Em Tese, v. 21, n. 2 (2015)

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belo horizonte ISSN: 1982-0739

V.

21 2 N.

MAIO-AGO. 2015

BARTHES

POR NÓS

MESMOS

Apoio

PÓS-LIT CAPES PROEX


UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

EDITORES DE SEÇÃO

Reitor: Prof. Clélio Campolina Diniz Vice-Reitora: Profa. Rocksane de Carvalho Norton

DOSSIÊ – BARTHES POR NÓS MESMOS

FACULDADE DE LETRAS DA UFMG

TEORIA DA LITERATURA E ENSINO DE LITERATURA

Diretora: Profa. Graciela Inés Ravetti de Gómez Vice-Diretor: Prof. Rui Rothe-Neves

CRÍTICA LITERÁRIA, OUTRAS ARTES E MÍDIAS

PÓS-LIT – PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS

Coordenadora: Profa. Myriam Corrêa de Araújo Ávila Subcoordenadora: Profa. Elisa Maria Amorim Vieira COLEGIADO DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS

Docentes Titulares: Sabrina Sedlmayer Pinto, Luiz Fernando Ferreira Sá, Márcia Maria Valle Arbex, Maria Cecília Bruzzi Boechat, Matheus Trevizam Docentes Suplentes: Ram Avraham Mandil, Marcel de Lima Santos, Maria Ester Maciel de Oliveira Borges, Claudia Campos Soares, Teodoro Rennó Assunção Discentes Titulares: Alysson Quirino Siffert e Gabriela Figueiredo Azevedo Discentes Suplentes: Amanda Pavani Fernandes e Ana Paula Raposo Secretária: Letícia Magalhães Munaier Teixeira EDITORES DA REVISTA EM TESE

Aline Sobreira de Oliveira Felipe Oliveira de Paula Gustavo Cerqueira Guimarães João Alves Rocha Neto Josué Borges de Araújo Godinho Rafael Otávio Fares

Gustavo Cerqueira Guimarães Felipe Oliveira de Paula Aline Sobreira de Oliveira TRADUÇÃO E EDIÇÃO

Josué Borges de Araújo Godinho EM TESE

Rafael Otávio Fares ENTREVISTAS

João Alves Rocha Neto RESENHAS

Felipe Oliveira de Paula POÉTICAS

Gustavo Cerqueira Guimarães CONSELHO EDITORIAL

Adélcio Sousa Cruz – UFV Ana Paula Arnaut – Universidade de Coimbra Andréa Sirihal Werkema – UERJ Antônio Marcos Pereira – UFBA Antonio Marcos Vieira Sanseverino – UFRGS Cynthia Santos Barra – UNIR Elcio Loureiro Cornelsen – UFMG Emerson da Cruz Inácio – USP Emílio Carlos Roscoe Maciel – UFOP Ernani de Castro Maletta – UFMG Graciela Ravetti – UFMG


Georg Wink – Freie Universität Berlin Heike Muranyi – Deutscher Akademischer Austauschdienst Jacyntho Lins Brandão – UFMG João Nilson Pereira de Alencar – UFSC Joelma Santana Siqueira – UFV Jorge Alves Santana – UFG Julio Jeha – UFMG Leda Maria Martins – UFMG Lucia Castello Branco – UFMG Luiz Morando – UFMG/Uni-BH Luiz Nazário – UFMG Marcelino Rodrigues da Silva – UFMG Marcos Antônio Alexandre – UFMG Marcos Rogério Cordeiro Fernandes – UFMG Maria Cristina Batalha – UERJ Maria Elisa Rodrigues Moreira – UninCor Mônica Medeiros Ribeiro – UFMG Nina Caetano – UFOP Ozíris Borges Filho – UFTM Paulo Fonseca Andrade – UFU Pedro Dolabela Chagas – UFPR Roberto Corrêa dos Santos – UERJ Sandra Regina Goulart Almeida – UFMG Sandro Ornellas – UFBA Tatiana da Silva Pequeno – UFF Tereza Virginia Ribeiro Barbosa – UFMG Vânia Maria Baeta Andrade – UFMG PARECERISTAS AD HOC DESTE VOLUME

Aline Sobreira de Oliveira – UFMG Cleber Araújo Cabral – UFMG Felipe Oliveira de Paula – UFMG João Alves Rocha Neto – UFMG Josué Borges de Araújo Godinho – UFMG

Luiz Henrique Carvalho Penido – UFMG Miriam de Paiva Vieira – UFMG Pedro Henrique Kalil Auad – UFG Rafael Otávio Fares – UFMG PROJETO GRÁFICO

Priscila Justina | Pi Laboratório Editorial Eduardo Soares DIAGRAMAÇÃO E CAPA

Priscila Justina | Pi Laboratório Editorial PROGRAMAÇÃO WEB

Reginaldo Gomes IMAGENS DESTE NÚMERO

Cláudia Cárdenas e Rafael Schlichting REVISÃO

A revisão dos textos deste número foi de inteira responsabilidade de seus respectivos autores.


SUMÁRIO

Apresentação

APRESENTAÇÃO A FOTOGRAFIA DO JARDIM DE INVERNO: BARTHES, FRAGMENTO, FOTOGRAFIA

Ana Martins Marques BARTHES VAI AO CINEMA

Dossiê Teoria da Literatura e Ensino de Literatura Crítica Literária, outras Artes e Mídias Edição e Tradução Em Tese Entrevistas Resenhas Poéticas

UMA LEITURA DE ESCRITA TRAUMÁTICA EM DUAS DRAMATURGIAS CONTEMPORÂNEAS BRASILEIRAS: AGRESTE E BR-3

Thiago Henrique Fernandes Pereira A ESCRITA DO DESASTRE (FRAGMENTOS CAÍDOS DE UM TEXTO ARDENTE)

Gustavo Ramos de Souza

Maurice Blanchot Tradução: João Rocha

BIOGRAFEMA, STUDIUM, PUNCTUM, FOTOGRAFIA: QUASE UM MÉTODO

O NASCIMENTO DO CINEMA E A SIMULTANEIDADE

Ewerton Martins Ribeiro (COM) PARTILHAR CONCEITOS: BARTHES E A IDEOLOGIA

Pär Bergman Tradução: Júlio Bernardo Machinski

Pedro Henrique Trindade Kalil Auad

A POÉTICA LÍQUIDA NA ESCRITURA DE CLARICE LISPECTOR

DAS OBSCENIDADES AMOROSAS

Danilo França do Nascimento

Rafael Lovisi Prado FOTOGRAFIA E MELANCOLIA: AL BERTO (E BARTHES)

AS SIMBÓLICAS VIAGENS DE BARCO EM TRÊS ROMANCES DE MIA COUTO: A DIREÇÃO DA MORTE

Gustavo Cerqueira Guimarães

Luara Pinto Minuzzi

BECKETT COM DELEUZE: TECITURAS POSSÍVEIS DO ESGOTAMENTO

SYLVIA PLATH E ROLAND BARTHES: FRAGMENTOS DE UM DIÁRIO AMOROSO

Fabiana Campos Baptista

Beatriz Viana Lopes Saltarelli

THE TEMPTATION SCENE IN ORSON WELLES’S AND FOLIAS D’ARTE’S ADAPTATIONS OF OTHELLO

VELHICE, MEMÓRIA E PODER EM DIARIO DE LA GUERRA DEL CERDO, DE ADOLFO BIOY CASARES

Janaina Mirian Rosa Ketlyn Mara Rosa

Letícia Malloy


SUMÁRIO

BARTHES, LUCIA E EU: CONVERSA EM TORNO DOS CAMINHOS

Lucia Castello Branco Entrevista por: João Rocha

Apresentação Dossiê Teoria da Literatura e Ensino de Literatura Crítica Literária, outras Artes e Mídias Edição e Tradução

O LUGAR DE ROLAND BARTHES: ENTREVISTA COM ÂNGELA SENRA, ENEIDA MARIA DE SOUZA E VERA CASA NOVA

Ângela Senra Eneida Maria de Souza Vera Casa Nova Entrevista por: José Antônio Orlando DICKENS, CHARLES. TEMPOS DIFÍCEIS. SÃO PAULO: BOITEMPO EDITORIAL, 2014.

Paula Sperb IMAGEM

CARTAS DA JANELA

Manlio M. Speranzini

Em Tese Entrevistas Resenhas

VÍDEO

DISPOSITIVO CINEMATOGRÁFICO: LA BEAUTÉ DES IMAGES (2011) - 5:39

Cláudia Cárdenas Rafael Schlichting SOM

28 – TEXTO (2013) - 3:49

Gustavo Cerqueira Guimarães

Poéticas

TEXTO

DESENROLANDO BARTHES E OUTRAS SEMIOLOGIAS

Renato Negrão


APRESENTAÇÃO

O v. 21, n. 2, da revista Em Tese traz como tema o dossiê BARTHES POR NÓS MESMOS, que propõe uma reflexão diversificada acerca da obra barthesiana em diálogo com a literatura, os estudos literários, a política e a estética, sobretudo o campo das imagens. Em parte, o dossiê foi motivado pela celebração do centenário de Roland Gérard Barthes, um dos mais distintos semiólogos do século XX, nascido a 12 de novembro de 1915, em Cherburgo, cidade à beira-mar ao norte da França, e falecido em 1980, em Paris.

Incidentes (1987) ou Diário de luto (2009). Aqui, apresentamos estudos, trabalhos artísticos e entrevistas de professores e pesquisadores que abordam temas ou conceitos teóricos recorrentes nessas e outras obras em conversa com o próprio Barthes ou para além dele, como a leitura/escrita, a imagem (o imaginário), o autor, o biografema, a ideologia, o cinema, a recepção, o fragmento ou o punctum, no intuito de promovermos discussões sobre o pensamento barthesiano.

Barthes publicou livros relevantes para os estudos da cultura (da linguagem), destacando-se O grau zero da escrita (1953), Mitologias (1957), Crítica e verdade (1966), Sistema da moda (1967), O império dos signos (1970), S/Z (1970), O prazer do texto (1973), Roland Barthes por Roland Barthes (1975) e A câmara clara (1980), além dos publicados postumamente O grão da voz (1981), O óbvio e o obtuso (1982),

Nessa perspectiva, o Dossiê traz o texto “A fotografia do Jardim de Inverno: Barthes, fragmento, fotografia”, que faz parte dos estudos de doutorado da poeta Ana Martins Marques, no qual a autora investiga o modo como Barthes conecta escrita autobiográfica e fotografia, num dispositivo híbrido, fragmentário, que coloca em questão não apenas a relação entre texto e imagem, entre escrita de si e imagem de


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si, mas também a própria prática do livro. Gustavo Ramos de Souza, com o texto “Barthes vai ao cinema”, busca um ponto comum entre as ideias barthesianas sobre a sétima arte. No artigo “Biografema, studium, punctum, fotografia: quase um método”, Ewerton Martins Ribeiro explora o biografema, perspectiva biográfica idealizada por Roland Barthes em que o foco sai da trajetória diacrônica do biografado para ser dedicado a um específico fragmento de sua vida. Para tanto, mobilizam-se os conceitos de punctum e studium, deslocando-os do seu campo de origem, a fotografia, para o campo da narrativa textual. Pedro Henrique Kalil Auad traz o texto “(Com)Partilhar conceitos: Barthes e a ideologia”, em que estuda o uso do conceito “ideologia” ao longo da trajetória do pensador. Partindo de obras seminais, exploram-se as utilizações e conceptualizações, por vezes divergentes, por vezes confluentes, desse termo. Em “Das obscenidades amorosas”, Rafael Lovisi Prado aborda Fragmentos

de um discurso amoroso, buscando retomar e ampliar a tese de Barthes sobre a obscenidade do discurso amoroso, no sentido de pensá-la tendo em vista três aspectos: “o fragmento” (aspecto formal do próprio texto barthesiano), “a tragicidade” (à luz da filosofia nietzschiana) e “a produção de singularidades” (pensando com Félix Guattari). Por fim, Gustavo Cerqueira Guimarães, com o texto “Fotografia e melancolia: Al Berto (e Barthes)”, mostra como a fotografia se apresenta articulada à melancolia no universo do poeta lusitano. Essa relação se intensifica e se ilumina a partir das articulações com o pensamento de Barthes, Sontag, Agamben e Freud. Na seção Teoria da Literatura e Ensino de Literatura encontra-se o texto de Fabiana Campos Baptista intitulado “Beckett com Deleuze: tecituras possíveis do esgotamento”, cujo objetivo central é perceber como se configura o “esgotamento da linguagem” em algumas obras do escritor Samuel Beckett.

Apresentação


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A seção Crítica Literária, outras Artes e Mídias conta com a contribuição de Janaina Mirian Rosa e Ketlyn Mara Rosa, que, em “The temptation scene in Orson Welles’s and Folias d’Arte’s adaptations of Othello”, comparam e contrastam a representação da chamada “cena da tentação” em duas produções inspiradas na peça shakespeariana: o filme Othello (1952), de Orson Welles, e a produção teatral Otelo, realizada pelo grupo Folias d’Arte. Conta também com o artigo “Uma leitura de escrita traumática em duas dramaturgias contemporâneas brasileiras: Agreste e BR3”, em que Thiago Henrique Fernandes Pereira investiga a “ficcionalidade da errância” nas produções de Newton Moreno e Bernardo Carvalho. Na seção Tradução e Edição, João Rocha apresenta “A escrita do desastre (fragmentos caídos de um texto ardente)”, uma tradução de fragmentos de L’écriture du desastre,

de Maurice Blanchot, texto em que a crise da relação entre sujeito e linguagem atinge níveis paroxísticos; e Júlio Bernardo Machinski nos traz “O nascimento do cinema e a simultaneidade”, uma tradução da parte final da introdução de “Modernolatria” et “Simultaneità”, de Pär Bergman, em que o autor sueco propõe uma investigação sobre o impacto causado pela linguagem cinematográfica nas percepções de tempo e espaço. Na seção Em Tese, Danilo França do Nascimento desenvolve em “A poética líquida na escritura de Clarice Lispector”, uma leitura da água enquanto matéria poética para a escritura de Clarice. Letícia Malloy, com “Velhice, memória e poder em Diario de la guerra del cerdo, de Adolfo Bioy Casares”, investiga três eixos temáticos na obra do escritor argentino. Edinilia Nascimento Cruz, em “Descaminhos da memória: a construção do relato em Corpo de baile, de João Guimarães

Apresentação


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Rosa”, explora as potencialidades da travessia no imaginário sertanejo a partir da novela “Cara-de-Bronze”. Bia Saltarelli propõe, em “Sylvia Plath e Roland Barthes: fragmentos de um diário amoroso”, uma discussão sobre os diários de Sylvia Plath a partir de conceitos elaborados por Roland Barthes. E, por fim, Luara Pinto Minuzzi busca, em “As simbólicas viagens de barco em três romances de Mia Couto: a direção da morte”, referências a barcos, barcas, naus, navios e canoas para perceber a simbologia da viagem do mundo dos vivos ao mundo dos mortos. Em Entrevistas, José Antônio Orlando estabelece um interessante diálogo ao unir as entrevistas que fez com as professoras Ângela Senra, Eneida Maria de Souza e Vera Casa Nova – “O lugar de Roland Barthes”. Essa prosa, fragmentária, é precedida de fotografias de Barthes, selecionadas pelo entrevistador, e oferece boas informações sobre

a recepção do autor no Brasil em décadas anteriores, bem como nos convida a refletir sobre o universo barthesiano atualmente. Já João Rocha, em “Barthes, Lucia e eu: conversa em torno dos caminhos”, entrevista a professora e escritora Lucia Castello Branco. A conversa transita por diversas veredas que atravessam a obra de Roland Barthes, como os deslocamentos entre o professor e o escritor, a psicanálise, a questão da universidade, o exílio, a casa, a comunidade e o biografema. Tais caminhos foram determinantes para a formação de uma professora que, como os escritores, não termina suas frases com ponto final. Em Resenhas, Paula Sperb apresenta a nova edição do clássico Tempos difíceis, do escritor irlandês Charles Dickens, publicada pela editora Boitempo. A autora busca pensar a nova edição do livro em relação ao momento vivenciado em nosso país.

Apresentação


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Finalmente, a seção Poéticas expõe trabalhos de Vídeo, Imagem, Som e Texto, em consonância com o tema deste dossiê. Cláudia Cárdenas e Rafael Schlichting, artistas visuais radicados em Florianópolis, exibem o inquietante vídeo “Dispositivo cinematográfico: la beauté des images”, que conta com o discurso performativo, amoroso, de Gabriela Queiroz, realizado à beira-mar. Manlio Speranzini apresenta a série “Cartas da janela”, composta por seis imagens precedidas de um ensaio sobre a concepção do trabalho. Gustavo Cerqueira Guimarães traz o fragmento, extraído de sua tese de doutorado, que dialoga com Roland Barthes. Aqui, o “Texto” aparece sonorizado. Por fim, contamos com quatro poemas divertidíssimos agrupados na série “Desenrolando Barthes e outras semiologias”, de Renato Negrão. Boa leitura!

Aline Sobreira de Oliveira Felipe Oliveira de Paula Gustavo Cerqueira Guimarães João Alves Rocha Neto Josué Borges de Araújo Godinho Rafael Otávio Fares

Apresentação


A FOTOGRAFIA DO JARDIM DE INVERNO: BARTHES, FRAGMENTO, FOTOGRAFIA

Ana Martins Marques*

RESUMO: Este texto se volta para a junção de texto e imagem fotográfica na obra de Roland Barthes. A partir, sobretudo, de três livros do autor – O império dos signos, Roland Barthes por Roland Barthes e A câmara clara –, buscou-se investigar o modo como o autor conecta escrita autobiográfica e fotografia, num dispositivo híbrido, fragmentário, que coloca em questão não apenas a relação entre texto e imagem, entre escrita de si e imagem de si, mas também a própria prática do livro. PALAVRAS-CHAVE: Roland Barthes; fotografia; fragmento; autobiografia.

* anamartins.bh@gmail.com Doutora em Literatura Comparada pela UFMG. É autora dos livros de poesia O livro das semelhanças (2015), A arte das armadilhas (2011) e A vida submarina (2009).

RÉSUME: Ce texte se tourne vers la jonction entre le texte et l’image photographique chez Roland Barthes. À partir, sourtout, de trois livres de l’auteur – L’empire des signes, Roland Barthes par Roland Barthes et La chambre claire – nous avons enquêté sur la façon dont l’auteur relie l’écriture autobiographique et la photographie, dans un dispositif hybride, fragmentaire, qui met en question non seulement la relation entre le texte et l’image, entre l’écriture de soi-même et l’image de soi-même, mais aussi la propre pratique du livre. MOTS-CLÉS: Roland Barthes; photographie; fragment; autobiographie


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1. “Este conferencista ocidental, quando é citado pelo Kobé Shinbun, vê-se japonesado, com os olhos alongados, a pupila enegrecida pela tipografia nipônica”. BARTHES. O império dos signos, p. 121.

Publicado em 1970, O império dos signos é o primeiro livro de Barthes a associar relato pessoal e emprego da fotografia. Composto por uma série de textos que giram em torno do Japão – entendido, segundo se lê no primeiro ensaio do livro, como um conjunto de traços que formam um “sistema” –, O império dos signos incorpora um número considerável de imagens – reproduções de estampas e gravuras japonesas, um mapa de Tóquio, recortes de jornal, fotos coloridas e em preto e branco, retratos –, acompanhadas de legendas e comentários justapostos, muitas vezes reproduções da escrita manuscrita. Também encontramos aí um retrato do próprio Barthes, em um anúncio de sua conferência, no qual o “conferencista ocidental” aparece “japonesado, com os olhos alongados, a pupila enegrecida pela tipografia nipônica”.1 Que a primeira aparição de uma fotografia do autor no interior do texto seja a de um retrato/máscara, que o mostra metamorfoseado, de certa forma “traduzido” pelo filtro de outra cultura, e que esse retrato venha ainda acompanhado da referência a si mesmo como um outro – “o conferencista ocidental” – é bastante ilustrativo de como, na obra de Barthes, o autobiográfico aparece, sempre, como problema. O império dos signos inaugura, assim, na obra barthesiana, a prática da escrita de si marcada pelo fragmento e pelo recurso à fotografia, uma experiência peculiar de junção entre

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2. Para uma análise detalhada do lugar da fotografia na obra barthesiana, cf. a tese de Magali Nachtergael, “Esthétique des mythologies individuelles: Le dispositif photographique de Nadja à Sophie Calle”, recentemente transformada em livro sob o título Les mythologies individuelles: récit de soi et photographie au 20e siècle. Embora não siga de perto a extensa análise da autora, valho-me aqui de informações e indicações apresentadas por Nachtergael, em especial da relação que ela estabelece entre fragmento e fotografia na obra barthesiana.

3. BARTHES. O império dos signos, p. 5.

texto e imagem que ressurgirá, sob outras formas, em textos posteriores do autor:2 Roland Barthes por Roland Barthes e A câmara clara. A empresa autobiográfica barthesiana é complexa, e não tenho a pretensão de fazer dela uma análise ampla ou de avaliar o tipo de inflexão que ela implica no conjunto da obra do autor francês. Ela aqui me interessa sobretudo pelo modo singular como conecta escrita autobiográfica e fotografia, num dispositivo híbrido, fragmentário, que coloca em questão não apenas a relação entre texto e imagem, entre escrita de si e imagem de si, mas também a própria prática do livro. O império dos signos abre com uma espécie de advertência sobre a relação entre texto e imagem, que faz as vezes de projeto ou programa: O texto não “comenta” as imagens. As imagens não “ilustram” o texto: cada uma foi, para mim, somente a origem de uma espécie de vacilação visual, análoga, talvez, àquela perda de sentido que o Zen chama de satori; texto e imagens, em seus entrelaçamentos, querem garantir a circulação, a troca destes significantes: o corpo, o rosto, a escrita, e nele ler o recuo dos signos.3

o “significante sem significado”, o satori, o “neutro”. Talvez seja surpreendente que justamente Barthes, que nos ensinou a ver sentido em toda parte, que nos mostrou que nunca se escapa do sentido, apresente essa demanda de uma “isenção do sentido”. Em Roland Barthes por Roland Barthes, o autor sustenta que não se trata de postular a existência de algo anterior ao sentido, mas de uma condição posterior, além do sentido – a “utopia” de um estado de isenção alcançado após o percurso de “todo o sentido”.4 No texto introdutório de O império dos signos, que acabo de citar, essa perda do sentido está relacionada com uma espécie de “vacilação” entre texto e imagem, que, em seus entrelaçamentos, garantem a “circulação” do significante. Cinco anos depois de O império dos signos, o autor lança Roland Barthes por Roland Barthes, escrito para atender a uma encomenda do fotógrafo Denis Roche, então responsável pela coleção “Microcosmos – Écrivains de toujours” das Éditions du Seuil (a mesma coleção para a qual Barthes havia contribuído com um volume sobre Michelet). Em 1980, será a vez de A câmara clara, um livro extremamente influente de teoria e crítica da fotografia, que incorpora também, no entanto, uma dimensão autobiográfica, e que se apresenta, igualmente, como uma montagem de texto e imagem.

O tema da “perda de sentido” assume formas variadas na obra barthesiana – o sonho de um mundo “isento de sentido”,

Roland Barthes por Roland Barthes é uma espécie de autobiografia intelectual do autor; nas palavras de Pozuelo Yvancos,

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4. BARTHES. Roland Barthes por Roland Barthes, p. 100-101.


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5. POZUELO YVANCOS. De la autobiografía, p. 214.

6. BARTHES. Roland Barthes por Roland Barthes, p. 136.

7. BARTHES. Roland Barthes por Roland Barthes, p. 14. 8. Como se vê claramente em passagens como: “Eis-me aqui, eu próprio, como medida do ‘saber’ fotográfico. O que meu corpo sabe da fotografia?”. BARTHES. A câmara clara, p. 20. Ou ainda: “Decidi então tomar como guia de minha nova análise a atração que eu sentia por certas fotos”. BARTHES. A câmara clara, p. 35. A própria noção de punctum (aquilo que, na foto, me atrai ou me fere, me punge), em oposição à ideia de studium (campo de interesse cultural da foto), relaciona-se com a experiência singular do sujeito diante da imagem (“dar exemplos de punctum”, diz Barthes, “é, de certo modo, entregar-me”. BARTHES. A câmara clara, p. 69).

“um testamento intelectual, uma declaração de seus princípios, de suas observações e de suas máscaras”.5 Barthes faz aí, ao mesmo tempo, uma apresentação de suas ideias, de suas preocupações e de seu estilo e uma revisão crítica da própria obra (a determinada altura, o autor se refere ao livro como “o livro de minhas resistências a minhas próprias ideias”).6 O livro é dividido em duas partes. A primeira é composta por uma espécie de álbum de família, precedido de um breve texto de abertura. Nele, Barthes afirma ter escolhido as fotos que o “sideram”, sem que ele saiba a razão – um “imaginário de imagens”7 que abarca quase exclusivamente o período da infância e da juventude (voltarei a esse texto introdutório logo mais). Essa primeira parte tem cerca de 40 páginas de fotos entremeadas a pequenos fragmentos textuais, às vezes apenas uma legenda, às vezes apenas um título, às vezes um texto um pouco mais extenso, que identifica e comenta as fotografias, estabelece relações entre elas, mas, sobretudo, trata de indicar a relação/reação de Barthes a essas imagens (algo que em A câmara clara será alçado à condição de uma espécie de “método”).8 A disposição variada do texto em relação às imagens (acima, abaixo, ao lado das fotos), os jogos e associações entre as fotografias, o aproveitamento dos espaços em branco revelam uma atenção à montagem e à composição da página – o modelo do álbum fotográfico serve aqui à reconfiguração do relato autobiográfico.

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A segunda parte do livro é composta por textos organizados em entradas alfabéticas (com títulos como “Adjetivo”, “O escritor como fantasma”, “Uma lembrança de infância”, “Enxaquecas”, “Projetos de livros”, “Relação com a psicanálise”, etc.). Apesar da nítida divisão entre uma parte dedicada às fotografias e outra dedicada ao texto, a separação entre texto e imagem não é aqui absoluta, já que tanto na primeira parte há textos que acompanham as imagens, quanto na segunda há algumas poucas imagens entremeadas ao texto, sobretudo imagens da própria escrita (fichas, anotações, manuscritos) – aspecto da montagem, da disposição do texto e das imagens, que revela uma preocupação com a composição do livro,9 uma atenção ao livro como objeto material, sem dúvida já presente em O império dos signos. A eleição do fragmento não é novidade na obra barthesiana. Como nota Pozuelo Yvancos, o fragmento teve na obra do autor francês importância constante, mas também crescente, como atestam seus três últimos livros – além do Roland Barthes por Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso e A câmara clara –, todos eles textos que adotam, em maior ou menor grau, uma forma fragmentária. No Roland Barthes por Roland Barthes e também em A câmara clara, talvez seja possível entender a opção pelo fragmento como uma espécie de contaminação do dispositivo fotográfico; o texto tende ao fragmento, à descontinuidade, como se, sob o influxo da

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9. Em uma entrevista realizada em 1980, por ocasião do lançamento de A câmara clara, e apenas um mês antes de sua morte, Barthes fala sobre o prazer de estabelecer relações entre texto e imagem: “Há um trabalho de que eu gosto enormemente, é aquele que consiste em estabelecer uma relação entre o texto e a imagem. Fiz isso muitas vezes, e sempre com um prazer imenso. Adoro legendar as imagens. Fiz isso em meu livro sobre o Japão, em meu pequeno livro Barthes par lui-même nas edições Seuil, e acabo de fazer isso pela terceira vez”. (Barthes se refere ao livro A câmara clara) [“Il y a un travail que j’aime énormément, c’est celui qui consiste à monter un rapport entre le texte et l’image. Je l’ai fait plusieurs fois, et toujours avec un plaisir immense. J’adore légender les images. Je l’ai fait dans mon livre sur le Japon, dans mon petit livre Barthes par lui-même au Seuil, et je viens donc de le faire une troisième fois”]. BARTHES. Sur la photographie, p. 79.


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10. BARTHES. Roland Barthes por Roland Barthes, p. 83-84. 11. Barthes dedicou um grande interesse ao haicai, e esse interesse teve consequências em várias de suas formulações, inclusive no que se refere à fotografia. Em A preparação do romance, curso ministrado entre 1978 e 1980 no Collège de France, o autor francês desenvolve a relação entre haicai e fotografia: “Minha proposta é que o haicai se aproxima muito do noema da fotografia: ‘Isso foi’”. BARTHES. A preparação do romance I, p. 148. O autor propõe ainda considerar a foto como “uma forma breve”. BARTHES. A preparação do romance I, p. 152. Também em A câmara clara, a fotografia (ou, antes, “certas fotografias”) é aproximada do haicai: “Isso aproxima a fotografia (certas fotografias) do Haiku. >>>

imagem fotográfica, sofresse uma espécie de mutação. Numa das entradas de Roland Barthes por Roland Barthes, fragmento e fotografia são elencados numa mesma lista de elementos unidos pelo “gosto da divisão”: “Gosto pela divisão: as parcelas, as miniaturas, os contornos, as precisões brilhantes (tal é o efeito produzido pelo Haxixe, segundo Baudelaire), a vista dos campos, as janelas, o haicai, o traço, a escrita, o fragmento, a fotografia, o palco à italiana [...]”.10 A foto é também uma forma breve, um fragmento – ela mostra uma porção do espaço num instante do tempo –, captura sempre parcial do mundo. O gosto pelo fragmento é ainda tematizado em Roland Barthes por Roland Barthes nas entradas “O círculo dos fragmentos”, “O fragmento como ilusão” e “Do fragmento ao diário”. Vou resistir à tentação de reproduzir integralmente essas passagens (de resto, um desejo que se repete ao lidar com qualquer texto de Barthes, sempre tão citável), em que o autor afirma que “escrever por fragmentos” é procedimento presente desde seu primeiro texto e relaciona tal procedimento ao seu gosto pelo pormenor e pela escrita dos começos (associados à inabilidade para a “composição” e ao desapreço pelo fim), ao haicai,11 ao verso, à música e, por fim, ao diário. Limito-me a citar os dois primeiros parágrafos de “O círculo dos fragmentos”: Escrever por fragmentos: os fragmentos são então pedras sobre o contorno do círculo: espalho-me à roda: todo o meu pequeno universo em migalhas; no centro, o quê? EM  TESE

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Seu primeiro texto ou quase (1942) é feito de fragmentos; essa escolha justificava-se então à maneira de Gide “porque a incoerência é preferível à ordem que deforma”. Desde então, de fato, ele não cessou de praticar a escritura curta: quadrinhos das Mitologias e de O império dos signos, artigos e prefácios dos Ensaios críticos, lexias de S/Z, parágrafos intitulados de Michelet, fragmentos de Sade II e de O prazer do texto.12

Essa passagem me interessa por outros motivos além de tratar da eleição do fragmento como forma. Em primeiro lugar, ela associa a fragmentação do texto a uma certa dispersão do sujeito (“espalho-me à roda”), dispersão a que se fará referência em outros momentos do livro. Em segundo lugar, ela de certa forma encena uma oscilação ou divisão enunciativa que ocorrerá ao longo de todo o livro: Barthes começa o texto em primeira pessoa, para logo em seguida passar à terceira. Está aí implicado o próprio gesto autobiográfico, que será colocado em questão ao longo de todo o texto. Não por acaso, muitos autores consideraram o Roland Barthes por Roland Barthes como uma espécie de “antiautobiografia”,13 ou de autobiografia irônica, biografia que parece criada, antes, para desconstruir e problematizar o gênero. A advertência que abre o livro (e que se repete no fragmento intitulado “O livro do Eu”) – “Tudo isto deve ser considerado como dito por uma personagem de romance”14 –, em letra manuscrita, é um gesto decisivo de afastamento de MARQUES. A Fotografia do Jardim de Inverno: Barthes, fragmento, fotografia

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11. >>> Pois a notação de um haiku também é indesenvolvível: tudo está dado, sem provocar vontade ou mesmo a possibilidade de uma expansão retórica. Nos dois casos, poderíamos, deveríamos falar de uma imobilidade viva: ligada a um detalhe (a um detonador), uma explosão produz uma estrelinha no vidro do texto ou da foto: nem o Haiku nem a Foto fazem ‘sonhar’”. BARTHES. A câmara clara, p. 78. Para uma análise da relação de Barthes com o haicai, cf. NACHTERGAEL. Esthétique des mythologies individuelles: Le dispositif photographique de Nadja à Sophie Calle, em especial p. 259-264. 12. BARTHES. Roland Barthes por Roland Barthes, p. 108.

