, ampliamos o nosso chão, aproveitamos a docilidade dos mangues e braços internos de mar para transformá-los em calhas funcionais, sem ao menos extrair a lição de que tudo isso serviu a propósitos mutáveis como o tempo, como nós mesmos. Andamos por nossa cidade sem a consciência das outras cidades que jazem adormecidas debaixo dela. Ignoramos todo o enorme trabalho despendido, toda a carga de desejos que animou todas essas modificações sem que com isso percebamos que estamos nos condenando a sermos igualmente descartados.
17 Crítico de arte contemporânea brasileira, curador da bienal de SP, na sua 28ª edição, convidado pelo Salão do Mar para ser curador e júri na escolha dos projetos a serem executados no 8º Salão de Intervenção Artística Urbana, na capital Vitória, ES, Brasil/Catálogo.
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2.6.2 Víctor da Rosa18 Talvez o esforço do artista capixaba Piatan Lube ― e devemos pensar mesmo em esforço (poético e intelectual, certamente, mas físico também) já que tanto em Vitória quanto em Florianópolis, duas das três ilhas capitais do Brasil, foram quase 10km de linha azul pintada no chão, em cada momento ― talvez o esforço possa ser resumido em uma imagem: estender o nada ao lugar nenhum. Caminho das águas, como se sabe, é uma intervenção que, por meio de uma marcação no chão das cidades ― pode-se lembrar de que linha e cor são os recursos mais elementares da história da pintura ― pretende recuperar o limite onde o mar quebrava, apenas. É onde tudo começa. O primeiro comentário diz respeito a uma leitura política; trata-se de um protesto. De fato, existe um dispositivo de intervenção política colocado em cena de modo aberto e até mesmo declarado: a ocupação. A linha invade ruas, calçadas, sobe em postes, cruza faixas de segurança, contorna bancos e objetos, ou seja: tornase, ainda com algum silêncio, forçadamente visível. Ao mesmo tempo ― porque parece indispensável ― tal ocupação é negociada com os poderes locais: um documento legal autoriza que a faixa faça um determinado trajeto e subtrai dos policiais, por exemplo, como aconteceu no sábado, 21, qualquer possibilidade de interdição. Em Vitória, a faixa foi realizada durante uma madrugada; em Florianópolis, diferente, a realização aconteceu durante dois dias de um final de semana. A imagem do artista contra a máquina, a meu ver, está repensada através de um uso pervertido de seus aparelhos. A linha, ao rasurar o aterro, torna visível afinal justamente uma cidade que não existe mais, torna visível um desterro mesmo ― o mar ―, já que o jogo de palavras acaba sendo inevitável; ou por outra, a linha remarca o imaginário perdido de uma paisagem. Não é aleatório que um dos interesses de Piatan seja também o de recolher e publicar depoimentos de pessoas ― no caso, mais velhas ― que viveram o trecho da cidade antes de ser aterrado. No célebre verso
18 Ensaísta, Mestre em Literatura pela UFSC, autor de Piano e flauta – fragmentos de um romance (2007) e organizador de 99 poemas de Joan Brusca (2009). Mantém o blog www.victordarosa.blogspot.com
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de Mallarmé, o fantasma que reaparece é azul: “Je suis hanté. L'Azur! L'Azur! L'Azur! L'Azur!” Uma das marcas de Caminho das Águas, então, passa a ser o desejo da formação, ainda que provisoriamente, de uma pequena memória coletiva ― o artista voltará à sua cidade, a linha irá desaparecer com a ação do tempo, mas a memória talvez seja o que há de mais material nisso tudo. Um dos cuidados da intervenção de Piatan é o de saber escutar cada cidade e as pessoas da cidade com alguma atenção. A intervenção política, depois ― que poderia ficar no lugar comum, mas não fica ― consegue se equilibrar em uma forte dicção plástica, poética. Caminho das águas é ainda uma pintura com extrema consistência de linguagem ― em campo expandido, fora do quadro, no chão, como queira, mas pintura. A pintura consegue ser concisa, simples e até modesta ― vale repetir que os recursos são os mais elementares possíveis: uma linha apenas e uma cor ― mas também absolutamente direta, dispendiosa ― foram mais de 20 pessoas realizando o trabalho durante dois dias, com mais de 20 litros de tinta para pintar quase 3km de chão, envolvendo uma difícil e até desafiadora estrutura de direção. Em poucas palavras, ao mesmo tempo em que a pintura ativa elementos quase imateriais, “infraleves”: água, linha, memória, desaparição, fantasmagoria, também deve lidar com um processo que carrega certa dificuldade: o fechamento de ruas, a sujeira das ruas, nas roupas, os galões de tinta, o peso dos objetos, hostilidades, chuva. Depois, a pintura é realizada para que as pessoas, no momento seguinte, agora mais perto do chão, andem sobre a linha, naturalmente ― é um caminho a ser feito, de fato, um percurso ―, e de algum modo recoloquem na encenação dos dias um novo processo de apagamento da memória. No entanto, daqui a três meses, talvez, haverá ainda um resto de azul entre as lajotas. É a esse resto que damos o nome de esquecimento. E o artista, no meio de todo processo, também deve desaparecer. Sua intervenção passa a ser um aprendizado de música. Os milhares de pessoas que passavam pelo Centro na segunda-feira ― o processo de pintura acontece enquanto a cidade está deserta ― sequer podiam saber do que se tratava. A cidade é um Museu; a linha olha e atravessa o outro com alguma surpresa. É
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como se a linha afinal recuperasse o seu silêncio. Como se tudo voltasse a ser um risco, enfim, uma rasura que logo se apaga ou não se apaga afinal. 2.6.3 Rubiane Maia19
Na presente oportunidade, a proposta sobre o Caminho das Águas é redimensionada para abarcar tanto a capital Vitória como Florianópolis. Cria-se uma inter-relação que joga com duas realidades similares, porém singulares. Nas linhas desse dispositivo, vemos como possibilidade de produção agenciamentos dos mais diversos. Esses, além de comunicarem um contorno de ilha que pouco se assemelha ao dos anos atrás, colocam em questão a invenção de outras cartografias sobre as cidades. Estas percebidas, num sentido macro, por um contexto da fluidez das águas que perderam seu lugar nos últimos anos, e micro, pelos diversos encontros que foram se constituindo ao longo da sua constituição de pintura-linha-território. Ativação de falas emudecidas pelo tempo. Temos uma nova orientação: captura demarcada a ser explorada, percorrida, sentida, narrada. Afetos que ganharam passagem. Nosso lugar de habitante sedentário perde lugar para a retomada do nomadismo. Percorrer essa linha é partir em busca de saber sobre o mar, a cidade, o tempo, sobre tudo aquilo que estamos deixando de ser. “A fluidez é provavelmente o fenômeno mais característico dos líquidos” e é dessa forma que somos acionados a esses espaços... Caminhantes a seguir por uma cidade que se desmancha sobre si mesma, flui e vive. “E quando falo em fluidez, penso não apenas na fluidez mecânica, ou seja, nos deslocamentos, mas nas inúmeras possibilidades de dissolução que remetem a outras vias de acesso, a ideias de transformações e
19 Graduada em Artes Visuais e Mestre em Psicologia Institucional pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Trabalha com performance, intervenção urbana, fotografia e vídeo. Escreve textos livres e ensaios críticos sobre arte. Entre 2009-2011 integrou o núcleo de pesquisa LIS/Cnpq/UFES Laboratório de Imagens da Subjetividade. Coordenou no LAP! - Laboratório de Ação e Performance o projeto TRAMPOLIM, plataforma de encontro com a arte da performance, e o BOOM – Global Creative Action (Conexão Brasil) uma plataforma mundial para ações simultâneas ao vivo e em rede.
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mudanças na forma de operar com a vida”. (JÚNIOR, 2006). Trazendo a Arte para nossa história aos saltos, a que nos remeteria hoje uma criação artística que urge pelas ruas, pela diversidade, pelos encontros e que sai em busca dos possíveis? A que essas experimentações em constante processo disparam em nossas vidas? Caminho das Águas convoca justamente formas outras de pensar nossas posses sobre mundo. Há como disparador, sobretudo, a invenção de uma nova cartografia. Dizemos, então, de uma linha que não cabe mais em sua horizontalidade, mas que, justamente pelo vento que faz soprar, forma ondas que vão de encontro ao jogo de forças que habitam a cidade, sua população e sua memória. Sua ação se desloca por variações, ora se encontra na restauração do sentido histórico e patrimonial, ora faz arrancar gritos legítimos de um mar furioso que teve seus espaços invadidos. Ecos de Iemanjá. Somos, então, forçados a pensar, que os habitantes da cidade são também como os “humanos demasiado humanos” 20, espíritos livres que habitam em total interrelação com a terra, o mar, as pedras, o céu, os morros, as casas, os prédios e todas as possíveis “coisas” que formam nossas composições de convívio. Sendo assim, como viver junto?21 Ao dispor a ação Caminho das Águas neste ensaio, surge a problematizarão que faz apelo a essa escrita. Ao operarmos com novas estéticas pelas cidades, na produção e criação de Arte em espaços e contextos urbanos, estaríamos compondo outras possibilidades de ativação em nossos corpos de habitantes, o atravessamento das intensidades e transformações sobre o vivido? Seria possível pensar no despertar de olhares mais “transversalizados”, através da potência desses dispositivos que transformam o “comum” da cidade em poética? Sair de certa anestesia para a proposição de novos paradigmas?
