Universidade Aberta do Brasil Universidade Federal do EspĂrito Santo
Artes Visuais
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Dias, Lincoln Guimarães, 1962Teoria da linguagem visual / Lincoln Guimarães Dias. - Vitória : Universidade Federal do Espírito Santo, Núcleo de Educação Aberta e à Distância, 2011. 106 p. : il. Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-64509-03-0 1. Arte. 2. Arte - História. 3. Crítica de arte. 4. Desenho. I. Título. CDU: 7.01
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de quem escreve crítica, observa-se que o texto crítico, no mais das vezes, é caracterizado pelo uso de vocabulário próprio e argumentação complexa, cujo entendimento é tão ou mais difícil que a compreensão das próprias obras de que trata. O próprio estatuto da crítica de arte de “ciência” ou “gênero literário” já indica um certo grau de complexidade e, portanto, uma inacessibilidade relativamente difícil de se evitar. A necessidade da crítica deriva das peculiaridades do tipo de relação que a arte contemporânea estabelece com o sistema cultural e a vida social em geral. No passado, a arte ligava-se funcionalmente às outras atividades sociais. Suas técnicas pertenciam ao sistema tecnológico do artesanato, de modo que a relação arte-sociedade se dava organicamente no seio das relações entre demandas sociais e produtividade. Essa relação se rompeu com a revolução industrial e com a instauração de uma tecnologia estruturalmente diferente, com a nova relação econômica e social, com a mutação radical da morfologia dos objetos e do próprio ambiente material da existência social. A relação passou a ser, então, entre a arte, como atividade em que a função estética é dominante e as outras atividades produtivas, seja as não estéticas ou as estéticas, porém, não artísticas.
Notas sobre desenho, esboços para uma história O tema “história do desenho” envolve um conteúdo muito vasto13. Uma explanação abrangente, que mostre as transformações do desenho desde os primórdios da humanidade até nossos dias exigiria um espaço mais abrangente que os limites deste texto. Além disso, efetivamente, uma história do desenho ainda está por ser escrita, apesar dos muitos estudos que abordam o desenho como tema. Por estas razões, optei por fazer um recorte centrado em algumas questões que julgo importante levar em conta no empreendimento de se pensar uma história do desenho. Para tanto, pretendo apontar alguns traços heterogêneos e ambivalentes que podem ser percebidos na noção de desenho, tal como ela circula hoje no imaginário do senso comum 13. Este capítulo foi originalmente produzido para o Projeto da exposição Tarsila sobre papel, apresentada no Museu de Arte do Espírito Santo – MAES – , em dezembro de 2010. Realização, concepção e Produção: Base7 Projetos Culturais / Grupoink; Patrocínio: Banestes, Cesan e Odebrecht; Parceria: Instituto Sincades; Apoio: Lei de Incentivo à Cultura e Ministério da Cultura. Teoria da linguagem visual
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e remetê-los a alguns testemunhos históricos relativos à sua origem em diferentes épocas e lugares. O termo desenho é, ao mesmo tempo, familiar e estranho: familiar porque é largamente utilizado no dia a dia, em diversos ambientes e situações, sempre com muita desenvoltura; estranho porque dificilmente se consegue descrever o seu significado exato e quase nunca se tenta fazê-lo. Fala-se em desenho na cotidianidade de maneira vaga e imprecisa, e isso parece bastar para que os diálogos sigam adiante sem grandes problemas de entendimento. Frases como “eu não tenho dom para desenho” e “tenho um amigo que sabe desenhar” são muito comuns nas conversações amenas. Elas mostram que, via de regra, o desenho é percebido pelo imaginário do senso comum como uma prática condicionada a uma destreza operativa, de grande complexidade, a qual poucos dominam. Neste caso, o senso comum não errou de todo: de fato, da antiguidade ao final da idade média, o desenho se fez notar e reconhecer, prioritariamente, como uma prática de