13. Cf. POZUELO YVANCOS. De la autobiografía, p. 225.

14. BARTHES. Roland Barthes por Roland Barthes, p. 11.


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15. BARTHES. Roland Barthes por Roland Barthes, p. 160. 16. Num esclarecedor ensaio sobre o autor francês, Susan Sontag apresenta nos seguintes termos a empresa autobiográfica barthesiana: “Quando autobiográfica a obra inclui invariavelmente confissões de relutância a falar na primeira pessoa. Uma das convenções de Roland Barthes é referir-se o autobiógrafo a si mesmo às vezes como ‘eu’ e outras vezes como ‘ele’. Tudo isso, declara Barthes na primeira página do seu livro sobre si mesmo, ‘deve ser considerado como algo dito por um personagem num romance’. >>> 17. BARTHES. Roland Barthes por Roland Barthes, p. 136-137.

qualquer ilusão de coincidência entre um “eu” textual (que aqui se apresenta frequentemente como “ele”) e um “eu”, digamos, da experiência. A partir daí, o texto não faz mais do que lançar suspeitas a respeito do sujeito da autobiografia, com a oscilação entre a primeira e a terceira pessoa, a insistência no problema da dispersão do sujeito (“não sou contraditório, sou disperso”),15 e mesmo a tematização explícita do autobiográfico como problema.16

modo?) para esses diferentes futuros, meus textos se desencaixam, nenhum vem coroar o outro; este aqui não é nada mais do que um texto a mais, o último da série, não o último do sentido: texto sobre texto, nada é jamais esclarecido.

Em “O livro do eu”, Barthes retoma a frase de abertura do livro, lançando-o para o domínio do romanesco (“[...] A substância deste livro, enfim, é pois totalmente romanesca”) e apresentando o sujeito que fala como máscara (sem que haja no entanto “ninguém por detrás”).17

A autobiografia, então, não é uma questão de “sinceridade” ou de “autenticidade”, mas de um inevitável desajuste temporal. O texto está inevitavelmente ancorado no presente; é a partir daí que se fala (mas quem o autoriza?) sobre o passado (um problema narrativo, em suma). Um texto nunca é definitivo, nunca tem a “última palavra”; ele sempre entra (mais um) no jogo de outros textos (é o “último da série, não o último do sentido”).

Que direito tem o meu presente de falar de meu passado? Meu presente tem algum poder sobre meu passado? Que “graça” me teria iluminado? Somente a do tempo que passa, ou de uma boa causa encontrada em meu caminho?18

Em “Lucidez”, o problema do autobiográfico é tratado por outro viés, o do tempo, ou, antes, o do desencaixe de tempos da autobiografia, que sempre se escreve a partir do presente: Este livro não é um livro de “confissões”; não porque ele seja insincero, mas porque temos hoje um saber diferente do de ontem; esse saber pode ser assim resumido: o que escrevo de mim nunca é a última palavra: quanto mais sou “sincero”, mais sou interpretável, sob o olhar de instâncias diferentes das dos antigos autores, que acreditavam dever submeter-se a uma única lei: a autenticidade. Essas instâncias são a História, a Ideologia, o Inconsciente. Abertos (e como poderia ser de outro

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Por fim, em “Quanto a mim, eu”, Barthes começa por identificar o par subjetividade/objetividade como um “velho paradigma”; hoje, a subjetividade – “desconstruída, desunida, deportada, sem ancoragem” – “pode voltar num outro trecho da espiral”.19 Barthes trata então da questão dos pronomes pessoais, aspecto central do discurso autobiográfico: Pronomes ditos pessoais: tudo se joga aqui, estou fechado para sempre na liça pronominal: o “eu” mobiliza o imagiMARQUES. A Fotografia do Jardim de Inverno: Barthes, fragmento, fotografia

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16. >>> Sob a metacategoria da atuação, não só a fronteira entre autobiografia e ficção é esmaecida como também a fronteira entre ensaio e ficção. ‘Que este ensaio admita ser quase um romance’, diz ele em Roland Barthes. A escrita registra novas formas de ênfase dramática, de um tipo autorreferente: a escrita se torna o registro de compulsões e de resistências a escrever. (No prolongamento dessa concepção, a escrita em si torna-se o tema do escritor)”. SONTAG. A escrita em si mesma: sobre Roland Barthes, p. 97.

18. BARTHES. Roland Barthes por Roland Barthes, p. 137.

19. BARTHES. Roland Barthes por Roland Barthes, p. 185.


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20. BARTHES. Roland Barthes por Roland Barthes, p. 186.

nário, o “você” e o “ele” a paranoia. Mas também, fugitivamente, conforme o leitor, tudo, como os reflexos de um chamalote, pode revirar-se: em “quanto a mim, eu”, o “eu” pode não ser o mim, que ele quebra de um modo carnavalesco; posso me chamar de “você”, como Sade o fazia, para destacar em mim o operário, o fabricante, o produtor de escritura, do sujeito da obra (o Autor); por outro lado, não falar de si pode querer dizer: eu sou Aquele que não fala dele, e falar de si dizendo “ele”, pode querer dizer: falo de mim como se estivesse um pouco morto, preso numa leve bruma de ênfase paranoica, ou ainda: falo de mim como o autor brechtiano que deve distanciar sua personagem: mostrá-lo, não encarná-lo, dar à sua dicção uma espécie de piparote, cujo efeito é descolar o pronome de seu nome, a imagem de seu suporte, o imaginário de seu espelho (Brecht recomendava ao ator que pensasse todo o seu papel na terceira pessoa).20

que a formulação de Lejeune, com sua ênfase na coincidência entre autor, narrador e personagem, dá a entender), o gesto autobiográfico não implicaria coincidência, mas duplicação, cisão, quebra, diferença de si em relação a si mesmo.

Falar de si como um outro, falar como um ator (brechtiano), ou, ainda, “como se estivesse um pouco morto” – eis, ao que parece, a condição do autobiográfico. Do mesmo modo que, como diz Barthes, na expressão “Quanto a mim, eu”, “eu” e “mim” podem não coincidir, a duplicação do nome próprio do autor no título de Roland Barthes por Roland Barthes pode ser lida como uma cisão entre sujeito que escreve e sujeito da escrita, entre “eu” e “mim”. Assim (ao contrário talvez do

Quando a meditação (a sideração) constitui a imagem como ser destacado, quando ela a transforma em objeto de um gozo imediato, não tem mais nada a ver com a reflexão, por sonhadora que fosse, de uma identidade; ela se atormenta e se encanta com uma visão que não é de modo algum morfológica (eu nunca me pareço comigo), mas antes orgânica. Abarcando todo o campo parental, a imageria age como um médium e me põe em relação com o “isto” de meu corpo; ela

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Um dispositivo que mostra de forma pungente essa diferença de si para si é, sem dúvida, a fotografia. Em O ato fotográfico, Dubois se refere a esse “[...] irresistível sentimento de estranheza que invade qualquer indivíduo da primeira vez que olha para sua imagem fotográfica: ‘eu’ começa sempre por ser um outro; eu (me) vejo, portanto não sou (aquele lá)”.21 Essa estranheza aparece logo na abertura do Roland Barthes por Roland Barthes, na forma de uma “inquietante familiaridade” em relação às fotografias da própria juventude. “São somente as imagens de minha juventude que me fascinam”, diz Barthes. Esse fascínio, que o autor afirma não saber explicar, é apresentado como uma “sideração”:

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21. DUBOIS. O ato fotográfico, p. 228.


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22. BARTHES. Roland Barthes por Roland Barthes, p. 13-14.

suscita em mim uma espécie de sonho obtuso, cujas unidades são dentes, cabelos, um nariz, uma magreza, pernas com meias compridas, que não me pertencem, sem no entanto pertencer a mais ninguém; eis-me então em estado de inquietante familiaridade: vejo a fissura do sujeito (exatamente aquilo de que ele não pode dizer nada). Disso decorre que a fotografia de juventude é, ao mesmo tempo, muito indiscreta (é meu corpo de baixo que ela dá a ler) e muito discreta (não é de “mim” que ela fala).22

O texto é intrincado, e não vou tentar fornecer dele uma análise exaustiva. Apenas me interessa reter algumas questões, relativas à compreensão da imagem fotográfica, e em particular da imagem fotográfica de si. Em primeiro lugar, diz Barthes, o que fascina não é a “reflexão [...] de uma identidade”. Também não se trata de uma questão de semelhança (“eu nunca me pareço comigo”). Essa “imageria”, “abarcando todo o campo parental”, afirma Barthes, “me põe em relação com o ‘isto’ do meu corpo”. A menção, nesse ponto específico, ao “campo parental” parece referir-se à identificação de algo como uma história (ou uma “pré-história”) do corpo, a detecção de alguma coisa de si no corpo de um ancestral, permitida pela fotografia. O “’isto’ de meu corpo” antecipa a percepção da dimensão de designação da imagem fotográfica que encontrará depois formulação no “isto foi”, em A câmara clara. O que mais me interessa nesse trecho, no entanto, é EM  TESE

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a percepção de uma diferença ou intervalo em relação a si mesmo (as pernas com meias compridas com que me vejo na fotografia não me pertencem, sem pertencer a mais ninguém; a fotografia de juventude dá a ver o meu corpo, mas não é de “mim” que ela fala). “Vejo”, diz Barthes (e a escolha do campo lexical da visão aqui não é obviamente casual), “a fissura do sujeito”. A fotografia, portanto, não expõe a coincidência, mas, antes, a fissura do sujeito que marca o gesto autobiográfico. As fotografias apresentadas na primeira parte do Roland Barthes por Roland Barthes mostram, diz o autor, “figurações de uma pré-história do corpo”.23 Por esse motivo, o “imaginário de imagens” será detido com a entrada na vida adulta, a partir da qual um outro imaginário se instala: o do texto, o da “escritura”. A infância e a juventude não são tratadas no texto; aparecem apenas como corpo, na forma de fotografias (às quais, é preciso lembrar, se apõem no entanto alguns breves excertos textuais). Com a entrada na “vida produtiva”, que marca o advento do texto, da escrita, o sujeito despoja-se de si mesmo, se dispersa (na segunda parte do Roland Barthes por Roland Barthes, encontramos o autor convertido em uma série de entradas enciclopédicas, um conjunto textos que versam sobre seus pensamentos, gostos ou ideias, um sujeito tornado, como demonstram as únicas imagens autorizadas a figurar nessa parte do livro, ficha, fichário).

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23. BARTHES. Roland Barthes por Roland Barthes, p. 14.


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Mais adiante, no texto que acompanha duas fotografias do autor (uma de 1942, outra de 1970), Barthes escreve: Mas eu nunca me pareci com isto! – Como é que você sabe? Que é este “você” com o qual você se pareceria ou não? Onde tomá-lo? Segundo que padrão morfológico ou expressivo? Onde está seu corpo de verdade? Você é o único que só pode se ver em imagem, você nunca vê seus olhos, a não ser abobalhados pelo olhar que eles pousam sobre o espelho ou sobre a objetiva (interessar-me-ia somente ver meus olhos quando eles te olham): mesmo e sobretudo quanto a seu corpo, você está condenado ao imaginário.24

A impossibilidade (comum a todos nós) de ver a si mesmo, a não ser no espelho ou na fotografia, essa “condenação” ao “imaginário” mesmo (e sobretudo) quanto ao próprio corpo (“você é o único que só pode se ver em imagem”), que bloqueia a percepção da semelhança (não posso saber com o que me pareço), faz do dispositivo fotográfico o lugar de uma “dissociação astuciosa da consciência de identidade”, como se lê em A câmara clara: “Eu queria uma história dos Olhares. Pois a Fotografia é o advento de mim mesmo como outro: uma dissociação astuciosa da consciência de identidade”.25 A “loucura profunda da fotografia”26 está relacionada com a experiência desse momento em que não sou sujeito nem objeto, “mas antes um sujeito EM  TESE

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24. BARTHES. Roland Barthes por Roland Barthes, p. 48.

25. BARTHES. A câmara clara, p. 25. 26. Barthes nota que “foi antes da Fotografia que os homens mais falaram da visão do duplo. Costuma-se aproximar a heautoscopia de uma alucinose; ela foi, durante séculos, um grande tema mítico. Hoje, porém, é como se recalcássemos a loucura profunda da fotografia: ela lembra sua herança mítica apenas por esse ligeiro mal-estar que me toma quando ‘me’ olho em um papel”. BARTHES. A câmara clara, p. 25-26.


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27. BARTHES. A câmara clara, p. 27.

28. BARTHES. Sade, Fourier, Loyola, p. 12.

29. Reproduzo a seguir o período completo: “Porque, se é necessário que, por uma retórica arrevesada, haja no Texto, destruidor de todo o sujeito, um sujeito para se amar, tal sujeito é disperso, um pouco como as cinzas que se atiram ao vento após a morte (ao tema da urna e da estela, objetos fortes, fechados, instituidores de destino, opor-se-iam os cavacos de lembrança, a erosão que só deixa da vida passada alguns vincos): se eu fosse escritor, já morto, como gostaria que a minha vida se reduzisse, pelos cuidados de um biógrafo amigo e desenvolto, a alguns pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos: >>>

que se sente tornar-se objeto: vivo então uma microexperiência da morte (do parêntese): torno-me verdadeiramente espectro”.27 Assim, Roland Barthes por Roland Barthes ao mesmo tempo tematiza e realiza uma reconfiguração da escrita autobiográfica que passa pela eleição da forma do fragmento e pela fotografia, e ainda pela relação de ambas com a noção de um sujeito não apenas cindido, mas desunido, disperso, tornado outro, duplo de si mesmo. Ambos, fragmento e fotografia, são dispositivos de um pensamento do descontínuo, da interrupção, da parada, que implica uma resistência à narratividade (é a narrativa que cria a ilusão de coerência do sujeito). Essa concepção fragmentária, descontínua, do biográfico aparece bem antes na obra barthesiana, com a noção de biografema, introduzida pelo autor no prefácio de seu livro Sade, Fourier, Loyola: [...] se eu fosse um escritor, já morto, como gostaria que a minha vida se reduzisse, pelos cuidados de um biógrafo amigo e desenvolto, a alguns pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos: “biografemas”, cuja distinção e mobilidade poderiam viajar fora de qualquer destino e vir tocar, à maneira dos átomos epicurianos, algum corpo futuro, prometido à mesma dispersão; uma vida furada, em suma [...].28

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Encontramos aí formulada a ideia de uma biografia que se detém em certos traços, detalhes, pormenores, aos quais, pelos cuidados de um biógrafo, se reduz o fluxo de uma vida – que, nesse gesto, se esgarça, torna-se “furada”. Partícula mínima da biografia, “à maneira dos átomos epicurianos”, o biografema se caracteriza pela “mobilidade”, e portanto pela disponibilidade para tocar “algum corpo futuro”, pela abertura para o outro (para a leitura). Essa passagem é muito citada, geralmente – como, aliás, eu fiz – omitindo-se a primeira e a última parte desse longo e complexo período29 no qual se assiste ao nascimento da ideia de “biografema”. Na primeira parte do período, Barthes diz que, se, no texto, destruidor de todo sujeito, é preciso ainda assim haver um “sujeito para se amar”, esse sujeito é disperso, como as cinzas atiradas ao vento após a morte. Na parte final, a “vida furada” é comparada àquela que Proust soube escrever em sua obra, mas também – analogia que aqui nos interessa de perto – a um “filme à moda antiga, de que está ausente toda palavra [aqui, o termo “parole” seria mais precisamente traduzido por “fala” ou “diálogo”] e cuja vaga de imagens [...] é entrecortada, à moda de soluços salutares, pelo negro apenas escrito do intertítulo, a irrupção desenvolta de outro significante [...]”.30 No exemplo de Barthes, é a escrita que vem interromper, entrecortar, furar, “à moda de soluços salutares”, o fluxo das imagens. Podemos

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29. >>> ‘biografemas’, cuja distinção e mobilidade poderiam viajar fora de qualquer destino e vir tocar, à maneira dos átomos epicurianos, algum corpo futuro, prometido à mesma dispersão; uma via furada, em suma, como Proust soube escrever a sua na sua obra, ou então um filme à moda antiga, de que está ausente toda palavra e cuja vaga de imagens (esse flumen orationis em que talvez consista o ‘lado porco’ da escritura) é entrecortada, à moda de soluços salutares, pelo negro apenas escrito do intertítulo, a irrupção desenvolta de outro significante: o regalo branco de Sade, os vasos de flores de Fourier, os olhos espanhóis de Inácio”. BARTHES. Sade, Fourier, Loyola, p. 12.

30. BARTHES. Sade, Fourier, Loyola, p. 12.


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pensar que a irrupção de um meio significante por outro, o corte que vem interromper o fluxo, funciona ao inverso nos textos barthesianos que incorporam imagens fotográficas: neles, é a imagem que vem “furar” o texto, fragmentá-lo pela irrupção de um outro meio significante, ele mesmo um fragmento. Ou, ainda, podemos pensar que o Roland Barthes por Roland Barthes – tanto a primeira parte, com suas cadeias de imagens entrecortadas por legendas e comentários, como os intertítulos de um filme mudo, quanto a segunda, com suas entradas/fragmentos – realiza o propósito de “redução” da vida a certos traços e pormenores biográficos, Barthes assumindo assim ele mesmo o papel do próprio biógrafo “amigo e desenvolto”.

31. BARTHES. A câmara clara, p. 51.

Mais tarde, em A câmara clara, o autor estabelece uma comparação explícita entre fotografia e biografema, ao afirmar: “gosto de certos traços biográficos que, na vida de um escritor, me encantam tanto quanto certas fotografias; chamei esses traços de “biografemas”; a Fotografia tem com a História a mesma relação que o biografema tem com a biografia”.31 Fragmento da história, como o biografema é fragmento de uma biografia, a fotografia dá a ver, sempre, elementos parciais, subtraídos ao fluxo da vida e ao contínuo do espaço, detalhes, pormenores. ***

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A câmara clara é uma reflexão sobre a fotografia, uma tentativa de estabelecer o traço distintivo da imagem fotográfica a partir de uma atenção às reações do próprio autor em relação às imagens, ou ainda, como sugere o título de um ensaio de Geoffrey Batchen, “uma outra pequena história da fotografia”.32 Mas é também um livro que articula texto e imagem de forma intrincada, uma montagem de texto e fotografia que inclui numerosas reproduções fotográficas – que são comentadas, legendadas, analisadas, colocadas em relação –, para contar uma história que é, afinal, uma história de luto. Barthes está em busca do que distingue a fotografia na comunidade das imagens, e encontra como resposta o seu caráter indicial, a relação material que a foto mantém com seu objeto; essa relação, Barthes a descreve de várias formas ao longo do livro, referindo-se à “teimosia do Referente em estar sempre presente”;33 à “aderência singular”34 do referente; à foto como “literalmente uma emanação do referente”.35 É isso o que explica “essa coisa um pouco terrível que há em toda fotografia: o retorno do morto”.36 Afirmando tomar como guia sua própria reação a determinadas fotografias, Barthes formula a divisão entre dois elementos que fundariam sua atração por certas fotos: o studium e o punctum. Enquanto o studium tem relação com o “saber”, com a “cultura”, com a “informação”, com o vasto MARQUES. A Fotografia do Jardim de Inverno: Barthes, fragmento, fotografia

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32. BATCHEN. Uma outra pequena história da fotografia. Batchen faz aí referência, obviamente, ao texto de Walter Benjamin “Pequena história da fotografia”, publicado em 1931, portanto quase cinquenta anos antes de A câmara clara.

33. BARTHES. A câmara clara, p. 15-16.

34. BARTHES. A câmara clara, p. 16. 35. BARTHES. A câmara clara, p. 121.

36. BARTHES. A câmara clara, p. 20.


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37. BARTHES. A câmara clara, p. 85.

campo dos “interesses” (a foto como “testemunho político”, “quadro histórico”...), o punctum é uma espécie de choque de reconhecimento, resposta única e pessoal ao detalhe fotográfico que ao mesmo tempo atrai e repele. Barthes também define o punctum como “suplemento”: “é o que acrescento à foto e que todavia já está nela”.37 O punctum interrompe ou escande a leitura contextual, cultural, que Barthes chama de studium. A câmara clara não inclui apenas reflexões sobre a fotografia, mas também um número considerável de fotos. Como uma espécie de “curador”, Barthes seleciona, identifica, legenda e comenta 25 fotografias, de épocas diferentes – estão aí “a primeira foto” (“A mesa posta” de Niépce), a foto da mãe (ou esposa) de Nadar, fotografias de André Kertész, de Sader, de Mapplethorpe... É a partir delas (com elas) que Barthes constrói seu livro.

38. NACHTERGAEL. Esthétique des mythologies individuelles: Le dispositif photographique de Nadja à Sophie Calle, p. 330. 39. BARTHES. A câmara clara, p. 11. [“Un jour, il y a bien longtemps [...]”].

40. BARTHES. A câmara clara, p. 20.

O livro é dividido em duas partes, compostas por fragmentos textuais numerados (48 no total). A primeira se apresenta como um ensaio (mesmo que, como nota Nachtergael,38 ela comece como um conto – “Um dia, há muito tempo...”).39 A segunda parte também se inicia à maneira de um conto, e é nela que o relato assume inflexão mais claramente pessoal, propriamente autobiográfica, que no entanto já se deixava entrever no recurso à primeira pessoa e na decisão de tomar a si próprio como “medida do ‘saber’ fotográfico”.40 EM  TESE

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41. BARTHES. A câmara clara, p. 95-96. 42. BARTHES. A câmara clara, p. 99.

mãe, pouco a pouco remontando com ela o tempo, procurando a verdade da face que eu tinha amado. E descobri”.43

Ora, numa noite de novembro, pouco tempo depois da morte de minha mãe, organizei as fotos. Eu não contava “reencontrá-la”, não esperava nada dessas “fotografias de um ser, diante das quais nos lembramos menos bem dele do que nos contentamos em pensar nele” (Proust). Eu sabia que, por essa fatalidade que é um dos traços mais atrozes do luto, eu consultaria imagens em vão, não poderia nunca mais lembrar-me de seus traços (convocá-los, inteiros, a mim). [...] Além do mais, essas fotos, se excetuarmos a que eu tinha publicado, na qual se vê minha mãe, jovem, a caminhar por uma praia das Landes [Barthes se refere à primeira foto reproduzida no Roland Barthes por Roland Barthes] e na qual eu “reencontrava” seu andar, sua saúde, sua irradiação – mas não sua face, muito distante –, essas fotos que eu tinha dela, eu não podia sequer dizer que gostava delas: não me punha a contemplá-las, não mergulhava nelas. Eu as percorria, mas nenhuma me parecia verdadeiramente “boa”: nem desempenho fotográfico, nem ressurreição viva da face amada. Se um dia viesse a mostrá-las a amigos, teria dúvidas de que elas lhes falassem.41

Curiosamente, é só numa fotografia da mãe aos cinco anos de idade que Barthes vai encontrar aquilo que procura. O desejo de reconhecimento é, assim, estranhamente satisfeito por uma imagem que o autor não teria como reconhecer. Ainda mais curioso, num livro em que há tantas reproduções fotográficas, essa fotografia não é reproduzida, mas apenas descrita.44 A fotografia central de A câmara clara é, portanto, uma imagem ausente. Barthes não nos mostra a foto de sua mãe quando criança porque não poderíamos vê-la como ele a vê. Para nós, leitores, como afirma Hirsh,45 excluídos da dinâmica da troca de olhares instaurada pela fotografia familiar, a “Fotografia do Jardim de Inverno” – aquela em que Barthes enfim reencontrava sua mãe “tal que em si mesma”46 – seria apenas outra fotografia de família genérica de muito tempo atrás. Como acrescenta Barthes, num parêntese em que se dirige aos leitores:

O livro assume então a forma de uma busca pela imagem materna (uma aventura), aquela que permitiria um “reencontro” com o ser amado e recentemente perdido (busca a que não falta certo suspense: “será que eu a reconheceria?”)42: “Sozinho no apartamento em que ela há pouco tinha morrido, eu ia assim olhando sob a lâmpada, uma a uma, essas fotos de minha

(Não posso mostrar a Foto do Jardim de Inverno. Ela existe apenas para mim. Para vocês, não seria nada além de uma foto indiferente, uma das mil manifestações do “qualquer”; ela não pode em nada constituir o objeto visível de uma ciência; não pode fundar uma objetividade, no sentido positivo do termo; quando muito interessaria ao studium de vocês;

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43. BARTHES. A câmara clara, p. 101. 44. “A fotografia era muito antiga. Cartonada, os cantos machucados, de um sépia empalidecido, mal deixava ver duas crianças de pé, formando grupo, na extremidade de uma pequena ponte de madeira em um Jardim de Inverno com teto de vidro. Minha mãe tinha na ocasião cinco anos (1898), seu irmão tinha sete. Ele apoiava as costas na balaustrada da ponte, sobre a qual estendera o braço; ela, mais distante, menor, mantinha-se de frente; sentia-se que o fotógrafo lhe havia dito: ‘Um pouco para frente, para que a gente possa te ver’; ela unira as mãos, uma segurando a outra por um dedo, como com frequência fazem as crianças, num gesto desajeitado. O irmão e a irmã, unidos entre si, eu o sabia, pela desunião dos pais, que se divorciariam pouco tempo depois, tinham posado lado a lado, sozinhos, no espaço aberto entre as folhagens e palmas da estufa (tratava-se da casa em que minha mãe tinha nascido, em Chennevières-sur-Marne)”. BARTHES. A câmara clara, p. 101102. 45. HIRSH. Family frames, p. 2. 46. BARTHES. A câmara clara, p. 107.

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47. BARTHES. A câmara clara, p. 110.

48. BARTHES. A câmara clara, p. 115.

49. BARTHES. A câmara clara, p. 121.

50. BARTHES. A câmara clara, p. 142.

51. BARTHES. A câmara clara, p. 103-104.

época, roupas, fotogenia; mas nela, para vocês, não há nenhuma ferida).47

É a partir daí que Barthes formula o “noema” da fotografia – “‘Isso-foi’, ou ainda: o Intratável”.48 A foto como emanação do referente, de um corpo real, encontra ainda nessa parte do livro uma formulação de modo algum casual: “uma espécie de vínculo umbilical”, diz Barthes, “liga a meu olhar o corpo da coisa fotografada”49 (grifo meu). É também a partir daí que ele chega a uma outra definição de punctum: não só o detalhe, mas o próprio tempo. Isso vai ser e isso foi: “Diante da foto de minha mãe criança, eu me digo: ela vai morrer: estremeço, tal como o psicótico de Winnicott, por uma catástrofe que já ocorreu. Que o sujeito já esteja morto ou não, qualquer fotografia é essa catástrofe”.50 A câmara clara é, assim, um livro de teoria atravessado pela fotografia e pela autobiografia; é também resultado de uma prática do livro que incorpora a fotografia como componente pictural, mas também argumentativo; um romance do luto e uma aventura de busca (por uma imagem – “uma imagem que fosse a um só tempo justiça e justeza: justo uma imagem, mas uma imagem justa”);51 meditação sobre o tempo e a morte tal como se mostram pela fotografia; autobiografia em imagens à qual falta no entanto a única foto que a justifica e mobiliza.

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EM TORNO DE BARTHES: A IMAGEM FANTASMA

Algo parece ligar a prática fotográfica e a escrita de si. Esse laço pode ser investigado não apenas no campo da literatura, mas se faz especialmente presente nas artes visuais pelo menos desde a década de 1970. Os surrealistas já se apropriavam da fotografia como material; explorada em seu caráter de objeto, e não mais, apenas, de mídia, a fotografia torna-se, na colagem dadaísta e surrealista, um material entre outros. Com o desenvolvimento dos meios de reprodutibilidade técnica, que permitiram sua difusão na imprensa e na publicidade, além do amplo acesso aos aparelhos fotográficos e da conversão da prática fotográfica em atividade de massa, a fotografia alcançou uma quase ubiquidade. A imagem fotográfica acaba, assim, por se tornar material disponível para outros usos e contextos, invadindo o campo artístico por meio de diferentes práticas de produção e apropriação (a colagem, o reemprego, a manipulação, a instalação, o readymade). Muitos artistas têm-se voltado para a apropriação de fotografias de amadores ou de acervos fotográficos públicos e privados. É o caso, para citar apenas alguns exemplos, do Atlas de Gerhard Richter; da apropriação de fotografias de família em Christian Boltanski; das operações sobre o arquivo em Rosângela Rennó. Em casos recentes, é a própria fotografia amadora que faz entrada no museu pelo trabalho MARQUES. A Fotografia do Jardim de Inverno: Barthes, fragmento, fotografia

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de curadoria. Essa operação coloca sem dúvida inúmeras questões para os críticos de arte contemporânea ou mesmo para uma antropologia das imagens fotográficas, que não serão, no entanto, exploradas aqui. Vários autores, entre os quais Susan Sontag, Philippe Dubois e Rosalind Krauss, discutiram não apenas a presença da fotografia no cenário das artes plásticas, mas também sua conversão em uma espécie de modelo ou paradigma para a arte contemporânea. Aqui, no entanto, interessa apenas chamar a atenção para o fato de que a fotografia prestou-se frequentemente nas artes visuais a uma experimentação com a imagem (e muitas vezes também com a escrita) de si. Artistas como Christian Boltanski, Denis Roche, Cindy Sherman, Nan Goldin ou Sophie Calle, para citar apenas alguns poucos exemplos, fazem uso da imagem fotográfica explorando, de formas diferentes, seja por meio do autorretrato, da autoencenação, da apropriação de fotografias anônimas ou da junção entre texto e imagem, aspectos narrativos, autobiográficos e ficcionais da imagem fotográfica.

montagem de texto e imagem) permitem situá-la num espaço de cruzamento ou interstício entre práticas artísticas e literárias. Seguindo pessoas na rua (A suivre) ou deixando-se seguir por um detetive particular (La filature), convidando amigos e desconhecidos para dormir em sua cama (Les dormeurs), trabalhando como arrumadeira em um hotel (L’hôtel), telefonando para todos os números anotados em uma agenda de telefones encontrada na rua (Le carnet d’adresses), seguindo uma dieta cromática adotada pela personagem Maria (inspirada na própria artista) do livro Leviatã, do escritor americano Paul Auster (L’obéissance), Calle provoca situações e acontecimentos e os registra, subvertendo o caráter documental do dispositivo fotográfico ao fazer com que ele se volte para a documentação de uma realidade fabricada ou encenada.

No caso de Sophie Calle, o uso sistemático da junção entre texto e imagem, frequentemente a partir de relatos e lembranças pessoais, mas também da promoção de situações e jogos performáticos, e o recurso ao livro (convertido não só em espaço de exposição, mas também em produto de um processo performático e de uma operação de construção e

O volume Histórias reais (Des
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vraies), publicado em 1994, é exemplar do cruzamento, operado pela artista, entre fotografia, relato pessoal, performance e prática do livro. O livro é composto por uma série de pequenos fragmentos textuais em primeira pessoa, sempre acompanhados de uma fotografia; trata-se de uma coleção de lembranças pessoais, registros, confissões, pequenas histórias sobre pessoas, objetos e situações (verdadeiros “biografemas”). A maior parte dos textos versa sobre lembranças pessoais, e uma boa quantidade deles começa com uma marcação temporal mais

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ou menos precisa, em que Calle especifica o ano em que o episódio narrado ocorreu (“Foi em 1984...”; “Eu o vi num dia de dezembro de 1985...”; “Conheci-o num bar, em dezembro de 1989...”; “Na terça feira, dia 10 de março de 1992...”) ou a idade que ela tinha então (“Eu tinha nove anos...”; “Tínhamos onze anos...”; “Eu tinha quatorze anos...”; “Aos quinze anos...”; “Eu tinha dezoito anos...”; “Eu tinha vinte e sete anos...”). O caráter de registro e evidência, no entanto, é perturbado, tanto no caso dos textos quanto no das imagens, pela parte de encenação, teatro, ritual, jogo e simulação que os atravessa. Assim, nas fotografias reproduzidas no livro que mostram a própria autora, ela aparece: sobre um palco, apenas de calcinha, com uma peruca loira e um véu negro sobre o rosto; jogada no chão, com os olhos fechados, entre uma série de objetos e roupas espalhadas, numa foto que ocupa duas páginas, sob a qual se encontra o relato de como foi atacada por uma colega com um salto agulha e perdeu os sentidos (ficamos nos perguntando quem poderia ter tirado tal fotografia, ou se a foto, como é mais provável, é uma reconstituição); fantasiada com um focinho de porco; de costas, numa fotografia polaroide que a mostra com uma linha vermelha no pescoço; com a cabeça cortada pelo enquadramento, segurando os seios; vestida de noiva, entre um grupo de amigos e familiares, num “casamento de mentirinha” (num episódio

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em que a “foto de casamento” substitui o casamento em si – “[...] resolvi convidar família e amigos, no sábado, dia 20 de junho de 1992, para uma foto de casamento nos degraus de uma igreja de bairro, em Malakoff”);52 mais uma vez vestida de noiva, agora de vermelho, para um casamento que deveria realizar-se na pista do aeroporto, mas para o qual não foi possível obter autorização; de camisola, no alto da Torre Eiffel, onde passou a noite de 5 para 6 de outubro de 2002. Calle subverte desse modo a relação usual entre vida e texto autobiográfico, colocando em prática uma série de ações para que se convertam em narrativa (e em fotografia) (ou ainda, conforme se vê na exposição Doubles-jeux e posteriormente no livro De l’obéissance, realizando de fato – e registrando – ações que foram atribuídas ficcionalmente a uma personagem de Paul Auster inspirada nela mesma), assumindo uma série de máscaras e disfarces (striper, detetive, noiva, camareira, entrevistadora), embaraçando os laços entre prática artística, vida pessoal e narrativa autobiográfica. Em um artigo intitulado Les mythologies de Roland Barthes, Sophie Calle et Hervé Guibert, Magali Nachtergael mostra como, mais ou menos na mesma época, Barthes, Guibert e Calle integraram fotografias e relato pessoal, em trabalhos híbridos e frequentemente fragmentários. Nachtergael procura definir essas diferentes práticas narrativas em torno da fotografia a partir da ideia de “mitologia individual”.