20 Referência a Nietzsche. 21 Temática da 27° Bienal Internacional de Arte de São Paulo.
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2.6.4 Patrícia Maria Martins 22
O mar, além de uma grande biodiversidade, pode ter abrigado as primeiras moléculas inorgânicas que, depois de sofrerem diversas reações, desencadearam a vida na terra. De bactérias a mamíferos, esses ambientes abrigam as mais diversas espécies, muitas das ainda não conhecemos. O mangue é o aconchego do mar fundamental para a procriação e o crescimento dos filhotes de vários animais, como rota migratória de aves e alimentação de peixes. Além disso, colabora para o enriquecimento das águas marinhas com sais, nutrientes e matéria orgânica. Com o desenvolvimento das cidades costeiras, o mar vem sofrendo diretamente as consequências desse avanço. É indiscutível que o desenvolvimento das cidades é importante para toda sociedade, mas o mesmo perde a sua essência se não for devidamente aplicado. Somos seres pensantes, homo sapiens, mas ainda temos que nos Humanizar, e muito, visto que aquele que pode ser um dos locais onde a vida se desencadeou vem sendo degradado diariamente. O que mais percebemos hoje é a falta de uma maior conscientização de todos para que essas áreas não sejam invadidas. Caminho das Águas vem com a força do mar envolver a todos, pessoas que retiram não só seu sustento para o corpo, mas também para a alma e têm o mar como refúgio encontram inspiração e esperança para continuarem sonhando. Desenterrar a memória viva, porém oculta, em forma de pintura, faz-nos percorrer um caminho diferente, muito mais do que uma simples linha azul é uma pausa para a reflexão: se essa força tão grandiosa, que é o mar, nos deu licença para passar, por que não podemos agradecer-lhe e representá-lo tão bem como Piatan Lube fez, representando de uma forma tão simples e tão profunda o antigo caminho do mar? Além de ser um trabalho artístico, deixa uma enorme contribuição ao meio ambiente no sentido de que faz as pessoas repensarem sobre a ocupação desordenada e resgatando artística e memorialmente o berço da vida!
22 Estudante de Biologia da UFES.
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CAPÍTULO 3 - CAPELA SANTA LUZIA
Edificada no século XVI, na Cidade Alta, em pedra e cal de ostra sobre rocha, possui traços arquitetônicos em estilo colonial, e frontão e altar barrocos. É a Igreja mais antiga da cidade e foi a capela particular da fazenda de Duarte Lemos. Segundo consta, Lemos teria mandado construí-la em suas terras para incentivar a devoção e aprimorar a educação de seus familiares e escravos. Além da capela, a fazenda estaria constituída de uma residência, um engenho de açúcar e um quitungo para fazer farinha; um conjunto expressivo, se considerada a brevidade da estadia de Duarte Lemos na capitania, já que em 1550 ele retorna à Bahia, de onde viera. A capela é uma delicada construção, erguida sobre afloramento de pedra, condição responsável por seu destaque. Ocupava a parte mais elevada da fazenda e, posteriormente, da vila emergente. Assim, é possível imaginar que, junto com a residência, tenha sido edificada de maneira a ser vista à distância e, sobretudo, permitir amplo domínio das terras. Da residência não há vestígio algum, contudo, o porte da capela sugere uso restrito aos familiares, agregados e escravos da fazenda, o que por sua vez indica uma provável proximidade em relação à morada de Duarte Lemos. Sobre sua destinação, a informação mais remota data do ano de 1845 quando, por lei provincial, a Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios se compromete a zelar e conservar a capela. A Irmandade promovia leilões e realizava concorridíssima procissão no dia 13 de dezembro, conduzindo os andores de Santa Luzia e de Nossa Senhora dos Remédios pelas estreitas ruas da vila, em festa anunciada com fogos de artifícios e iniciada com missa solene. Ainda, nas
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duas primeiras décadas do século XX, eram celebradas missas semanais, situação mantida até 1928, apesar da precariedade de sua conservação. Assim percebo o espaço físico que transborda da memória afetiva, um espaço fisicamente posicionado a ponto de ver estática, ali, no cimo da cidade alta, toda a transformação do espaço urbano que hoje abriga a prospecção e os diálogos possíveis sobre memória, ilha e obra.
3.1 Proposta A criação de videoinstalações orientadas para o projeto Caminho das Águas inclui pessoas interagindo com as instalações . As metodologias aplicadas para as videoinstalações são similares entre si, pois todas têm as mesmas questões de interação. São propostas em todas as obras formas diferentes para um mesmo fato, tais como teclado, tela touch screen, sensores e câmeras, sendo que para estes dois últimos foi necessária a participação de um profissional em programação para montar os sistemas.
3.1.1 Videoinstalação Trama Apropriamo-nos de um trabalho de Zbig Rybczynski, de 1975, chamado New Book, que é um vídeo com a tela dividida em nove partes, cada uma mostrando uma cena diferente de uma sequência maior que conta uma mesma história por meio de nove câmeras ao mesmo tempo. Com isso, pessoas e objetos transitam nos quadros quase que como sistemas de vigilância.
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Videoinstalação Trama: Caminho das Águas – Arq. do artista, 2012
3.1.2 Videoinstalações Púlpito e Altar A capela de Santa Luzia tem um púlpito que fica suspenso na parede e um altar onde fica a imagem da santa. Esses suportes terão projeções de vídeo trabalhados com videomapping.
Imagem capela Santa Luzia /arquivo para proposta de videomapping Wanderson Belo e Piatan Lube, 2010
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Videoprojeção, Exposição das águas - Arq. do artista, 2010
Intervenção/projeção dos processos sobre a textura da capela Santa Luzia – Arq. do artista, 2010
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Abertura da exposição 02/12/2010, capela Santa Luzia, Cidade Alta, Vitória - Arq. do artista, 2010
Arte e Educação, capela Santa Luzia - Arq. do artista, 2010
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3.2 Ficha técnica
Concepção-Produção Piatan Lube Moreira (ES) Curadoria Maria Helena Lindenberg (ES) César Floriano Peixoto (SC) Assessoria de imprensa Juliana Bassetti (SC) Vítor Graize (ES)
Web site Bruno Dias (ES) Charles Amaral Peixoto (ES) Videomaker Wanderson Belo (Preto) Historiografia Pedro Canal Filho (ES) - orientação Marcela Andrade (ES) Eliane Veras da Veiga (SC)
Fotografia Marcelo Motte Prest (ES) Intervenção Urbana Videoprodução Johnson Sudré (ES) Design Gráfico Directa Design
1- Ilha de Florianópolis (SC) Kassio F. Viera de Paiva João Paulo Santo da Rosa Camila Argenta Allan Heringer Carneiro Romário Ferreira Máximo
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Luiz Eduardo Crescêncio Bento Dionatan da Rosa dos Santos José Hélio Veríssimo Jr. Luana Raiter Inaki Gonzalez Urrutia Isadora Quint Amanda Gartner Michel Luiz Marques 2- Ilha de Vitória (ES) Raian Moreira Gabriel Borem Fabrício Amorim
Felipe Borba Vitor Monteiro Victor Bessa Milena Bessa Bruno Dias Marcela Andrade Robert Plent Luciano Cirilo Tiago Mangas Felipe Capixaba Tiago Folador Talis Folador Gustavo Dias
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CAPÍTULO 4 - ENTRE SAUDADES E GUERRILHA 23
O titulo da obra nasce sempre dentro do campo de intenções. Esta, aqui inscrita como intervenção artística conceitual, ávida na voz da natureza, delimita
um
campo cartográfico de atuação na cidade de Viana, ES. •
Guerrilha 24 : luta realizada por meio de pequenos grupos constituídos irregularmente, sem obediência às normas estabelecidas nas convenções internacionais, e que, com extrema mobilidade e grande capacidade de atacar de surpresa, visa ao crescimento progressivo das próprias forças mediante a incorporação de novos combatentes e abertura de novas frentes guerrilheiras.