grande aplicabilidade na lide com tarefas operacionais de diferentes ordens, ligadas à representação visual. Esta prática era vista somente como um fazer mecânico, sem fundamentos intelectuais e considerava-se que quem a praticava não necessitava mais que a perícia manual. O senso comum de nossos dias define o desenho também como o produto da prática referida acima: neste caso, desenho é um certo tipo de configuração visual, suscetível de ser interpretada, caracterizada pela presença organizada de elementos gráficos como pontos, linhas, hachuras e texturas sobre um espaço plano. Ele é realizado com lápis ou outro instrumento duro, capaz de fazer incisões ou deixar o rastro de sua própria matéria, que pode ser ouro, prata, cobre e platina ou outro. Nesta acepção, o desenho não é somente um fazer instrumental, mas um discurso autônomo, uma vez que pode ser interpretado, com finalidades e significados próprios e dotado de meios de expressão específicos e se define materialmente pelo uso de certos instrumentos e suportes. Neste caso, ele é entendido como tradução gráfica de estruturas visíveis ou pensáveis, que denunciam um modo de ver o mundo. Ele registra, representa e materializa ideias, expressa e presentifica sentimentos humanos, as qualidades dos materiais utilizados em sua feitura e o próprio gesto do artista ao produzir o desenho. Este corresponde a um entendimento de desenho surgido no período moderno, sedimentado nos primeiros anos do século XX. Aqui, 38
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reconheceu-se no desenho uma dimensão poética aliada à dimensão operativa, que o definia até o fim da idade media. O desenho passou a ser reconhecido também como dotado de meios específicos, que atendem aos seus próprios fins e não mais simplesmente como parte das etapas operativas de realização de outras coisas. As falas cotidianas sobre desenho também, por vezes, priorizam a sua dimensão cognitiva e abstrata, deixando em segundo plano o lado instrumental e poético. Esta visão leva em conta o tipo de operação mental que ele faz, independente de materiais, suportes e meios de expressão. Nesse sentido, é possível dizer que uma determinada pintura pressupõe um desenho que a concebeu e a planejou. Mas, aqui, o desenho não se reduz a um esquema gráfico que simplesmente orienta o pintor na tarefa de dar formato a imagens previamente concebidas e a distribuir as cores sobre o quadro. Ele corresponde, sobretudo, ao trabalho mental de concepção da pintura, que rege a escolha, distribuição estratégica e tratamento formal de temas e figuras em função da produção de certos efeitos de significação. Neste caso, a noção de desenho se relaciona à ideia de projeto. Projetar significa lançar-se para a frente, planejando os passos desse avanço, em função de necessidades, interesses ou desejos. A este entendimento de desenho, estão associadas as ideias de ordem, planejamento, racionalidade, essência, síntese etc. Desenhar, nesta acepção, é ordenar e planejar racionalmente, fazendo uso somente dos recursos essenciais e eliminando elementos e pormenores desnecessários. O reconhecimento da dimensão racional e projetual do desenho foi mencionada na Poética de Aristóteles e vai receber pleno reconhecimento no alto renascimento. Mas sabemos também que em muitos desenhos renascentistas, de antes e depois, aparecem ornamentos, detalhamentos, variedade e profusão. Pensemos, por exemplo, nos trabalhos de Archimboldo, Bosch e Rubens, para nos limitarmos a poucos exemplos dentre os mais conhecidos. A associação necessária do conceito de desenho às ideias de síntese e de essência só se fundamenta, portanto, como uma idealização. Em síntese, a noção de desenho que circula hoje no senso comum é um produto desarticulado e sem forma precisa, resultado da mescla de diferentes visões, surgidas em épocas distintas. Trata-se de uma noção composta, constituída de traços heterogêneos inter-relacionados; uma nebulosa de ideias associadas, que não conta com uma definição que lhe dê um significado articulado e unificado.