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52. CALLE. Histórias verdadeiras, p. 69.


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53. Cf. NACHTERGAEL. Les mythologies de Roland Barthes, Sophie Calle et Hervé Guibert. 54. Em 1981, Hervé Guibert escreve L’image fantôme, livro composto por 64 fragmentos textuais que giram em torno da fotografia (o livro não contém, porém, nenhuma reprodução fotográfica). O texto que abre o livro (e que lhe empresta o título) é o relato de uma sessão em que Hervé fotografa a própria mãe. Durante a revelação, porém, ele se dá conta de que, por um erro de manipulação, as imagens não foram feitas e a sessão está perdida. Trata-se, assim, de um texto sobre uma fotografia ausente, não realizada. Cf. GUIBERT. L’image fantôme. Hervé Guibert é também autor de um livro que justapõe texto e imagem fotográfica, por ele designado como um “romanphoto”: Suzanne et Louise, cuja primeira edição é de 1980, reúne uma série de fotografias de duas tias-avós de Guibert, acompanhadas de fragmentos textuais, boa parte dos quais se volta para as próprias sessões de fotografia (numa delas, os três simulam a morte de Suzanne). 55. A trilogia L’absence foi lançada por Calle em 2000; ela é constituída por três livros, que giram em torno de três projetos artísticos desenvolvidos pela autora na década anterior: >>>

A autora ressalta o modo como a inserção desse elemento estrangeiro – a fotografia – no texto vem perturbar as classificações genéricas e impor um outro regime de leitura. Barthes, Guibert e Calle, cada um em um contexto diferente – crítico, ficcional e artístico (mas também explorando os cruzamentos desses campos) –, colocam em cena um dispositivo simultaneamente textual e imagético, em prol de uma reconfiguração do relato pessoal.

retorno do morto”).56 Assim, esses trabalhos híbridos, compostos pela junção de fotos e textos, promovem não apenas uma reconfiguração da escrita de si, que flerta abertamente com a ficção, mas também exploram, como efeito da ausência (ausência da imagem ou imagem da ausência), o caráter fantasmático da imagem fotográfica.

Nachtergael nota, apesar das diferenças, algumas similaridades entre os trabalhos dos três autores (artistas que se cruzaram também na vida),53 como o recurso à fotografia, a recorrência da associação entre texto e imagem e o gosto pelo fragmento e pelo relato de si (que tende, porém, para a ficção de si). A autora constata, ainda, uma mesma atração pela “fotografia do invisível”, seja porque ela é imostrável (como a foto da mãe em Barthes e Guibert),54 seja porque ela é ausente ou fantasmática (Hervé Guibert intitulou um de seus livros L’image fantôme; Sophie Calle deu o título de Fantômes a um de seus trabalhos, em que pede a algumas pessoas para descrever e desenhar obras ausentes de museus, trabalho posteriormente incluído em uma trilogia que recebe o nome de L’absence;55 Barthes não se cansa de notar o elemento fantasmático da fotografia – Spectrum é o nome que ele sugere dar àquilo que é fotografado, termo que remete a “essa coisa um pouco terrível que há em toda fotografia: o

BARTHES, Roland. O império dos signos. Trad. Leyla PerroneMoisés. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

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REFERÊNCIAS

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55. >>> Fantômes, Disparitions (Last Seen) e Souvenirs de Berlin-Est. Fantômes se constrói a partir de uma solicitação, feita pela artista, de que funcionários (entre os quais curadores, restauradores e guardas) do Museu de Arte Moderna de Paris e do Museu de Arte Moderna de Nova York, que tiveram obras temporariamente emprestadas ou retiradas, descrevessem ou desenhassem as obras ausentes (entre as telas ausentes estão, por exemplo, Nu dans le bain, de Pierre Bonnard, L’assassin menacé, de Magritte e House by Railroad, de Edward Hopper). Também Disparitions (Last Seen) é composto por descrições e desenhos feitos por funcionários do Museu Isabella Stewart Gardmer, em Boston, que teve alguns quadros roubados na década de 1990, e de outros museus que tiveram obras roubadas ou destruídas. Nos dois casos, o livro contém fotografias que mostram as descrições e os desenhos expostos no espaço antes destinado aos objetos emprestados, destruídos ou roubados. Já em Souvenirs de Berlin-Est, a artista entrevista habitantes de Berlim a respeito do desaparecimento de monumentos representativos da Alemanha comunista após a queda do muro; o livro inclui, além das descrições dos monumentos ausentes, fotografias antigas desses monumentos e fotos do espaço vazio deixado após sua retirada. 56. BARTHES. A câmara clara, p. 20.


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CALLE, Sophie. Disparitions. Paris: Actes Sud, 2000. CALLE, Sophie. Souvenirs de Berlin-Est. Paris: Actes Sud, 2000. CALLE, Sophie. De l’obéissance. Paris: Actes Sud, 1998. DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. 10. ed. Trad. Marina Appenzeller. Campinas, SP: Papirus, 1993. GUIBERT, Hervé. L’image fantôme. Paris: Les Éditions Minuit, 2007. GUIBERT, Hervé. Suzanne et Louise (Roman-Photo). Paris: Gallimard, 2005. HISCH, Marianne. Family frames: photography, narrative, and postmemory. Harvard University Press, 1997. NACHTERGAEL, Magali. Esthétique des mythologies individuelles: le dispositif photographique de Nadja à Sophie Calle. Université Paris-Diderot – Paris VII, Paris, 2010. Disponível em: <http://tel.archivesouvertes.fr/docs/00/64/08/63/PDF/ Nachtergael__mythologies_individuelles_redux.pdf >. NACHTERGAEL, Magali. Les mythologies individuelles: récit de soi et photographie au 20e siècle. Amsterdam: Rodopi, 2012. POZUELO YVANCOS, José María. De la autobiografía: teoría y estilos. Barcelona: Crítica, 2006. SONTAG, Susan. A escrita em si mesma: sobre Roland Barthes. In: _____. Questão de ênfase. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 88-120.

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BARTHES VAI AO CINEMA

Gustavo Ramos de Souza*

* avulsoaoavesso@gmail.com Doutorando em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Bolsista da CAPES.

RESUMO: Embora tenha dedicado muitos de seus textos ao teatro e escrito inúmeros ensaios sobre literatura, além de seu notório ensaio sobre fotografia, o interesse crítico e teórico de Roland Barthes pelo cinema é relativamente reduzido. Se, em entrevista à revista Cahiers du Cinéma, em 1963, Barthes afirmou ir ao cinema ao menos uma vez por semana, por outro lado, em “Ao sair do cinema” (1975), abre o ensaio dizendo que o seu prazer consiste em sair da sala de cinema. Tendo em vista a relação paradoxal de Barthes com o cinema, o objetivo deste artigo é buscar um ponto comum entre as ideias barthesianas sobre a sétima arte a partir do ensaio “O terceiro sentido”, dos textos de Mitologias que versam sobre o cinema, bem como do ensaio “Ao sair do cinema”.

ABSTRACT: Although Roland Barthes has devoted many of his texts to the theater, and written numerous essays on literature, apart from his notorious essay on photography, his critical and theoretical interest for film is relatively restricted. If, in an interview to the magazine Cahiers du Cinéma, in 1963, Barthes alleges going to the movies at least once a week, on the other hand, in “Leaving the Movie Theater” (1975), he opens the essay saying that his pleasure is to leave the movie theater. Owing to the paradoxical relation of Barthes with the film, the purpose of this paper is seek a common ground to the barthesian ideas about the seventh art, from the essay “The third meaning”, from the texts of Mythologies that deal with film, as well as the essay “Leaving the Movie Theater”.

PALAVRAS-CHAVE: Roland Barthes; crítica; cinema.

KEYWORDS: Roland Barthes; criticism; film.


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INTRODUÇÃO

No ano em que se celebra o centenário de nascimento de Roland Barthes, tem acontecido ao redor do mundo eventos, colóquios, periódicos com dossiês especiais etc. com o intuito de homenagear a sua obra. Mesmo a sua relação ambígua e inconstante com o cinema tornou-se um tópico a ser debatido. Nos dias 14 e 15 de outubro deste ano, o Centre Pompidou organiza o colóquio “Barthes et le cinéma: en sortant du cinéma”, sob supervisão de Antoine de Baecque, Marie Gil e Éric Marty. Ainda para este ano, está previsto o lançamento, na França, do livro Le cinéma de Roland Barthes, escrito por Philip Watts, professor da Columbia University que faleceu em 2013. Apesar disso, provavelmente deve causar certa estranheza aos estudiosos da obra barthesiana deparar-se com um artigo cujo título é “Barthes e o cinema”. Muito menos problemático seria “Barthes e a moda”, “Barthes e o teatro”, “Barthes e a fotografia” ou “Barthes e o Japão”; afinal, quanto à moda, ele publicou, em 1967, o livro Sistema da moda; quanto ao teatro, foram reunidos por Jean-Loup Rivière diversos artigos que culminaram na publicação póstuma, em 1984, de Escritos sobre o teatro; quanto à fotografia, o seu último livro publicado em vida foi A câmara clara (1980); por fim, quanto ao Japão, o seu fascínio pelo haicai perpassa boa parte de sua obra tardia, além de haver a publicação, em 1970, do belíssimo O império dos signos. Mas pensar o seu interesse pelo cinema requer coletar textos dispersos e de natureza diversa. EM  TESE

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Ao contrário de Gilles Deleuze e de Jacques Rancière, que dedicaram ensaios e até mesmo livros à arte cinematográfica, os escritos barthesianos sobre o cinema podem ser contados nos dedos. Os principais são: “Les unités traumatiques au cinéma”, artigo publicado no periódico Revue Internationale de Filmologie, em 1960; “Le problème de la signification du cinéma”, também publicado na Revue Internationale de Filmologie, em 1960; “Le troisième sens: Notes de recherche sur quelques photogrammes de S.M. Eisenstein”, publicado nos Cahiers du Cinéma, em 1970; “Diderot, Brecht, Eisenstein”, publicado na Revue d’Esthétique, em 1973; “En sortant du cinema”, publicado na revista Communications, em 1975; e o póstumo “Cher Antonioni”, publicado nos Cahiers du Cinéma, em 1980. Além desses artigos, há ainda alguns textos das Mitologias em que o cinema faz parte da galeria dos mitos modernos enumerados, assim como menções esparsas a diretores e ao próprio cinema ao longo de sua obra. A esses ensaios de sua autoria, acrescenta-se ainda uma entrevista que concedeu a Jacques Rivette e Michel Delahaye, na edição 147, da Cahiers du Cinéma, em setembro de 1963. Um exame mais detalhado sobre o conjunto de sua obra certamente encontraria outros textos seus acerca do cinema, mas, como não é nossa intenção fazer um mapeamento bibliográfico sobre tal objeto, concentrar-nos-emos no ensaio “Le troisième sens” [traduzido no Brasil como “O

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terceiro sentido”], em alguns textos de Mitologias (1975) e em “En sortant du cinéma” [cuja tradução, “Ao sair do cinema”, se encontra em O rumor da língua], a fim de se buscar pontos comuns da visão barthesiana acerca do cinema, relacionando-os à ideia de prazer do texto, contida em ensaio homônimo. O TERCEIRO SENTIDO

1. Cf. O óbvio e o obtuso, de Roland Barthes. 2. BARTHES. O óbvio e o obtuso, p. 54

3. BARTHES. O óbvio e o obtuso, p. 55-56.

Analisando fotogramas dos filmes Ivan, o terrível (1944) e O encouraçado Potemkin (1925), de Sergei Eisenstein, Barthes identifica três níveis de sentido nas imagens: o informativo, que diz respeito ao cenário, ao figurino, às personagens e suas relações; o simbólico, que diz respeito ao simbolismo referencial, diegético, histórico e autoral; e o terceiro sentido, que é o nível da significância, qualificando-se como obtuso, pois é errático, obstinado, não mensurável, opondo-se aos dois primeiros níveis. Enquanto o nível simbólico é óbvio e intencional, propondo uma evidência fechada ao destinatário, o obtuso, justamente por sua clareza demasiada no significante, torna-se velado, fugidio, excessivo, desnecessário.1 O sentido obtuso não pode ser descrito, mas apenas constatado, “é um significante sem significado”,2 sendo que, mesmo se fosse suprimido, não comprometeria a comunicação e a significação. O terceiro sentido “está fora da linguagem”, “é a própria contranarrativa; disseminado, reversível, preso à sua própria duração”.3 EM  TESE

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Cabe aqui um paralelo entre os sentidos óbvio e obtuso e as noções de studium e de punctum, as quais são desenvolvidas em A câmara clara. Isso porque o studium é claro, “está, em definitivo, sempre codificado”,4 podendo ser decodificado intelectualmente. O studium é o que desperta um interesse consciente, uma vez que é ligado ao contexto cultural e técnico da fotografia. O destinatário é que se dirige a ele, com seu repertório cultural e sua disposição a decodificá-lo, visando compreendê-lo. Nas palavras de Barthes: Reconhecer o studium é fatalmente encontrar as intenções do fotógrafo, entrar em harmonia com elas, aprová-las, desaprová-las, mas sempre compreendê-las, discuti-las em mim mesmo, pois a cultura (com que tem a ver com o studium) é um contrato feito entre criadores e consumidores.5

A contrario, o punctum é um acaso que vai em direção ao destinatário e trespassa-o como uma flecha, ferindo-lhe, picando-lhe. O punctum é um detalhe que fere.6 Barthes afirma que “para perceber o punctum, nenhuma análise”,7 afinal, ele é de ordem subjetiva; não é um choque, mas um distúrbio. Ainda que seja apenas um detalhe, é capaz de tomar conta de toda a imagem, deslocar nossa atenção. Trata-se de um suplemento à foto, algo que acrescentamos a ela, embora já esteja nela contido.8 Barthes diz:

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4. BARTHES. A câmara clara, p. 80.

5. BARTHES. A câmara clara, p. 48.

6. BARTHES. A câmara clara, p. 66.

7. BARTHES. A câmara clara, p. 69.

8. BARTHES. A câmara clara, p. 85.


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9. BARTHES. A câmara clara, p. 80-83.

O que posso nomear não pode, na realidade, me ferir. A impotência para nomear é um bom sintoma de distúrbio. [...] O efeito é seguro, mas não é situável, não encontra seu signo, seu nome; é certeiro e no entanto aterrissa em uma zona vaga de mim mesmo; é agudo e sufocado, grita em silêncio. Curiosa contradição: é um raio que flutua.9

Como é possível perceber, o sentido óbvio está para o studium, assim como o obtuso está para o punctum, visto que, enquanto o primeiro é de ordem intelectual, intencional e cultural, o segundo é subjetivo, emocional, não afetando a todos da mesma forma, ou melhor, num fotograma pode haver um sentido obtuso que nos afete, mas não afete outra pessoa e, numa fotografia, o mesmo pode se dar com o punctum. Curiosamente, Barthes afirma que, no cinema, não é possível acrescentarmos algo à imagem, não é possível que haja um punctum. Em suas palavras,

10. BARTHES. A câmara clara, p. 85-86.

Será que no cinema acrescento à imagem? – Acho que não; não tenho tempo: diante da tela, não estou livre para fechar os olhos; senão, ao reabri-los, não reencontraria a mesma imagem: estou submetido a uma voracidade contínua; muitas outras qualidades, mas não pensatividade; donde o interesse, para mim, do fotograma.10

fuga, possui um fora do quadro, ao passo que a fotografia circunscreve a realidade àquilo que está dado: “a tela (observou bem Bazin) não é um enquadramento, mas um esconderijo; o personagem que sai da tela continua a viver: um ‘campo cego’ duplica incessantemente a visão parcial”.11 Ressalta-se, porém, a voracidade das imagens contínuas a que o cinema nos submete e o interesse de Barthes pelo fotograma. Em “O terceiro sentido”, ele comenta esse interesse pelo fílmico em detrimento do cinematográfico (imagens animadas): Inicialmente atribuí esta atração pelo fotograma à minha falta de cultura cinematográfica, à minha resistência ao filme; pensava, então, ser como essas crianças que preferem a “ilustração” ao texto, ou como esses clientes que, não podendo adquirir o objeto que cobiçam (demasiadamente caro), contentam-se com a contemplação de um catálogo de uma grande loja. Esta explicação apenas reproduz a opinião corrente que se se tem do fotograma: um subproduto diante do filme, uma amostra, um meio de atrair a clientela, uma cena pornográfica e, tecnicamente, uma redução da obra pela imobilização do que se considera como a essência sagrada do cinema: a imagem em movimento.12

Contudo, uma qualidade que o cinema possui e de que a fotografia carece é o fato de que o cinema possui linhas de

Tendo isso em vista, em vez de tomarmos como estranha a inserção do verbete “Barthes” no Dicionário teórico e crítico de cinema, de Jacques Aumont e Michel Marie, devido ao fato de Barthes mostrar certa resistência ao cinema, podemos ver

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11. BARTHES. A câmara clara, p. 86.

12. BARTHES. O óbvio e o obtuso, p. 58-59.


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que, na verdade, ele propõe uma abertura sobre o próprio conceito de cinema, afinal, em tempos de cinema expandido ou pós-cinema, artistas como Peter Kubelka e Jim Campbell lidam justamente como a imagem fílmica em sua materialidade, sem movimento, sem narrativa. Assim, Barthes se prestaria a oferecer instrumentos para compreendermos obras como Monument film (1960), de Peter Kubelka, 24 hour Psycho (1993), de Douglas Gordon, ou Victor Fleming’s The Wizard of Oz (2001), de Jim Campbell. Ademais, uma vez que se mostra possível uma analogia entre o sentido obtuso e o punctum, é possível depreender que, além do caráter fugidio, excessivo e sem significado, o fotograma assumiria, ele mesmo, as características do efeito emocional da fotografia; ou seja, a despeito de Barthes negar a possibilidade de um punctum no cinema, podemos afirmar que, em estase, a imagem cinematográfica possuiria atributos da fotografia, portanto, um punctum, um detalhe de ordem subjetiva. MITOS

13. BARTHES. Mitologias, p. 21.

Em “Os romanos no cinema”, Barthes debruça-se sobre um signo que atravessa insistentemente o filme Júlio César (1953), de Joseph L. Mankiewicz: a franja na testa. Segundo ele, a obstinação das franjas caindo na testa das personagens revela a “ostentação da romanidade”, para que não se duvide de que se “está na Roma antiga”.13 O problema é que a ênfase em sua transparência faz com que o espectador desacredite EM  TESE

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de sua finalidade. Barthes ironiza também o cabelo das atrizes que interpretam Portia e Calpúrnia, porquanto a naturalidade visada pelo diretor, fazendo com que as duas personagens acordem despenteadas no meio da noite, não tem consistência, ou melhor, é excessiva e irrisória.14 Ele comenta também sobre o suor abundante das personagens, que denotaria uma suposta moralidade: “todos suam porque todos debatem algo em si mesmos; supõe-se que estamos no local de uma virtude que se exerce dolorosamente, isto é, no próprio local da tragédia, e é o suor que deve deixá-lo transparecer”.15 Em contrapartida, a única personagem que não transpira é Júlio César, pois, se suar é pensar, como postula Barthes, César, que persevera no erro, não pensa, permanece seco, conserva-se como objeto de pureza. Desses signos e suas correlações, Barthes depreende que a natureza ambígua dos mesmos reside em hesitar entre a superficialidade e a profundidade, a artificialidade e a naturalidade, por isso, devido ao seu caráter intermediário, “denuncia um espetáculo degradado que teme tanto a verdade ingênua quanto o artifício total”.16 Trata-se de “signos bastardos”, que almejam pela ênfase e pelo excesso obter naturalidade. Essa mesma ambiguidade perpassa Sindicato de ladrões (1954), de Elia Kazan. Em “Um operário simpático”, Barthes procura denunciar a mistificação do filme de Kazan, pois, ainda que na superfície possa se passar por um filme de esquerda – visto que encena a luta de estivadores contra um sindicato corrupto SOUZA. Barthes vai ao cinema

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14. BARTHES. Mitologias, p. 22.

15. BARTHES. Mitologias, p. 22.

16. BARTHES. Mitologias, p. 23.


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17. BARTHES. Mitologias, p. 46.

–, na verdade, escamoteia o verdadeiro problema social apresentado, ao criar empatia e identificação do público por um protagonista ingênuo e ávido por se integrar à ordem, além de deslocar “para um grupinho de gangsters a função de exploração do grande patronato”,17 quando, na verdade, o mal real não é mencionado, aliás, é visto como o caminho da salvação. A mistificação do cinema norte-americano transcende os próprios filmes, na medida em que a cobertura ostensiva da imprensa em torno dos atores do star system serve, muitas vezes, para impor tendências e criar modelos ideais para sociedade, como é o caso dos casamentos das vedetes. É justamente disso que Barthes fala em “conjugais”. Para ele, não se trata apenas do elogio ao amor; os casamentos-espetáculo ou espetáculos midiáticos acerca de alguns casamentos corroboram a necessidade de adequação à ordem familiar burguesa, como quando uma grande estrela do cinema abre mão da “glória efêmera” e da fama e opta por domesticar-se e render-se à vidinha burguesa. Barthes diz: O amor-mais-forte-que-a-glória reverte assim em favor da moral do status quo social: não é sensato sair-se da sua condição, reentrar nela é glorioso. Como recompensa, a própria condição pode desenvolver as suas vantagens que são essencialmente as da fuga. Neste universo, a felicidade consiste em jogar o jogo de uma espécie de reclusão doméstica: questioná-

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rios “psicológicos”, truques, trabalhos manuais, aparelhagem eletrodoméstica, estabelecimento de horários, todo este paraíso utilitário da Elle ou do Express glorifica a reclusão no lar...18

18. BARTHES. Mitologias, p. 37.

Nesse sentido, diz Barthes, se entre o amor e a fama, o amor é que prevalece; se vale mais integrar-se à ordem burguesa do que estar fora dela, no caso do casamento anunciado de Marlon Brando, é a noiva de Brando que o consagra, e não o contrário, a despeito de ele ser quem é. Já em “O pobre e o proletário”, Barthes analisa a figura de Carlitos em Tempos modernos (1936). Para Barthes, é justamente a despolitização de Carlitos que torna o filme mais eficazmente político, haja vista que Chaplin apresenta o proletário “bruto, ainda exterior à Revolução”.19 Isso se dá porque coincidem o pobre e o proletário, sendo que a grande preocupação da personagem é matar a fome, livrar-se da humilhação imposta pela miséria. Nas palavras de Barthes: “Carlitos, em conformidade com a ideia de Brecht, ostenta a sua cegueira ao público de tal modo que este vê simultaneamente o cego e o seu espetáculo; ver alguém não vendo é a melhor maneira de ver intensamente o que ele não vê”.20 Embora desconfie do individualismo de Carlitos e do anarquismo político de Chaplin, Barthes percebe que, para a arte, isso é mais proveitoso do que os filmes cuja mensagem emancipadora por uma via política é mais evidente.

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19. BARTHES. Mitologias, p. 31.

20. BARTHES. Mitologias, p. 32.


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21. BARTHES. Mitologias, p. 48.

22. BARTHES. Mitologias, p. 48.

Dos textos de Mitologias dedicados aos mitos do cinema, talvez seja “O rosto de Garbo” o mais conhecido. Para Barthes, o rosto da atriz sueca Greta Garbo, por sua extrema beleza, é ao mesmo tempo perfeito e efêmero, quer dizer, é uma imagem ideal, cristalizada, mas também submetida ao movimento próprio ao cinema. Em suas palavras, “Garbo exibia uma espécie de ideia platônica da criatura, o que explica que seu rosto seja quase assexuado, sem, no entanto, ser duvidoso”.21 Na esteira de Barthes, podemos ousar dizer que, talvez por isso, no auge na fama, a atriz tenha abandonado a carreira como atriz, em 1942, pois o seu rosto, arquétipo da perfeição, deveria manter-se imperecível, como que congelado no tempo. Barthes continua:

Swanson, pertence justamente àquele momento do cinema em que, devido à ausência do som, apelava-se à maior expressividade facial, revelando a máxima beleza feminina, apesar de ser uma beleza estática, incorruptível, essencial. Norma Desmond seria o rosto de Garbo corrompido pelo tempo, o que, no filme de Wilder, é acentuado pela tentativa desesperada da atriz em permanecer jovem por meio de dolorosos tratamentos estéticos. Retomando Barthes: o contraponto a beleza perene de Garbo encontrar-se-ia no rosto da femme enfant Audrey Hepburn, que, sendo posterior à Garbo, não precisa mais encarnar o ideal. Ele diz: [...] o rosto de Audrey Hepburn, por exemplo, é individualizado, não só pela sua temática particular (mulher-criança, mulher-gata), mas também pela sua própria pessoa, por uma especificação quase única do rosto, que nada mais tem de essencial, mas que é constituído por uma complexidade infinita de funções morfológicas. Como linguagem, a singularidade de Garbo era de ordem conceitual, a de Audrey Hepburn é de ordem substancial. O rosto de Garbo é a ideia, o de Hepburn o fato.23

O rosto de Garbo representa o momento frágil em que o cinema está prestes a extrair uma beleza existencial de uma beleza essencial, em que o arquétipo está se infletindo em direção ao fascínio pelos rostos perecíveis, em que a clareza das essências carnais cederá o seu lugar a uma lírica da mulher.22

Quanto a essa inflexão, ainda que Barthes não faça a analogia, é perfeitamente cabível uma passagem do filme Crepúsculo dos deuses (1950), de Billy Wilder, porquanto, a certa altura, a ex-vedete do cinema mudo, Norma Desmond, depois de assistir a um filme que estrelara, diz: “We had faces. There just aren’t any faces like that anymore. Well, maybe one: Garbo”. Afinal, Norma Desmond, alter ego de Gloria

Além dos textos mencionados, há pelo menos mais dois de Mitologias que tocam nos mitos do cinema: um sobre o filme de gângster e outro, sobre um documentário. Contudo, por conta do caráter genérico de sua argumentação, optamos por não os comentar, mesmo porque os cinco textos discutidos

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23. BARTHES. Mitologias, p. 48-49.


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ajudam a compreender a forma como Barthes concebe a “mitologia” do cinema americano. Afinal, ao inserir filmes e nomes representativos da indústria do cinema no seu livro, Barthes pretende desmistificá-los, isto é, destroná-los da condição de totens que são na sociedade moderna, uma vez que são capazes de artificializar, encobrir e distorcer a realidade, além de favorecer a padronização de comportamentos. O que Barthes propõe é, portanto, uma análise de cunho ideológico: e embora não seja possível livrarmo-nos da ideologia, podemos ao menos saber identificá-la. 24. BARTHES. Roland Barthes by Roland Barthes, p. 54. “Resistência ao cinema: o próprio significante é sempre, por natureza, contínuo aqui, qualquer que seja a retórica dos quadros e tomadas; sem remissão, um contínuo de imagens; o filme (nossa palavra para isso, película, é muito bem apropriada: uma pele sem punção ou perfuração) segue, como uma faixa loquaz: impossibilidade estatutária do fragmento, do haiku. Restrições de representação (análogas às rubricas obrigatórias da linguagem) fazem necessário receber tudo: de um homem andando na neve, antes mesmo de ele significar, tudo é dado a mim” (tradução minha).

Essa desconfiança que mantém em relação ao cinema, como propagador de imagens suspeitas, é reafirmada numa breve passagem de sua autobiografia Roland Barthes por Roland Barthes, em que é proposto um imperativo: resistência ao cinema. Resistance to the cinema: the signifier itself is always, by nature, continuous here, whatever the rhetoric of frames and shots; without remission, a continuum of images; the film (our French word for it, pellicule, is highly appropriate: a skin without puncture or perforation) follows, like a garrulous ribbon: statutory impossibility of the fragment, of the haiku. Constraints of representation (analogous to the obligatory rubrics of language) make it necessary to receive everything: of a man walking in the snow, even before he signifies, everything is given to me.24

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Para ele, é necessário resistir ao excesso de signos que o cinema nos joga ininterruptamente; é necessário resistir ao cinema porque esse jorro sígnico é próprio de sua natureza: imagens em movimento. Não há tempo para pensar, para decodificar uma imagem, porque logo somos bombardeados por outra, e mais outra, sem cessar. Eis o porquê de o cinema conseguir tão bem reproduzir mistificações: ele não abre espaço para reflexão, não abre espaço para o que é obscuro também – afinal, o terceiro sentido só pode ser percebido no fotograma, na imagem estática. Enfim, é preciso sair do estado hipnótico em que o cinema nos coloca – é precisamente esse o assunto de “Ao sair do cinema”. “AO SAIR DO CINEMA”

O ensaio “Ao sair do cinema” abre com a seguinte frase: “O sujeito que fala aqui deve reconhecer uma coisa: gosta de sair de uma sala de cinema”.25 A palavra sair, destacada,26 sublinha que o seu prazer consiste não em entrar na sala de cinema, tampouco em estar sentado na poltrona por uma hora e meia, ou duas horas, vendo imagens projetadas numa tela branca, mas sim em deixar a sala de cinema, em sair daquela situação cinema.27 Isso porque o tempo passado dentro daquela sala deixa-lhe entorpecido e sonolento; “o seu corpo tornou algo sopitável, doce, tranquilo [...]. Enfim, é verdade, ele está saindo de uma hipnose”.28 Afinal, reforça Barthes, todas as condições clássicas para uma sessão de SOUZA. Barthes vai ao cinema

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25. BARTHES. Ao sair do cinema, p. 427. 26. BARTHES. En sortant du cinéma, p. 104. No original: “Le sujet qui parle ici doit reconnaître une chose: il aime à sortir d’une salle de cinema”. 27. MAUERHOFER. “A psicologia da experiência cinematográfica”, p. 375. Hugo Mauerhofer define o que é a situação cinema, a saber: “é o isolamento mais completo possível do mundo exterior e de suas fontes de perturbação visual e auditiva”. Os efeitos psicológicos da situação cinema implicam a alteração da sensação de tempo e de espaço, sendo condição indispensável o estado passivo do espectador. 28. BARTHES. Ao sair do cinema, p. 427.