•
Saudade25: Lembrança nostálgica e, ao mesmo tempo, suave, de pessoas ou coisas distantes ou extintas, acompanhada do desejo de tornar a vê-las ou possuí-las; nostalgia. O olhar de origem.
A residência artística na Galeria de Arte Casarão transformou-a em sitio de localização da proposta de interferência artística na cidade, com referências poéticas e valores históricos, proposição também de uma intervenção denominada Fonte. Os traços identitários do território vão de encontro a uma perspectiva da própria natureza da arte, atribuindo-se esse movimento à direção da desmaterialização do site e à desmistificação do trabalho de arte, incorporando-a ao espaço vida, usando como método a sua própria memória. “Indo contra o menor sentido dos hábitos e desejos Institucionais, e continuando a resistir à mercantilizarão da arte para o mercado de arte, a arte site-specificity adota estratégias que são ou 23 LUBE, 2011. Projeto aprovado no edital de arte da SECULT-ES (bolsa ateliê), Portaria 11 de 2011, com parceria do programa Mas que arte cabe nesta cidade?, da Galeria de Arte Casarão, Viana - ES. 24 Novo Dicionário Eletrônico Aurélio, versão 5.0. 25 Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0.
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agressivamente antivisuais ― informativas, textuais, expositivas, didáticas ―, ou imateriais como um todo ― gestos, eventos, performances limitadas pelo tempo. O ‘trabalho’ não quer mais ser um substantivo/objeto, mas um verbo/processo.” (KWON, 2001).
Abrir-se-ia um poço “semiartesiano” 26 no primeiro piso da Galeria, criando afloramento da água do lençol freático ali. Água-Arte. Referência física criada na convocação e invocação desse território submerso, como lógica simbólica na identificação fenomenológica de uma arte engajada nas questões reais da existência.
Esboço da proposição Entre Saudades e Guerrilha - Arq. Júlio César, 2011
26 Poço tubular profundo cuja pressão da água não é suficiente para a sua subida à superfície, necessitando instalação de equipamento em seu interior para efetuar o bombeamento da água. http://pt.wikipedia.org/wiki/Po%C3%A7o_artesiano. Acesso em: 21/02/2012.
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O projeto foi impedido de prosseguir, com negativas vindas do campo de atuação, do proprietário das terras e da coordenação da Galeria de Arte Casarão27. O recuo ao silêncio no território de “força” levou à estratégia de continuidade. Ver que a obra já tinha delimitado sua face colaborativa de ação na paisagem, de ser paisagem nativa. A Galeria de Arte já estava riscada pelo olhar. Já se ouvia o barulho da água correndo pelo seu ventre. É uma obra artística que se faz das experiências de seus caminhos. A esta altura, já haviam determinado sua “aura”. Instigantemente, um continuum de escolhas, de delírios, de desvios, de encontros e desencontros: uma arte de travessia.
4.1 O começo
A Intervenção artística conceitual proposta para a cidade de Viana se revela como mecanismo de politização do espaço, usando, para isso, uma residência artística na Galeria de Arte Casarão. A arte contemporânea numa ocupação da paisagem do entorno do ateliê, utilizando métodos poéticos já imagina para o site. Essa ação se reveste de um dispositivo visual e linguístico, palavras escavadas na natureza, afirmando um site específico na paisagem da cidade sede, onde se dará a materialização da obra: elementos constitutivos da paisagem, vegetação solo, cartografias geológicas, espécies nativas, memória da ocupação do território... Sua inscrição veste uma posição de contaminação entre privado e público, intervindo em pontos cartesianos especificados por uma experiência de campo da vivência histórica entre ocupação e paisagem de site-specificity. 27 A Secretaria Municipal de Cultura, Esporte e Turismo (SEMCET), da Prefeitura Municipal de Viana, não emitiu nenhum documento oficial negando a intervenção.
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A proposta vem de uma retomada do pertencimento, de afeto entre a Galeria de Arte Casarão, ateliê, residência, e a comunidade, território. A proposta se torna necessária diante da guerrilha poética, em um convite ao embate do homem com a natureza. A localização geográfica da obra existe como mapeamento do espaço, no corpo de conceitos e competências destinadas ao texto social impresso na paisagem, estruturado como cidade, palco de minhas atribuições artísticas, objeto de ação artística que desvela em uma trama materializada no tempo e na urbis. Caminhar, lembrar, imaginar, ver, escutar, perceber, investigar, flagrar, conversar, coletivizar, politizar, revelar, recolonizar, “territorializar”, conhecer, experimentar, “ressignificar”, integrar, ocupar, plantar, esperar, regar, cuidar... essas são as matérias de construção dessa poética, que não se esgotam numa intervenção, em nome de uma multiplicidade de reagentes que envolvem o corpo social da arte e da cidade. Uma operação física da obra é a ocupação da paisagem do entorno da Galeria de Arte, uma espécie de raspagem prospectiva nas barreiras verdes, que fará nascer, em forma de conceito, a vegetação primária do lugar, criando um novo caminho na contemporaneidade, um caminho de afeto e de redescoberta. Novos percursos, novas memórias, novos encontros no mesmo lugar. A outra, na residência, com o processo de levantamento histórico, em vivências com a memória social, mapeando lembranças, evolução urbana, alterações da paisagem, cidade e sociedade criando e refletindo novas paisagens. Numa operação de raspagem (prospecção física) que revela a camada, o mapeamento e investigação da memória do solo, das relações afetivas ― termo interposto para as palavras como dispositivos de linguagem dessa obra, que obriga, graças às
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dimensões monumentais, uma afirmação de convocação a estranhamentos na conversa entre tempo e paisagem. Esse projeto está vinculado a uma residência artística na Galeria de Arte Casarão, onde se encontram, em todos os momentos, o posicionamento e a ação no espaço, traçando, assim, suas travessias. Essa paisagem é o corpo da arte, e a poética é o corpo da paisagem prospectada, afetando os corpos tanto na construção da palavra como na intervenção na Galeria de arte.
4.2 Ocupações da paisagem
Ao observar a foto aérea do território de Viana Sede, percebemos logo a imponente presença desse monumento natural, silenciado por sua função de pastagem. Graças também à sua avantajada área física para intervenção, esse lugar torna-se o elemento encantado que procurávamos para a consagração da obra.
Vista aérea do campo de atuação do Projeto - Arq. do artista, 2011
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Morro do Elói, sito em Viana Sede, ao sul da cidade, pertence à família Lube Arq. do artista, 2011
Ao fazer uma visita técnica com Maria Colodet 28, no dia 19 de julho de 2011, foi constatado: “Ele se encontra em acelerado processo de erosão. Não tendo vegetação de porte, a superfície desse morro está exposta às intempéries de todas as espécies (chuva e ventos), o que faz com que os nutrientes escorram para as áreas planas. Os seus portes monumentais são plataforma de bovinocultura e contenção dos ventos que, ao tocarem continuamente essa superfície, batem nela carregando qualquer fragmento de vida que esteja para germinar e desgastando ainda mais suas terras. Solo: devido aos fatores expostos acima, esse terreno está com a terra muito desgastada, exigindo do projeto uma ação de manejo do solo com nutrientes para regular sua acidez. Gramíneas: estando o solo pobre, nem mesmo as gramíneas ali se desenvolvem, mesmo as espécies que já habitaram esse lugar. Concluindo, é mais fácil a retirada desse pasto da área de inscrição da obra, em tempo hábil para a execução do projeto.” (COLODET, 2012).
Se reunirmos as questões essenciais que queremos ver resolvidas em nossas
28 Professora de Biologia na Universidade Federal de Santa Tereza, ES, especialista em reflorestamento na Mata Atlântica Brasileira.
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vidas e em nossas comunidades, numa experiência de síntese, tão abrangente quanto possível, concretizável em torno de uma década, e que seja capaz de sensibilizar eventualmente muitas pessoas conscientes, numa perspectiva holística, a que chegaríamos? 29 Por isso, o solo é poroso e leve, escuro e cheiroso. É um sistema de interação entre seres, água e minerais, capaz de sustentar a vida na complexa teia que se estabelece naquele lugar. Como na floresta natural, no engajamento da obra, o solo é mantido permanentemente coberto pela terra palheira para proteger e alimentar os organismos que nele vivem. A serrapilheira, camada de folhas e ramos sobre a terra, evita a insolação direta, mantendo a sua umidade. Assim, em presença do fator contrário, a raspagem, a operação de aglutinação da cobertura impede o ar, e a camada de pastagem morre e vira adubo. A intervenção, sendo um sistema de estrutura florestal que abriga flora e fauna nativas junto com as espécies que produzem nossos alimentos, tem um papel crucial na paisagem, protegendo possíveis nascentes, ajudando na recarga dos mananciais de água, promovendo corredores para o fluxo de animais. Sua presença embeleza a paisagem e, além disso, pode ser estratégica como quebravento. O vento pode ser um grave fator de erosão e desidratação do solo e das plantas em ambientes desmatados e abertos.