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Não há nada de estranho nisso: o próprio conceito de arte, assim como o de desenho, não comporta uma definição estável e unificada. Seus significados, usos e valores se transformaram no decorrer dos tempos e uma compreensão profunda e bem fundamentada do fenômeno arte não é possível se não se levar em conta a sua dimensão histórica. Muitos dos impasses e mal-entendidos sobre as noções de arte e de desenho devem-se à pouca consciência da complexidade do termo, acompanhada da pressuposição de que o seu significado é unidimensional, unívoco e destituído de ambivalências. Para ilustrar o que afirmo, cito um dos mal-entendidos: sabemos que o ensino da arte no Brasil, desde o século XIX, esteve alicerçado numa certa concepção de desenho e de relação entre desenho e arte que, em grande parte, é consequência da sedimentação histórica deste conceito. Até há bem pouco tempo, em decorrência disso, as aulas de educação artística nas escolas tinham a geometria como conteúdo, equívoco que vem sendo desfeito nas últimas décadas a custa de grande esforço. Cito agora um dos impasses: nos cursos de graduação em arte, discute-se hoje a pertinência do ensino do desenho. Há quem pense que ele é somente um ranço que restou da academia, que sobreviveu ao modernismo e que simplesmente deve ser abolido. Outros entendem que o conceito de desenho, como alguns outros conceitos em arte, transformou-se, mas que segue importante. No campo da produção poética e de sua crítica, uma série de questionamentos se coloca a respeito dos conteúdos e dos limites do conceito de desenho e de seus modos de presença na arte contemporânea. Os artistas hoje possuem uma maior consciência da necessidade de que faça parte de seus trabalhos uma consciência crítica dos conceitos em jogo, não para formulá-los ou elucidar os seus conteúdos, mas para problematizá-los, explicitar as suas contradições e investigar as possibilidades de colocá-los em discurso. É sabido que a dimensão cognitiva da arte se tornou prioritária à sua configuração material e plástica, a partir dos anos de 1960, e, por isso, fala-se hoje em desmaterialização da arte. A expansão e desmaterialização no campo do desenho também vêm sendo experimentadas pelos artistas e discutidas por teóricos e comentadores. Artistas trabalham com o desenho utilizando materiais dos mais diversos e em espaços tridimensionais e socialmente ocupados. Trata-se de uma negação do grau zero conceptivo, o espaço abstrato e neutro fornecido por uma folha de papel em branco. As linhas metálicas de Iole de Freitas, que atravessam paredes e vazam por janelas, ou as grandes 40
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superfícies curvas de ferro de Richard Serra podem ser classificadas como “esculturas” numa concepção tradicional, mas há pertinência em considerá-las como desenhos contemporâneos, instalados em espaços previamente ocupados e plenos de significado vivencial. O esforço de se escrever uma história do desenho é oportuno para elucidar aspectos do conceito e eliminar preconceitos. Contribuiria também para pontuar os traços ambivalentes constitutivos da noção de desenho, descrevê-los, analisá-los e situar as suas origens e pontos de inflexão em diferentes momentos históricos. Por fim, seria útil para identificar e para analisar os novos modos de manifestação do desenho na arte contemporânea e para se refletir sobre o seu lugar e importância no trabalho pedagógico de ensino das artes nos mais diferentes níveis.
Figura 14 Arco Inclinado
Richard Serra Aço cor-tem 3,66 x 36,58 x 0,06 m
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Figura 15 Instalação projetada para o Museu Vale do Rio Doce Iole de freitas Tubos de metal e placas de policarbonato.
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Para uma história do desenho Sabemos que desde a pré-história se fazem traços e incisões configurativos que chamamos vagamente de desenho. A história nos mostra que, na antiguidade e na idade media, o desenho aparece em muitos momentos sob a forma de um estágio preparatório na produção de obras que posteriormente são realizadas com outros meios expressivos. Essas obras não são necessariamente obras de arte no entendimento que hoje temos da palavra: podem ser pinturas, esculturas, basílicas, pontes, aquedutos, carruagens, máquinas de guerra etc. O desenho como etapa de produção desses artefatos e edificações continha um sentido estritamente técnico, ligado a um fazer manual, que depende de uma perícia, mas que nada tem de espiritual e transcendente. Não se produziu um conceito de desenho, assim como não se produziu também de pintura até a idade media.
Figura 16 Diagrama que mostra o método grego de lavrar a pedra no período arcaico e clássico.