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hipnose estão reunidas na situação cinema: vazio, desocupação, inutilidade. São essas condições que levam o espectador a entrar numa sala escura (conjuntura pré-hipnótica), em busca desse “festival de afetos que se chama um filme”.29

29. BARTHES. Ao sair do cinema, p. 428.

30. BARTHES. Ao sair do cinema, p. 430.

31. BARTHES. Ao sair do cinema, p. 431.

Não importa o filme a ser visto, desde que, pela verossimilhança, consiga manter o espectador nesse estado de suspensão da descrença; e, para que não haja qualquer rompimento da ilusão, a sala escura e o isolamento do mundo exterior estão lá para assegurá-la. Um raio de luz como que dança numa tela dentro dessa sala escura: “como nas antigas experiências de hipnotismo, ficamos fascinados, sem o ver de frente, por esse lugar brilhante, imóvel e dançante”.30 Ao mesmo tempo que o espectador está “colado” na poltrona, imóvel, sem distúrbios, ele se lança a outro lugar: o seu imaginário o conduz, por causa das imagens animadas que se desenrolam à sua frente, ao mundo que o filme quer levá-lo. Quem vai ao cinema dirige-se, de bom grado, ao lugar da ilusão, da fantasia, sabendo-a como tal. É isso que leva Barthes a dizer “a imagem fílmica (incluindo o som) é o quê? Um engodo”.31 Ele continua: Na sala, por mais longe que eu esteja, colo o nariz, até esmagá-lo, no espelho da tela, nesse “outro” imaginário com que me identifico narcisicamente [...]; a imagem me cativa, me captura: colo à representação, e é essa cola que funda a natura-

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lidade (a pseudonatureza) da cena filmada (cola preparada com todos os ingredientes da “técnica”); o Real, este só conhece distâncias, o Simbólico só conhece máscaras; só a imagem (o Imaginário) é próxima, só a imagem é “verdadeira” (pode produzir ressonância da verdade). No fundo, não terá a imagem, estatutariamente, todos os caracteres do ideológico? [...] o Ideológico seria, no fundo, o Imaginário de um tempo, o Cinema de uma sociedade; como o filme que sabe atrair público, ele tem até os seus fotogramas: os estereótipos com que articula o seu discurso; não é o estereótipo uma imagem fixa, uma citação a que a nossa linguagem cola?32

O engodo das imagens fílmicas é, portanto, ideológico. Barthes já investigara, em Mitologias, os aspectos ideológicos contidos nos mitos do cinema, porém, naquela ocasião, voltava-se aos filmes e à instituição cinematográfica (que perpassa a cultura, a economia e a sociedade). Em “Ao sair do cinema”, o seu interesse desloca-se para o espectador e para o próprio dispositivo cinematográfico, que é visto como ideologicamente suspeito por causa do estado hipnótico em que coloca o espectador, fazendo com que este aceite passivamente tudo quanto lhe é transmitido pelas imagens. Mas como ir ao cinema e, ao mesmo tempo, não se deixar envolver pela hipnose? Para Barthes, uma alternativa seria a vigilância ideológica do espectador: ver um filme armado

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32. BARTHES. Ao sair do cinema, p. 431-432.


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com a contraideologia ou buscando um prazer consciente, intelectual, não se deixando envolver. Todavia, armar-se contraideologicamente tornaria a experiência de ir ao cinema para assistir a um filme menos envolvente, menos prazerosa, fazendo com que não haja diferença entre ver um filme em casa e ver um filme na sala de cinema, com a situação específica em que ela nos lança. Segundo Barthes, é preciso deixar-se fascinar duplamente:

33. BARTHES. Ao sair do cinema, p. 433.

pela imagem e pelo que está em torno, como seu tivesse dois corpos ao mesmo tempo: um corpo narcísico que olha, perdido no espelho próximo, e um corpo perverso, pronto para fetichizar não a imagem, mas precisamente o que a excede: a textura do som, a sala, a escuridão, a massa escura dos outros corpos, os raios de luz, a entrada, a saída; em resumo, para distanciar-me, “decolar”, complico uma “relação” por uma “situação”.33

Ou seja, em vez de se identificar narcisicamente com a imagem e colar-se a ela, o espectador deveria manter certa distância. Não se trata, entretanto, de uma distância brechtiana, crítica, intelectual. É preciso deixar-se hipnotizar, mas não pelas imagens na tela, e sim pela distância que há entre o projetor e a tela branca; não pelo filme e pelo significado que ele quer nos impor, mas pela espessura de signos que somente a situação cinema propicia: a significância do som, da EM  TESE

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luz, dos corpos ao lado etc. Enfim, não uma distância crítica, mas amorosa. O GOZO DO CINEMA

Na entrevista concedida a Michel Delahaye e Jacques Rivette, na edição 147, dos Cahiers du Cinéma, de setembro de 1963, Barthes, quando perguntado sobre como transferir as noções de significante e significado da língua à “linguagem cinematográfica”, é categórico ao responder que “je n’ai pas réussi à intégrer le cinema dans la sphère du langage, que je le consomme selon un mode purement projectif, et non pas en analyste”.34 Contudo, admite que o cinema sempre produz um sentido, a despeito de uma linguagem não ser totalmente realizável; para Barthes, a questão que se impõe é: “Comment le cinéma manifeste-t-il ou rejoint-il les catégories, les fonctions, la structure de l’intelligible élaborées par notre histoire, notre société? C’est à cette question que pourrait répondre une ‘sémiologie’ du cinema”.35 Não se trata aqui de opor a teoria de Marcel Martin sobre a linguagem cinematográfica à semiologia do cinema aventada por Barthes e desenvolvida por Christian Metz e Peter Wollen; interessa-nos é enfatizar que, da semiologia do cinema, nasceram os estudos de narratologia do cinema (David Bordwell e André Gaudreault, por exemplo) e de análise estrutural do filme. Nesse sentido, a inclusão de

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34. BARTHES. Entretien avec Roland Barthes, p. 22. “[...] eu não consegui integrar o cinema na esfera da linguagem, eu o consumo segundo um modo puramente projetivo, e não de analista” (Tradução minha). 35. BARTHES. Entretien avec Roland Barthes, p. 26. “Como o cinema manifesta ou junta as categorias, as funções e a estrutura do inteligível elaboradas por nossa história, nossa sociedade? É a essa questão que poderia responder uma ‘semiologia’ do cinema?” (tradução minha).


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36. AUMONT; MARIE. Dicionário teórico e crítico de cinema, p. 31-32. 37. BARTHES. Ao sair do cinema, p. 428.

38. BARTHES. Entretien avec Roland Barthes, p. 21. “De modo que, quando escolho, os filmes que é preciso ver entram em conflito com a ideia de imprevisibilidade e de disponibilidade totais que ainda representa o cinema para mim, e de maneira mais precisa, com os filmes que, espontaneamente, eu gostaria de ver, mas que não são os filmes selecionados por essa espécie de cultura difusa que está sendo feita” (tradução minha).

Barthes no Dicionário teórico e crítico de cinema, de Jacques Aumont e Michel Marie, diz respeito não apenas aos seus poucos estudos sobre cinema, bem como aos seus estudos sobre a imagem, mas sim porque “seus trabalhos de semiologia do texto literário foram prolongados e adaptados – combinados com outros, notadamente os de Genette e Greimas – pela maioria dos teóricos da narrativa cinematográfica dos anos 1970 e 1980”.36 Voltando à entrevista, Barthes comenta algo que ressoa, doze anos depois, em “Ao sair do cinema”, quando observa que, a não ser que se vá ao cinema pensando em uma “busca cultural bem precisa (filme escolhido, querido, procurado, objeto de um verdadeiro alerta prévio)”, geralmente o espectador vai ao cinema “a partir de uma ociosidade, de uma disponibilidade, de uma vacância”;37 na entrevista, ele diz: Si bien que, quand je choisis, les films qu’il faut voir entrent en conflit avec l’idée d’imprévisibilité, de disponibilité totales que représente encore le cinéma pour moi, et de façon plus précise, avec des films que, spontanément, je voudrais voir, mais qui ne sont pas les films sélectionnés par cette espèce de culture diffuse qui est en train de se faire.38

A semelhança dos enunciados ajuda a entender ambiguidade de Barthes em relação ao cinema, além de percebermos

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a coerência de seu pensamento. Nos textos de Mitologias, obra publicada pela primeira vez em 1957, o cinema é uma instituição ideologicamente suspeita; em “O terceiro sentido”, o interesse de Barthes é pelos fotogramas dos filmes de Eisenstein; em “Ao sair do cinema”, o próprio dispositivo cinematográfico é que cria o estado hipnótico que afeta o espectador. Pois bem, a relação entre a ideologia propagada pelo cinema e a hipnose é mais óbvia, devido ao fato de a imagem fílmica, que possui estatutariamente todos os caracteres do ideológico, ser um engodo; daí a necessidade de se “resistir ao cinema”, de se deixar fascinar não pelas imagens na tela, mas por seu entorno. Quanto à relação com o terceiro sentido, que só pode ser percebido no fotograma, trata-se do corolário óbvio dessa atitude, afinal, se a sala escura e as imagens em movimento são hipnóticas e portadoras de ideologia, é necessário vê-las em estase, imóveis, a fim de apreender os níveis informativo, simbólico e, acima de tudo, o obtuso. Com as imagens em movimento, ficamos entorpecidos; com o fotograma, podemos apreender toda a espessura de signos que emana do filme. Se, num trecho célebre de sua aula inaugural da cadeira de semiologia do Collège de France, Barthes diz que a língua é fascista porque nos obriga a falar,39 mutatis mutandis, o cinema, por sua natureza, é fascista porque nos obriga a ver – não se pode fechar o olho, é-se obrigado a olhar. A literatura é que permite esquivar-se da tirania da língua, pensá-la fora do poder; SOUZA. Barthes vai ao cinema

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39. BARTHES. Aula, p. 15.


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40. BARTHES. O óbvio e o obtuso, p. 58.

quanto ao cinema, trapacear o seu regime de poder residiria em ver um filme sem vê-lo – ao menos, vê-lo sem se deixar envolver pelas imposições a priori. Trata-se, portanto, de ver um filme buscando nele o que se esquiva, o obtuso, a não linguagem. Aliás, retomando “O terceiro sentido”, Barthes diz: “o filme, assim como o texto, ainda não existe: há apenas ‘cinema’, isto é, linguagem narrativa, poema, por vezes muito ‘modernos’, ‘traduzidos’ por ‘imagens’ ditas ‘animadas’”.40 Ao dizer que não existe filme, mas sim cinema, ficam claras a ambiguidade e a relutância de Barthes para com o cinematográfico (κίνημα – movimento), haja vista que o seu imperativo de resistência é à tirania do movimento, e não ao próprio fílmico. Daí a necessidade de uma teoria do fotograma: O tempo de leitura dos textos escritos é livre, a não ser que sejam muito convencionais, engajados a fundo na ordem lógico-temporal: o tempo de leitura do filme não o é, já que a imagem não pode ir mais rapidamente nem mais lentamente, ou se perderia até seu contorno perceptivo. O fotograma, ao instituir uma leitura simultaneamente instantânea e vertical, despreza o tempo lógico (que é apenas um tempo operatório); aprende a dissociar a imposição técnica (a “rodagem”) da essência fílmica, que é o sentido “indescritível”. Talvez fosse a leitura desse outro texto (aqui fotogramático), que reivindicasse S. M. E., quando dizia que o filme deveria apenas ser visto e ouvido, mas que é necessário escrutá-lo com atenção total. Este

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ouvir e este olhar não postulam apenas uma simples aplicação do espírito (exigência banal), mas sim uma verdadeira mutação da leitura e de seu objeto, texto ou filme: grande problema de nossos tempos.41

Todavia, mais do que simplesmente observar o filme em estase (fotograma), talvez essa mutação da leitura e do objeto esteja em ler ou ver o filme visando ao simples gozo42: o gozo do filme. Mais do que isso: quando Barthes diz “car pour moi, le cinéma est une activité entièrement projective”,43 o que ele propõe é que se vá ao cinema despido de quaisquer segundas intenções, quer sejam com a intenção de levar um acompanhante para namorar, quer sejam com algum intuito preestabelecido voltado à atividade intelectual. Com isso, o gozo (do cinema, do filme) pode tanto vir desse escrutar as imagens estáticas quanto do embevecimento erótico propiciado pela situação cinema: o som, a luz, os corpos imersos na escuridão. O filme deixa, portanto, de ser “uma criação da coletividade”44 e torna-se objeto de fruição puramente individual, quer dizer, por mais que vários espectadores ocupem uma sala de cinema ao mesmo tempo, ainda assim é possível que a experiência de ir ao cinema seja não gregária. Como pretende Barthes em O prazer do texto, o gozo/fruição é de caráter associal, “é a perda abrupta da socialidade e, no entanto, não se segue daí nenhuma recaída no sujeito (a subjetividade), na pessoa, na solidão: tudo se perde, SOUZA. Barthes vai ao cinema

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41. BARTHES. O óbvio e o obtuso, p. 60.

42. A despeito de nos basearmos na tradução de O prazer do texto, de Jacó Guinsburg, que opta por traduzir jouissance por fruição, concordamos com Leyla Perrone-Moisés (2013), que acredita que a melhor tradução seja gozo, uma vez que a noção barthesiana é tributária da teoria psicanalítica de Jacques Lacan, sendo que gozo assume uma conotação sexual que, para Barthes, é uma metáfora para aquilo que nos sacode e arrebata na escritura. Assim, embora nas citações diretas a palavra fruição é dominante, nós tomamos gozo como equivalente. 43. BARTHES. Entretien avec Roland Barthes, p. 21. “[...] porque para mim o cinema é uma atividade totalmente projetiva” (tradução minha).

44. BENJAMIN, 1994, p. 172.


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45. BARTHES. O prazer do texto, p. 48.

46. BARTHES. O prazer do texto, p. 61-62.

integralmente. Fundo extremo da clandestinidade, negro de cinema”.45 Uma vez que Barthes assinala uma correspondência entre o gozo propiciado pela escritura e a experiência da clandestinidade do cinema, parece-nos perfeitamente concebível operar um deslocamento da sua hermenêutica da literatura para uma possível teoria acerca do cinema no que diz respeito à relação do espectador com o filme, sem se deixar hipnotizar pelo engodo ideológico do cinema. Mesmo porque, quando Barthes distingue o prazer do gozo, dizendo que o primeiro é dizível, da ordem dos clássicos, da cultura, da inteligência, da ironia, do domínio e da crítica, ao passo que o segundo é um prazer em porções, sem finalidade, uma perversão, intransitivo, móvel, imprevisível,46 é impossível não buscar um paralelo com as noções de óbvio e obtuso, ou ainda com as de studium e punctum – levando em conta a analogia já estabelecida entre esses conceitos anteriormente. Ecoando a sua resposta na entrevista com Delahaye e Rivette, quando diz que prefere ir ao cinema e ver os filmes que quer, independente das indicações da cultura cinefílica alimentada, por exemplo, pelos Cahiers, Barthes diz em O prazer do texto: “Se aceito julgar um texto segundo o prazer, não posso ser levado a dizer: este é bom, aquele é mau. Não há quadro de honra, não há crítica, pois esta implica sempre um objetivo tático, um uso social e muitas vezes uma cobertura imaginária”.47 Contudo, por mais que afirme não se

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render à cinefilia e a seus totens, é interessante notar que as referências cinematográficas de Barthes são, muitas vezes, as mesmas dos cinéfilos dos Cahiers: Robert Bresson, cineasta cujo filme Os anjos do pecado foi analisado por Barthes num artigo de 1947; Luís Buñuel, cujo filme O anjo exterminador foi entusiasticamente elogiado por ele na supracitada entrevista; Charles Chaplin, Elia Kazan, Marlon Brando, Sergei Eisenstein e Michelangelo Antonioni. Desse modo, quando opõe o prazer (cultural) ao gozo (incultural) e privilegia o segundo, não devemos, de forma alguma, considerar que o filme de gozo seria um entretenimento fácil e ingênuo, ao gosto da maioria dos blockbusters norte-americanos, pelo contrário: se o texto de gozo seria “aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem”,48 mutatis mutandis, também o seria o filme de gozo. Ou seja, não se trata de baratear o objeto de contemplação, mas sim de se relacionar com um objeto complexo de outra forma. Tratar-se-ia de encarar um filme da mesma forma que um leitor se coloca diante de um livro: [...] não lemos tudo com a mesma intensidade de leitura; um ritmo se estabelece, desenvolto, pouco respeitoso, em relação à integridade do texto; a própria avidez do conhecimento

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48. BARTHES. O prazer do texto, p. 20-21.

47. BARTHES. O prazer do texto, p. 19.


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49. BARTHES. O prazer do texto, p. 17.

50. BARTHES. O prazer do texto, p. 19.

54. BARTHES. O prazer do texto, p. 75.

nos leva a sobrevoar ou a passar por cima de certas passagens (pressentidas como “aborrecidas”) para encontrarmos o mais depressa possível os pontos picantes da anedota. [...] saltamos impunemente (ninguém nos vê) as descrições, as explicações, as considerações, as conversações.49

Ora, transpondo essa estratégia para o espectador de cinema, o equivalente seria, acreditamos, deixar-se fascinar não pela história narrada, mas por tudo aquilo que foge às funções diegéticas, pela significância dos signos; ainda: permitir-se o devaneio suscitado por alguma imagem, distrair-se nos tempos mortos e, até mesmo, não se deixar dominar pelas escolhas do diretor quanto aos enquadramentos, por exemplo, buscando visualizar o contorno da imagem, o fora-de-quadro, enfim, assim como ninguém lê um livro palavra por palavra, o espectador não assistiria a um filme plano por plano, mas deter-se-ia naqueles que suscitassem o interesse por si só, a despeito do encadeamento narrativo. Se na leitura “o interstício da fruição produz-se no volume das linguagens, na enunciação, não na sequência dos enunciados: não devorar, não engolir, mas pastar, aparar com minúcia, redescobrir, para ler esses autores de hoje, o lazer das antigas leituras: sermos leitores aristocráticos”,50 por sua vez, ao ver um filme, fixaríamos a atenção num fragmento a fim de saboreá-lo demoradamente, ignorando o fluxo contínuo de 24 imagens por segundo que nos obriga a ver EM  TESE

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tudo sem compreender quase nada. O prazer do filme seria, tal como o do texto, “esse momento em que meu corpo vai seguir suas próprias ideias – pois meu corpo não tem as mesmas ideias que eu”.51 Enfim, tanto melhor será o prazer do filme se ele “consegue fazer-se ouvir indiretamente”, se, assistindo-o, “sou arrastado a levantar muitas vezes a cabeça, a ouvir outra coisa”.52 Em O prazer do texto, Barthes comenta também que, ao ler um texto mencionado por Stendhal, consegue encontrar Proust por meio de um pequeno detalhe. Mutatis mutandis, não se trata de encontrar num filme de Jean-Luc Godard uma referência imagética a um filme de Howard Hawks ou de Nicholas Ray – visto que intencionais –, mas sim de buscar relações imprevistas e não calculadas, por exemplo, o andar arrastado de uma personagem num filme de Lars Von Trier e o claudicar de outra personagem num filme de Ingmar Bergman; dito de outro modo: formular as próprias referências, criar associações arbitrariamente, inverter as origens, produzir uma lembrança circular.53 Por fim, vale destacar, Barthes aponta que o sentido obtuso – do filme – é do nível da significância, conceito recorrente em O prazer do texto, sendo diretamente relacionado ao gozo/fruição, aliás, gozo e significância são tomados por ele como a mesma coisa: “a significância como o lugar da fruição”.54 Ressalta-se, ainda, que Barthes define a significância SOUZA. Barthes vai ao cinema

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51. BARTHES. O prazer do texto, p. 24.

52. BARTHES. O prazer do texto, p. 32.

53. BARTHES. O prazer do texto, p. 45.


43

55. BARTHES. O prazer do texto, p. 72.

56. BARTHES. O prazer do texto, p. 78.

como “o sentido na medida em que é produzido sensualmente”,55 portanto, há um parentesco com “Ao sair do cinema”, na medida em que, nesse ensaio, a sala de cinema é considerada um espaço erótico, devido à ociosidade dos corpos dos espectadores. Em outras palavras, tanto o cinema é o lugar da erotização quanto a significância sugere uma erotização dos sentidos; tal sentido erótico se dá pelo grão da voz: Uma certa arte da melodia pode dar uma ideia desta escritura vocal; mas, como a melodia está morta, é talvez hoje no cinema que a encontraríamos mais facilmente. Basta com efeito que o cinema tome de muito perto o som da fala (é em suma a definição generalizada do ‘grão’ da escritura) e faça ouvir na sua materialidade, na sua sensualidade, a respiração, o embrechamento, a polpa dos lábios, toda uma presença do focinho humano [...], para que consiga deportar o significado para muito longe e jogar, por assim dizer, o corpo anônimo do ator em mina orelha: isso granula, isso acaricia, isso raspa, isso corta: isso frui.56

A despeito da ambivalência dos textos barthesianos sobre o cinema, isto é, o cinema, para ele, é tanto o lugar do prazer quanto da ideologia, é possível depreender, a partir de textos seus que não lidem diretamente sobre o cinema – sobretudo O prazer do texto –, uma possibilidade de se experienciar um filme de maneira a não se deixar envolver pela hipnose EM  TESE

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cinematográfica, sem, no entanto, tornar a ida ao cinema numa atividade puramente crítica, intelectual ou refratária ao prazer. De certa forma, a distância amorosa aventada em “Ao sair do cinema” pode avançar em direção a um gozo do filme, quer dizer: um filme não precisa mais ser visto de modo puramente projetivo, não precisa obedecer à tirania das imagens em movimento, ao contrário: pode-se tanto experimentar o deleite das imagens estáticas (ler os fotogramas), como também, e sobretudo, ver um filme como se lê um livro, ou melhor, buscar-se um gozo do filme. REFERÊNCIAS AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. Campinas: Papirus, 2003. BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BARTHES, Roland. Ao sair do cinema. In: _____. O rumor da língua. Trad. Mário Laranjeira. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 427-433. BARTHES, Roland. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França, pronunciada dia 7 de janeiro de 1977. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 2013a. BARTHES, Roland. En sortant du cinéma. Communications, n. 23, 1975, p. 104-107.

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BARTHES, Roland. Entretien avec Roland Barthes – Entrevista com Michel Delahaye e Jacques Rivette. Cahiers du cinéma, n. 147, tomo XXV, setembro de 1963, p. 20-30. BARTHES, Roland. Mitologias. Trad. Rita Buongermino e Pedro de Souza. 2 ed. São Paulo: Difel, 1975. BARTHES, Roland. O prazer do texto. 6ª ed. Trad. Jacó Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2013b. BARTHES, Roland. O terceiro sentido. In: _____. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Trad. Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 45-61. BARTHES, Roland. Roland Barthes by Roland Barthes. Trad. Richard Howard. Los Angeles: University of California Press, 1994. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: _____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7ª ed. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. MAUERHOFER, Hugo. A psicologia da experiência cinematográfica. In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema: antologia. Trad. Teresa Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal; Embrafilme, 1983, p. 375-380. PERRONE-MOISÉS. Lição de casa. In: BARTHES, Roland. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França, pronunciada dia 7 de janeiro de 1977. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 2013, p. 53-107.

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BIOGRAFEMA, STUDIUM, PUNCTUM, FOTOGRAFIA: QUASE UM MÉTODO

Ewerton Martins Ribeiro*

RESUMO: Neste ensaio, delineio o método biográfico concebido com foco no biografema, perspectiva biográfica idealizada por Roland Barthes em que o foco sai da trajetória diacrônica do biografado para ser dedicado a um específico fragmento de sua vida. Para compor tal método, mobilizei os conceitos de punctum e studium, também de Barthes, deslocando-os do seu campo de origem, a fotografia, para o campo da narrativa textual, e então mobilizando-os de forma a serem reproblematizados nesse novo contexto. PALAVRAS-CHAVE: Roland Barthes; biografema; punctum; studium; fotografia.

* ewertonmartinsribeiro@gmail.com Mestre em Literatura Brasileira pela UFMG e escritor, autor de A grande marcha (2014).

RÉSUMÉ: Dans cet essai, j´aborde la méthode biographique que j´ai conçue basée sur le biographème, perspective biographique idéalisée par Roland Barthes dans laquelle le focus se déplace de la trajectoire diachronique de la personne en question vers un fragment spécifique de sa vie. Pour composer la méthode par laquelle ce biographème a été rédigé, les concepts de punctum et studium, également conçus par Barthes, ont été déplacés de leur champ d´origine, la photographie, vers celui de la narrative textuelle, et ils ont été alors mobilisés de manière à être reproblématisés dans ce nouveau contexte. MOTS-CLÉS: Roland Barthes; biographème; punctum; studium; photographie.


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1. NASCENTES. Dicionário etimológico da Língua Portuguesa, p. 111. 2. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 3. 3. HOUAISS. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, 2009. 4. HOUAISS. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, 2009. 5. HOUAISS. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, 2009.

Biografia vem do grego bíos, vida, e graph1 (ou graphein2): escrever. Uma vida escrita, portanto – ou, dizendo de outra forma, o ato de escrever uma vida. Coforme o Houaiss, trata-se de um “gênero literário”3 em que se faz a narração “dos fatos particulares das várias fases da vida de uma pessoa ou personagem”.4 Na biografia, é narrada “a história da vida de alguém”.5 Se no Houaiss fala-se em gênero literário, os debates recentes sobre a liberdade ou não de se publicar, no Brasil, biografias não autorizadas, trouxeram à tona o entendimento desse gênero também como jornalístico – e, por que não, histórico. Neste ensaio, o ato biográfico será considerando-se essas três perspectivas. Em minha dissertação de mestrado, defendida em maio de 2015, compus uma biografia do escritor mineiro Fernando Sabino – mais especificamente, uma biografia escrita sob a égide do biografema, conceito concebido por Roland Barthes. Dessa perspectiva, foquei-me não na trajetória diacrônica de Sabino (ainda que de alguma forma a tenha abordado), mas sim em um específico aspecto de sua vida: a escrita e publicação da biografia romanceada Zélia, uma paixão, livro que Sabino escreveu e publicou em 1991 e que marcou uma inflexão em sua carreira de sucesso. Já nas primeiras pesquisas que realizei com vistas a escrever a dissertação, percebi que, para Barthes (ainda que ele

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não o tenha dito explicitamente), fazer um biografema é, de algum modo, fazer um retrato da vida do personagem (tendo como posição antinômica a ideia de se fazer um filme da vida da pessoa, método tão comum nas biografias mais comerciais). Assim, mantendo no horizonte essa perspectiva metafórica do retrato, mobilizei e manipulei outras reflexões de Barthes de forma a consolidar uma possibilidade de biografia-biografema que se relacionasse mais pormenorizadamente com a ideia da fotografia. Para compor essa perspectiva biográfica, mobilizei os conceitos barthesianos de punctum e studium – além do conceito de biografema, naturalmente. O que fiz foi deslocar esses conceitos – o punctum e o studium – do campo da fotografia, que é onde Barthes os concebeu, para o campo da biografia, de forma a reproblematizá-los neste. Minha intenção com este ensaio é mapear a metodologia que criei e usei, de forma a apresentá-la como possibilidade biográfica viável e consonante com as mais recentes problematizações feitas sobre a biografia nos campos do jornalismo, da literatura e, principalmente, da história. Para contextualizar tal metodologia, cabe passar, primeiramente, pelo entendimento do que seja uma biografia no sentido tradicional e do que sejam essas citadas problematizações. É o que faço a seguir.

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DA BIOGRAFIA AO BIOGRAFEMA

6. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 3

7. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 2. 8. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 2.

9. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 5.

Em O historiador e seu personagem: algumas reflexões em torno da biografia, a historiadora Vavy Pacheco Borges rascunha alguma definição para o termo: “Biografia: espécie de história que tem por objeto a vida de uma só pessoa”.6 Em seu ensaio, Vavy vai fazer entender que a biografia é um gênero, além de literário, também histórico. Positivamente, com Vavy encontramos a biografia situada congenitamente na imbricação entre literatura, história e jornalismo. Retomando um argumento de Jean Orieux em A arte do biógrafo, a historiadora diz que a biografia nasce de “uma longa intimidade”7 entre biógrafo e biografado, seja esta uma intimidade de facto, seja esta uma intimidade temática. “A biografia é um casamento”,8 metaforizou – e, como todo matrimônio, é dada aos seus particulares imbróglios. Os problemas que se colocam, ao se propor escrever a história de um personagem – chame-se isso de biografia, estudo de caso, microhistória ou trajetória, itinerário, percurso – em nada são diferentes dos que se enfrenta em qualquer trabalho de pesquisa histórica. São os mesmos, mas, ao que me parece, olhados através de uma lente de aumento [...]. Encontram-se bastante imbricados.9

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O que Vavy vai demonstrar que são muitos esses problemas potenciais pertinentes ao fazer biográfico, e que, se não lhes dermos a devida atenção, eles podem comprometer a qualidade e a pertinência de uma biografia de diferentes formas. Um dos principais problemas que acometem os biógrafos tradicionais é o “ideal de contar a verdade”10 de uma vida, como se efetivamente existisse uma grande verdade, maior, soberana, sobre uma existência – uma verdade única que, a partir de um grande esforço, pudesse ser alcançada e, finalmente, reportada. O risco de que nos alerta Vavy é o seguinte: de tão “íntimo” que se torna do seu biografado ao fazer o seu esforço de pesquisa, esse biógrafo passa a acreditar, de forma um tanto positivista, que enfim o conheceu total e definitivamente.11 O curioso é que esse disparate leva o biógrafo a outro, uma segunda crença: a crença em sua capacidade de, por meio da linguagem, representar o seu biografado com objetividade, identidade e precisão, tal como ele “é”. Aqui, o biógrafo desconsidera não apenas a impossibilidade de alcançar tal verdade única, mas também o caráter precário da linguagem, que é inevitavelmente dada ao equívoco, à contradição, à parcialidade. Ou seja, ele desconsidera a incapacidade que a linguagem teria de registrar essa verdade com precisão caso ela existisse. RIBEIRO. Biografema, studium, punctum, fotografia: quase um método

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10. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 3.

11. Aqui, a semelhança entre a relação biógrafo/biografado e a que se estabelece num casamento em crise (em que o marido e a esposa reiteram diariamente: “você não é a pessoa com quem me casei!”) não é mera coincidência: seja na relação biógrafo/biografado, seja nas relações erótico-amorosas, o conhecimento que se tem da alteridade será sempre precário.


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Se assim descrito o problema pode parecer tolo, sua demarcação pormenorizada se justifica em uma rápida visita à livraria: basta uma passada d’olhos nas biografias que hoje abundam nas prateleiras para perceber que o discurso biográfico preponderante parte dessas duas crenças. É profícuo mobilizar alguns entendimentos correntes no campo da história, sobretudo na reflexão histórica contemporânea, para circunscrever problematicamente esse “ideal da verdade”. Na história – e também no jornalismo, se pensarmos mais na teoria que na prática da profissão – já se preconiza não ser viável o estabelecimento de verdades absolutas sobre os fatos. Ao contrário, entende-se com algum nível de consenso que só são possíveis construções de sentido, estas sempre em afirmação ou refutação de uma construção de sentido anterior. Aqui estou pensando principalmente com Foucault, quando este diz que

12. FOUCAULT. Microfísica do poder, p. 28.

As forças que entram em jogo na história não obedecem nem a uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta. Elas não se manifestam como formas sucessivas de uma intenção primordial; como também não têm o aspecto de um resultado. Elas aparecem sempre na álea singular do acontecimento.12

Aqui, o que é possível depreender de Foucault é que, sendo o acaso da luta uma variável constante, e não havendo

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uma destinação, não haverá uma verdade final, posto que não há resultado: as verdades serão sempre provisórias, sempre precárias; sempre construções de sentido. E estarão, ainda, sempre na iminência de se confrontarem com versões contraditórias de si, embate do qual uma das partes sairá vitoriosa (e se tornará então a verdade provisória da vez) enquanto a outra sairá subjugada, relegada ao esquecimento. O que se está dizendo aqui é que as relações de força e poder são permanentes e intrínsecas ao processo de construção do saber. Daí a relevância de se mobilizarem entendimentos do campo da história para a projeção de um trabalho biográfico na área de literatura. Tendo em vista esse problema, Vavy Pacheco Borges fala sobre um “escopo difícil”13 de certas biografias (justamente aquelas que contam com espaço privilegiado nas gôndolas das livrarias), que visam “cobrir a história de uma vida do berço ao túmulo, tentando inutilmente abarcar toda a riqueza incomensurável de uma vida”.14 O mote, nesse sentido, é mais uma vez o precário ideal de contar uma suposta verdade absoluta sobre certa existência. Nesse sentido, é o saber histórico que pode colaborar com o biógrafo para que ele não incorra em tais deslizes na hora de lançar seu olhar para o tempo que já se foi: de uma perspectiva menos pretensiosa, pode o biógrafo finalmente assumir que história (portanto, biografia) é representação, RIBEIRO. Biografema, studium, punctum, fotografia: quase um método

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13. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 3.

14. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 3.


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15. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 6.

16. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 2.

17. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 6.