29 “O solo é um patrimônio da Vida”. Internet, 2011. www.solosvivo.com.br, Acesso em: 03|01|2012.
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Proposição poética, intervenção na paisagem, Entre Saudades e Guerrilha, 2011
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Documento do projeto E.S.G., descrição do território - Arq. do artista, 2011
4.3 Galeria de Arte Casarão: proposta de ocupação artística “A intervenção no espaço da galeria Casarão partirá da prospecção em busca do passado geológico do local onde foi construído, baseada em relatos e documentos sobre a região. Pretende-se, com isto, reatar vínculos entre seu papel no presente (espaço da arte) e seu passado, empregando esse anelo para configurar um vínculo com a
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intervenção externa que se dará num futuro devir no crescimento da vegetação nativa.”(SILVA E SILVA, 2011). Documentos e registros de etapas possíveis de transformação do território ao longo do tempo, seu processo de urbanização, entendendo a paisagem como uma matéria que guarda marcas das passagens humanas.
Galeria de Arte Casarão, instalação artística, portas 1º piso. Arq. do artista, 2011
Objetivo: paisagem primária e da construção da galeria, mapeamento e pesquisa dos subsolos de Viana. Relatos técnicos com documento da construção da casa ou mesmo do teatro e da prefeitura, no intuito de obter as especificações técnicas sobre o lençol freático e suas referências com a Galeria de Arte Casarão. 1° Piso - bombeando água do lençol freático para a superfície: bomba hidráulica quatro CV. 2° Piso - cilindro (caixa d’água) de onde se orientam os canos (artérias) para irrigar a intervenção na paisagem.
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A posposta encarna o resultado desse mapeamento, propondo a abertura de um poço semiartesiano, e a subsequente instalação de uma bomba hidráulica, criando uma integração entre os espaços, acionando essa água- galeria, águamemória, água-saudade, água-guerrilha. Molhando as árvores nativas inscritas na paisagem, a intervenção externa seja a água desse espaço perfumado com a história, evidenciando sua força no crescimento da obra e sua função-conceito na operação artística. Intervenção espaço-residência Galeria de Arte Casarão – arq. Júlio César, 2011
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Proposição poética, intervenção na paisagem, Entre Saudades e Guerrilha, 2011
A Fonte, instalação de uma bomba hidráulica no poço semiartesiano que será perfurado na área correspondente ao primeiro piso da Galeria Casarão, captando assim água do lençol freático para irrigar a palavra-obra
“Cordão umbilical”, vista aérea - Arq. do artista, 2011
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A troca de fluidos entre os dois espaços consagrados para tal intervenção funcionaria na parte fundamental do projeto; permanência viva tendo uma função simbólica. O contato se daria por um “cordão umbilical”, contato proporcionado pelo ligamento da paisagem externa à paisagem ideológica da arte via canos de PVC, aproximadamente 2.000m, com espessuras diferentes, para manter contínuo o fluxo entre Galeria e exterior, numa relação de vital importância para ambas as paisagens.
Documento enviado ao proprietário do terreno pretendido para obra, e sua resposta - Arq. do artista, 2012
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Esses canos atravessarão toda a cidade de Viana até chegar ao monumento interventivo (palavra esculpida na cidade) e, por meio de gotejamento e hidrofertilização, manterão crescente a obra.
4.4 Renascente A residência artística na edificação dessa obra anuncia que todas as questões referentes à sua execução foram praticas reais das intenções da proposta. Cartografias são criadas, cada camada da operação é um acúmulo de intenções artísticas evidenciado na travessia de sua execução. A experiência proporcionada na construção de uma obra de arte em residência nasce da ocupação artística da paisagem na Galeria, afirmando ambas as ações em uma convocação interventiva de cunho conceitual, em que a experiência da arte é de alongamento de suas representações. Entre Saudades e Guerrilha nasce da maturidade da ocupação do espaço público, mas sua interface representativa, Galeria de Arte, feitos e afetos, experiencia a natureza geográfica e simbólica desses territórios. Um olhar investigativo toca e transforma. Já um olhar em construção escolhe, movimenta, pergunta, invade, semeia, convoca, flexiona, convence, faz presente o conceitualismo artístico. Uma obra de construção na paisagem passa de uma série de relações de pertencimentos, de administração, impressa no território físico de um lugar, às realidades a serem mapeadas pelo dispositivo de intervenção; essas ações e reações convocam da obra novas posturas, novos caminhos. Uma negativa jamais encerra uma obra em construção. Ela se transforma, redireciona suas formas, deforma-se, como uma árvore que, após uma ventania, cai sobre o solo e
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rebrota, mais forte, rompendo a lógica biológica da própria planta. No pós-processo de investigação das nascentes para receber a intervenção, com o envolvimento dos proprietários para a ação em seu território, na busca de um novo monumento, o “Multirô”, ou juntamento, na execução da intervenção se revela o gesto no princípio ativo de convocação para a comunidade.
A comunidade apontando os novos caminhos da obra - Arq. do artista, 2011
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Cartografia de atuação na cidade de Viana após negativa
A arte ganha, caso proponha essa escala de relação com o outro, com o mundo. Suas condições estéticas são secundárias, diante da magnitude de essências postas em ação na realidade do lugar, a arte se torna um dispositivo transformador do planeta, apropriando-se de gestos comuns da realidade para serem instrumentos da guerrilha artística. O gesto é monumento. Fundamenta-se na força antropológica da herança mais rica e transformadora dos homens do campo, genealogia do cultivo e da cultura. Transformação do lugar com a memória do próprio lugar. A operação da obra foi identificada pela própria comunidade. Estava presente na festa de São Sebastião 30, em Piapitangui, quando a família Gava31 veio me falar das nascentes de sua propriedade e da necessidade de intervenção nelas. Foi aí o insight, ideia, inspiração que rememora nossa ação dentro da Galeria: fazer nascer água no espaço expositivo, junto com a ação física externa de plantio,
30 Santo padroeiro dessa comunidade é festejado com manifestações populares como congada e romaria. 31 Família da comunidade de Piapitangui.
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como matéria artística das árvores implantadas no território. Agora, obra crescendo como matéria da intervenção. A água do lençol freático, aqui se torna “memórias do mundo”, intervir em nascentes, é apropriar se de onde ela brota naturalmente a superfície, e guardá-la.
4.5 Obras
As ações executadas para a exposição Renascente são entendidas no sentido maior de obra de arte, ou seja, resultado da construção de uma poética. As construções, mesmo que pelo pensamento do redimensionamento dos signos, aqui serão apresentadas como obras de arte.
4.5.1 Nascentes
A obra resultou numa escultura social, consistindo na plantação de
árvores
nativas com a colaboração voluntária dos moradores, estudantes e funcionários municipais. Entre Saudades e Guerrilha é uma convocação, revela-se nas
ações na
paisagem e na reinvenção de signos comuns do habitar. Habitar é criar a postura de inscrição artística nesses territórios. Uma arte engajada na criação de novas relações
com
o
mundo,
usando
as
estratégias
conceituais
da
arte
contemporânea, as novas relações de afeto e as teias de relações. Obra de cunho conceitual com convicção de arte e afeto, arte cidade, arte pública. Dispositivo de linguagem nascido da problematização e da reivindicação de espaço de arte em todos os lugares do planeta. Manobra estratégica: rememora o conceito de construção, seu percurso e caráter processuais com vértebra de
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condução e construção, mapeamentos do entorno e plantio de árvores nativas em formação circular para proteção e preservação da paisagem.
Imagem aérea da nascente Pedra Negra: http://www.google.com/earth/index.html
Os territórios Viana Sede, Biriricas, Peixe Verde, Piapitangui e Jatitá, subsequentes de intervenção artística, são a formação cartesiana e cartográfica
da intervenção, que se consolida no plantio de árvores nativas, nas circunferencias das nascentes, e se encontram nas áreas rurais limítrofes do município de Viana: criando um plano de ação em quatro nascentes, olhos d’águas, afluentes de vários rios que cortam o território explorado pela obra, a região é a matéria de criação dessa guerrilha artística. Os troncos de conceitos alumiados e vivenciados aqui, práticas do viés empírico de sublimação, são dispositivos humanizadores do corpo da obra, portanto,
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esculturas sociais32. Construídas com as famílias da região (voluntários, amigos, ativistas, artistas), três intervenções foram realizadas com o plantio de 2.000 árvores nativas em volta dos olhos d’água (memória da vivência dentro do espaço expositivo) paisagens afetivas, comunicadas a mim no convívio e na crença de construção de uma obra.