É sabido que o conceito de arte como produto elevado do espírito humano surgiu no renascimento italiano. O mesmo se deu com o conceito de “artista”. Foi nessa época que os homens que produziam pinturas e esculturas, até então vistos como operários qualificados somente por sua destreza manual, passaram a ser vistos como homens de ideias e cidadãos respeitáveis, capazes de participar, com seu trabalho, do debate das questões filosóficas e políticas de seu tempo. Tendo isto em conta, a produção estética que ocorreu fora do âmbito desta consciência não pode ser considerada “arte”, no sentido estrito da palavra, dado que o próprio significado da ideia de arte não Teoria da linguagem visual
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Figura 17 Leão visto de frente
Villard de Honnecourt C. 1240
estava presente no momento daquelas produções. Assim, as pinturas paleolíticas, os relevos e pinturas parietais egípcias, os mosaicos bizantinos, a estatuária grega e romana etc. não são exatamente arte, no sentido estrito do termo, ainda que, por hábito de tradição e em razão de algumas vantagens estratégicas, os textos de história da arte os considerem como tais. Belting chama a atenção para isso, ao afirmar que a produção anterior ao renascimento deveria ser estudada numa outra disciplina, cujo nome adequado seria história das imagens14. Se aderirmos à visão de Belting e a aplicarmos ao desenho, a história do desenho só vai começar, de fato, quando se tem uma consciência do termo e um entendimento de seu significado. O que há antes disso, é, no máximo, uma pré-história. Desta pré-história do desenho, vale a pena considerar duas atitudes distintas com relação à atitude de desenhar e ao uso do desenho. A primeira pode ser exemplificada por um famoso desenho de Villard de Honnecourt, realizado por volta de 1240, que mostra um leão visto de frente15. O desenho apresenta uma curiosa mescla de esquematismo com detalhes aparentemente advindos da observação de um modelo natural. Segundo relatos, o desenho foi de fato realizado a partir da observação de um animal vivo, mas Honnecourt sentiu necessidade de traçar a figura sobre esquemas geométricos. Ele realizou um traçado geométrico e depois o preencheu com dados da observação. A imagem resultante não é convincente como uma representação de leão semelhante a um leão verdadeiro, mas como uma configuração que nos permite reconhecer o leão. Ela não pretende fazer o observador sentir-se como se estivesse vendo um animal de fato, mas sim “significar” este animal. Trata-se, portanto, de uma imagem que se dirige prioritariamente ao intelecto e não aos sentidos. A segunda atitude pode ser exemplificada pelos afrescos de Giotto di Bondone. O artista dotou as cenas da vida de Maria e de Cristo nos afrescos da Capela degli Scrovegni (1305-6), de modelado, volume, movimento, dramaticidade e outros elementos advindos da observação. Além disso, incluiu pormenores ambientais que situam o acontecimento num espaço unificado, compondo uma relação de figura e fundo sem precedentes na história da pintura, no que se refere à ve14. DANTO, Arthur C. Após o fim da arte. trad. Saulo Krieger. São Paulo: Odysseus/ Edusp, 2006, p. 3-5. 15. Caderno de apontamentos do arquiteto Villard de Honnecourt. JANSON. W. H. História da arte. 5. ed. Trad. J. A. Ferreira de Almeida e Maria M. R. Santos. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 824 p
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Figura 18 A lamentação do Cristo Giotto di Bondone Afresco c. 1306
rossimilhança. Mas o elemento decisivo desta pintura não está nesses aspectos e sim no fato de ele ter situado o ponto de vista do observador na altura da metade inferior do afresco, portanto, na mesma altura das figuras humanas que nele aparecem retratadas. Isto significa que o observador foi levado em conta na concepção do espaço da pintura. Esta escolha implica uma concepção consciente de espaço pictórico, no caso, com uma relação espacial entre observador e quadro. O espaço do observador é pressuposto na pintura, como a sua continuação. Trata-se do nascimento, tanto na pintura quanto no desenho, do ponto de vista humano. Inaugura-se, assim, na arte, a ideia de investigação, concepção e ação no mundo a partir das possibilidades e interesses humanos, e não mais a aceitação passiva de uma ideia de mundo como criação de Deus. É possível dizer que a história do desenho como atividade operativa e intelectual, de valor reconhecido socialmente começa no renascimento, quando artistas, humanistas e eruditos se engajam no projeto político que consistia em impor a supremacia política, econômica e militar de Florença sobre as demais cidades independentes da Itália. Porém, o registro mais antigo da consciência de uma especificidade do desenho que se tem notícia aparece na Poética de Aristóteles. Teoria da linguagem visual