18. RANCIÈRE. A partilha do sensível, p. 58.

não encarnação da realidade. Vavy Pacheco sintetiza essa ideia com menos palavras: “Não se chega ‘ao passado’, mas se constroem representações do passado”.15 Em seu ensaio, a historiadora sugere que a precariedade da nossa percepção da alteridade é o que subjaz a nossa dificuldade em biografar. Os problemas de interpretação de uma vida são riquíssimos, pois nos defrontam com tudo que constitui nossa própria vida e as dos que nos cercam. Num círculo vicioso, exigem de nós autoconhecimento e preocupação com a compreensão dos outros seres humanos; mas, ao mesmo tempo, podem acabar por reforçar em nós tudo isso.16

Nesse sentido, serão as fontes encontradas que vão (ou ao menos deveriam) estabelecer “os limites, os níveis em que podemos nos aprofundar na vida de uma pessoa”.17

não é propor engodos, porém elaborar estruturas inteligíveis”.19 Em foco, mais uma vez, a precariedade da linguagem. Eneida Maria de Souza vai dizer que, no exercício da crítica biográfica, “o apelo ao ficcional atua como procedimento que formaliza o texto e o molda segundo princípios comuns à arte da escrita”.20 Ou seja, Eneida diz que a crítica biográfica prevê a ficcionalização dos dados. Ela explica: “Ficcionalizar os dados significa considerá-los como metáforas, ordená-los de modo narrativo, sem que haja qualquer desvio em relação à ‘verdade’ factual”.21 Essa inexistência de desvio em relação à verdade factual só pode se dar por meio de uma premissa: a ética do escritor em buscar, como regra, entrar em harmonia22 com os dados documentais do biografado, como vai dizer Barthes em A câmara clara.

Um bom biógrafo é o que aceita que as fontes encontradas encerram, ao mesmo tempo, a potencialidade e as limitações do seu trabalho biográfico. Ele assume que o resultado de seu trabalho será sempre precário e reluzirá sua própria limitação, a limitação da sua perspectiva em face do inapreensível todo. Daí o espaço inevitável que surge para a imaginação no registro que fazemos do que houve — como entrelinha Jacques Rancière em A partilha do sensível: “O real precisa ser ficcionado para ser pensado”.18 Mas Rancière alerta: “Fingir

Para que se alcance uma verdade que seja ao mesmo tempo inteligível e ética sobre a realidade, é preciso ficcionalizar o real.

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As considerações de Philippe Lejeune em O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet, ainda que na maioria das vezes tenham sob o foco a autobiografia, colaboram para esta reflexão preliminar sobre o fazer biográfico. E, principalmente, colaboram para a elaboração de uma definição mais profunda para o termo biografia.

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19. RANCIÈRE. A partilha do sensível, p. 53.

20. SOUZA. Crítica cult, p. 9.

21. SOUZA. Crítica cult, p.11.

22. BARTHES. A câmara clara, p. 33.


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23. LEJEUNE. O pacto autobiográfico, p. 14. 24. LEJEUNE. O pacto autobiográfico, p. 53.

Lejeune define a autobiografia como uma “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade”.23 Da biografia, por sua vez, Lejeune lembra o que diz ser seu sentido antigo e mais comum: a “história de um homem (em geral célebre) escrita por outrem”.24 Somadas, as definições de Lejeune e de Vavy Pacheco (e, por que não, do dicionário Houaiss) colaboram para que aqui se possa rascunhar uma definição própria de o que seja uma biografia: A biografia é uma narrativa retrospectiva histórica, literária e jornalística que uma pessoa real faz da existência de outrem (em geral célebre, mas não necessariamente), tendo por objeto sua diacrônica trajetória individual, em particular a história de sua personalidade e de sua interação com o mundo.

25. BARTHES. O efeito de real, p. 131-136.

Em oposição a todas as formas de ficção, a biografia e a autobiografia são textos referenciais: exatamente como o discurso científico ou histórico, eles se propõem fornecer informações a respeito de uma “realidade” externa ao texto e a se submeter portanto a uma prova de verificação. Seu objetivo não é a simples verossimilhança, mas a semelhança com o verdadeiro. Não o “efeito de real”, mas a imagem do real. Todos esses textos referenciais comportam então o que chamarei de pacto referencial, implícito ou explícito, no qual se incluem uma definição do campo do real visado e um enunciado das modalidades e do grau de semelhança aos quais o texto aspira.26

Em suas reflexões, Lejeune retoma o efeito de real de Barthes25 para pensar a (auto)biografia. A leitura que o pensador faz é bastante interessante para a problematização do funcionamento de um texto biográfico – inclusive no sentido de se perceber o quanto uma abordagem positivista (como ocasionalmente é a do próprio Lejeune) pode ser restritiva a uma reflexão que se queira contemporânea sobre a biografia. Diz Lejeune:

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Com Vavy Pacheco, aqui já se disse que “não se chega ‘ao passado’, mas se constroem representações do passado”;27 nesse ponto, Vavy aponta para o equívoco que é tentar “cobrir a história de uma vida ‘do berço ao túmulo’, tentando inutilmente abarcar toda a riqueza incomensurável de uma vida”.28 Nesse sentido, é possível depreender da argumentação de Vavy um recado para Lejeune: se é preciso abdicar do “ideal de contar a verdade”29 de uma vida (tendo-se em vista não haver uma verdade única), também já não se faz mais tempo de se falar em “prova de verificação” entre realidade e representação, tampouco de aludir à semelhança entre a representação e o verdadeiro. Faz-se, sim, o tempo de se pensar em uma ética da relação que se estabelece entre o simbólico e o referencial. RIBEIRO. Biografema, studium, punctum, fotografia: quase um método

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26. LEJEUNE. O pacto autobiográfico, p. 36.

27. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 6.

28. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 3. 29. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 3.


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Nesse sentido, passo por Lejeune neste ensaio menos para construir, e mais para desconstruir alguns saberes sedimentados sobre a questão biográfica. Afinal, já se estabelecera aqui o equívoco que é imaginar uma alegoria como capaz de retratar o real com fidelidade. Com Vavy (e também com Barthes), evidenciou-se o quanto se faz tortuoso o caminho de um biógrafo que se proponha a alcançar o verdadeiro de uma vida por meio de sua representação em semelhança. Nesse sentido, com eles, torna-se impossível não refutar um argumento que se proponha, em signo, verificável no que diz respeito à sua relação com o referente.

30. Eneida Maria de Souza vai falar em uma “desestabilização do referencial” (Crítica cult, p. 23) ao tratar desse ponto. “A desestabilização do referencial produz, com efeito, a invenção e a estetização da memória, esta não mais subordinada à prova de veracidade” (Crítica cult, p. 23, grifo meu).

Na biografia (no movimento mesmo de significação de um referencial por meio da linguagem), a percepção desse referencial é subjetiva30 (pois depende do olhar do biógrafo, que é perspectivo), plural (pois pode variar de biógrafo para biógrafo, ou seja, de perspectiva para perspectiva) e sempre precária (na medida em que um signo nunca é capaz de abarcar toda a complexidade do seu referente; ao contrário, o reduz a uma chave de entendimento). Em face a essas constatações, já não cabe mais exaltar ideias como semelhança ao referencial, sugerindo para tal relação uma prova de verificação. Tal movimento parece tentar abarcar de forma simplista e redutora uma realidade discursiva que é complexa e irredutível.

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Nesse sentido, a biografia não está em oposição a todas as formas de ficção, como sugere Lejeune; pode, ao contrário, se dar em diálogo com elas – como se faz exemplo o próprio livro de Fernando Sabino, Zélia, uma paixão, qual motivou a minha dissertação de mestrado (dissertação que, por sua vez, motivou a elaboração do método biográfico que se detalha aqui). Quanto à verdade, o objetivo agora não é mais alcançá-la, abarcá-la, mas sim se aproximar dela à mínima distância impossível, como num sonho mesmo, e sentir, como que caducamente, o seu hálito imponderável. Essa é a relação que a imaginação biografemática estabelece com a verdade: entra em contato com ela ao tempo em que a estabelece; e a estabelece em harmonia – diria ética – com a realidade referencial. No pacto referencial de Lejeune, “a fórmula deixaria de ser ‘eu abaixo-assinado’ e passaria a ser ‘juro dizer a verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade’”.31 Adaptando Lejeune: no sentido mais contemporâneo que se propõe aqui, a fórmula passa a ser “juro dizer uma verdade, somente uma verdade, nada mais que uma verdade”. Positivamente, o próprio Lejeune já havia rascunhado uma problematização às assertivas de seu pacto. Ele diz em dado momento:

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31. LEJEUNE. O pacto autobiográfico, p. 36-37.


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32. LEJEUNE. O pacto autobiográfico, p. 36-37.

raramente a forma do juramento é tão abrupta e total: uma prova suplementar de honestidade consiste em restringir a verdade ao possível (a verdade tal qual me parece, levando-se em conta os inevitáveis esquecimentos, erros, deformações involuntárias etc.) e em demarcar explicitamente o campo ao qual o juramento se aplica (a verdade sobre tal aspecto de minha vida, sem me comprometer sobre tal outro aspecto).32

biográfica, para além do regime referencial (sem que seja necessário, para isso, abrir mão dele como – veja só a nossa ironia vocabular – referência33).

Ainda assim, Lejeune não alcança a questão principal, que é anterior a qualquer argumento sobre “esquecimentos, erros, deformações involuntárias” – afinal, seus termos consideram subliminarmente a utópica possibilidade de que, fosse possível superar de alguma forma esses equívocos, poder-se-ia enfim alcançar alguma verdade absoluta sobre a vida biografada, utilizando-se para isso a linguagem. Esse é o entendimento de Lejeune que se propõe, aqui, superar. É preciso demarcar em ordem direta: já é tempo de não mais se considerar (nem mesmo em termos de oposição, como faz Lejeune) a hipótese de alguma verdade absoluta: cabe, finalmente, introjetar que a verdade depende sempre da apreciação que se faz da realidade, e que tal apreciação é por natureza singular, perspectiva, e por isso precária.

Lejeune considerara um desafio da biografia literária o fato de ela “pretender ser ao mesmo tempo um discurso verídico e uma obra de arte”.34 Ao meu ver, não se trata exatamente de um desafio: assumindo-se o que já se disse aqui sobre o caráter impossível do verídico, o que antes se tomava por problema se transfigura em potencialidade. E, positivamente, Vavy Pacheco já resolvera sem muita dificuldade esse ponto: ela demarcara que a biografia oscila entre o conhecimento e a arte, entre a ‘ciência’ e a ‘arte’, entre a história e a ficção,35 e que é justamente nessa oscilação que ela se encontra, em vez de se perder: “as reflexões atuais que aproximam a história e a ficção mostram como muito sutis os limites entre as duas”,36 diz. Nesse sentido, Vavy aponta a biografia como “um espelho ao mesmo tempo científico e poético, ou seja, ao mesmo tempo natural e mágico”37 de uma vida. Essa é a sua potencialidade, muito mais que um desafio a ser superado.

Como Vavy nos sugere, verdade não é: a verdade são. Pois é a partir desse entendimento que se propõe, neste método, a consideração do regime ético – e estético – da concepção

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Uma definição para “verdade”: representações hipotéticas, precárias, plurais, portanto perspectivas, e potencialmente antagônicas de algo que reside no plano metafísico e que não pode ser plenamente acessado no plano físico.

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33. Trata-se de em suma de considerar a referência como um ponto de partida para a biografia, nunca como linha de chegada.

34. LEJEUNE. O pacto autobiográfico, p. 61.

35. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 3.

36. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 5. 37. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 7.


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38. LEJEUNE. O pacto autobiográfico, p. 18. 39. LEJEUNE. O pacto autobiográfico, p. 21.

De toda forma, ainda que pertinente, a ideia de “espelho” já não parece ser a melhor opção para a metáfora que se pede aqui. Pensemos então a biografia como um retrato – finalmente. Um retrato pintado à mão pelo biógrafo, com as tintas de sua preferência, e em seu particular estilo; um retrato fotografado pelo biógrafo, com a luz de sua preferência, o enquadramento de seu gosto, no ínfimo instante do seu clique emocional. Ao falar em fotografia, começo a me afastar da ideia básica de biografia para aproximar-me do conceito de biografema proposto por Barthes. É aonde devo chegar ao fim dessas poucas páginas ensaísticas.

significação. Eu, quando aqui escrevo, encarno também uma espécie de personagem; o pesquisador que produz o seu trabalho.

Quando fala sobre autobiografias, Lejeune acusa que, ocasionalmente, “a narração em terceira pessoa pode comportar intromissões do narrador em primeira pessoa”.38 Lejeune chama a atenção para “a evidência de que [nesses casos] a primeira pessoa é um papel”.39 Lejeune está correto, mas ele poderia ser mais preciso se generalizasse: em uma biografia, todo enunciado, em primeira, segunda ou terceira pessoa, remete a um papel.

No início deste texto, falei em serem muitos os potenciais problemas pertinentes ao fazer biográfico. Alguns deles podem ser delineados retomando-se as reflexões de Lejeune – que incorre, por exemplo, no equívoco de usar a palavra “identidade” para dizer: “na biografia, o autor e o narrador estão por vezes ligados por uma relação de identidade”,40 ao que completa: “essa relação pode permanecer implícita ou indeterminada, ou ser explicitada, por exemplo, em um prefácio”.41

Todo personagem é um papel – e é nesse sentido que se busca aqui ir além de Lejeune. Eu, quando surjo em primeira pessoa neste ensaio, não transmito encarnando a pessoa real que escreve, o referente; remeto-me a ela por meio de uma significação – uma significação precária (e diria afetada, em se tratando do meu discurso acadêmico) como toda EM  TESE

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Somos todos personagens. O que se quer dizer aqui é que narradores devem ter suas relações de semelhança (e de suposta identidade) com o autor problematizadas. Tanto quanto podem e devem ser problematizadas as relações de semelhança e de suposta identidade entre o sujeito que foi biografado e a imagem que de tal sujeito é construída por meio da linguagem.

Há que se repudiar esse uso do termo e reafirmar: diga-se o que quiser em prefácios, nunca haverá identidade,42 tendo-se em vista o sentido próprio do termo, entre autor e narrador. Nem em uma autobiografia escrita em primeira pessoa (em que se jure – “em um prefácio” ou página a

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40. LEJEUNE. O pacto autobiográfico, p. 38. 41. LEJEUNE. O pacto autobiográfico, p. 38.

42. “Identidade” para o Houaiss: “qualidade do que é idêntico”. “Idêntico” para o Houaiss: aqui “que em nada difere”. (Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa). Reafirmo: uma representação necessariamente difere do seu referente.


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página, caso se prefira – só dizer a verdade, nada mais que a verdade) nem em uma biografia escrita em terceira pessoa. A linguagem, por natureza, é um engodo em relação ao que referencia; sua relação com o referente é simbólica, portanto precária.

43. BARTHES. A câmara clara, p. 33.

44. LEJEUNE. O pacto autobiográfico, p. 42.

45. LEJEUNE. O pacto autobiográfico, p. 37. 46. Cf. Análise de Discurso, livro de Eni Pulcinelli Orlandi, professora da Unicamp – uma ótima introdução à Análise do Discurso.

Ao se substituir o termo identidade por semelhança, e perpassar a ideia de semelhança com a perspectiva de harmonia elaborada por Barthes (o biógrafo que “entra em harmonia”43 com a realidade da existência do biografado), aproximamo-nos do que se vem entendendo aqui como uma profícua possibilidade biográfica. Gide teria sugerido que “as memórias só são sinceras pela metade, por maior que seja a preocupação com a verdade: tudo é sempre mais complicado do que o dizemos. Talvez se chegue mesmo mais perto da verdade no romance”.44 A ironia é que aqui temos Gide citado pelo próprio Lejeune, que o retoma para problematizá-lo. Em dado momento de O pacto autobiográfico, Lejeune cita um “sistema de explicação que implica a ideologia do historiador”.45 Aí o pensador rascunha algo sobre a posição discursiva46 (pensando aqui nos termos da Análise do Discurso de linha francesa) a partir da qual o biógrafo profere a sua narrativa, posição necessariamente perpassada pela historicidade do biógrafo, por sua ideologia, pelo contexto social em que ele se insere e por seus afetos, suas paixões. Com EM  TESE

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tudo isso em vista, como insistir em pensar na relação entre referente e significação em termos absolutos? “Tentarmos compreender um personagem é já uma forma de gostar dele, de apreciá-lo”,47 acerta Vavy Pacheco Borges em seu O historiador e seu personagem. Pois, de tal afeto, decorre um outro risco do biógrafo aqui ainda não abordado: o risco de, em sua visão retrospectiva, se ver seduzido por certa perspectiva determinista. “Sabendo como tudo acabou, o historiador corre o risco de construir para seu personagem ‘um percurso orientado’, muitas vezes disfarçado atrás de ideias de ‘destino incontornável’, ‘vocação irresistível’, etc...”.48 Essa construção de sentido a posteriori é bem sintetizada pelo sociólogo Duncan J. Watts já no nome que oferece a um best-seller seu: Tudo é óbvio: desde que você saiba a resposta. No livro, Watts exemplifica a facilidade com que nos valemos do senso comum para conferir novos sentidos para o passado a partir dos desdobramentos do presente — e demonstra como esse procedimento normalmente se faz combustível para os equívocos de interpretação da realidade. “O resultado é que ele [o senso comum] é maravilhoso para dar sentido ao mundo, mas não para compreendê-lo”.49 (WATTS. Tudo é óbvio: desde que você saiba a resposta, p. 39). É nesse sentido que Vavy nos diz: “é preciso se pensar tanto nas determinações da sociedade (em que o/a biografado/a se criou e viveu) quanto no papel do ‘acaso’, tomando-se RIBEIRO. Biografema, studium, punctum, fotografia: quase um método

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47. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 6.

48. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 7.

49. WATTS. Tudo é óbvio: desde que você saiba a resposta, p. 39.


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50. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 6.

51. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 7. 52. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 7. 53. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 7.

54. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 5.

55. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 5.

como tal os inúmeros pequenos fatos e incidentes para os quais não se conhecem explicações”.50 Em outras palavras, é preciso desconfiar, no processo biográfico, de tudo aquilo que muito facilmente se propõe como um saber conclusivo acerca do ser a que se quer biografar. Vavy orienta o biógrafo a pensar sobre como se deu a vida do biografado em particular, fugindo dos lugares-comuns generalizantes: “os atores históricos (nós todos) não são modelos de coerência, de continuidade, de racionalidade”,51 lembra; assim, “não mais se concebe a biografia como uma evolução linear com um encadeamento de causas e efeitos”52: ao contrário, é preciso pensar sempre “as tensões entre o vivido e o imaginado e desejado; entre a razão e a paixão”;53 entre o coerente e o inoportuno. Para a teórica, a psicanálise tem grande importância e traz importante contribuição para o fazer biográfico. Segundo Vavy, ela colaborou “para mostrar a importância do detalhe”,54 “para iluminar a questão de se atribuir uma racionalidade ao indivíduo; para mostrar a importância da ‘dominância subjetiva’; para mostrar a dificuldade de se provar muitos desses aspectos e como somente se pode captá-los por formas muito indiretas”.55

principais aspectos que colaboram para distinguir (não por oposição, mas por singularidade) o biografema da biografia tradicional. Ainda que Vavy Pacheco Borges tenha escrito as suas reflexões em torno da biografia já neste século 21, ela vai afirmar, ao tempo de sua escrita, que “não há métodos canônicos para se escrever a história de uma vida, ou falando comumente, para se produzir uma biografia”.56 Daí a relevância do exercício que se faz aqui. O biografema, de sua parte, se apresenta como opção metodológica (ainda que tratar o termo por “método” por si só me soe ousadia). Sobre o conceito, o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Luciano Bedin da Costa, diz o seguinte em seu Estratégias biográficas: biografema com Barthes, Deleuze, Nietzsche e Henry Miller: “não há fórmulas para tais estratégicas biográficas”.57 Sem sugerir uma fórmula, rascunho um método, ou melhor, delineio as premissas da minha particular estratégia — o retrato.

Ora, curiosamente, o detalhe e a subjetividade são aspectos centrais da perspectiva biografemática. São eles os

Antes, uma definição barthesiana mais clara de biografema. Barthes não alcança a sua definição para o conceito em um golpe só. Ao contrário, vai rascunhando-o com calma no decorrer de sua obra, distraidamente, como que sem intenção formal. Em Sade, Fourier e Loyola, livro de 1971, o filósofo faz alguns primeiros apontamentos sobre o tema.

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56. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 5.

57. COSTA. Estratégias biográficas, p. 13.


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Para tanto, usa a si mesmo como objeto de análise, e com isso oferece uma proposta para o termo.

58. BARTHES. Sade, Fourier e Loyola, p. XVII.

59. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 6.

Se eu fosse escritor, já morto, como gostaria que a minha vida se reduzisse, pelos cuidados de um biógrafo amigo e desenvolto, a alguns pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos: “biografemas”, cuja distinção e mobilidade poderiam viajar fora de qualquer destino e vir tocar, à maneira dos átomos epicurianos, algum corpo futuro, prometido à mesma dispersão; uma vida esburacada, em suma, como [...] um filme à moda antiga, de que está ausente toda palavra e cuja vaga de imagens [...] é entrecortada, à moda de soluços salutares, pelo negro apenas escrito no intertítulo, pela irrupção desenvolta de outro significante.58

outro lado, Barthes também fala em desenvoltura. Tal desenvoltura foi o que aqui motivou a mobilização de conceitos concebidos por Barthes no campo da fotografia – o punctum e o studium, aos quais não tardo a me remeter – e a aplicação deles em perspectiva narrativa, biográfica. Barthes ainda fala em “outro significante”, capaz de ir tocar o futuro do biografado. De fato, a biografia é um outro significante: uma representação, que como representação não estabelece uma relação de identidade com o seu referente, mas de harmonia (diria ética); e que assim se faz capaz de, autonomamente, em função de sua congênita mobilidade, dirigir-se ao futuro, rompendo com qualquer ideia de inexorabilidade do destino. Com o biografema, o futuro do passado é reescrito.

Perceba-se que, para produzir o biografema, Barthes não demanda um biógrafo qualquer: pede um biógrafo que seja, especificamente, amigo e desenvolto. Cabe aqui retomar que tal relação de “amizade” entre biógrafo e biografado fora elencada também por Vavy Pacheco quando a historiadora afirma que tentar “compreender um personagem é já uma forma de gostar dele”.59 Positivamente, assumir esse afeto, essa espécie de paixão que inevitavelmente se estabelece entre biógrafo e biografado na produção de uma biografia, me parece ser um primeiro passo para se superar a perspectiva positivista da produção biográfica à qual, entre outros, Lejeune alude. Por

Em A câmara clara, livro de 1979, Barthes retoma o conceito de biografema, evoluindo em sua problematização. Nesta obra, publicada apenas um ano antes de seu falecimento, o teórico reflete sobre a sua relação com a fotografia e um seu desejo algo ontológico de descobrir a qualquer preço o que a fotografia é em si; o seu “traço essencial”,60 aquele que poderia distingui-la em meio à ampla comunidade das imagens. Na abordagem que faz da fotografia, Barthes traça um paralelo que colaborará na compreensão dos sentidos inerentes ao seu conceito de biografema.

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60. BARTHES. A câmara clara, p. 13.


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61. BARTHES. A câmara clara, p. 34.

Ela [a fotografia] me permite ter acesso a um infrassaber; fornece-me uma coleção de objetos parciais e pode favorecer em mim um certo fetichismo: pois há um “eu” que gosta do saber, que sente a seu respeito como que um gosto amoroso. Do mesmo modo, gosto de certos traços biográficos que, na vida de um escritor, me encantam tanto quanto certas fotografias; chamei esses traços de “biografemas”: a Fotografia tem com a História a mesma relação que o biografema com a biografia.61

O biografema permite ajustar o zoom biográfico a não mais que um detalhe da vida do biografado. O objetivo desse ajuste é finalmente possibilitar a percepção daqueles detalhes, daquelas ranhuras, daquelas nuances que só podem ser vistas de perto, em atenção dedicada. O biografema fomenta essa perscrutação. 62. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 5.

63. BORGES. O historiador e seu personagem, p. 5.

Vavy Pacheco dedica parte de seu ensaio para mostrar “a importância do detalhe”62 e a importância que ele tem “para iluminar a questão de se atribuir uma racionalidade ao indivíduo; para mostrar a importância da ‘dominância subjetiva’; para mostrar a dificuldade de se provar muitos desses aspectos e como somente se pode captá-los por formas muito indiretas”.63 Positivamente, uma forma de se obter uma impressão honesta do todo é por meio da parte, do detalhe: a parte possibilita essa percepção exemplar, criativa, subjetiva, indireta do todo.

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A parte possibilita uma percepção não generalizante de um conjunto, é o que se pode dizer. Em vez de investigar, de um sujeito, o transcorrer histórico de toda a sua vida, como que numa panorâmica; em vez de biografar-lhe a vida de forma ampla, tal como se faz numa biografia tradicional (de viés jornalístico e poder-se-ia dizer comercial), como fosse um filme hollywoodiano; é profícuo mirá-lo como que pela lente de uma teleobjetiva. Mas não de um ponto distante, como se faz com tal lente; cabe manter-se colado a ele, de forma a inevitavelmente focalizar-lhe apenas uma pequena parte sua – e ser afetado por ela. Em meu trabalho sobre Fernando Sabino, foquei minha teleobjetiva em um ponto, fotografando-lhe uma específica passagem da existência: a escrita e o lançamento de Zélia, uma paixão. Interessaram-me, pois, a produção do livro, os acontecimentos prévios relacionados a ele e as consequências de sua publicação — o que, vale dizer, me levou tanto ao início de sua juventude, em especial às cartas trocadas com Mário de Andrade, como aos últimos dias de sua vida, quando, ensimesmado em seu apartamento em Ipanema, Sabino quis morrer só.64 Tal método permitiu que eu enxergasse um Sabino inédito. É em A câmara clara que Barthes desenvolve, para além do biografema, os conceitos filosófico-estéticos de studium e de punctum. Barthes concebe tais conceitos para interpretar

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64. Pois não é assim também como uma boa fotografia? Ao retratar um ínfimo instante, remete-nos inevitavelmente aos passados vividos e não vividos – e a toda a potência de futuro presente no presente.


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a fotografia; na minha investigação eu os mobilizei como recurso para lançar um olhar dedicado à vida de um personagem e construir um seu biografema.

65. BARTHES. A câmara clara, p. 34.

A ideia adveio de uma específica colocação de Barthes: “a Fotografia tem com a História a mesma relação que o biografema com a biografia”.65 No ensejo desse paralelo proposto pelo filósofo (e já que a proposta deste método é fazer, em metáfora, uma espécie de fotografia de um momento/aspecto do sujeito a ser biografado), coube deslocar os conceitos de studium e punctum do campo da fotografia para o campo da biografia – isso, contudo, mantendo íntegras as suas estruturas conceituais, gestadas com precisão pelo pensador francês.

Para o francês, o studium é aquilo que da foto desperta moderadamente o interesse: ele tem a ver com um afeto médio, quase com um amestramento. Diz Barthes: o studium é aquela “aplicação a uma coisa, o gosto por alguém, uma espécie de investimento geral, ardoroso, [...] mas sem acuidade particular”,68 que fazemos sobre algo. Coligidos, alguns trechos de A câmara clara fazem Barthes explicar muito claramente o seu entendimento para o termo, que aqui passa a ser também o meu. O studium é o campo muito vasto do desejo indolente, do interesse diversificado, do gosto inconsequente: gosto / não gosto, I like / I don’t. [...] É da ordem do to like, e não do to love; mobiliza um meio desejo, um meio querer; é a mesma espécie de interesse vago, uniforme, irresponsável, que temos por pessoas, espetáculos, roupas, livros que consideramos “distintos”.

Aqui, a investigação de studium e punctum do retrato que se faz do personagem é o que vai possibilitar a escritura de uma biografia sua. O STUDIUM E SUA INDOLÊNCIA

66. BARTHES. A câmara clara, p. 28.

67. BARTHES. A câmara clara, p. 29.

Reconhecer o studium é fatalmente encontrar as intenções do fotógrafo, entrar em harmonia com elas, aprová-las, desaprová-las, mas sempre compreendê-las, discuti-las em mim mesmo, pois a cultura (com que tem a ver o studium) é um contrato feito entre criadores e consumidores. [...] Isso ocorre um pouco como se eu tivesse de ler na Fotografia os mitos do Fotógrafo, fraternizando com eles, sem acreditar inteiramente neles.69

Para Barthes, studium e punctum são perspectivas de apreciação que dizem da capacidade de uma foto despertar ou não o interesse do espectador; de tal foto “existir” ou não para ele.66 O studium, para Barthes, remete à vastidão; ele diz respeito à percepção ampla que o espectador tem da imagem. O que diz Barthes sobre o studium: “ele tem a extensão de um campo, que percebo com bastante familiaridade em função de meu saber, de minha cultura”.67 EM  TESE

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68. BARTHES. A câmara clara, p. 31.

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69. BARTHES. A câmara clara, p. 33.


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O studium é, de certa forma, indolente. Não desperta a paixão, mas o apreço; em vez de ferir, manifesta-se pacificamente. O punctum, por sua vez, surge justamente para quebrar o studium; contrariá-lo.

percepção, não me atravessa, nela não há punctum; não me punge verdadeiramente. Em outras palavras: a intensidade e a forma com que a foto desperta o interesse do espectador ajudam a dizer se nela há studium e punctum ou apenas o primeiro.

O punctum é um ponto da imagem – e, aqui, por analogia, um aspecto da biografia – que a extravasa de forma a despertar a atenção da recepção de forma aguda e pungente. Para Barthes, o punctum é uma espécie de ferida, de picada.

Muitas fotos, infelizmente, permanecem inertes diante do meu olhar. Mas mesmo entre as que têm alguma existência a meus olhos, a maioria provoca em mim apenas um interesse geral e, se assim posso dizer, polido: nelas, nenhum punctum: agradam-me ou desagradam-me sem me pungir.72

A PICADA DO PUNCTUM

70. BARTHES. A câmara clara, p. 31.

71. BARTHES. A câmara clara, p. 33.

Mas não é o espectador que vai buscar o punctum (tal como ele investe conscientemente sobre o studium): “é ele [o punctum] que parte da cena, como uma flecha, e vem me transpassar”.70 Nesse sentido, quando eu tomo uma fotografia nas mãos, eu busco apreciar dela o seu plano geral, e não ser ferido por algum detalhe seu. Se um detalhe desponta da imagem e me fere, isso não se dá em função de um prévio interesse meu em sua busca. O punctum, nesse sentido, é um acaso. Positivamente, Barthes vai dizer que “o punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere)”.71 O punctum é um acaso que fere.

Pense naquela biografia que, apesar de ter despertado o seu interesse durante a leitura, não te arrebatou, em nenhum momento, por nenhum aspecto (o detalhe) em particular. Esta, portanto, é uma biografia sem punctum. Pense agora naquele outro texto biográfico que, à revelia, lhe fez pensar na vida do personagem biografado por dias. Estou falando daquele texto que, em determinada passagem, te fez exclamar algo como “Puxa! Por essa eu não esperava!”. Esta é uma biografia que, além de studium, contém um punctum.

A foto que desperta o interesse é aquela que contém um punctum e nos faz encontrá-lo; que nos encontra como uma flechada. Se o interesse que a foto me desperta não fere a minha

O punctum dessa biografia é aquilo que te faz se emocionar; é aquilo que te afeta, que provoca uma catarse de seus próprios sentimentos por meio do texto. Seu punctum é esse aspecto que lhe toca de forma especial, atípica, pungente.

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O retrato-biografia que contém um punctum é perpassado pela paixão.