Travessia Entre Saudades e Guerrilha, 2012
4.5.1.1 Nascente 001- Paraíso das Pedras33 A família Gava, amiga há tempos da minha família, grata pelo projeto em
32 Termo idealizado por Josef Boys, nas atribuições de seus trabalhos artísticos. 33 Localizada em Piapitangui, Viana, batizada como Pedra Menina, encontra-se no terreno Jatitá, pertencente à família Gava.
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construção na sua nascente, deu abrigo à equipe, recebendo as 25 pessoas que compunham o grupo da melhor maneira possível, compondo o corpo da turma de plantio, partilhando a alimentação. Os homens plantaram e estiveram presentes o tempo todo na batalha poética, e as mulheres, com os alimentos, mantiveram acesa a força do coletivo. No dia 26 de fevereiro de 2012, foram deslocadas para a residência Intervenção 700 mudas de árvores nativas, selecionadas em consonância com a mata ciliar da bacia hidrográfica do Rio Jucu. O mutirão comunitário é um gesto de grande importância para o projeto interventivo. Após a identificação da área da intervenção, começa o acero com deslocamentos da equipe: •
1º dia - Limpeza do entorno, medição e geoposicionamento das plantas em relação ao olho d’água e às próprias plantas. São 400 covas com 2m entre si, e 3m por 3m de círculo para círculo.
•
2º dia - Limpeza do entorno e coveamento: equipe da brigada Ambiental de Viana e Eco Conexões, e voluntários da comunidade em geral, artistas e proprietários.
•
3º dia - Plantio e finalização da intervenção, concluída às 17h 30min, após oito horas de plantio no entorno da nascente Pedra Menina. Florestada no dia 29 de fevereiro de 2012.
4.5.1.2 Nascente 002 - Rota das Garças Esboço curso da água – Arq. do artista
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A nascente Rota das Garças, localizada próximo à BR-262, na entrada de Viana, foi mais
deslumbrante
a no
mapeamento da memória da água de Viana Sede, e dela foi captada água para a primeira caixa d’água desse município. Tornou-se
um
símbolo
poderosíssimo, na linha de mapeamentos oral do projeto, como memória de nossa terra. Antes
do
plano
desenvolvimento
de urbano
(PDU) dessa cidade, que fez uma transformação na década de
1960,
o
processo
de
captação de água na cidade era mais orgânico, simples, com deslocamentos manuais, as nascentes abastecendo as caixas de pedras de onde o povo tirava, com seus baldes, a água necessária.
Proposta da intervenção e revitalização dessa água por meio de fragmentos estabelecidos na paisagem: manilha, espécie de cacimba.
Segundo Osvaldino Miller, antigo morador da cidade de Viana, a fonte é potencializada nos atributos afetivos mapeados pelo projeto:
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“As pessoas vinham do interior descalças, com seus sapatos em sacolas, em tempo de chuva com muito barro pela estrada de terra, e ali chegando, lavavam os pés, calçavam os sapatos e partiam assim para a igreja matriz de Viana, para a missa dos domingos.”
Nos mapeamentos feitos por telefone com a Companhia Espirito Santense de Saneamento (CESAN), nada fora relatado sobre o território pretendido. Iniciamos a intervenção no dia 02 de março de 2012 34. Essa memória fez com que os olhos assimilassem um ponto cego perdido no tempo e nas transformações da paisagem. Sítio da intervenção Rota das Garças, Viana Sede – Arq. do artista, 2012
34 Transcrição de depoimento inserido no relatório da SECULT-ES
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Deslocando a equipe para a limpeza do entorno da nascente, começamos o coveamento, e, após seis horas de trabalho, passa um supervisor da CESAN, João Henrique, que informa: “é apenas um poço de água de processo 35. Após a limpeza dos filtros que ficam no alto da montanha, onde a fonte está, e que são lavados com produtos químicos de todas as espécies, as águas desembocam nesse lugar”.
Interrompendo o processo interventivo parcialmente, apresenta-se que a CESAN usa
de
maneira
indevida
tais
espaços,
com
um
desrespeito
e
um
desconhecimento completo da memória dessa mina d’água que o projeto pretende revigorar. Embate criado, intervenção interrompida. Após esse contato,
Figura 1Matriz após retirada da manilha – Arq. do artista, 2012
a “manilha” transformou o seu significado: tornou-se um símbolo, um fragmento que carrega todas as intenções e reações da cidade diante da premissa artística, processo articulador na poética e na plataforma estética de apresentação. 35 Água de processo: após a lavagem dos tanques de armazenamento da CESAN, essa água suja de cloro é jogada na manilha.
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Elencada como elemento inspirador, a manilha será deslocada para dentro da Galeria de Arte Casarão com propósito expositivo. Ganha o nome do primeiro processo, A Fonte, mas com uma afirmativa em latim que induz à metamorfose desse objeto no campo poético, Aquarium.
4.5.1.3 Nascente 003- Pedra Negra 36
Matriz após retirada da manilha – Arq. do artista, 2012
36 Localizada em Biriricas, entre Viana e Domingo Martins, essa mina d’água, na propriedade da família Galina, abastece cinco famílias, a 45km da Galeria de Arte Casarão. A equipe se deslocou para a residência no dia 09/03/2012 e 580 mudas de árvores nativas foram levadas para o território.
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Fotografia aérea da nascente Pedra Negra, Biriricas – Arq. do artista, 2012
Um lugar poderosíssimo pelo seu desenho natural. De um vale na colina, uma água límpida, pura, viva, escorre montanha abaixo, alimentando cinco famílias diariamente e se despejando no rio Biriricas que, por sua vez, deságua a 500 metros no rio Jucu. Nessa nascente, a poética do desenho da intervenção se mostrou mais forte, pelo entorno de grande visibilidade. Conseguimos imprimir, na gramatura dos espaços, os círculos completos de plantas nativas, tornando o lugar uma das mais ativas e fortes presenças de nossa ocupação.
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Processo após retirada da manilha in situ - Arq. do artista, 2012
A equipe de voluntários trabalhou duro na construção da intervenção. O morro íngreme dificultava o deslocamento, mas facilitava o desenho da intervenção. O acero com deslocamentos da equipe: •
1º dia - Limpeza do entorno, medição e geoposicionamento das plantas em relação ao olho d’água e às próprias plantas. São 400 covas com 2m entre si, e 3m por 3m de círculo para círculo.
•
2º dia - Limpeza do entorno e coveamento: equipe da Brigada Ambiental de Viana e Eco Conexões, e voluntários da comunidade em geral, artistas e proprietários.
•
3º dia - Plantio e finalização da intervenção, concluída às 15h e 30min, após oito horas de plantio no entorno da nascente Pedra Negra. Florestada no dia 11 de março de 2012.
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Olho d’água, nascente Biriricas – Arq. do artista, 2012
4.5.1.4 Nascente 004 - Olho de Deus37 Essa nascente tem importância de cunho social para a comunidade. Estando dentro do sitio Majestade Sabiá, nasce exatamente na divisa de três terrenos, mas é no sitio que a água ganha força, graças aos olhos d’águas que brotam sempre mais e mais à medida que desce o curso da água. 20 famílias, incluindo a Escola Municipal Pluridocente Luiz Lube, se beneficiam diretamente dela.
37 Nascente no sítio Majestade Sabiá, da família de Welington Trancoso Nascimento, Piapitangui, Viana, ES. Intervenção em 16/03/2012.
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Esboço da Intervenção na nascente Olho de Deus – Arq. do artista, 2012
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Fotografiaérea da nascente Olho de Deus, Piapitangui 2012
Para a intervenção, acionamos dois dos proprietários que concederam as terras para a interferência ambiental. A equipe fez o processo denominado coveamento e o plantio foi realizado com as crianças da Escola,
tornando a ação uma
vivência inesquecível para todos. A guerrilha foi instaurada desde o princípio (rascunhos da obra), quando se propõe uma obra de dimensões geográficas ― que ocupa território de um grande pecuarista, convocado a fazer parte do projeto, composição híbrida de fatores e gentes, servidores públicos, empresas, institutos, levando-os a uma integração na realidade poética que aflora nos gestos, envolvendo toda a comunidade.
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Assim, uma escultura feita de convívio, de colaboração, construída num nível de integração com o outro transforma sua monumentalidade em gesto. Gesto de construção de um bem coletivo, uma arte pública que vai se prolongar pelo tempo, gerando frutos.