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A visão de Aristóteles, no entanto, não modificou o estatuto do desenho na antiguidade, que permaneceu como uma atividade laboriosa. Para ele, conforme Lichtenstein, [...] ao contrario da cor, cuja beleza resulta de um impacto simplesmente material, da simples habilidade manual, e até do acaso, como o comprova a história tantas vezes citada de Protógenes, o desenho remete sempre à ordem de um projeto; pressupõe uma antecipação do espírito que concebe abstratamente e representa mentalmente a forma que quer realizar, o objetivo que busca atingir16. No renascimento, surgem os escritos que atestam os passos sucessivos de recuperação deste reconhecimento. São, sobretudo, os textos de Alberti, Vasari e Zuccaro que deixam claro por que a história do desenho se deu paralelamente à história da pintura, explicam por que ele não teve uma trajetória independente dela, e não foi considerado uma arte autônoma. Eles ajudam a identificar e a compreender o papel específico que o desenho desempenhou na história da pintura, até que ponto ele teve as suas especificidades reconhecidas, ainda que se mantivesse subordinado a outras práticas, de que maneira ele era compreendido pelos homens que o manipulavam na pintura, que tipo de expectativa se tinha com relação a ele e qual o nível de consideração e valor era a ele atribuído. É Vasari, em As vidas dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos, de 1568, que propõe uma definição, explícita e voluntária, a conceber o desenho como uma atividade específica, a qual ele reconhece elevado valor espiritual. Ele reconhece um duplo sentido na palavra italiana disegno, que se referem, respectivamente, às ideias de projeto e concepção, por um lado, e à execução manual do traçado, por outro. O desenho é por ele definido como tendo uma dimensão teórica e prática e como sendo expressão sensível da ideia e fonte da invenção pictórica, conferindo a esta a dignidade de uma atividade intelectual17. Segundo Vasari, 16. LICHTENSTEIN, Jacqueline, “O desenho e a cor”, in ______. (Org.). A pintura: textos essenciais. V. 9: O desenho e a cor. Coordenação da tradução: Magnólia Costa. São Paulo: 34, 2004, p. 11-2. 17. LICHTENSTEIN, Jacqueline, “O desenho e a cor”, in ______. (org.). A pintura: textos essenciais. V. 9: O desenho e a cor. Coordenação da tradução: Magnólia Costa. São Paulo: 34, 2004, p. 19.
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Oriundo do intelecto, o desenho, pai de nossas três artes – arquitetura, escultura, pintura – extrai de múltiplos elementos um juízo universal. Esse juízo assemelha-se a uma forma ou idéia de todas as coisas da natureza, que é por sua vez sempre singular em suas medidas. Quer se trate do corpo humano, dos animais, das plantas, dos edifícios, da escultura ou da pintura, percebe-se a relação que o todo mantém com as partes, que as partes mantêm entre si e com o conjunto. Dessa percepção nasce um conceito, um juízo que se forma na mente, e cuja expressão manual denomina-se desenho. Pode-se então concluir que esse desenho não é senão a expressão e a manifestação do conceito que existe na alma ou que foi mentalmente imaginado por outros e elaborado em uma idéia18. Só tardiamente, em Zuccaro, aproximadamente quarenta anos depois, apareceu uma teoria elaborada, com uma descrição das características do desenho, conforme a visão do autor, e a exposição de seus fundamentos. Esse autor, como Vasari, reconhece o duplo sentido da palavra disegno e estabelece uma distinção entre o desenho interno e o desenho externo, relativos, respectivamente, a cada um desses dois sentidos. A partir disso, ele apresenta uma exposição sistemática do conceito de desenho interno