73. BARTHES. A câmara clara, p. 57.

Barthes sugere que esse punctum pode estar delimitado ou não, e que, a despeito disso, ele será sempre um suplemento: o punctum, diz Barthes, “é o que acrescento à foto e que todavia já está nela”.73 No sentido que Barthes lhe atribui, o punctum é, apesar de imanente, algo que só tem relevo a partir da mirada alheia, e não de forma autônoma à recepção. O punctum depende da recepção. Em Barthes, o punctum é aquilo que projeta a existência do que é retratado para além dos enquadramentos da foto. Aqui, por analogia, o punctum é o que projeta a existência do que é tratado na biografia para além de seus limites próprios de narrativa. Sobre isso, digo por meio do texto de Barthes:

74. BARTHES. A câmara clara, p. 57-58.

Diante de milhares de fotos, inclusive daquelas que possuem um bom studium, não sinto qualquer campo cego: tudo o que se passa no interior do enquadramento morre de maneira absoluta, uma vez ultrapassado esse enquadramento. [...] No entanto, a partir do momento em que há um punctum, cria-se (advinha-se) um campo cego [...]. O punctum é, portanto, uma espécie de extracampo sutil, como se a imagem lançasse o desejo para além daquilo que ela dá a ver.74

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Havendo punctum, há, na biografia, um extracampo sutil; havendo punctum, o “retrato” que a biografia faz do biografado lança o desejo para além daquilo que ela, a biografia, dá a ver. STUDIUM E PUNCTUM APLICADOS À BIOGRAFIA

A ideia deste ensaio é conceituar a ideia de uma biografia-biografema levando-se em consideração o paralelo que Barthes faz: “a Fotografia tem com a História a mesma relação que o biografema com a biografia”.75 Com esse seu argumento, Barthes possibilita aproximar, em metáfora, o biografema da fotografia. Assim como a fotografia é um recorte em História, o biografema é em biografia. O biografema, diz-se aqui, extrapolando Barthes, é um retrato. Por meio da perspectiva do studium, considerei, para a construção do biografema, em minha dissertação, o plano amplo (com alguma coisa de crônico, ainda que recortado a um específico acontecimento) do período em questão da vida de Fernando Sabino. Mobilizando o conceito do punctum, alcancei (ou melhor, fui alcançado por) aquilo que de seu biografema partiu da cena em minha direção de forma a me pungir, ferir, tantalizar. O studium, que é o plano amplo da fotografia – ou seja, o decorrer de toda a biografia, em si –, afeta o leitor medianamente. O punctum, que é um ponto específico que parte do

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meio do retrato em sua direção – ou seja, algo que, do meio de tantas palavras, sequestra a atenção –, o fere de morte. Ou de vida. O paradoxo do punctum é que, ao ferir de morte, ele vivifica. 76. BARTHES. A câmara clara, p. 53. 77. BARTHES. A câmara clara, p. 53.

78. BARTHES. A câmara clara, p. 56.

Para Barthes, “o studium está, em definitivo, sempre codificado”,76 ou seja, tem sua mensagem constituída segundo um código — portanto, é acessível à recepção. “O punctum não”;77 não necessariamente. O que Barthes sugere é que muitas vezes o efeito do punctum é “seguro, mas não é situável, não encontra seu signo, seu nome; é certeiro e no entanto aterrissa em uma zona vaga de mim mesmo; é agudo e sufocado, grita em silêncio”.78 O que Barthes quer dizer com isso é que o acesso ao punctum depende da recepção: é a própria recepção que, individualmente, o encontra (ou não) e lhe confere o sentido de sua existência. Efetivamente, o punctum é uma perspectiva de apreciação singular, que pode ser consciente ou inconsciente. Barthes também demarca essa questão importante: a existência do punctum independe de uma percepção consciente que o espectador venha a ter desse punctum. Com Barthes, descobrimos um espectador pungido, ferido, tantalizado por algo que ele vislumbra em um retrato, em uma vida. Perguntamos a esse espectador: “Mas o que é que tanto te toca nessa imagem? O que é que, desta vida, te toca tão profundamente a ponto de te deixar assim, como

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que ferido?”. Para Barthes, seria perfeitamente aceitável ouvirmos o seguinte em resposta: “Não sei! Não consigo identificar o que me punge, não consigo destacar o que me fere, sou incapaz de delimitar as características e dimensões disso que me tantaliza!” Para Barthes, importa é se o punctum fere ou não, e não se acreditamos ou não estarmos sendo feridos por um punctum. Cabe ainda dizer que, se o punctum é algo que salta do retrato na direção do espectador, a capacidade de um ponto em particular funcionar como punctum para certo espectador depende de uma íntima sintonia entre ele e aquilo que ele observa. Em outras palavras: aquilo que para mim pode despontar como um punctum, para você pode soar completamente insosso, integrando apenas o studium daquilo que observamos. O punctum, assim, não é universal. Ao contrário, costuma surgir embasado por uma referência pessoal, um contexto restrito. Já se disse aqui que o que ora desponta para um biógrafo como punctum pode em nada coincidir com aquilo que ao leitor vai ferir, pungir, tantalizar, de um mesmo tópico. Exemplifico. No livro A câmara clara, Barthes analisa uma série de fotografias de forma a nelas localizar studium e punctum. Em certo retrato, Barthes vai suspeitar que o punctum da imagem são uns sapatos de presilhas usados por uma

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79. BARTHES. A câmara clara, p. 56.

mulher. Contudo, depois de alguma reflexão, acaba chegando à conclusão que, para si, o punctum daquela imagem era, na verdade, um colar que a personagem trazia no pescoço, e não os sapatos.79 Barthes explica o motivo de aquele colar ser, para ele, em específico, o punctum da foto: tal colar era semelhante a um colar que o filósofo sempre vira sendo usado por uma pessoa de sua família por quem ele tinha afetuosa memória. É preciso ter em mente que o punctum tem certas características próprias, mas sua definição enquanto tal passa, em última instância, pelo crivo da recepção.

80. FOUCAULT. Microfísica do poder, p. 30.

Foucault ajuda a contextualizar a ideia de que o saber que aqui se constrói, por efetivo, é assumidamente perspectivo. Trata-se de um saber construído por um sujeito que “olha de um determinado ângulo, com o propósito deliberado de apreciar, de dizer sim ou não, de seguir todos os traços do veneno, de encontrar o melhor antídoto. Em vez de fingir um discreto aniquilamento diante do que ele olha, [...] é um olhar que sabe tanto de onde olha quanto o que olha”.80 Nesse sentido, esta perspectiva biográfica segue na contramão da intenção de se atingir o estatuto de verdade universal: aqui, a intenção é a de partir ao encontro de uma íntima verdade, que se dá na ciência do pesquisador de sua precariedade enquanto biógrafo. Como colocou Dominique Viart, EM  TESE

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numa biografia, mais do que a verdade de uma vida, o que é posto em questão é a arqueologia do próprio desejo de escritura e de, sobretudo, suas improbabilidades. Ao escrever sobre o outro, aquele que escreve estaria ao mesmo tempo atestando sua impossibilidade de lidar com a vida deste outro em si mesmo.81

O argumento de Dominique contextualiza o princípio desta metodologia biográfica: a impossibilidade do biógrafo de lidar com a vida de um outro enquanto alteridade. Positivamente, ao biografar Fernando Sabino eu acabei pondo em questão, basicamente, a arqueologia do meu desejo de escritura; meu páthos – e as impossibilidades dessa minha paixão. Pois esta é a razão condutora da metodologia biográfica que apresento aqui: o biógrafo como, por natureza, uma vítima da paixão. Em seu livro Estratégias biográficas: biografema com Barthes, Deleuze, Nietzsche e Henry Miller, Luciano Bedin da Costa – que fora coorientado por Dominique Viart em Lille, na França – distingue metodologicamente o ato de biografemar do ato de biografar, focando nas particularidades do primeiro método, em que pese elas nem sempre serem necessariamente antagônicas às particularidades da biografia tradicional. Nesse sentido, Luciano Bedin aponta o biografema como uma potência de vida que, ao mesmo tempo,

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81. COSTA. Estratégias biográficas, p. 11.


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82. COSTA. Estratégias biográficas, p. 12. 83. Aqui mesmo eu comentei que “o paradoxo do punctum é que, ao ferir de morte, ele vivifica”. Positivamente, esse é um paradoxo não só do punctum, mas do biografema, mesmo.

84. COSTA. Estratégias biográficas, p. 12. 85. COSTA. Estratégias biográficas, p. 12. 86. COSTA. Estratégias biográficas, p. 12.

87. COSTA. Estratégias biográficas, p. 45.

“inevitavelmente nos coloca diante de uma microexperiência de morte”.82 Faço minhas as suas palavras,83 de forma a dizer que, no biografema, a consciência histórica cede lugar à consistência biográfica. Ao invés de apegar-se à cronologia, historiografia, linearidade, memória, profundidade, causa, finalidade, contexto, intenção, influência, profundidade, e conjunto (palavras de ordem de uma consciência histórica), a consistência biográfica se vê enamorada de séries disjuntivas, fragmento, paradoxo, efeito, superfície, a-historicidade, acontecimento, esquecimento, do que é errante e fugidio. Ao lidar com isto que não se prende, o biografema inevitavelmente nos coloca diante de uma microexperiência de morte. De que forma, então, é possível capturar as inúmeras mortes em vida e as constrangidas vidas na morte?84

pautou um marcado critério de construção biográfica: a opção por fragmentos de texto, em vez daquelas tradicionais massas imensas (e não raro insossas) de palavras. “O biografema [...] não é avesso a biografia. Ele faz parte desta sendo-lhe ao mesmo tempo exterioridade”,88 diz Luciano Bedin. Trata-se de um tipo de biografia ao mesmo tempo em que é alheio à biografia, dadas as suas singularidades. Trata-se de um paradoxo. O biografema se “envereda também ali onde a vida parece mais escassa”,89 diz o pesquisador. Enveredando-se por lá, veja bem, ele descobre vida em abundância; a vida que fere e que, por isso, não raro, tende a ser obnubilada.

O biografema é um recurso sofisticado que serve de instrumento para uma abordagem biográfica que não se quer simplista. O biografema é sofisticado.

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89. COSTA. Estratégias biográficas, p. 16.

É esta a vida que me interessa. É esta a vida que este método biográfico se propõe perscrutar.

Luciano Bedin pergunta “de que forma, então, é possível capturar as inúmeras mortes em vida e as constrangidas vidas na morte?”.85 E diz ainda que, no biografema, “a consciência histórica cede lugar à consistência biográfica”.86 Ora, um método em que a consciência história cede lugar à consistência biográfica é como um convite à imaginação. Nesse sentido, pensei a consistência biográfica na medida de um apego “às séries disjuntivas, ao fragmento, ao paradoxo, ao efeito, à superfície, ao inusitado, ao a-histórico, ao acontecimento, ao esquecimento, ao expressável, ao que foge”.87 Essa reflexão BELO HORIZONTE

88. COSTA. Estratégias biográficas, p. 13.

*** Luciano Bedin da Costa afirma algo curioso em seu livro: “A escritura biografemática surgiu-me como tentativa de sustentar alguma forma provisória ao condenado a desaparecer, ao prestes a ser fuzilado pelos acontecimentos ditos importantes”.90 Com Bedin, posso afirmar que a escritura biografemática

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90. COSTA. Estratégias biográficas, p. 15.


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91. FOUCAULT. Microfísica do poder, p. 28. 92. BORGES. O historiador e seu personagem: algumas reflexões em torno da biografia, p. 2.

– e seus tantos deslocamentos que faço – surgiu-me, no que diz respeito à vida de Fernando Sabino, como tentativa de fazer aparecer o provisoriamente desaparecido: fuzilar os acontecimentos ditos corriqueiros com certa luz crítica ao lugar-comum; iluminar o entendimento fácil, rasteiro, jogando a luz justamente sobre o comprometimento de sua facilidade. Para mim (e para Luciano), o biografema parece ser uma forma de escapar ao destino historiográfico, este que se dá a partir de constantes disputas de força e poder, como comenta Foucault: “As forças que entram em jogo na história não obedecem nem a uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta”.91

BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira (Saraiva de bolso), 2012.

Vavy Pacheco Borges afirma que “a vida, na atual crise de valores, aparece como um valor inconfessável”.92 De fato, este é o maior entendimento deste (quase) método: o de que a vida, em seus aspectos mais complexos, é um valor. Pois continuemos falando sobre o que importa: continuemos falando sobre vidas.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão 3.0. Objetiva, 2009. LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

E escrevendo-as (bíos, graph), cientes de nossa tão bela precariedade.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 5ª edição, 2003.

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COSTA, Luciano Bedin da. Estratégias biográficas: biografema com Barthes, Deleuze, Nietzsche e Henry Miller. Porto Alegre: Sulina, 2011. FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: _____. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 6a edição, 1986.

NASCENTES, Antenor. Dicionário etimológico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: 1932.

SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. WATTS, Duncan J. Tudo é óbvio: desde que você saiba a resposta. Trad. Letícia Della Giacoma de França. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

BARTHES, Roland. Sade, Fourier e Loyola. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2005. EM  TESE

BORGES, Vavy Pacheco. O historiador e seu personagem: algumas reflexões em torno da biografia. Revista Horizontes. v. 19. Bragança Paulista: jan/dez. 2001, p. 1-10.

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RIBEIRO. Biografema, studium, punctum, fotografia: quase um método

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(COM) PARTILHAR CONCEITOS: BARTHES E A IDEOLOGIA

Pedro Henrique Trindade Kalil Auad*

* pedroauad@gmail.com Doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada e mestre em Teoria da Literatura pela Faculdade de Letras da UFMG.

RESUMO: Neste trabalho, estudo o uso do conceito “ideologia” por Roland Barthes ao longo de sua obra. Partindo de obras seminais do teórico francês, exploro as utilizações e conceptualizações, por vezes divergente, por vezes confluentes, desse termo. Com isso, pretendo mostrar que Barthes não só fez conviver em sua obra teóricos e escritores diversos, mas também teorias e suas percepções.

ABSTRACT: In this paper, I explore the concept of “ideology”, by Roland Barthes, throughout his work. Starting from seminal works of the French theorist, I investigate the uses and conceptualizations, sometimes divergent, sometimes confluent, of this term. With that, I want to show that not only did Barthes, in his work, make live together theorists and writers, but also theories and their perceptions.

PALAVRAS-CHAVE: Roland Barthes; ideologia; estruturalismo.

KEYWORDS: Roland Barthes; ideology; structuralism.


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1. BARTHES. Como viver juntos, p. 11.

Roland Barthes, em seus trabalhos, criou uma forma de conversação entre diferentes autores, como é possível perceber em seu belo Fragmentos de um discurso amoroso, surgindo, assim, uma espécie de espaço de convivência para que se crie um diálogo que seria mediado pelo crítico e teórico. Em Como viver juntos, conjunto de anotações para suas aulas no Collège de France, esses diálogos, conversações, são transmutados na capacidade de convívio, na ousadia de se “viver junto”, inclusive lamentando a não-vivência que poderia ter sido incrível: “posso dizer, sem mentir, que Marx, Mallarmé, Nietzsche e Freud viveram vinte e sete anos juntos. Ainda mais, teria sido possível reuni-los em alguma cidade da Suíça em 1876, por exemplo, e eles teriam podido – último índice do Viver-Junto - ‘conversar’”.1 Se toda a teoria é também uma metateoria, como afirma o próprio teórico, pode-se pensar que ao passo que estuda grupos, sociedades, etc., ele também pensa sobre seu próprio ato teórico. Barthes, por sua vez, não só criou esse espaço de convivência entre autores, como também criou espaço para que conceitos pudessem coexistir, fazendo com que um conceito possa “viver junto” com suas múltiplas possibilidades. Este trabalho irá se direcionar nesse sentido, pensando em como Barthes fez coexistir, ao longo de sua obra, concepções por vezes opostas do conceito de ideologia. Utilizaremos, para tal empreitada, três textos do autor: O grau zero da escrita, “O que é a crítica” e “O efeito de real”. Porém, em vez de adentrar diretamente nos textos, gostaria de expor aqui um lado pouco dito do estruturalismo.

Como sabido, a maior influência que se exalta do estruturalismo francês foi a linguística. A importância dessa ciência foi de tal forma determinante que as reviravoltas teóricas daquela época foram denominadas como “virada linguística”. Essa virada aconteceu ao introduzirem preceitos dessa disciplina dentro das ciências humanas, isto é, a linguística teria servido como base teórica e metodológica para vários campos de estudo, incluindo aí a literatura, a antropologia, a sociologia, os estudos do cinema, a psicanálise, entre outros. Entretanto, não foi somente a linguística que serviu como inspiração para o estruturalismo, ao menos quando destacamos dois dos seus maiores representantes: Claude LéviStrauss, tido como fundador da antropologia estrutural que viria a influenciar boa parte do pensamento francês e do mundo na época, e Rolland Barthes, o mais iminente teórico literário do período. Destaco aqui que o marxismo, de certa forma, é também uma influência determinante para o estruturalismo, mesmo recebendo ataques intensos por parte de marxistas, como Carlos Nelson Coutinho, que dedicou um livro inteiro à crítica a essa vertente teórica, intitulado O estruturalismo e a miséria de razão, em que entende, de forma um tanto polêmica e parcial, que obra de Lévi-Strauss “empobrece a racionalidade, limitando-a às regras formais, manipulatórias, de ‘decomposição’ e ‘combinação’”2 e a obra barthesiana a uma “defesa dessa arte reduzida a puro jogo técnico”.3

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2. COUTINHO. O estruturalismo e a miséria da razão, p. 111.

3. COUTINHO. O estruturalismo e a miséria da razão, p. 152.


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4. Cf. GOLDMAN. Lévi-Strauss, a ciência e as outras coisas.

5. LÉVI-STRAUSS. Antropologia estrutural, p. 357.

Por outro lado, vê-se que o trabalho de Lévi-Strauss bebe em diversas fontes, como Marcio Goldman4 afirma: o antropólogo francês teve ao menos três grandes paixões juvenis que refletiram ao longo de toda sua obra: a geologia, o marxismo e a psicologia. Essas paixões indicariam, inicialmente, a grande questão que Lévi-Strauss tentaria responder ao longo de sua longa carreira: explicar aquilo que, na aparência, seria ininteligível. Essa influência inicial, entretanto, permaneceu e Lévi-Strauss, o “fundador” do estruturalismo antropológico, reclamava em algumas ocasiões certa ligação com o pensamento de Karl Marx e Friederich Engels. Não quero me alongar muito nesse sentido, mas gostaria de citar, de passagem, ao menos duas reivindicações de herança marxista que o antropólogo francês realiza no posfácio ao capítulo XV, A noção de estrutura em etnologia, de seu livro Antropologia estrutural. No conceito-chave da antropologia estrutural – estrutura – Lévi-Strauss percebe que não há uma harmonia “original” entre os diversos níveis de uma dada estrutura, reconhecendo que aí pode haver contradição e essa contradição não as exclui de pertencer a um mesmo grupo. A esse pensamento, ele identifica o materialismo histórico, “quando afirma que é sempre possível passar, por transformação, da estrutura econômica ou daquela das relações sociais para a estrutura do direito, da arte, ou da religião”5 já que “essas transformações são dialéticas e, em alguns casos, enfrenta[m] dificuldades

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para encontrar a transformação indispensável que parecia inicialmente refratária à análise”.6 Dessa forma, o autor de Tristes trópicos afirma que a relação entre as mudanças na estrutura é, de certa forma, parecida com a dialética. Em outro trecho do mesmo texto, Lévi-Strauss acredita que o seu conceito de história se aproxima daquele de Marx e Engels. Defendendo-se contra um ataque de Rodinson – um marxista –, ele afirma que sua concepção de história “se encontra muitíssimo mais próxima do pensamento de Marx do que a sua [de Rodinson]”.7 O antropólogo francês ressalta que, para Marx e Engels, as sociedades primitivas são regidas por laços de consanguinidade – e não por laços econômicos. Esses laços são traduzidos pelo estruturalismo com o termo de “estrutura de parentesco”. Dessa forma, as sociedades regidas por laços de consanguinidade ou por uma estrutura de parentesco poderiam se perpetuar indefinidamente. Afirma, pois, Lévi-Strauss: tal concepção não contradiz em nada a célebre fórmula do Manifesto comunista: ‘a história de todas as sociedades conhecidas até hoje é a história da luta de classes’. Na linha da filosofia do Estado de Hegel, essa fórmula não significa que a luta de classe seja coexistiva à humanidade, mas que as noções de história e de sociedade só podem ser aplicadas, com o sentido pleno que lhes dá Marx, a partir do momento em que surge a luta de classes.8

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6. LÉVI-STRAUSS. Antropologia estrutural, p. 357.

7. LÉVI-STRAUSS. Antropologia estrutural, p. 360.

8. LÉVI-STRAUSS. Antropologia estrutural, p. 360.


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O materialismo histórico, nesse sentido, não seria incompatível com a ideia de história que Lévi-Strauss emprega em seus livros, seria, antes, concordante. As sociedades ditas primitivas estariam somente “de fora” da história e da sociedade no sentido pleno que Marx elaborou. 9. LÉVI-STRAUSS. Tristes trópicos, p. 55.

10. Cf. PERRONE-MOISÉS. Apresentação, p. 7.

Além de todo o exposto, Lévi-Strauss9 também afirmava em Tristes Trópicos que “raras vezes dedico-me a enfrentar um problema de sociologia e etnologia sem previamente revigorar minha reflexão com algumas páginas do 18 de brumário de Luís Napoleão ou da Crítica da economia política”, obras chaves de Marx e Engels. Enfim, acho que fica clara certa influência marxista nesse precursor do estruturalismo.

Farei, logo a seguir, uma breve apreciação da aparição do conceito de ideologia ao longo de parte da obra de Barthes e mais adiante discutirei propriamente essas divergências/convergências. É interessante notar como esse termo vai ganhando contornos diversos em textos diferentes. Barthes, contudo, não se preocupa muito em conceitualizar o que chama por ideologia, mas podemos inferir certa noção pela aparição e no contexto em que aprecem em seus textos. Despreocupado que parece em definir sua ideia de ideologia, talvez o teórico francês tenha mesmo a seu lado a tal “vertigem do descentramento”, tal como cunhou Leyla Perrone-Moysés sobre a obra de Barthes, para “inventar novas relações”11 entre textos, teorias e teóricos.

Nos dirigindo agora a Barthes, pode-se afirmar que este não se destacou por entrar em polêmicas (com) marxistas, mas, sim, criou um ambiente teórico em que um conceito pudesse transitar e variar de sentidos: a ideologia. Vejamos essas variações ao longo dos textos supracitados. Em seu primeiro livro, O grau zero da escrita, o conceito seria quase como um guia para seus estudos. O autor, antes de se tornar a referência do estruturalismo literário francês, foi tomado como um autor marxista,10 que, adentrando o desenvolvimento do estruturalismo antropológico, readaptou-se a uma nova perspectiva crítica. Digo isso para afirmar que o marxismo – e também o existencialismo – não são estranhos ao estruturalismo.

Em O grau zero da escrita esse crítico literário utiliza diversas vezes o termo ideologia: “É que a ideologia burguesa perdurou, isenta de fissura, até 1848, sem o mínimo de abalo, na passagem de uma revolução que dava à burguesia o poder político e social”,12 ou nessa outra passagem, “mas, dessa vez, o instrumento formal não está mais a serviço de uma ideologia triunfante; é o modo de uma situação nova do escritor”,13 entre outros trechos ao longo do texto. Ideologia, aqui, é utilizada para indicar o pensamento dominante da sociedade – nesse caso, o burguês – e ele concebe o escritor como aquele que inicialmente seria a figura contraideológica, mas que, por características intrínsecas ao capitalismo, acabaria sendo engolido e acolhido pela história literária, perdendo o seu potencial revolucionário.

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11. PERRONE-MOISÉS. Texto, crítica, escritura, p. 30.

12. BARTHES. O grau zero da escrita, p. 52.

13. BARTHES. O grau zero da escrita, p. 69.


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É interessante notar que Barthes ao passo que coloca o escritor como o condutor de ideias contraideológicas, ele mesmo pode não perceber estar inserido em um contexto totalmente ideológico, que o aproxima de uma condição de alienação; “cada escritor que nasce abre em si o processo da Literatura; mas se ele a condena, concede-lhe sempre um prazo que a Literatura utiliza para reconquistá-lo; por mais que crie uma linguagem livre, devolvem-na a ele fabricada, pois o luxo nunca é inocente”. É aqui, pois, que emerge uma primeira distinção importante para Barthes, entre o escritor e a escrita (posteriormente, ainda, podemos incluir a ideia de escritura). O escritor poderia ser “engolido” pela ideologia dominante, mas não necessariamente a escrita.

14. BARTHES. O que é a crítica, p. 157.

Já em sua fase estruturalista, como no texto “O que é a crítica”, Barthes irá entender ideologia como uma deformação “científica” do real, ou seja, quando um determinado grupo tenta chegar à realidade de um objeto – no caso, a literatura – sendo eclipsado por uma ideologia que ofuscaria os contornos exatos desse objeto. Afirma Barthes que na crítica francesa, em função de uma “atualidade ideológica”, os modelos teóricos são importantes porque “dão sem dúvida ao praticante a certeza de participar ao mesmo tempo de um combate, de uma história e de uma totalidade”,14 sendo que o lansonismo seria produto definidor de uma crítica absorvida em ideologia, que abandona a real ciência para não se

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contentar em “exigir a aplicação das regras objetivas de toda pesquisa científica, ele [o lansonismo] implica convicções gerais sobre o homem, a história, a literatura, as relações do autor e da obra”.15 Por fim, Barthes chega a afirmar que uma escolha ideológica não constitui o ser da crítica, e que a verdade não é sua sanção. A crítica é outra coisa diversa de falar certo em nome de princípios verdadeiros. Portanto o pecado maior em crítica, não é a ideologia, mas o silêncio com o qual ela é recoberta.16

Enfim, a crítica poderia superar os problemas de obliteração da visão em relação a um texto literário. Um estudo científico mais sistemático e metodológico deveria, para Barthes, desamarrar o estudo da literatura de uma estrutura ideológica, como se afirmasse, por fim, que existe uma forte ideologia marxista, ponto que Louis Althusser, um estruturalista de outra área, iria desenvolver. De qualquer forma, é imprescindível perceber neste trecho a importância que Barthes dará à ideologia, criticando a suposta imparcialidade ideológica que algumas teorias e teóricos tentam sustentar. A crítica ideológica, nesse sentido, descortina não só a obliteração do real como também desarticula uma teoria que se pretende imparcial quando, na verdade, apresenta, sim, traços ideológicos, mesmo quando não explícitos.

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15. BARTHES. O que é a crítica, p. 159.

16. BARTHES. O que é a crítica, p. 160.


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O último ponto que gostaria de abordar concernente a Barthes e à ideologia está presente em seu texto “O efeito de real”, no qual aborda o Realismo a partir da obra de Flaubert. É nesse texto que uma complicação marxista pode ser encontrada, já que ele argumenta que, discursivamente, um texto não poderia “alcançar” o real. Argumenta o autor que

17. BARTHES. O efeito de real, p. 41.

a ‘representação’ pura ou simples do ‘real’, a relação nua ‘do que é’ (ou foi) aparece assim como uma resistência ao sentido; esta resistência confirma a grande oposição mítica do vivido (ou do vivente) e o inteligível; basta lembrar que, na ideologia de nosso tempo, a referência obsessiva ao ‘concreto’ (...) está sempre armada como uma máquina de guerra contra o sentido, como se, por uma exclusão de direito, o que vive não pudesse significar – e reciprocamente.17

E ele ainda afirma certa obsessão com o real na época do Realismo (fotografias, museus, a escrita da história), e que “Tudo isto diz que o ‘real’ é suposto bastar-se a si mesmo, que é bastante forte para desmentir qualquer ideia de ‘função’, que sua enunciação não tem nenhuma necessidade de ser integrada numa estrutura e que o ter-estado-lá das coisas é um princípio suficiente da palavra”.18 Sua problematização do Realismo – “retirar” o “real” do Realismo – termina por concluir com a noção de efeito de real, “fundamento desse EM  TESE

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inverossímil inconfessado que forma a estética de todas as obras correntes da modernidade”.19

19. BARTHES. O efeito de real, p. 43.

Esse efeito de real denota aqui uma outra perplexidade ideológica: sem uma probabilidade de se apreender o real como tal, a linguagem literária – e, de certa forma, toda a linguagem - aparece como simulação. Se não é mais o real que pode ser apreendido pela linguagem, sendo fundamento de um inverossímil, a que (ou a quem) a crítica ideológica se dirige? O discurso sobre a ideologia em Barthes, nesse sentido, parece ser uma denúncia de obliteração do real, ao mesmo tempo em que afirma que o real não pode ser apreendido: é mais uma denúncia das ideias dominantes, mas não com objetivo de revelar a verdade, mas de revelar que essa verdade é, apenas, um efeito. A função da crítica e da Teoria em Barthes passa a ser, então, contra a simulação ou dissimulação. É nesse caso que sua obsessão com Madame Bovary parece mais intrigante. É interessante notar qual as variações que “ideologia” adquire na obra de Barthes e que aqui colhemos rapidamente em três de seus textos. Esse teórico francês, já dito, inspirou-se enormemente na antropologia estrutural para desenvolver – junto com Todorov – várias das premissas básicas do estruturalismo na literatura. Mas independente da herança marxista que poderia ter vindo a reboque pela inspiração antropológica, Barthes utilizou bastante da ideia AUAD. (Com) Partilhar conceitos: Barthes e a ideologia

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18. BARTHES. O efeito de real, p. 42.


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20. Cf. KONDER. A questão da ideologia, p. 10.

21. KONDER. A questão da ideologia, p. 10. 22. KONDER. A questão da ideologia, p. 10.

23. VOVELLE. Ideologias e mentalidades, p. 14. 24. Hall (2011, p. 252) afirma que “assim que nos afastamos de uma leitura religiosa ou doutrinária de Marx, as aberturas entre os vários usos clássicos do termo e suas mais recentes elaborações não são tão fechadas como nos fazem crer as atuais polêmicas teoricistas”.

de ideologia, tanto de uma forma muito mais próxima dos marxistas – ou conceito “forte”, como definido por Noberto Bobbio –,20 como de um significado “fraco”. Por significado fraco, entende-se “aquele em que o termo designa sistemas de crenças políticas, conjunto de ideias e valores cuja função é a de orientar comportamentos coletivos relativos à ordem pública”.21 O conceito forte, por sua vez, seria o que se refere, “desde Marx, a uma distorção no conhecimento”.22 Essa separação, entretanto, não é unânime: Michel Vovelle, por exemplo, entende que o termo remete a uma herança diversa e que o conceito “está longe de ser universalmente aceito”.23 Stuart Hall também irá argumentar, contra a separação da noção de “forte” e “fraco”, em O problema da ideologia.24 Parece-me claro também que Marx e Engels desenvolverão o termo tanto em uma direção quanto em outra, mesmo em uma obra cujo significado forte parece estar mais em voga, A ideologia alemã. Ali, a predominância é do uso forte do termo, já que se tratava de um discurso contra o idealismo, mas, por outro lado, nem sempre o termo ideologia era empregado para denunciar distorções no conhecimento empreendidas por uma “ciência”, ou seja, as ideias falsas. Mas, mesmo assim, Marx e Engels25 afirmam que o pensamento dominante – que justificaria certas formas de dominação – é o que define o pensamento de determinada época e modo de produção. Dessa forma, é o conceito fraco

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que aparece como substância para o conceito forte, já que é o sistema dominante de ideias que forneceria a distorção no conhecimento das pessoas. Nesse sentido, em O grau zero da escrita, Barthes irá, sobremaneira, utilizar o termo com o sentido “fraco”, indicando, ao longo do texto, que o problema ideológico ali seria um problema que parte do pensamento hegemônico – para retomar um termo de Gramsci – para indicar como a literatura responde, ou mesmo combate, esse pensamento. A literatura não necessariamente estaria disposta a enfrentar a “falsificação da realidade”, mas seria, de certa forma, uma arma contraideológica, mas que correria o risco de ser absorvida e, daí, começar a pertencer a essa ideologia dominante. Em “O que é a crítica”, Barthes se volta para a questão da distorção do real a partir de uma premissa que seria supostamente científica, algo que o aproximaria de uma corrente mais tradicional marxista que sequestrou - para usar o termo que Stuart Hall – para dotá-lo desse significado. A função da crítica, nesse sentido, seria a de fazer com que esse real fosse buscado, exposto e entendido. Barthes, pois, transita entre O grau zero da escrita e “O que é a crítica”, de uso do conceito dito “fraco” para um dito “forte”. O uso dúbio ou variado do termo por Barthes reflete, ainda, outra faceta: em sua fase chamada por alguns de “marxista”, utiliza esse conceito “fraco”; e em sua fase estruturalista, o conceito “forte”, criando, AUAD. (Com) Partilhar conceitos: Barthes e a ideologia

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25. Cf. MARX & ENGELS. A ideologia alemã, p. 48-54.