Plantio com a comunidade, março 2012 - Arq. do artista Nascente Olho de Deus - Arq. do artista, 2012
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4.5.2 A Fonte Título: A fonte - Aquarium superior. Técnicas: deslocamento, cultivo, instalação, audiovisual. Trata-se de uma instalação artística que desloca para dentro do espaço expositivo uma manilha, com cultivo,
na superfície, de musgos retirados de grotas d’
águas38 do entorno de Viana, quando do projeto de intervenção. Com a intervenção interrompida, houve necessidade de se fazer uma instalação expositiva, ou uma nova forma de ocupação do espaço-galeria. Imediatamente, o ir às nascentes tornou-se um movimento de mão dupla: da intervenção de lá brotaria o contato cá na residência, elo já demarcado para a continuidade da poética. Mapeamento de uma memória afetiva.
38 Grotas d’ água: normalmente, lugares que têm umidade alta e água corrente.
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Na ação da Galeria ― que já fora casa, sapataria, mercearia, entre tantas instalações importantes para a cidade ―, esse símbolo se mistificou ao se dar crédito a um relato, de fonte desconhecida, que posicionava a edificação da Galeria sobre um lago, numa área baixa e pantanosa do vale onde a cidade foi construída. Logo, um poço artesiano foi esquematizado para dar visibilidade a essas paisagens subterrâneas, reveladoras da memória desse lugar hoje, Galeria de Arte. Outros afetos colhidos com a comunidade são matérias elegidas e manipuladas pela sinfonia artística. Um ex-morador da casa, onde hoje é a Galeria, contou-me que seu pai, Sr. Domingos Liryo 39 , nesse lugar, no canto à direita onde está agora a manilha, guardava sacos de sal para a comercialização, e sempre, como que magicamente, dois dias antes de uma chuva, essa área da casa se umedecia extremamente.
39 De tradicional família da região, figura de personalidade marcante e de grande reconhecimento social, comerciante que revendia mercadoria dos produtores rurais de várias regiões do Estado do Espírito Santo.
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Aquarium, Renascente - Arq. do artista, 2012
Relatos do Sr. Pedro Canal, Diretor-Presidente do instituto Goya, que fora incumbido da restauração do Casarão, dando início ao processo de tombamento desse monumento arquitetônico, dão notícia da necessidade de construção de uma parede falseada no espaço-galeria, em virtude de grandes infiltrações de água, o que foi feito em 1888, utilizando o barro como aglutinante e levantando grandes colunas de pedras. Logo percebi que a galeria evidenciava, numa tangente de mapeamentos conceituais, a água. E que fora posta à prova, ganhando cada vez mais visibilidade, determinando o contato do corpo-artista com o corpo-galeria.
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Aqui, redimensionar o contato
conceitual já como “memória do mundo”. A
manilha, localizada no lado de lá da BR-262 que corta Viana, no início do parque Rota das Garças, foi retirada sem a permissão da CESAN que, em nossa opinião, não é dona daqueles espaços. Assim, a guerrilha se cumpre na determinação de novos campos de valores na paisagem, onde a memória nos torna aptos a eleger, dentro da poética, a possibilidade de construção da obra.
Aquarium inferior, Renascente - Arq. do artista, 2012
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Recorte expositivo, Aquarium superior - Arq. do artista, 2012
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4.5.3 Sala audiovisual A sala de vídeo apresenta todos os processos de intervenção na paisagem, propostas realizadas no desenvolvimento do projeto: marcação topográfica, visita à Penitenciária Agrícola do município, chegada das mudas de árvores nativas. A instalação Aquarium 40. São instalações criadas também pelo processo de sitespecificity. Há deslocamentos de matérias emolduradas pelas intenções do projeto. O videomaker do projeto é Alexandre Barcelos
41
, um excelente
profissional, sensível e determinado a dar voz à obra. •
Vídeo 1 – “Territorialização” poética, Entre Saudades e Guerrilha, 2011
•
Vídeo 2 - Continuum: por novas cartografias, Entre Saudades e Guerrilha, 2011
•
Vídeo 3 - Paisagens e travessias, Entre Saudades e Guerrilha, 2011
•
Vídeo 4 - Paraíso das Pedras, Família Gava, Jatitá, 2012
•
Vídeo 5 - Pedra Negra, Família Gallina, Biriricas, 2012
•
Vídeo 6 - Olho de Deus, Família Trancoso, Piapitangui, 2012
40 Palavras de origem latina, aquarium inferior: águas submersas, lençol freático; aquarium superior: lençol da superfície, rios, neblinas, mares... 41 Produtor visual, formado pela UFES em Design Gráfico, chefia o Coletivo Artístico, O Comando, entre vários projetos capixabas de música e de cinema.
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Visitação das obras, Renascente - Viana, 2012
Visitação das obras, Renascente - Viana, 2012
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Visitação das obras, Renascente - Viana, 2012
4.5.4 Livro do artista42 O processo de realização de obra que tem dimensões geográficas implica um grande porte de operações para sua realização. Entre Saudades e Guerrilha, 3ª residência do artista na Galeria de Arte Casarão, dentro do Programa Mas que arte cabe nesta cidade?, cumpriu-se pelo edital da Secretaria de Cultura do Estado do Espírito Santo ― SECULT-ES Edital 11-2011, tornando-se assim um dispositivo oficial de operação na cidade. Uma estratégia política de execução da intervenção artística urbana, quando executada como obra de arte, necessita da força coletiva e voluntária, de uma equipe que vai multiplicando a matéria e as funções de integração real com a trama de agentes sociais do nosso território. 42 Em memória da empreitada primeira da intervenção e achados da segunda, os Escritos de um caminho (Livro, obra 001) e Escritos de uma travessia (Livro, obra 002), com ofícios, imagens, textos do artista, narrativas da comunidade, relatórios, esboços, rabiscos, deveres, cronologia, origem, tornaram-se revelação das reais dimensões dessas obras de arte que estão em construção aí, para sempre.
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Na residência, nesse princípio de obra em escala geográfica, é fundamental a apreciação e a execução dos fenômenos construtivos da operação artística e suas reais dimensões, um pensamento em construção. Artista com o oficio de criar, imaginar, planejar, rascunhar, convocar, contaminar, oficializar, “aprovar”, executar, no 4º mês de residência todas as funções estavam planejadas e, na esfera das possibilidades realizadoras, percorridos todos os caminhos de execução no cumprimento de: 1. mapeamentos históricos; 2. residência na Galeria de Arte Casarão; 3. construção do berçário; 4. aquisição de mudas, 3.500 unidades; 5. parcerias com fornecedores de caixa d’água, canos, bomba hidráulica, furo do poço; 6. Plano de Recuperação de Área Degrada (PRAD), executado pela bióloga Maria Colodet, do projeto SECULT-ES; 7. estudo completo sobre todas as circunstâncias que identificam e caracterizam a real situação da vida (histórica e atual) do nosso site; 8. estudos micro e macro por granulação do solo do sítio específico de intervenção; 9. mapeamento de água dentro da Galeria de Arte Casarão, entrevista com quem conhece o monumento, estudos sobre sua construção (Secretaria de Obras, PMV); 10. marcação topográfica dos lotes correspondentes a cada letra da palavra SAUDADES no terreno do Sr. Nonô Lube, ex-prefeito de Viana,
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11. consolidação da parceria com os vinte cinco apenados do Presídio Agrícola e do presídio inscrito no município de Viana; 12. harmonização de múltiplos serviços prestados na convocação das dimensões tocadas no projeto Entre Saudades e Guerrilha.
Visualização do livro processo como obra dentro do espaço expositivo, 2012
Visualização do livro processo como obra dentro do espaço expositivo, 2012
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Página 006, Livro Escritos de um Caminho - Arq. do artista, 2011
Visualização da obra, escritos do artista, 2012
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4.5.5 Arte Educação Entre Saudades e Guerrilha é uma intervenção artística conceitual, no espaço físico/paisagem urbana na cidade de Viana, ES, com residência artística temporária na Galeria de Arte Casarão. A proposição artística de Piatan Lube aponta para particularidades na qual estão presentes as relações de ambientes, limites, coexistências, transformações e ao mesmo tempo se coloca como um desafio para o fruidor ― que, ao ser convidado para fazer parte dela, é tomado pelo espaço que provoca outros desdobramentos: olhares, paisagens, memórias, tempos, contornos, escalas e ideias. É nesse lugar de ambiguidades que se apresenta a proposição artística de Piatan Lube, um misto de memória, intervenção, espaço coletivo/público, e, dessa forma, acaba por imprimir uma marca ― ela é, por excelência, geradoras de ideias. A ação educativa aposta no empoderamento comunitário, a partir de estratégias que envolvam crianças, jovens e adultos nas dimensões criativa, investigativa e política, como sujeitos que transformam e são transformados na interação significativa com o outro, a partir da produção de arte. O Projeto apresentado é uma proposta em Arte Educação que objetiva, essencialmente, promover a interação e a participação efetiva dos fruidores da produção artística Entre Saudades e Guerrilha, do artista Piatan Lube, com a articulação de alguns dos complexos conceitos que permeiam seus trabalhos, que dialogam diretamente com questões específicas da paisagem urbana e com problemas gerais da estética e do objeto artístico.