como ideia19. Segundo Lichtenstein, Os autores que o precederam tinham atribuído à idéia uma universalidade abstrata, pouco suscetível de explicar com precisão a atuação intelectual do ato criador na pintura. Além disso, é justamente o que Zuccaro cobra de Vasari, que não tinha percebido que o desenho interior nada mais é que a própria Idéia. Ele também critica Armenini por ter dado uma definição do disegno interno que pode, sem dúvida, ser aplicada à arte em geral mas exclui a forma específica do desenho como atividade produtiva. O mérito de Zuccaro é ter desvendado um ponto 18. VASARI, Giorgio. “As vidas dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos”. In: LICHTENSTEIN, Jacqueline. (Org.). A pintura: textos essenciais. V. 9: O desenho e a cor. Trad. Beatriz Blay. São Paulo: 34, 2004, p. 20. 19. No entanto, os reconhecimentos de Vasari e Zuccaro não alteraram o estado de subordinação do desenho à pintura, escultura e arquitetura e nem era esta a intenção desses autores. Teoria da linguagem visual
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essencial da teoria da pintura, no caso, a função do desenho e o papel do pensamento na criação pictórica. Uma longa tradição estética, dos antigos a Alain, entre outros contemporâneos, tende a identificar o ato de desenhar com o pensamento em atividade, o gesto de produzir uma forma com o ato de conceber. A audácia de Zuccaro está em afirmar que o desenho é a própria idéia, que se produz no intelecto como signo divino20. A ideia de desenho como elemento constitutivo da pintura tinha dois sentidos distintos: o primeiro era como um trabalho puramente técnico, a primeira etapa do trabalho operativo de se construir a pintura: fazia-se um esboço, depois, organizava-se esse esboço de modo detalhado no espaço do quadro; em seguida, cobria-o com tonalidades de sépia para demarcar as regiões claras escuras e produzir os efeitos óticos de volume, para depois, finalmente, aplicar as cores. Assim, a pintura florentina dos séculos XIV E XV poderia ser vista, em grande medida, como um “desenho pintado”. Neste caso, o desenho se limitava a cumprir uma função operativa e não participava efetivamente do trabalho intelectual de conceber e projetar a pintura. No Da pintura de Alberti, a palavra “desenho” aparece somente em duas ocasiões. A primeira delas está no parágrafo 46 do livro II, em que ele diz: Eu, fazendo coro com doutos e não doutos, louvarei aquelas fisionomias que, como que esculpidas, parecem sair do quadro, e criticarei aquelas em que não vejo outra arte senão a do desenho. Gostaria que um bom desenho, com uma boa composição fosse bem colorido21. Mais adiante, no parágrafo 57 do livro III, aparece a outra menção ao termo: Meu conselho é que as pessoas se exercitem na pintura desenhando coisas grandes, quase iguais em grandeza às que se representam com o desenho. É que nos pequenos 20. LICHTENSTEIN, Jacqueline, “O mito da pintura”, in ______. (Org.). A pintura: textos essenciais. V. 1: O mito da pintura. Coordenação da tradução: Magnólia Costa. São Paulo: 34, 2004, p. 42. 21. ALBERTI, Leon Battista. Da pintura. trad. A. da S. Mendonça. 2.ed. Campinas: Unicamp, 1992, p. 121.
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desenhos facilmente se esconde toda sorte de grandes vícios, enquanto que nos grandes se vêem facilmente os mais pequenos22. Nas duas citações, o desenho é implicitamente considerado como um procedimento técnico, e o produto desse procedimento consiste em configurar com meios gráficos uma imagem de alguma coisa. Trata-se de um fazer mecânico, apenas uma das etapas operativas de produção da pintura, para a qual, o executante necessitava somente de destreza e não de capacidade e refinamento intelectual. Alberti foi um dos humanistas mais importantes no processo social de reconhecimento da pintura como atividade do espírito, mas ele não estende ao desenho este mesmo reconhecimento. No entanto, ele menciona insistentemente pontos, linhas, ângulos, convergências, margens, centro, extensões, quantidades, distâncias e toda uma série de termos que ele associa à matemática, mas não ao desenho. É curioso que, para Alberti, o trabalho de desenhar e o trabalho de colorir possuem o mesmo valor, coisa que, como se verá, terá, posteriormente, um tratamento diferente.