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assim, uma confusão entre as fronteiras que delimitaria o uso tradicional por marxistas e o uso do que seria o “senso comum” como quis separar tão claramente Noberto Bobbio, exposto acima. Essa confusão de fronteiras, pois, é escancarada quando do texto “O efeito de real”. Barthes, nesse texto, conjuga, sem discernir, as duas variantes do termo ideologia, ao mesmo tempo as anulando e as retificando: por um lado articula que o “real” não é mais do que um efeito, por outro ataca a ideologia que se pretende como a mais real, isto é, uma ideologia burguesa que tem no realismo sua premência. Barthes, dessa forma, faz com que as variantes do conceito possam “viver junto”, coabitar, num mesmo texto, com seus múltiplos sentidos, com seus múltiplos significados, centralizando e, ao mesmo tempo, descentralizando o significado por trás desse conceito tão cheio de (re)significações.

de ideologia denotava os pensamentos gerais de uma determinada época, posteriormente ele veio a determinar aquilo que estava obscurecido por alguma forma de conhecimento e, posteriormente, ainda, essa distinção não pode mais ser concretamente aceita. Se, inicialmente, o estudo da ideologia teria como função determinar as pulsões contraideológicas, isto é, as pulsões contra o pensamento dominante, posteriormente, para Barthes, o estudo da ideologia passa a ser contraideológico em um outro sentido: contra toda a forma de poder que quer instaurar uma, e só uma, verdade. É mais ou menos isso que Barthes afirma em uma entrevista: Eu não sou filósofo, mas é certo que, por exemplo, fui levado a militar teoricamente contra o que se chama monologismo, ou seja, o reino, a dominação de uma linguagem única, de uma interpretação única do sentido, contra as filosofias do sentido único e imposto; sempre militei com o máximo de vigor que pude a favor da pluralidade das interpretações, da abertura absoluta do sentido, se necessário das isenções de sentido, das supressões, das anulações de sentido.26

Portanto, é possível perceber que o uso do conceito de ideologia, por Barthes, é bastante diverso e faz com que, como sonhou em Como viver juntos, que os mais diversos e divergentes teóricos possam ocupar a mesma mesa, seguindo linhas e espirais que unam e atam diversos espaços e tempos. Em suma, sua obra não é uma forma de endurecer e calcificar conceitos e teorias (e teóricos), mas uma obra de transição e comunhão. Nesse sentido, há de se tornar atendo às nuances ao longo de sua obra. Se inicialmente o conceito

Ao conseguir articular um mesmo conceito acolhendo e criando para ele uma multiplicidade de significados, Barthes, pois, constrói um discurso que se quer pluriforme e não uniforme, isto é, um discurso que se quer contraideológico, mas não num sentido de busca pelo poder, de conquista, mas de

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26. BARTHES. Inéditos, p. 165.


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recusa do poder. É nessa segunda nuança, nessa luta contraideológica que questiona a unicidade da verdade, que a clássica frase de Aula parece ainda mais arrebatadora: “nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor”.27

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DAS OBSCENIDADES AMOROSAS

Rafael Lovisi Prado*

* rafa_lovisi@yahoo.com.br Mestre em Teoria da Literatura e doutorando em Literatura Comparada pela UFMG.

RESUMO: Este trabalho consiste numa abordagem do livro Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes, na qual se busca retomar e ampliar a tese do autor sobre a obscenidade do discurso amoroso, no sentido de pensá-la tendo em vista três aspectos específicos pertencentes ao mesmo: primeiramente, explora-se sua forma, o fragmento, como uma tentativa de se subverter o continuum das narrativas lineares, o pensamento do Um e suas hipóstases; em segundo, ocupa-se de sua dimensão trágica – o discurso amoroso é tomado, à luz da filosofia de Nietzsche, como uma alternativa à racionalidade teórica por tornar possível um saber baseado nos instintos artísticos; e, por último, investiga-se a enunciação amorosa através daquilo que Félix Guattari denominou de “produção de singularidades”, ou seja, as maneiras através das quais podemos produzir modos de subjetividade (de existência) que escapem aos processos de subjetivação serializados do capitalismo contemporâneo.

RÉSUMÉ: Ce travail a pour but um abordage de l’œuvre de Roland Barthes, Fragments d’un discours amoureux, à partir d’une révision et d’un élargissement de la thèse de l’auteur sur l’obscénité du discours amoureux. Dans ce sens, trois aspects spécifiques au concept d’obscénité seront privilégiés : premièrement, sa forme fragmentaire – l’utilisation du fragment comme une tentative de subversion du continuum propre aux récits linéaires, au concept de l’Un et ses hypostases ; ensuite, sa dimension tragique – le discours amoureux est considéré, à la lumière de la philosophie de Nietzsche, comme une alternative à la rationalité théorique, car il crée la possibilité d’un savoir appuyé sur les instincts artistiques ; enfin, l’énonciation amoureuse vue sous l’angle de ce que Félix Guattari désigne comme « production de singularités », autrement dit, la façon dont sont produits les modes de subjectivité (d’existence) qui échappent aux processus de subjectivation en série propres au capitalisme contemporain.

PALAVRAS-CHAVE: Discurso amoroso; Roland Barthes; obscenidade; fragmento; trágico; singularidade.

MOTS-CLÉS: Discours amoureux; Roland Barthes; obscénité; fragment; tragique; singularité.


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Mas é sempre com mundos que fazemos amor. Deleuze e Guattari

1. BARTHES. O grão da voz, p. 395.

Semiólogo, ensaísta, crítico literário, escritor..., a exemplo de sua obra, Roland Barthes, um dos pensadores franceses de maior destaque no cenário intelectual do século XX, não se deixa facilmente enfeixar por rótulos. Imerso nos estudos da linguagem, seja devastando mitos e signos de nosso tempo, seja relendo autores clássicos da literatura ocidental tais como Balzac, Marquês de Sade, Camus, entre outros, teve a relevância e acuidade de seus textos destacadas desde os primeiros trabalhos, haja vista o seminal O grau zero da escrita, de 1953. Trilhando um caminho marcado por deslocamentos conceituais e temáticos, em 1977 Barthes afirma derradeiramente sua resistência contra as variadas formas da gregariedade e da estereotipia dos saberes ao escrever os Fragmentos de um discurso amoroso, o que podemos vislumbrar através de suas próprias palavras em uma entrevista realizada a propósito da publicação deste: “não me situo absolutamente como alguém que tenta alcançar originalidade, mas como alguém que tenta sempre dar uma voz a certa marginalidade”.1

de um dos temas mais recorrentes da literatura desde seus primeiros registros? Qual a relação entre o amor e essa certa marginalidade? Sabemos que o amor, em suas múltiplas facetas produzidas de acordo com a episteme de cada espaço histórico, tornou-se mesmo um clichê por sua demasiada exploração pelas diferentes formas de composição artísticas e teóricas. Porém, por meio daquilo que Barthes apresenta-nos em seu livro como uma Reviravolta Histórica (refletindo sobre as condições nas quais se encontrava o sentimento amoroso naqueles anos), o velho tema passava a carecer de um novo tratamento: “não é mais o sexual que é indecente, é o sentimental – censurado em nome daquilo que não passa, no fundo, de uma outra moral”.2

Através desta fala, começamos também a desvelar o inaudito dessa proposta barthesiana; a princípio podemos nos questionar: qual desvio à norma possuiria um texto que trata

Desta maneira, seguindo o lastro de tal proposição, de acordo com o autor, a necessidade da escrita desse livro fundou-se na seguinte proposição: “o discurso amoroso é hoje de uma extrema solidão [...] é completamente relegado pelas linguagens existentes, ou ignorado, ou depreciado ou zombado por elas, cortado não apenas do poder, mas também de seus mecanismos (ciência, saberes, artes)”.3 Nesse momento descrito, uma espécie de ressaca da revolução sexual dos anos de 1960, Barthes apontava para a clandestinidade de um discurso que, lançado à deriva, não era assumido ou sustentado por nenhuma parte da cultura; concebido por ele como pertencente ao que se chama de “amor-paixão”

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2. BARTHES. Fragmentos de um discurso amoroso, p. 271.

3. BARTHES. Fragmentos de um discurso amoroso, p. XV.


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4. BARTHES. Fragmentos de um discurso amoroso, p. 269 (grifo meu).

(enunciado por um sujeito amoroso), o discurso amoroso encontrava assim sua obscenidade em relação aos discursos preponderantes, revelando a face de um pensamento trágico-singular defronte à supremacia teórica de então: “Desacreditada pela opinião moderna, a sentimentalidade do amor deve ser assumida pelo sujeito amoroso como uma transgressão forte, que o deixa sozinho e exposto; por uma reviravolta de valores, é justamente essa sentimentalidade que constitui hoje o obsceno do amor”.4 Isto posto, o termo obsceno (ou mesmo sua derivação: obscenidade), com o qual Barthes qualifica o discurso amoroso devido a sua posição perante os discursos hegemônicos, faz-se aqui como ponto de interseção primordial entre os três principais aspectos que serão tratados doravante, quais sejam, o fragmento, o trágico e o singular. Frequentemente, atribui-se à palavra obsceno uma conotação meramente sexual, mormente pejorativa. No entanto, retomando sua derivação etimológica, é possível apreendê-la também como tudo aquilo que fere, desorganiza ou subverte uma forma, uma ordem discursiva ou um modo de subjetivação dominante: em suma, tudo que deveria ficar fora de cena, oculto, atrás das cortinas. Ao observamos as transformações e os diferentes avatares pelos quais passou a ideia de amor ao longo dos séculos, percebe-se que o aspecto obsceno pertencente ao sentimento amoroso insurgiu também em outros espaços-tempos,

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avultando no mito de sua própria origem tal como é descrito no Banquete, de Platão. Aristófanes, personagem integrante do banquete, relata-nos a existência de seres dotados de máxima completude, que possuíam quatro penas, quatro braços e ambos os sexos, a saber, os andróginos. Por serem poderosos e representarem grande perigo aos deuses, Zeus decidiu parti-los em duas partes. Com isso, o movimento que cada uma das partes realizava em direção à outra, em busca da união anterior, dava início ao amor, proclamando-se através deste uma terrível afronta aos desígnios do senhor do Olimpo. Já em A dupla chama: amor e erotismo, Octavio Paz, ao analisar as relações amorosas existentes na Idade Média (que tinham como manto a moral cristã), destaca que, para os “desviados” adeptos do amor cortês, o casamento era tido como injusto, pois escravizava a mulher, enquanto o amor fora do mesmo era sagrado e digno espiritualmente. Segundo os dogmas da igreja, a união carnal era condenada mesmo dentro do casamento, caso não tivesse como finalidade declarada a procriação. Por outro lado, o amante cortês era indiferente a este fim, e seus ritos exaltavam o prazer físico ostensivamente. Além do que tangia à moral dominante, essa modalidade amorosa promovia outra subversão no que diz respeito à posição ocupada por homens e mulheres. A supremacia masculina era confrontada à elevação da mulher através dos cantos enamorados: assim, ela passava de súdita à senhora. Para Paz, “a potência subversiva da paixão PRADO. Das obscenidades amorosas

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5. PAZ. A dupla chama: amor e erotismo, p. 109.

6. BARTHES. O grão da voz, p. 409. No que diz respeito à relação de Barthes com a psicanálise ao longo de sua obra, sobretudo no que tange às formulações de Lacan, devemos ressaltar o constante movimento de aproximação e distanciamento que o autor de Fragmentos realizou perante as mesmas. No entanto, a despeito das várias passagens em que as elaborações psicanalíticas se fazem presentes no livro em questão, como podemos notar na citação acima, neste momento, Barthes aponta sérias ressalvas àquelas, tendo em vista, principalmente, a supremacia imposta pelo “Simbólico”.

amorosa se revela no amor cortês, que é uma dupla violação do código feudal: a dama deve ser casada e seu apaixonado, o trovador, de uma categoria inferior”.5 Na esteira do estreito contato que pode haver entre o discurso amoroso e o solapamento de uma ordem vigente, voltemos ao argumento barthesiano que sintetiza a motivação da escrita do livro tal como a expomos acima: “Mas há que se dizer que as maiores depreciações de que padece o amor são as impostas pelas “linguagens teóricas”. Ou elas não falam absolutamente a respeito, como a linguagem política, a linguagem marxista, ou então falam com fineza, mas de maneira depreciativa, como a psicanálise”.6 No crepúsculo dos anos de 1970, Barthes elucidava no discurso amoroso uma obscenidade ímpar, isto é, aquilo que deveria ser posto fora de cena em função dos valores morais e científicos correntes não era mais o discurso sexual (à maneira do que teria ocorrido na Era Vitoriana, como entendem muitos historiadores), mas sim a sentimentalidade do discurso amoroso, marginalizada, potencialmente singular como já havia sido outrora. Contudo, ao retomarmos essa “tese” barthesiana, no sentido de desdobrar algumas de suas possibilidades imanentes, penso que para além dos contornos expostos pelos trechos citados, a força obscena de tal discurso se alojaria em três aspectos específicos que lhe pertencem: em sua forma – o fragmento enquanto desconstrução das narrativas

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linear-cartesianas; em sua dimensão trágica – o discurso amoroso, à maneira nietzscheana, como uma alternativa à racionalidade teórica por retomar o caráter enigmático e dilacerante da vida inerente ao mundo trágico grego; e, por fim, a enunciação amorosa figurando-se próxima àquilo que Félix Guattari denominou de produção de singularidades, ou seja, as maneiras através das quais podemos produzir modos de existência (de enunciação) que escapem aos processos de subjetivação serializados e modelizadores do atual capitalismo. O FRAGMENTO, O TRÁGICO E O SINGULAR

Em um encontro realizado em julho de 1977 para a discussão em torno de pontos diversos de sua obra (publicado depois sob autoria de Robbe-Grillet),7 Barthes, estando presente, disse receber constantemente as mesmas perguntas nas entrevistas que concedia: o senhor ainda vai um dia escrever romance? Agora que o senhor se aproxima progressivamente das formas romanescas, agora que o tema romanesco surge explicitamente no que escreve, não chegou o momento de escrever um romance? Se posicionado sobre o assunto, Barthes dizia ter muita vontade de escrever um romance, sobretudo quando lia um que lhe agradava (tinha vontade de fazer o mesmo), mas acreditava que, até o momento, tinha resistido “a certas operações

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7. ROBBE-GRILLET. Por que amo Barthes, 1995.


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8. BARTHES apud ROBBE-GRILLET. Por que amo Barthes, p. 24.

típicas do romance. Por exemplo, a camada sedimentar, o contínuo”; “poder-se-ia escrever um romance com aforismos, com fragmentos? Em que condições? O próprio ser do romance não é um certo contínuo?”.8 Estas são perguntas que o próprio autor se fazia com relação às formas romanescas ou, talvez, possivelmente, sobre o lugar ocupado por seu livro recém-publicado (essa problemática girava em torno do lançamento dos Fragmentos). Porém, a própria concepção do que seria o gênero romance foi notoriamente transmutada pelas narrativas híbridas produzidas, sobretudo, ao longo de todo o século XX. Sendo assim, não nos cabe aqui o afã da classificação, ou mesmo a discussão sobre a adequação ou não dos Fragmentos a um determinado gênero. O que nos interessa é o caráter obsceno do fragmento perante o contínuo das narrativas, ou mesmo das dissertações. Ora, a preferência pela forma fragmentária de composição encarna justamente uma espécie de hesitação que, de certa maneira, não só questiona os gêneros existentes, mas também se deixa questionar. Decerto, a escrita por fragmentos, que visa espalhar e desconstruir os centros, almeja o não acabamento do texto: os fragmentos são figuras de interrupção da ordem, de curto circuito nas formas discursivas bem encadeadas, que desmoronam os gêneros e os fins (teleologia).

situa não nos pedaços de conteúdo que vão aparecer aqui e ali, mas pelo contrário no próprio fato do deslizamento”.9 Ainda com relação à escolha por uma escrita fragmentada (deslizante), na apresentação do discurso amoroso Barthes fala sobrem os motivos para não se trabalhar em um registro narrativo: para ele, é precisamente a “história de amor” (encontro, trama repleta de obstáculos e desfecho) que está submetida à doxa e às ciências, estas que querem reduzir a força do imaginário amoroso a uma crise “da qual é preciso curar-se”.10 O que presenciamos é a convicção de Barthes quanto às implicações da narrativa amorosa bem construída, com um início, um fim e uma crise no meio, quer dizer, ela seria a maneira que a cultura ocidental oferece ao enamorado para se reajustar de algum modo aos bons usos da linguagem (o Outro social) através da construção de uma narrativa que o acolhe e o recupera de sua obscenidade. Entretanto, “ele está em outra coisa que se parece muito com a loucura”,11 visto que produz blocos de palavras, utilizando e acumulando “pacotes de frases” que nada garantem uma ligação final e total: há, sem dúvida, algo de esquizo no discurso amoroso. Na visão de Barthes este discurso é essencialmente fragmentado, pois fragmentária e deslizante é a própria condição do amante.

Como destacou Robbe-Grillet no encontro citado, o fragmento barthesiano “desliza sem parar e o seu sentido se

Decorre daí, entre outros, a necessidade de se negar o sequencial e de se afirmar uma forma que desorganiza as

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9. ROBBE-GRILLET. Por que amo Barthes, p. 33.

10. BARTHES. Fragmentos de um discurso amoroso, p. XXII. Para Barthes, “a história de amor (aventura) é o tributo que o amante deve pagar ao mundo para reconciliar-se com ele”.

11. BARTHES. O grão da voz, p. 401.


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12. BARTHES. A preparação do romance I, p. 38.

13. BARTHES. O grão da voz, p. 400.

tentativas de metalinguagem por não dispor de uma última palavra (destaca-se ainda o fato do texto de maior referência aos Fragmentos, O sofrimento do jovem Werther, possuir uma configuração epistolar, um “romance” por cartas que prioriza o discurso em detrimento da narrativa). Ademais, a prática de tal escrita e a reflexão sobre a mesma, ocupam ambas um espaço mais que relevante na produção de Barthes, pois, para ele, passar do descontínuo ao fluxo, travar o combate da forma breve com a longa era um problema “psico-estrutural, já que isso quer dizer passar do fragmento ao não-fragmento, isto é, mudar minha relação com a escritura, isto é, com a enunciação, e ainda com o sujeito que sou: sujeito fragmentado [...] efusivo”.12 A despeito do que já sinaliza o próprio título do livro em questão, é interessante notar que este não é um tratado sobre o discurso do amor (caráter metalinguístico), mas sim a enunciação de um discurso amoroso em particular, que se erige, como afirma Barthes, a partir de elementos advindos de sua própria experiência, entrelaçados a leituras de fontes diversas.13 Vozes múltiplas, provenientes de épocas distintas, oriundas da literatura (Sade, Proust), psicanálise (Freud, Lacan), filosofia (Platão, Aristóteles), entre outras, mesclam-se dando origem a um único discurso que adquire uma vasta amplitude. Sendo assim, com relação à textualidade engendrada pelos Fragmentos, acredito ser

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esta elucidada ainda nos anos de 1960 n’A morte do autor, ensaio no qual se declara o fim do Autor Deus (aquele que detém o sentido único e último do texto) para a consequente insurreição de um texto “onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original: o texto é um tecido de citações, oriundas dos mil focos da cultura”.14 Em um exercício contracorrente, além da opinião pública e das capturas engendradas pelo social, o sujeito amoroso não para de produzir mentalmente uma enxurrada de linguagem, que pode ser acionada a qualquer instante, aleatoriamente, e que é composta por pedaços (cacos) de discursos aos quais Barthes chamou de “figuras” (tomemos esta noção no sentido do amante em ação em seu imaginário, espectador e ator das imagens realizadas). Estas figuras, elementos comuns ao imaginário amoroso, são reconhecidas em um discurso à medida que já foram lidas, experimentadas: “Uma figura é fundada se ao menos alguém puder dizer: Como isso é verdade! Reconheço esta cena de linguagem” (grifo do autor).15 As figuras (a espera, a carta, o abraço, etc.),16 repletas de uma potência poética que aciona também o fluxo de imagens na mente do leitor, são postas em cena através de um método de dramatização (uma linha de força declaradamente nietzschiana), o qual permitiu Barthes afastar-se do formato “uma história de amor” e da mera especulação sobre um assunto.

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14. BARTHES. O rumor da língua, p. 62.

15. BARTHES. Fragmentos de um discurso amoroso, p. XVIII.

16. Na cena contemporânea, que preza pela maior rapidez e agilidade do virtual, percebe-se que estas figuras tendem mesmo à rarefação.


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17. BLANCHOT. A conversa infinita 2, p. 115.

Para estarmos diante da pluralidade da fala fragmentária, fala intermitente manifestada pelo discurso amoroso, que longe de ser incompreensível, não fala pelo seu poder de representar, é preciso atentar para o fato de que não basta colocar o descontínuo no lugar do contínuo, substituir reunião por dispersão ou plenitude por fracasso. Ao contrário do que se dá na operação dialética, na qual a descontinuidade seria o simples revés da continuidade, oposição esta que traria, por meio do desenvolvimento coerente, uma síntese apaziguadora, ela é a própria natureza dionisíaca do mundo (tal como quis Blanchot), a fratura, o despedaçamento de Dionísio como experiência irreversível. Isto porque o fragmentário ignora o que chamamos de contradições lógicas, abarcando-as em seu conflito dentro da constelação múltipla que ele constrói: dessa maneira, dois fragmentos podem opor-se mesmo estando situados em sequência, ambos diretamente relacionados ou não. Assim, um fragmento não compõe com os outros (seus vizinhos) um pensamento ou um dizer mais completo, um saber de conjunto, um conhecimento do todo, pois “o fragmentário não precede o todo, mas se diz fora do todo e depois dele”.17 Por se encontrar sempre no limiar de alguma coisa, no imponderável, a afirmação do fragmento possui um caráter trágico, que dizer, uma afirmação que não busca certezas fixas ou categóricas, nenhuma positividade, mas que desliza por uma superfície fissurada infinitamente para fora de si própria.

A escrita fragmentada, neste viés, pode ser tida como o suplemento necessário ao tecido de citações para se romper com uma concepção clássica e institucional de texto (habitado por um único sentido derradeiro), ligada àquilo que Nietzsche chamou de metafísica da verdade: tal escrita surgiria como “uma atividade a que se poderia chamar contrateológica, propriamente revolucionária, pois a recusa de deter o sentido é finalmente recusar Deus e suas hipóstases, a razão, a ciência, a lei”.18 Se o filósofo alemão foi precursor ao pôr em crise o pensamento transcendentalista (o autor Deus), isso se deu, entre outras, através de sua escrita aforismática, fragmentada, que não dava margem a postulados intocáveis, horizonte de linguagem reencontrado por Barthes: “Gostando de encontrar, de escrever começos, ele tende a multiplicar esse prazer: eis por que ele escreve fragmentos: tantos fragmentos, tantos começos, tantos prazeres (mas ele não gosta dos fins: o risco de cláusula retórica é grande demais: receio de não saber resistir à ultima palavra, à ultima réplica)”.19

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A presença nietzschiana nos Fragmentos é ostensiva, tanto no que se trata da opção por uma forma estilhaçada de escrita, quanto no que tange à segunda dobra obscena do discurso amoroso: sua dimensão trágica. Para discorrer sobre esse plano, vejamos o que enuncia a voz amorosa na figura intitulada O intratável:

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18. BARTHES. O rumor da língua, p. 63.

19. BARTHES. Roland Barthes por Roland Barthes, p. 109 (grifos do autor).


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20. BARTHES. Fragmentos de um discurso amoroso, p. 16 (grifos meus).

21. BARTHES. Fragmentos de um discurso amoroso, p. 13.

O mundo submete toda empresa a uma alternativa: a do êxito ou do fracasso, da vitória ou da derrota. Professo uma outra lógica: sou simultaneamente e contraditoriamente feliz e infeliz: ‘ter êxito’ ou ‘fracassar’ têm para mim apenas sentidos contingentes, passageiros (o que não impede que meus pesares e meus desejos sejam violentos; o que me anima, de modo surdo e obstinado, não é tático: aceito e afirmo, fora do verdadeiro e do falso, fora do logrado ou do malogrado; vivo apartado de toda finalidade, vivo segundo o acaso (prova disso é que as figuras de meu discurso me vêm como lance de dados). Confrontado com a aventura (com o que me acontece), não saio nem vencedor nem vencido: sou trágico. 20 O trágico notado nesta passagem traduz uma consciência dilacerada, um sentimento de contradição que divide o homem e o coloca contra si mesmo. O homem trágico (seu discurso) enuncia-se fora da lógica convencional, visto que não estabelece um corte tão nítido entre o verdadeiro e o falso. O trágico-amoroso em questão traz à tona uma forma de existência distinta daquela imposta pelo mundo (erros e acertos, vitórias e fracassos), pois, de outra maneira, o sujeito amoroso age segundo o acaso e, enredado nos véus de sua tragicidade, faz deste uma necessidade: “o fim glorioso da operação lógica, o obsceno da tolice e a explosão do sim nietzschiano”.21 Ele produz discursos duplos que, em sua oposição, lutam entre si sem se destruírem mutuamente, dado que a negação dialética seria a morte do trágico: este, na acepção nietzschiana,

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“substitui o elemento especulativo da negação, da oposição ou da contradição, pelo elemento prático da diferença: objeto de afirmação e de gozo”.22 Contrária à fundamentação cartesiana da certeza de todo pensamento e de toda verdade na autoconsciência do sujeito, a dimensão trágica do discurso amoroso revela a indecidibilidade daquele que age guiado por forças que desconhece: “agente e paciente ao mesmo tempo, culpado e inocente, lúcido e cego, senhor de toda a natureza através de seu espírito industrioso, mas incapaz de governar-se a si mesmo”,23 ser trágico (amoroso) é contar com o desconhecido e incompreensível, aventurar-se num terreno que nos é inacessível a priori, entrar num jogo de forças sobre as quais não sabemos se preparam nosso sucesso ou nossa perda.

Nietzsche, em grande parte de sua obra, mas, no que tange aos nossos interesses, em O nascimento da tragédia, ocupa-se em elaborar a crítica da razão científica, do saber racional, lógico, instaurado, segundo ele, por Sócrates. Neste livro inaugural, a insurreição do pensamento socrático é sinalizada com um evento que submerge o instinto estético, o saber artístico, condenando assim a arte e o saber trágico como imprecisos, obscuros: “Quando a racionalidade faz uma crítica explicita à produção artística na perspectiva da consciência, quando toma como critério o grau de clareza do saber, a tragédia será desclassificada como irracional ou

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22. DELEUZE. Nietzsche e a filosofia, p. 7.

23. VERNANT; VIDAL-NAQUET. Mito e tragédia na Grécia Antiga, p. 10.


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24. MACHADO. Nietzsche e a Verdade, p. 30.

25. MACHADO. Nietzsche e a Verdade, p. 92.

como desproporcional”.24 Por sua vez, Nietzsche propõe a arte e o saber advindo de phatos (saber dionisíaco, trágico, que resulta da dor) como alternativas à racionalidade positiva: os véus e as ilusões seriam características primordiais da arte e da vida. Pathos – elemento fundador do discurso amoroso - significa não só sofrimento, mas também a experiência que se adquire na dor e que se refere à condição primeira do homem como ser mortal. É dessa experiência, desse desnudamento incisivo do humano na sua condição de finito e frágil que a tragédia faz o seu ensinamento. O trágico acentua a relatividade do conhecimento, enquanto este, em sua forma absoluta, é buscado desesperadamente pelas ciências e por certas filosofias (hipertrofia do lógico). De acordo com o que Barthes nos aponta, o discurso amoroso e seu sujeito são constantemente depreciados pelos discursos teóricos (afinal de contas, haveria sujeito menos teórico do que o amoroso?), taxados como ludibriados, sintomais: mas, na acepção nietzschiana, querer a ilusão é ser trágico. O que essas expressões talvez não levem em consideração é que o mundo dos afetos, dos desejos, das paixões e dos apetites atravessa por todos os lados a produção de conhecimento, “pois a razão não é a luz que controla instintos cegos”.25 O amante, assim como o artista, explora o saber que lhe advém do corpo, da sensitividade, da gama de imagens que lhe vêm de sua experiência sensível e erigem seu discurso: “O que repercute em mim é o que aprendo com meu corpo: algo de EM  TESE

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tênue e agudo desperta bruscamente este corpo que, nesse entretempo, dormitava no conhecimento racional de uma situação geral: a palavra, a imagem e o pensamento agem como uma chicotada”.26 No campo aberto por tal experimentação, algumas efetivações do apolíneo e do dionisíaco (forças estéticas que regem o trágico, segundo Nietzsche) mostram-se primordiais ao discurso amoroso. Em primeiro lugar, as figuras que o compõem surgem na cabeça do amante, “aos prazeres de seu imaginário”, ocasionalmente e sem nenhuma ordem, ao longo de toda a sua vida amorosa. As figuras, elementos comuns ao imaginário amoroso, são atos, mas que existem apenas enquanto imagem, o que, para Barthes, caracterizaria o discurso em questão como “um manto liso que adere à Imagem”.27 Já o imaginário amoroso, nesta mirada, não é em nada o receptáculo ou o reservatório de imagens, de fantasias, mas sim um processo ativo e produtor que tem na imagem do outro, do ser amado, uma força motriz primordial, a fonte de todas as imagens. Este outro que o amante deseja, por sua vez, “produz nele uma visão estética: louva-o por ser perfeito, vangloria-se por tê-lo escolhido perfeito: [...] o brilho dos olhos, a beleza luminosa do corpo, a resplandecência do ser desejável”.28 Com efeito, podemos dizer que temos aí os elementos que compõem um processo (gerador do discurso) que é regido, mormente, por Apolo, o

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26. BARTHES. Fragmentos de um discurso amoroso, p. 287.

27. BARTHES. Fragmentos de um discurso amoroso, p. 23.

28. BARTHES. Fragmentos de um discurso amoroso, p. 10.


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29. BARTHES. Fragmentos de um discurso amoroso, p. 87-88.

30. BARTHES. Fragmentos de um discurso amoroso, p. 49.

31. BARTHES. Roland Barthes por Roland Barthes, p. 106.

Deus das aparências, das imagens cintilantes, visto que o discurso amoroso é um discurso imagético, tecido por figuras que habitam e são fabricadas pelo imaginário dos amantes. Como mostra disso temos o próprio amante que, em certa altura dos Fragmentos, enxerga assim tal acontecimento de linguagem: “É um manto que cai sobre mim, arrastando tudo. Inúmeras e tênues circunstâncias tecem assim o véu negro de Maia, a tapeçaria das ilusões”.29 Em segundo, consideremos ainda este que enuncia o discurso: o amante. Pela intermediação de um acontecimento dionisíaco, o amor-paixão, este ser se afasta do modo habitual de estar no mundo por criar um saber que o distingue. Não obstante, este estado regido por Dionísio acarreta também um frenesi que pode ser aniquilador, catastrófico: “sou arrastado por uma onda poderosa, asfixiado de dor; todo meu corpo se retesa e se convulsiona: vejo, num relâmpago cortante e frio, a destruição à qual estou condenado”,30 diz o amante. O amor-paixão, dionisiacamente, pode levá-lo a uma crise violenta na qual ele se vê fadado a uma destruição total de si mesmo, pois “a rajada amorosa provoca ensurdecimento e medo: crise, revulsão do corpo, loucura: aquele que se apaixona a moda romântica conhece a experiência da loucura”.31 Na figura que dá início aos Fragmentos, intitulada Abismar-se, acercamo-nos dessa onda arrebatadora (hipnótica por abolir a consciência) que acomete o sujeito amoroso: “penso a morte ao lado: penso-a segundo uma EM  TESE

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lógica impensada, derivo para fora do binário fatal que liga a morte e a vida opondo-as. [...] diluo-me, desvaneço-me para escapar a esta compacidade, a esta saturação que faz de mim um sujeito responsável: saio: é o êxtase”.32 Nesta empreitada, apesar de se deparar com os discursos do bom senso que condenam sua tragicidade, o amante segue afirmando a paixão dionisíaca como um valor: “Dizem-me: este gênero de amor não é viável. Mas como avaliar a viabilidade? Por que o que é viável seria um Bem? Por que durar seria melhor do que queimar?”.33 Marcamos assim a incisão de duas esferas específicas: enquanto Apolo se manifesta no próprio campo discursivo, ou seja, o campo das imagens, das figuras, das aparências, da beleza fulgurante do “outro”, em suma, este véu de Maia que envolve o amante, Dionísio, seu suplemento indispensável, pode ser tido como a própria “essência” do amor-paixão, o acontecimento puro da paixão, o êxtase festivo, o instinto que conduz a um saber devastador que, ainda assim, poderá ser suportado através de um meio artístico, a saber, o discurso amoroso. Se o discurso amoroso, em sua dimensão trágica nietzschiana tornar-se-ia obsceno perante uma moral racionalista das linguagens teóricas (é preciso levar-se em conta que Nietzsche atribui uma continuidade entre razão e moral, sendo esta um valor daquela), chegamos agora ao terceiro e último ponto da tríade de obscenidades figuradas nos Fragmentos barthesianos: sua possível singularidade em meio PRADO. Das obscenidades amorosas

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32. BARTHES. Fragmentos de um discurso amoroso, p. 6.