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4.5.6 O QUE NOS FAZ RENASCENTES? Esta é a pergunta que traremos como grande eixo de discussão entre os grupos visitantes, uma questão que parte de uma ação/intervenção coletiva para uma reflexão pessoal e subjetiva. Podemos relacionar a condição cíclica da água com o ciclo da vida diária, das relações humanas e o nosso movimento constante de recomeçar (quase que diariamente) como “sujeitos desejantes”. Como processo dessa discussão que se coloca, o fruidor será convidado a deixar registrado, por meio de palavras, textos e/ou desenhos, suas impressões, histórias, afetos e desejos, que serão afixados no espaço da sala no segundo piso, ampliando-se e, ao mesmo tempo, transformando-se infinitamente com um acúmulo de ideias. Colocaremos à disposição dos fruidores, em uma grande mesa central, pintada de branco, os seguintes materiais: - canetas hidrocor finas e grossas, de cores variadas, que serão repostas nos recipientes, de acordo com a necessidade; - post it branco, de quatro tamanhos e/ou formas diferentes, que serão afixados nas paredes, em local escolhido pelos participantes e repostos de acordo com a necessidade; - 04 recipientes brancos ou transparentes para colocar as canetas; - 04 caixas brancas de tamanhos diferentes (MDF pintado de branco, sem tampa, para colocar os quatro bloquinhos de post-it, e o tamanho interno das caixas deve estar relacionado ao tamanho dos bloquinhos). A sala do 2º piso será pintada de branco, plotada com a frase “O que nos faz renascentes?” (como uma linha fina no horizonte na mesma fonte e cor já usada na exposição) e permanecerá com as janelas abertas, sem nenhum tipo de
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intervenção, apenas a mesa central com os materiais para serem manipulados. Mara PerpÊtua Banhos Pereira Viana (ES), maio de 2012
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CAPÍTULO 5 - RENASCENTE: A MEMÓRIA DA ÁGUA 5.1. Texto de Júlio Tigre43 Inicio este texto com uma lembrança de meu filho, Henrique, no ano de 2002, aos doze anos. Depois de uma caminhada que fazíamos diariamente pelo bairro, fomos matar a sede e, nesse dia em especial, antes de virar o copo com o precioso líquido, ele disse em voz alta as seguintes palavras: “esta água que já foi rio, geleira, nuvem, mar e xixi de muitos bichos agora vai para dentro de mim”. Fiquei com essa imagem como um presente, algo que, mesmo de forma ingênua, afirmava uma relação que estamos sempre esquecendo: que as diversas matérias desse planeta possuem seus ciclos, seus percursos sobre a terra e se renovam sempre como matéria simbólica, quando atentamos para o fato de que sobre elas o tempo age construindo, às vezes de forma irrecuperável, sua história. A memória da água, esse talvez seja o tema, a lógica de tudo que estamos vendo em volta, as plantas que Piatan Lube propôs como ligadura entre o humano e esse elemento vital como determinação de um lugar. A partir desses implantes, ao considerarmos quatros fontes, então são quatro lugares que preferem afirmar que se fazem compor num mesmo lugar, a fonte onde floresce a origem dessa ideia. Tão fluido quanto a água é o pensamento, que é capaz de estruturar arquiteturas dentro de uma racionalidade previsível e, ao mesmo tempo, não se manter sempre no mesmo leito, assim como um rio vai encontrando os obstáculos com os quais redesenha sempre suas margens.
43 Nome artístico de Júlio César Silva e Silva. Artista plástico, professor doutor da UFES, orientador desta monografia.
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Vamos recordar a guerrilha que foi o início desse projeto de residência que tinha tão certo como meta a interferência na paisagem de Viana. Assim como um rio, as águas/pensamentos foram alterando seu curso, encontrando outras vazantes. Na sala de vídeos, podemos flagrar esses instantes... Ali, o processo da obra torna a obra em leito alterado, olhar deslocado da paisagem na sua forma convencional de horizonte para uma busca da intimidade de um olhar oblíquo sobre a superfície da água, brotando da terra num fluxo tão singelo, mas potente o suficiente para alterar de forma irreversível o entorno. Nessa matéria, flui nossa experiência no inconsciente, recolhemos, com cuidado, na palma da mão, uma porção dessas memórias quando encontramos com os proprietários dessas terras. Na lida diária com esse elemento, reconfiguramos sua dimensão simbólica, agora no trato da terra na extensão desses veios, na forma de uma artéria que sustenta cada sitiante, sua fixação no lugar. Essas relações renascentes buscam dar à memória o frescor das fontes. O ciclo prossegue e as águas encontram seus continentes dentro e fora das famílias ali reunidas. Então é o afeto que se mostra, produzindo sentidos, nominando seu lugar. As plantas ainda imberbes são fixadas ao solo na esperança de que venham a fazer parte dos guardiões do futuro, protetoras daquela que as alimenta, numa troca favorável que envolve a memória dentro desse gesto ― eu o alimento, você me alimenta, numa troca incessante de fluidos. A obra não trata do replantio dessas áreas, mas nessa vivência transcende a função dessas futuras árvores, o plantio real se dá na troca entre os seres envolvidos na tarefa de, juntos, mentalmente construir essa nova hidrografia
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sentimental, na relação com o espaço agora constituído em lugar construído no ciclo do habitar.
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CAPÍTULO 6 – IMAGENS
Iconografia da realização do trabalho e arquivos documentais da intervenção “Caminho das Águas” nas cidades de Vitória, ES, e Florianópolis, SC.
Arte e Patrimônio, Florianópolis – Arq. do artista, 2009
Arte e Patrimônio, Florianópolis – Arq. do artista, 2009
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Arte e Patrimônio, Florianópolis – Arq. do artista, 2009
Arte e Patrimônio, Florianópolis – Arq. do artista, 2009
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Arte e Patrimônio, Vitória – Arq. do artista, 2010
Arte e Patrimônio, Vitória – Arq. do artista, 2010
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Vista aérea. Caminho das Águas, Florianópolis - Arq. do artista, 2010
Mapa interventivo (Ilhas, ES/SC) - Caminho das Águas – Arq. do artista, 2010
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
As propostas executadas ganham força nas apreensões das possibilidades da arte contemporânea, apropriam-se, numa hibridização de permissões, dos movimentos que nos antecedem, embora as sua plataformas e atmosferas sejam particulares, subjetivamente elegidas dentro do campo de intenção para a construção de cada uma delas, Caminho das Águas e Entre Saudades e Guerrilha. São trabalhos que evidenciam matérias artísticas potentes em suas travessias, poéticas de entendimentos aflorados nas vertentes da cidade e as intervenções nas diversas “paisagens” que a compõem, paisagem-cidade, paisagem-corpo, paisagem-horizonte,
paisagem-afeto,
paisagem-cultural,
paisagem-racial,
paisagem-obra. Parti do entendimento de arte como berço de enigmas e posicionamentos radicais quanto ao modo de entender e se relacionar com as coisas do mundo, alimentadas por séculos de práticas e que hoje se assemelham a uma materialidade invisivelmente presente em todas as antimatérias. Parti do conceito de arte contemporânea, que joga com o elemento água e seus fluxos, que, numa plataforma, cedem, dobram, multiplicam-se, transbordam, superam, experimentam, refinam, destilam, reconhecem, infiltram, deformam, transportam, ocupam, recriam, brotam, nascem e renascem... Água, elemento alquímico eleito para pesquisas experimentais do campo da existência... É impossível não entender as artes visuais hoje como o dom da vida. A arte se nutre diariamente da liberdade. Cada ser, alumiado, explora, como campo de construção de suas obras, dobras das intenções, cultivando da
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experiência suas práticas, suas novas faces, plataformas poéticas como suportes de não linguagens. No território, somos aprendizes do convívio. Os trabalhos analisados aqui são parte de uma série de projetos executados ― Caminhos dos Afetos
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,
Deslocamentos in-territórios 45, Ruínas de Piapitangui46, Territografias 47, Pintura de Convívio
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, Plataforma de Paisagens 49 , Para que as Primaveras Não se
Calem... 50 ― a qual, na sua interface geológica selecionada, é própria de uma linguagem que não se pretende única, mas particular, com muitas questões relacionadas à arte da terra.