Os debates sobre o desenho e a cor O reconhecimento da dimensão cognitiva do desenho acabou por se dar, em parte, devido à necessidade de se justificar a consideração da pintura como atividade do espírito. Em vista disso, alguns humanistas se engajaram em exaltar as qualidades intelectuais do desenho para contrabalançá-los aos aspectos mecânicos da produção da pintura. Tais qualidades intelectuais pareciam mais visíveis se contrapostas à uma suposta condição puramente sensual da cor. Assim, no séc. XVI, desenvolveu-se um debate teórico acerca dos respectivos papeis desempenhados pelo desenho e pela cor na concepção e produção da pintura. Tal debate ganhou dimensões políticas, à medida que Veneza, cuja pintura se baseava fortemente na expressividade cromática, pretendia rivalizar com Florença, onde esta mesma arte era regida pelo primado do desenho. A discussão sobre a oposição entre o desenho e a cor na pintura, entendidos como valores antagônicos, tem sua origem na arena te22. ALBERTI, Leon Battista. Da pintura. trad. A. da S. Mendonça. 2.ed. Campinas: Unicamp, 1992, p. 134. Teoria da linguagem visual
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órica e ocorreu no interior das academias. A sua importância é certamente maior para compreender as ideias e discursos sobre arte da época e não as próprias obras dos pintores. Na verdade, esses debates, só interferiam nesta produção na medida e nos casos em que os artistas eram efetivamente pressionados para trabalhar em conformidade com as suas prescrições. Quando, por exemplo, Roger de Piles, no Curso de pintura por princípios, de 1708, insinua que a pintura realizada por Poussin e pela escola dos Carraci é limitada, devido à não observância adequada das questões do cromatismo e que Rubens, ao contrario, é grande, devido ao trato por ele dado a cor em seus quadros, esse julgamento diz mais respeito aos princípios que fundamentam a sua teoria da arte do que às qualidades mesmas da obra dos artistas que ele toma como exemplo para sua argumentação. Mesmo se alguns pintores, nas suas preferências e definição de seus estilos, pendiam para a cor e outros para o desenho, nenhum deles ignorava que um quadro é um conjunto de linhas e de cores dispostas numa certa ordem, antes de ser a representação de uma batalha ou de uma natureza morta. Entre as inovações cromáticas de um Ticiano e os discursos que se formaram para defendê-las ou condená-las as distâncias são grandes, pois as discussões acabam ganhando autonomia. As escolas de Florença e de Roma defenderam o primado do desenho e os documentos mais significativos desta defesa estão nos escritos de Vasari e Zuccaro. As escolas veneziana e lombarda, representadas, respectivamente, por eruditos como Lodovico Dolce e Lomazzo, defendiam que a arte da cor era mais importante do que a exatidão do desenho. Os discursos de defesa e legitimação do desenho consistiam em demonstrar que Platão estava certo ao condenar a dimensão sensível da experiência humana e os prazeres a ela relacionados, mas não ao condenar a pintura, já que esta não era, essencialmente, uma atividade sensível, já que os aspectos mais importantes que a definiam estavam no rigor do desenho e não na sensualidade da cor. Tal atitude equivalia a defender a pintura, justificando os critérios filosóficos e morais que haviam servido para sua exclusão. Em contrapartida, os defensores do primado da cor argumentavam que era esta que tornava os objetos dotados de “alma” e de “vida”; que era ela que permitia pintar a carne, representar o movimento, criar a ilusão do vivo. Era ela, enfim, que estava na origem do prazer que o