A intervenção na paisagem engajada no tom da arte conceitual extrai, para cada poética, um meio de habitar. Pelas linguagens experimentais, busca, na coleta de
44 Trabalho executado em 2011, pela SECULT-ES, compondo uma série de cinco intervenções de artistas capixabas em diferentes cidades do Estado, de origem germânica. Consiste em uma intervenção em Vila Pavão, norte do ES, onde 50 mudas de Damas da Noite foram plantadas marcando o caminho que fizeram os primeiros imigrantes no processo de ocupação daquela cidade. Foram 17km de intervenção, acionando, na sua construção, todas as comunidades no percurso. 45 Trabalho executado para uma exposição na GAP (Galeria de Arte e Pesquisa UFES),de onde um pedaço do chão foi deslocado para Piapitangui, terra natal do artista, e de onde se retirou a mesma quantidade para recolocá-la na galeria, com a intenção “relocalização” de conceitos de presença. 46Em Piapitangui, terra natal do artista, há uma ruína no meio de um bananal, que rememora as condições dessa área rural, de aproximados 280 anos. A proposta expositiva é um diálogo identitário entre esse patrimônio e o palácio Anchieta, hoje sede do governo do Estado, usando-se o método de deslocamento via ploter, recorte, na exposição Transcendente, 2010-2011. 47 Série de enterramentos de pinturas em territórios diversos, captando e cartografando a voz da terra nessa plataforma. São estudos no campo ampliado da pintura, formando sítios arqueológicos temporários, onde, após residência, esse material pictórico volta “rematerializado” pelo tempo de vivência com essas plataformas embaixo da superfície. 48 Instalação de suporte para vivências, em que, novamente, o tempo de permanência constrói a carga pictórica. 2011-2012. 49 Deslocamento de território pela sua carga de matéria, uma gravura do território via suportes rígidos, adicionando aglutinantes variados a esses. 2012 50 Pintura de árvores com terra nativa, numa espécie de curativo, árvores mortas no litoral capixaba pelas prefeituras, que as consideram invasoras. Série de trabalhos em execução. 2011
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afetos, às vezes no próprio processo de execução da ideia e suas travessias, suas densidades poéticas, e, muitas vezes, transfigura-se em obra. Daí, uma obra viva, particularizada pelos seus caminhos e territórios. Caminho das Águas é uma interferência na paisagem urbana. Com suas condicionantes de convívio, essa intervenção faz nascer no seio da cidade uma paisagem oculta, uma hidrografia de sentimentos esquecidos, aterrados pelo concreto, e o azul pintado nas ruas nos faz refletir sobre as condições do homem no mundo, sobre suas marcas no território. Neste trabalho, particulariza-se uma série de elementos “comuns” aos habitantes que, por horas ou vidas, habitam essas ilhas. Seu site-specificity é memória geológica do território, suas condições poéticas de existência são mapeamentos de processo de transformação desse lugar e o enfrentamento entre essas paisagens. Água é o elemento filosofal. Não somente a água marinha que perdeu o seu espaço, mas todas as águas que escorriam das partes altas do território e ali, no centro da ilha, desaguavam... Berços de vidas formavam-se onde hoje, depois dos aterros, desapareceram por completo, canalizadas embaixo de nossa cidade, e com elas, as colônias de pescadores, lugares de afeto da urbis... memórias, lembranças invocadas por uma intervenção efêmera, que nutre sua carga matriarcal e, como elas, desaparecerá ao barulho bravio dos carros que passam onde antes cantava o mar... Esta pesquisa não se encerra, ela se multiplica, prospectando outras ilhas. Nesse momento, estamos inscrevendo-a em um edital para intervenção em São Luiz do Maranhão, formando a trindade da intervenção nas ilhas capitais do Brasil. Existe, na escolha do título deste trabalho de graduação, sua essência. Vozes de
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uma travessia partem, de imediato, do entendimento de seus processos como corpos de intenções em teias ― os motivos, as escolhas, as matérias, os significantes, e como saída do campo lúdico, especifico das artes visuais para o real, a teia,
nutrindo-se não mais somente do olhar artístico, mas deste
etnologicamente embrenhado com as vozes do mundo, com a cooperação de outros tantos artistas, alfaiates, artesãos, urbanistas, ativistas, biólogos. Consolidação do artista que se torna “campo institucional”51, onde suas escolhas reemitem as essências das coisas. Visto como concepção de nova ordem dos significados, o artista elabora suas proposições comendo e transformando as “carnes do mundo” 52. Essas relações entre arte, política e vida cotidiana são as plataformas experimentadas, alimentadas e conduzidas nas intenções dos trabalhos apresentados aqui. Todas as construções artísticas nascem de um significado de relações, de construções inventivas no campo da realidade. Reconhecer seus processos como obras de arte é fruto dessa linha de pensamento. Aqui, optei pelas matérias imediatas geradas nas obras: textos, imagens, ofícios, laudos técnicos. A ideia de rizoma é a materialização que concebe os presentes projetos nas palavras de Guatari (1991): “Um rizoma nem começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-se, intermezzo. A árvore impõe o verbo ser, mas o rizoma é a aliança tecido na conjunção ‘e. e. e...’. mover-se entre as coisas, instaurar a lógica do E, reverter a ontologia, destruir o fundamento, anular o fim e o começo, [...] o meio não é uma média, ao contrário, é o lugar onde as coisas adquirem velocidade.”
Entre Saudades e Guerrilha é uma obra de intervenção que, durante sua 51 Essa ideia vem na ordem da intenção e consolidação como germinadora de valores. 52 Expressão lúdica que referencia as matérias do mundo de modo poético para a construção da linha do pensamento artístico.
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execução, reinventa-se diante de negativa da proposta original. Desvia-se, manipulando suas matérias de intervenção na paisagem externa e no sitespecificity como investida real de poesia e ocupação, contornando e se fortalecendo diante das transfigurações. As ideias são postas em ação num campo ampliado de entendimentos do lugar escolhido para o desenvolvimento da poética: cidade natal de três gerações de minha família materna, a pequena e pacata cidade de Viana. A paisagem afetiva age como dispositivo para ocupações artísticas. A comunidade é ponto de partida e
evolução na construção deste
trabalho. Cada documento gerado, cada palavra professada, cada infiltração da proposta servem ao mérito de contaminação desse gesto intenção, artifício essencial para a construção de arte pública, o corpo do artista negociando, durante meses, sua criação com a cidade, jogando com as forças que a compõem, para que dali algo nasça . O processo ganha muita força nessas articulações, como obra, art in process, nome dado ao recorte expositivo do trabalho. A água, símbolo jorrado nos princípios da ação dentro da galeria, sua extração do lençol freático, também como site-specificity, é memória geológica do território (memória do mundo); suas condições
poéticas
de
existência
são
mapeamentos
de
processos
de
transformação desse lugar e o enfrentamento entre essas paisagens. O denominador comum, verificado entre as práticas analisadas, é a ação na cidade e seus agentes, sua paisagem, suas instituições, suas multiplicidades, afloradas e imaculadas na experiência artística. A condução dessas práticas foi possível pela identificação de procedimentos estratégicos de análise e estudo do próprio espaço por meio de intervenções, com o fim de criar a possibilidade de enfrentamento, ou seja, mecanismos que investigam a memória perdida na poeira
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das ruas de nossas paisagens... Sim, além de matéria construída, o olhar é investigador dos monumentos invisíveis. As propostas executadas ganham força nas apreensões da práxis da arte contemporânea, invocando o campo real da existência como linguagem, matéria das obras, ampliando-se nas investigações conceituais dos corpos entre escultura e arquitetura, entre pintura e paisagem, numa hibridização dos movimentos e suas linguagens, na investida do corpo de vivência das artes plásticas como campo de experiências existenciais. Dentro dos pensamentos que idealizaram as construções aqui apresentadas, seus apontamentos trasbordam estas folhas para o acúmulo de exercícios que tornam, a longo prazo, o artista sábio e a arte viva. Aqui, apontam já para a “desobjetificação” da obra de arte, extremando, nas linhas de suas consagrações, relações processuais, o campo de vivência e convivência como metodologia, novas configurações cartesianas para as coisas do mundo, pontuando a arte como símbolo expressivo de cidadania, convocando cidadão. Ganham forma de teia, rizoma de intenções, signos, significantes, intenções, motivações, e acabam por criar outra cartografia que vai se recriando ao longo de cada investida artística.
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