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espectador sente diante de um quadro. Ao desenho sublime e austero de Rafael, eles preferiam o exuberante colorido de Ticiano. Este elogio da cor incorria em certos riscos, que não passavam despercebidos pelos defensores do desenho, que se encarregavam de denunciá-los. Ao defenderem o primado da cor na pintura, os humanistas venezianos colocavam em perigo a condição de arte liberal que a pintura havia conquistado na cultura humanista graças ao primado do desenho. Ora, desde a antiguidade, a maioria das acusações dirigidas contra a pintura tinham por base principalmente a natureza sensível das imagens pintadas e o prazer que elas proporcionavam, ou seja, justamente aquele aspecto da pintura ligado à cor. Isso explica por que Vasari insistiu tanto na necessidade de afirmar que a pintura, assim como a escultura e a arquitetura, é uma arte que procede essencialmente do intelecto, isto é, da arte do desenho. Explica também por que, para Zuccaro, o desenho não é matéria, nem corpo, nem acidente, mas sim concepção, ideia, regra e finalidade, em suma, uma atividade superior do intelecto. Ainda que reconheçam a importância da cor, a maior parte dos teóricos continuará a privilegiar o desenho, que exige do artista e do espectador um ato de abstração, em contraposição à experiência sensível proporcionada pela cor, e um ato reflexivo para compreender a engenhosidade da invenção. Isso equivale a atribuir ao desenho qualidades autenticamente intelectuais, conhecimentos tão diversos como perspectiva, anatomia e história e a reportar-se a uma autoridade tão considerável como a atividade do pensamento para a determinação da ideia. O debate que opunha desenho e cor na Itália do século XVI transformou-se em uma querela doutrinária ainda mais fortemente polarizada na França no século seguinte. O conflito francês surgiu por volta de 1660 e se estendeu por quarenta anos e opôs os partidários de Poussin, defensores do primado do desenho, aos partidários de Rubens, defensores do primado da cor. Os franceses transformaram o que era uma divergência entre pontos de vista contrários, mas não inconciliáveis num antagonismo violento em que se chocam posições consideradas incompatíveis. Ainda que utilize argumentos da polêmica italiana, o debate francês não foi uma simples repetição ou continuação do que ocorreu na Itália no século anterior. Aquilo que na Itália era apenas uma corrente ou uma tendência de interpretação da obra de arte, tornou-se na França uma teoria dominante, a doutrina oficial da Academia. Teoria da linguagem visual
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O prevalência do desenho, defendido pelos poussinistas, era avalizado pela Academia Real de Pintura e Escultura da França, a qual eles dirigiam desde a sua fundação. Os motivos deste posicionamento, no entanto, eram distintos daqueles dos humanistas italianos e estavam alicerçados em interesses muito mais objetivos, ainda que possuíssem alguns fundamentos em comum. A Academia se incumbira de uma finalidade, a um só tempo, pedagógica, teórica e política: ela devia ensinar a arte da pintura e da escultura, produzir reflexões sobre a arte e contribuir para a difusão da imagem da monarquia absoluta e contribuir para a manutenção do seu poderio. A terceira finalidade era, evidentemente, prioritária, e sobrepujava as demais. Ela se expressava na hierarquia dos gêneros, que determinava a supremacia da pintura histórica, em detrimento dos temas religiosos, mitológicos, retratos e cenas de gênero. O privilégio dado à pintura histórica pressupõe, segundo o raciocínio acadêmico, o primado e a excelência do desenho, que permite transformar o relato em imagem, a história em quadro, ou, para usar uma expressão da época, narrar com o pincel. Compreende-se assim a desconfiança da academia em relação às doutrinas coloristas que haviam começado a se difundir na França na primeira metade do século XVII. A preferência pelo desenho recebeu também uma justificativa ligada às questões pedagógicas: para os acadêmicos, o desenho corresponde à única parte da pintura que se pode efetivamente ser submetida às condições de uma aprendizado escolar, supostamente porque o processo deste aprendizado pode ser ordenado segundo passos sucessivos e regras objetivas. Para eles, o trabalho cromático, contrariamente, escapa às regulamentações. Os séculos XVI e XVII foram os períodos anteriores ao século XX em que mais se escreveu sobre desenho. No decorrer do século XVIII e nos posteriores, a história mostra que a presença expressiva da cor ganhou cada vez mais espaço, até que a polaridade entre desenho e pintura se mostrou ultrapassada no modernismo.
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Unidade 2
A história e a crítica de arte