33. BARTHES. Fragmentos de um discurso amoroso, p. 16.


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34. BARTHES. Fragmentos de um discurso amoroso, p. 270.

35. Cf. os trabalhos de Deleuze e Guattari, Lazzarato, Pelbart, Negri, entre outros.

às produções de subjetividade no atual capitalismo. Para tanto, voltemos à voz do amante, no intuito de estabelecer a interseção entre o trágico e o subjetivo contemporâneo: “Sentir-me-ei atingido pelo desprezo que se inflige a todo phatos: antigamente, em nome da razão [...], hoje em nome da ‘modernidade’, que admite perfeitamente o sujeito, contanto que seja ‘generalizado’”.34 Através deste trecho, desvela-se mais uma face assumida pelo discurso em questão, ou seja, sua potência singular que se manifesta em meio às produções serializadas e uniformes, que não admitem aquilo que não seja “generalizado”. Em nossa vida, imersa nas formas de afeto, de conduta, de valores, enfim, na subjetividade tal como ela é gerida pelo capitalismo hoje, vemo-nos solicitados o tempo todo e de todos os lados a investir na poderosa indústria de subjetividades serializadas, produtora destes seres que somos, destes discursos que enunciamos, reduzidos, muitas vezes, à condição de suporte de valor. Como apontam numerosos estudiosos, talvez, nunca o capital tenha penetrado tão fundo no corpo das pessoas, na sua inteligência, no seu psiquismo e no seu imaginário, no núcleo de sua vitalidade.35 E, por medo da obscenidade (marginalização) na qual corremos o risco de ser confinados quando ousamos criar qualquer território singular (independente das modelizações subjetivas), por receio de comprometermos “até a própria possibilidade

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de sobrevivência (o que é plenamente possível), acabamos reivindicando um território no edifício das identidades reconhecidas”.36 Dessa maneira, dentro da produção de subjetividade capitalística, tudo o que é do domínio da ruptura, da surpresa e da dor, mas também do desejo, da vontade de amar e de criar deve se adequar de algum jeito nos registros de referências dominantes. Para Guattari, no contexto do CMI – capitalismo mundial integrado, há sempre um arranjo que tenta prever tudo o que possa ser da natureza de uma dissidência do pensamento e do desejo. Há uma tentativa de eliminação daquilo que eu chamo de processos de singularização. Tudo o que surpreende, ainda que levemente, deve ser classificável em alguma zona de enquadramento, de referenciação.37

Descentrada do indivíduo, mas também dos agentes grupais, a produção de subjetividade envolve múltiplos agenciamentos de enunciação e implica o funcionamento de “máquinas de expressão” que podem ser tanto de natureza extrapessoal, extraindividual (sistemas econômicos, sociais, tecnológicos, de mídia, etc.), quanto de natureza infrapsíquica, infrapessoal (sistemas de percepção, de sensibilidade, de afeto, de representação, de imagens, de valor, modos de memorização, etc.). Por outro lado, o modo pelo qual os indivíduos vivem essa subjetividade pode variar entre dois PRADO. Das obscenidades amorosas

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36. GUATTARI; ROLNIK. Cartografias do desejo, p. 12.

37. GUATTARI; ROLNIK. Cartografias do desejo, p. 43 (grifo meu).


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38. GUATTARI; ROLNIK. Cartografias do desejo, p. 45.

39. BARTHES. Fragmentos de um discurso amoroso, p. XVII.

extremos: uma relação de sujeição e opressão, na qual se submete à subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão e de criação, nesta em que se realiza a reapropriação dos elementos da subjetividade, produzindo um processo que Guattari nomeia de singularização. Este conceito é utilizado em sua especificidade “para designar os processos disruptores no campo da produção de desejo: trata-se dos movimentos de protesto do inconsciente contra a subjetividade capitalística, através da afirmação de outras maneiras de ser, outras sensibilidades, outra percepção, etc.”.38 A partir destes apontamentos e suas implicações, acredito que nos aproximamos do processo de subjetivação que está em jogo no discurso amoroso agenciado pela escrita barthesiana. Na abertura dos Fragmentos, numa espécie de prólogo intitulado “Como é feito este livro”, Barthes faz questão de discorrer sobre o caráter simulativo que entrará em cena no seu trabalho: Substituímos pois a descrição do discurso amoroso por sua simulação e devolvemos a esse discurso sua pessoa fundamental, que é o eu, a fim de pôr em cena uma enunciação, não uma análise. [...] o lugar de alguém que fala em si mesmo, amorosamente, em face do outro (o objeto amado), que não fala.39

Barthes, podemos pensar que se trata de uma mera individuação determinista, de uma centralização discursiva egoica e “romântica”. Entretanto, este “lugar” onde acontece o discurso, quer dizer, este amante “que fala e diz” perante a mudez do outro amado, é simplesmente alguém (talvez próximo ao ele sem rosto que habita o espaço literário, nos termos de Blanchot), que não deve ser tomado como um indivíduo dotado de um aparato físico e civil, ou visto, ingenuamente, como o próprio Barthes fazendo confidências íntimas, ou ainda, como uma personagem no sentido corriqueiro do termo. Esta espécie de locutor apresenta-se como uma subjetividade simulada, produzida, ou, para utilizar uma expressão cara a Barthes, romanesca, insurgindo como um “eu” que podemos considerar inventado, forjado, obviamente por não se tratar de uma identidade (como, inversamente, se dá no caso das pessoas civis): “é um eu que apenas diz eu sem ser o eu de uma pessoa em particular”.40 Tal simulação, ou processo de subjetivação, traz à luz um gesto que visa introduzir no Mesmo, o Outro: um movimento que faz emergir um outro, uma diferença no lugar do “eu” autocentrado e autônomo, isto é, uma força de alteridade e singularidade que impossibilita a fixação de uma etiqueta identitária.

A princípio, se nos detivermos unicamente nesta restituição de uma pessoa essencial (o “eu”) intentada e assumida por

Ao dizer “eu”, o amante barthesiano individualiza certa subjetividade amorosa em circulação no campo social nas mais variadas formas, quer dizer, vozes múltiplas, provenientes de

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40. MARTY. Roland Barthes, o oficio de escrever, p. 281.


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épocas distintas que se mesclam, oriundas da literatura, da filosofia, entre outros. É por meio da indeterminação expressa pela voz do amante que podemos nos aperceber da flexibilidade desta subjetividade que advém no discurso amoroso, passível de constantes metamorfoses e devires ao longo do livro, e que, através dessas mutações, pode assumir praticamente todos os pronomes pessoais ou até pseudônimos: eu, ele, nós, x, etc. (pluralidade de forças configurando uma subjetividade movediça). Ao invés de petrificar a voz amorosa, de legá-la a imortalidade estática de um código dominante, Barthes faz com que ela passe por deslocamentos, devires, vindo sempre a ser outra coisa no decorrer do discurso (a descontinuidade da forma, a fala por fragmentos, implica ainda na desconstrução da identidade fixa). São estes devires, que recusam o individual e a constituição sobre e a partir da identidade, que possibilitam a reação do singular, que existe pela e na diferença: nem convergência, nem conjunção, nem um fundamento único que lhe sirva de origem – a singularidade da voz amorosa provém da disjunção e da diferenciação entre todas as vozes que a compõem. À guisa de cartografarmos pequenos instantes de singularidade no discurso amoroso barthesiano, vejamos então o seguinte acontecimento enunciado pelo amante: Naquela manhã, devo escrever com toda urgência uma carta ‘importante’ – da qual depende o êxito de certa empresa; mas EM  TESE

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em vez disso escrevo uma carta de amor – que não envio. Abandono alegremente tarefas insípidas, escrúpulos razoáveis, condutas reativas, impostos pelo mundo, em prol de uma tarefa inútil, oriunda de um Dever vivo: o Dever amoroso. Faço discretamente coisas loucas; sou a única testemunha de minha loucura.41

Nesta cena, o amante, ao invés de fazer o jogo da reprodução de modelos que não nos permitem criar saídas para os processos de singularização, ao contrário, trabalha para o funcionamento desses processos na medida de suas possibilidades: traça uma linha fugitiva, evade-se, desvia e provoca uma disrupção nas engrenagens subjetivas do capital. Se perante os enunciados do mercado, da indústria cultural e publicitária (componentes semiológicos que se manifestam também através da família, da educação, da religião, da arte etc.) que concorrem para o engendramento da subjetividade, o discurso do amor-paixão composto por Barthes pode ser tomado como marginal, “improdutivo”, em suma, obsceno, seria através de sua obscenidade mesma que ele viabilizaria a abertura de um campo do possível, para o que é da dissidência de um modelo subjetivo preponderante. Mas é preciso levar em conta a fugacidade desta criação: a obscenidade, em suas variadas configurações, é movente por excelência – se por hora está aqui, logo depois pode não mais estar dependendo do movimento incessante no qual estamos inseridos,

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41. BARTHES. Fragmentos de um discurso amoroso, p. 17.


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que ora instaura determinados paradigmas, ora desterritorializa-os firmando outros, para que algo novo venha à tona e adquira ares de resistência. Por último, no esforço de levar adiante o gesto barthesiano acerca da obscenidade amorosa, faz-se urgente sinalizarmos para a rarefação das aparentes dicotomias engendradas ao longo deste texto, isto é, como se de um lado tivéssemos o fragmento e, de outro, o contínuo; o trágico para além do racional; o singular como o fora do serializado. De outra maneira, cada uma das instâncias consideradas obscenas encontra-se imanente à própria cultura da doxa, quer dizer, aos avatares elencados aqui como dispositivos de captura sobre os quais o discurso do amante empreende sua corrosão. A obscenidade está no interior, mas de certa maneira, desde sempre, habitando e operando na superfície de uma espiral. Se estamos na atualidade sempre dentro de, mas, mesmo assim, em intimidade com certa exterioridade desta espiral, é deste local que podemos produzir o abalo, quer dizer, abrir o obsceno. Se os elementos de aprisionamento e de invenção, de anestesia e de afetação, se contaminam inevitavelmente, devemos então estar alertas, assim como Barthes, para a obscenidade presente no íntimo de cada coisa. Na medida em que concebemos o confronto infinito travado entre as formas da opinião e as obscenas, nem como uma oposição imóvel, nem como um jogo bidimensional entre dentro e

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fora, podemos ver ainda mais perto as obscenidades que o excesso de luz do contemporâneo tenta encobrir. Se a fala do amante, em seu caráter fragmentário, trágico e singular, permanece obscena (intempestiva), é porque, junto a ela, estamos nas voltas espiralares que não deixaram de trazer, sempre uma vez mais, o Um, a racionalidade e o capital como modelos. Contudo, neste caso, sabemos da impossibilidade de uma afirmação derradeira e da necessidade de sermos imprecisos. Decerto, outros padrões nos serão impostos, mas ainda assim, outras obscenidades serão descobertas ou inventadas, e no final das contas, será o amor que voltará, mas num outro lugar... REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinicius Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009. BADIOU, Alain. Èloge de l’amour. Café Voltaire: Flammarion, 2009. BARTHES, Roland. O grau zero da escrita: seguido de Novos Ensaios. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. BARTHES, Roland. O grão da voz: entrevistas, 1961-1980. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

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BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita 3: a ausência de livro, o neutro o fragmentário. Trad. João Moura Jr. São Paulo: Escuta, 2010.

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FOTOGRAFIA E MELANCOLIA: AL BERTO (E BARTHES)

Gustavo Cerqueira Guimarães*

RESUMO: Este estudo visa a articulação entre fotografia e melancolia presentes na obra do escritor lusitano Al Berto (1948-1997). Essa relação se intensifica e se ilumina com base em Giorgio Agamben e Sigmund Freud. No caso da articulação com o psicanalista, a abordagem é menos associada à afecção melancólica – suas derivações nosográficas e psicologizantes –, do que àquela feita pela via estética, mais explícita no pensador italiano. As relações mais estreitas entre fotografia e melancolia se estabelecem ainda por meio das reflexões de Roland Barthes e Susan Sontag, autores que dedicaram livros e estudos ao assunto. PALAVRAS-CHAVE: Al Berto; fotografia; melancolia; psicanálise; Roland Barthes.

* gustavocguimaraes@hotmail.com Doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada e mestre em Teoria da Literatura pela UFMG. Pesquisador pelo Programa Nacional de Pós-doutorado/CAPES.

RÉSUMÉ: Cet article vise à mettre de l’avant l’articulation entre la photographie et la mélancolie dans l’œuvre de l’écrivain lusitanien Al Berto (1948 au 1997). Cette relation s’intensifie et s’illumine à partir des études de Giorgio Agamben et Sigmund Freud. Par rapport au psychanalyste, l’approche est moins associé à l’affection mélancolique – ses dérivations nosographique et psychologisante –, que celle réalisée par la voie esthétique. Cette voie esthétique est plus explicite chez le penseur italien. De même, des rapports plus étroits entre la photographie et la mélancolie sont relevés par les réfléxions de Roland Barthes et Susan Sontag qui ont écrit des ouvrages sur ce sujet. MOTS-CLÉ: Al Berto; photographie; mélancolie; psychanalyse; Roland Barthes.


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A pintura simula a vida, e a fotografia não simula nada. Mata. É um tiro, em que tudo para. A pintura tem uma imobilidade na mobilidade, por seu lado a fotografia é a arte que mais tem relação com a morte. É a descida aos infernos. Mas tanto a pintura como a fotografia fertilizam a minha escrita, porque são as referências que tenho, pois não há razão para não transpor para escrita tudo o que a pode enriquecer e transformar. O autor funciona como filtro. E é tão vivo! Al Berto A vida não são detalhes significativos, instantes reveladores, fixos para sempre. As fotos sim. Susan Sontag

Durante toda a sua trajetória artística, entre 1967 e 1997, Al Berto manteve uma intensa produção poética na mais ampla possibilidade que esse vocábulo possa carregar, associando à sua obra a veiculação da própria imagem junto ao público e colhendo os benefícios e malefícios de se expor profusamente, ao contrário de alguns autores de nossa língua portuguesa, Herberto Helder e Dalton Trevisan, por exemplo, que quase sempre se negaram a serem capturados pelas câmeras ou pela mídia, de maneira mais ampla. Al Berto posou para as fotografias das capas de seus livros, concedeu entrevistas à mídia impressa e televisiva dos idos finais do século XX, recitou por muitas vezes poemas em público, além de possuir uma lírica que, segundo o crítico português Fernando Pinto do Amaral, “pretende funcionar como testemunho de um sujeito, de um eu que não teme

arrastar toda a carga dos seus afetos para as páginas que escreve. (...) O recorte inegavelmente narcísico desta obra poderá ter afastado alguns leitores, (...) [pois exibe] ostensivamente

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1. AMARAL. Al Berto: um lirismo do excesso e da melancolia, p. 119.

2. A primeira edição de Projets 69 foi publicada pela Montfaucon Research Center, uma associação internacional de artistas visuais, atuantes até hoje em sua maioria, fundada em 1969 em Bruxelas por Michel Bonnemaison (França, 1923-2006); Joëlle de la Casinière (Marrocos, 1944); Carlos Ferrand (Peru, 1946); Al Berto (Portugal, 1946-1997); Olimpia Hruska (Itália, 1948); Jacques Lederlin (França, 1950), músico, componente do grupo a partir de 1973; e, Sophie Podolski (Bélgica, 1953-1974), poeta e artista gráfica. É nítida e intensa a contaminação dos trabalhos artísticos entre os membros desse coletivo Montfaucon, marcado pelo contexto de irreverência dos anos sessenta e por fortes ressonâncias beatniks e, indiretamente, do pensamento deleuzeano e da semiologia barthesiana, bastante vigorosos à época. Para maior aprofundamento sobre os primeiros trabalhos de Al Berto, cf.: GUIMARÃES. Al Berto, poeta editor: as margens da poesia. Estudos Linguísticos e Literários, UFBA, 2015, p. 1-18.

a personalidade do poeta”.1 Desde seu primeiro livro, publicado marginalmente, em Bruxelas, em 1969 (durante seu exílio por causa da ditadura salazarista), até o último, publicado pela renomada editora Assírio & Alvim, em Lisboa, em 1997, Al Berto nunca deixou de se autorretratar. Já em sua obra de estreia, Projectos 69, o artista em várias páginas oferece ao leitor o seu rosto, sugerindo aproximações entre o sujeito que se enuncia e o autor. Os traços dessa estética são notadamente pops bem típicos do final daqueles anos, nos quais os limites entre o público e o privado ou o corpo e a arte (vida e obra) são de difícil distinção ou sequer podem ser ponderados pela categoria de limite.2 Em Al Berto percebe-se certo culto à individualidade, o que é constatado pela exacerbação em seus textos do pronome na primeira pessoa do singular – eu –, reforçando ainda mais o caráter narcisista de sua obra. Ao mesmo tempo em que essa postura distancia leitores, também os agrega, de modo a tornar o autor de O medo um poeta contemporâneo cultuado por certa juventude portuguesa. Os textos de Al Berto, ao lado de toda a sua expressão por imagens, são um bom exercício das possibilidades de se ler uma obra. Especificamente quando nos defrontamos com a relação que ele propõe entre a literatura e a fotografia, tanto por meio de seu emprego visual, que veremos mais adiante, como pelo escritural, que pode ser encontrado de duas formas. Na

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primeira, o texto está ligado ao gesto de fotografar, reforçando o tempo presente, como no poema “4. Leica” da série “Paulo Nozolino/4 visões”: (...) a ponta do feltro risca a pálpebra molhada de tinta as palavras surgem confusas... click! a intensidade das luzes e por trás delas o olhar na penumbra rente ao chão aproximas-te do vidro focas disparas... o ruído da leica acorda-me para o silêncio povoado desta sala vazia.3

3. AL BERTO. O medo, p. 320.

Já na segunda, está ligado ao tempo pretérito e à temática da memória, encontrados incontáveis vezes em seus poemas, como neste, sob o sugestivo título “1. Cabeça de pano”, igualmente da série “Paulo Nozolino/4 visões”: por vezes a memória doutros dias chega-me de imagens fixas mas se a vida germinasse dalgum cristal de prata oculto nesta cabeça esculpida em pano erguendo-se sob o peso duma lua artificial... abandonaria o riso e a tristeza do corpo... partiria à procura do segredo eterno das pirâmides ou dessa revelação ainda em suspensão no revelador dos nocturnos laboratórios (...)

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4. AL BERTO. O medo, p. 317.

no zênite da noite levantar-se-ia o terno dedo incendiando a leveza do papel mergulhado no fixador imobilizaria o desejo e todas as imagens se tornariam apenas resíduos visões ainda longínquas dalguma catástrofe... os rostos que na penumbra partilharam connosco a vida e depois se ocultaram.4

No entanto, tratar o tema da fotografia na literatura por variadas vezes e de diferentes maneiras por si só, e especialmente em Al Berto, já implicaria na imbricação dos tempos presente e pretérito, pois a própria fotografia, ao seu ver, já garante esse estatuto:

5. AL BERTO. O medo, p. 226.

com fotografias consolo a saudade do rapaz que fui, embora saiba que há muito se apagaram os sorrisos de teu rosto. envelhecemos separados, o eu das fotografias e o eu daquele que neste momento escreve. envelhecemos irremediavelmente, tenho pena, mas é tarde e estou cansado para as alegrias dum reencontro. não acredito na reconciliação, ainda menos no regresso ao sorriso que tenho nas fotografias. não estou aqui nunca estive nelas. quase nada sei de mim.5

um médium e me põe em relação com o ‘isto’ de meu corpo; ela suscita em mim uma espécie de sonho obtuso, cujas unidades são dentes, cabelos, um nariz, uma magreza, pernas com meias compridas, que não me pertencem, sem no entanto, pertencer a mais ninguém”.6 Essa maneira de abordar as fotografias traz uma nova visada para o campo das reflexões sobre a representação, pois abala certa categorização da identidade cuja unidade seria fechada, coincidindo sempre o “eu” do presente com o “eu” retratado. Estampadas em seus livros ou referidas em palavras, as fotografias integram a estética desses autores, edificando-se como uma chave potente e até mesmo desconcertante de leitura. Responsável pela maioria das fotografias de Al Berto em seus livros, o fotógrafo Paulo Nozolino é um destacado e influente artista contemporâneo português;7 o diálogo entre eles se dá em cinco ocasiões: O último habitante (1983), Salsugem (1984), A seguir o deserto (1984), O medo (1987) e Horto do incêndio (1997). A respeito desta última obra, Eduardo Prado Coelho nos propõe começar a lê-la pela encenação fotográfica de Al Berto impressa na capa.8 Talvez se possa começar por aquilo que fica à volta do texto, e que o protege, envolve e ampara (tecnicamente, poder-se-á falar de paratexto). (...) As capas dos livros de Al Berto (...) fazem parte, numa colaboração indireta mas decisiva, do pró-

Ou, ainda, à maneira sugerida por Roland Barthes, em sua obra cujas primeiras páginas trazem aproximadamente quarenta fotografias do autor e de seus familiares (e suas casas) em diferentes momentos da vida: “a imageria age como EM  TESE

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6. BARTHES. Roland Barthes por Roland Barthes, p. 7. 7. Paulo Nozolino é um dos mais premiados fotógrafos lusitanos. Nasceu em 1955, em Lisboa. Vive e trabalha entre Lisboa e Paris. Expõe e publica regularmente desde 1980. Recebeu alguns prêmios e bolsas internacionais, dentre eles: Prêmio Kodak (Portugal, 1988), Prix Fondation Leica (França, 1989), Bolsa Villa Médicis Hors-les-Murs (Paris, 1994), Grand Prix de la Ville de Vevey (Suíça, 1995), Deutscher Fotobuchpreis (Stuttgart, 2005) e Prémio Autores – Artes Visuais, Sociedade Portuguesa de Autores (Lisboa, 2013). A sua obra espelha o nomadismo, expresso igualmente em Al Berto. 8. A imagem da capa de Horto de incêndio foi tratada em ensaio de minha autoria. Cf.: GUIMARÃES. Al Berto, um corpo incendiado. In: FORNACIARI (org.). Corpo em contexto, 2014, p. 64-77.


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9. COELHO apud ANGHEL. A metafísica do Medo, p. 91.

prio texto. Elas servem para encenar, num narcisismo que se defende através de diversas camadas ou véus de ironia, o lugar da subjetividade em que o livro se desenrola, o seu coração arfante, opaco e exposto: “vês no espelho/ o homem cuja solidão atravessou quase cinco décadas e/ está agora ali a olhar-te”. E, por último, a imagem coloca a pergunta que o texto vai repetir: “que horas serão dentro do meu corpo?”.9

Retenham-se desta passagem os seguintes temas: a indagação do sujeito acerca do tempo, a fotografia, o narcisismo, a ironia, o coração arfante; para em conjunto serem articulados a um só tema crucial neste estudo: fotografia e melancolia em Al Berto.

vidade que encontra o seu lugar nesta poesia em termos de figuras ambíguas da ausência, da ruína e da morte.10

Essa articulação da melancolia com a literatura portuguesa contemporânea já havia sido feita por Fernando Pinto do Amaral em seu livro O mosaico fluido (1991), inclusive usado como referência por Barrento, um dos tradutores de Walter Benjamin. No capítulo intitulado “Al Berto: um lirismo do excesso e da melancolia”, Amaral dedica sua análise somente ao autor nascido em Sines, uma pequena cidade alentejana de pescadores, afirmando contundentemente que seu universo pode ser considerado como um dos mais melancólicos da nossa poesia recente. Seu tem sido o culto dessa difícil arte da melancolia, essa sensação psico-afectiva herdeira da acedia medieval e em que se conjugam, saturnianamente e numa indefinível mistura, o torpor, a nostalgia e o tédio. Num estudo clássico, Klibanski, Panofsky, Saxl definem a melancolia como “um sentimento de duas faces, que de si mesmo perpetuamente se alimenta e pelo qual a alma frui a sua própria solidão, mas sofrendo mais intensamente, através de tal experiência, o sentimento dessa solidão, uma espécie de alegria no sofrimento. [...] Este humor melancólico moderno corresponde essencialmente ao exacerbar da consciência de si, já que o eu é o eixo entorno do qual gira a esfera da alegria e da tristeza” (Klibanski et alii, 1989, p. 374-5).11

Para o crítico português João Barrento, no artigo “O astro baço: a poesia portuguesa sob o signo de Saturno” (1994), os poetas portugueses dos últimos cem anos são regidos pelo signo da melancolia, estão sob o signo de Saturno. Porém, o autor empenha-se mais em analisar os poetas a partir da “geração de 1970”, porque neles o tom plasma-se num pathos com cambiantes diversamente melancólicos: corrosivo já em Joaquim Magalhães, displicente e autoirônico em Vasco Graça Moura, narcisista em Al Berto, minimal e ciciado em Helder Moura Pereira. (...) Mas em todos está presente uma consciência vígil do tempo da escrita, deste nosso fim de época marcado por sinais de uma negatiEM  TESE

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10. BARRENTO. O astro baço, p. 81.

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11. AMARAL. Al Berto: um lirismo do excesso e da melancolia, p. 125.


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Esse componente agônico igualmente se apresenta nas encenações fotográficas de Al Berto, um dos autores que sem dúvida alguma mais empregou o universo da fotografia à literatura. Por meio delas e de seus textos, como veremos, apresentam-se alguns traços relevantes para associá-los ao sujeito melancólico. Para tanto, antes, como bem sugerido por Fernando Pinto do Amaral, realiza-se uma breve digressão ao tema da melancolia (para demonstrar certa fixidez ao longo da história ocidental) a partir de Giorgio Agamben e Sigmund Freud para melhor nos aproximarmos da estética fin de siècle al-bertiana. MELANCOLIA: O OBJETO PERDIDO

(...) ao fim de algum tempo, o que estava fora de mim passou a ser igual ao que estava dentro de mim – Luz e Sombra. E foi com Luz e Sombra que iniciei, no papel, a construção da minha biografia. Al Berto

A afecção denominada melancolia está presente entre nós desde a origem da cultura ocidental, sendo objeto de reflexão da medicina, da filosofia e das artes. A partir dos estudos de alguns dos teóricos de referência sobre o assunto, Historia del tratamiento de la melancolía desde los Orígenes hasta 1900 (1962), de Jean Starobinski, e Saturno y la melancolía:

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estudios de historia de la filosofía de la naturaleza, la religión y el arte (1964), de Raymond Klibansky, Erwin Panofsky e Fritz Saxl, convencionou-se dividir a história da melancolia em três períodos: Antiguidade Clássica, Idade Média e Modernidade.12 Veja-se um breve percurso histórico, com enfoque especial na psicanálise. Na Grécia Antiga, encontra-se o clássico texto de Aristóteles sobre a temática saturnina, O homem de gênio e a melancolia, no qual o filósofo a trata pelo prisma de uma afecção que também é benéfica, pois são os homens de exceção, os gênios, que são tomados por males originados da bile negra – melas (negra) e chole (bile). Desde então, está instaurada uma das atribuições mais marcantes da melancolia: o seu caráter paradoxal, ressaltado por Aristóteles da seguinte forma: “a potência da bile negra é inconstante, inconstantes são os melancólicos. E, com efeito, a bile negra é muito fria e muito quente”.13 O filósofo grego é também ponto crucial das instigantes reflexões de Giorgio Agamben no livro Estâncias, dedicado ao tema da melancolia. Na abertura do primeiro capítulo deste livro, intitulado “O demônio meridiano”, é contextualizada a melancolia, ou melhor, a acídia na Idade Média, informando-nos que, nessa época, um flagelo pior que a peste se manifestou sobre a população europeia. Os padres tentavam intervir contra os perigos desse “demônio meridiano” que assaltava suas GUIMARÃES. Fotografia e melancolia: Al Berto (e Barthes)

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12. Cf. LAGES. Walter Benjamin: tradução e melancolia, p. 31-38. Para um maior aprofundamento do tema, sobretudo a respeito do livro Saturno e melancolia, veja o artigo “Sob o signo da iconologia: uma exploração do livro Saturno e a melancolia, de R. Klibansky, E. Panofsky e F. Saxl”, de Sérgio Alcides. In: Topoi – Revista de História, 2001, p. 131-173.

13. ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia, p. 105.


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14. AGAMBEN. Estâncias, p. 28.

15. AGAMBEN. Estâncias, p. 29.

vítimas por volta do meio-dia. Segundo Agamben, para São Tomás de Aquino, uma distinta voz do catolicismo medieval, “o que preocupa o acidioso não é, pois, a consciência de um mal, e sim, pelo contrário, o fato de ter em conta o mais elevado dos bens: acídia é o vertiginoso e assustado retrair-se frente ao compromisso da estação do homem diante de Deus”.14 Por esse motivo, é um mal mortal, porque se afasta do bem divino: “trata-se da perversão de uma vontade que quer o objeto, mas não quer o caminho que a ele conduz e ao mesmo tempo deseja e obstrui a estrada ao próprio desejo”.15 Daí, novamente, o caráter paradoxal da acídia, que Agamben reforça ao finalizar o capítulo: a ambígua polaridade negativa da acídia se torna o fermento dialético capaz de transformar a privação em inacessível, a acídia não constitui apenas uma fuga de..., mas também uma fuga para..., que se comunica com seu objeto sob a forma da negação e da carência. Assim como acontece com as figuras ilusórias que podem ser interpretadas ora de um, ora de outro modo, assim também cada traço seu desenha, na sua concavidade, a plenitude daquilo de que se afasta, enquanto cada gesto realizado por ela na sua fuga testifica a manutenção do vínculo que a liga a ele. Ao mesmo tempo em que a sua tortuosa intenção abre espaço à epifania do inapreensível, o acidioso dá testemunho da obscura sabedoria segundo a qual só a quem já não tem esperança foi dada a esperança, e só a quem, de qualquer EM  TESE

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maneira, não poderá alcançá-las foram dadas metas a alcançar. Tão dialética é a natureza do seu “demônio meridiano”: assim como se pode dizer da doença mortal, que traz em si a possibilidade da própria cura, também daquela se pode afirmar que a maior desgraça é nunca tê-la tido.16

Segundo Agamben, sob muitos aspectos, essa descrição patrística não desapareceu na Modernidade, pois é sob o regime atrabiliário que se pautará a literatura moderna, tendo em Baudelaire um expoente, pois toda a sua poesia pode ser entendida “como uma luta mortal com a acídia e, ao mesmo tempo, como uma tentativa de invertê-la em algo positivo. Convém observar que o dandy, que representa, segundo Baudelaire, o tipo perfeito do poeta, pode ser considerado, em certo sentido, como reencarnação do acidioso”;17 embora a acídia tenha se esvaziado de seu significado patrístico em detrimento da “ética capitalista do trabalho”. No entanto, como sugere o pensador, “se examinarmos a interpretação que os doutores da Igreja dão à essência da acídia, veremos que ela não é posta sob o signo da preguiça, mas sim sob o da angustiada tristeza e do desespero”.18 Além da literatura moderna, que tem em Baudelaire um exemplo da temática atrabiliária no século XIX, ainda sob o signo da Modernidade encontram-se a psiquiatria e a psicanálise freudiana como formas discursivas de considerável influência para o pensamento do século XX, devido ao seu influxo na cultura ocidental. Conforme Freud, a melancolia para a GUIMARÃES. Fotografia e melancolia: Al Berto (e Barthes)

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16. AGAMBEN. Estâncias, p. 32.

17. AGAMBEN. Estâncias, p. 24.

18. AGAMBEN. Estâncias, p. 27.


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19. Cf. FREUD. Luto e Melancolia, p. 271-291.

20. FREUD. Luto e Melancolia, p. 277.

21. FREUD. Luto e Melancolia, p. 279.

psiquiatria possui várias formas clínicas, tratando-se antes de uma afecção somática do que psicogênica. Já para a psicanálise, a melancolia será abordada como um caso de natureza psicológica indiscutível.19 Em “Luto e melancolia”, o autor pretende fazer uma analogia entre a melancolia e o “afeto normal do luto”, já que o quadro geral dessas duas afecções é bem parecido. Em ambos os casos há a perda do objeto, sendo que naquela a perda é ideal: “sabe-se quem perdeu, mas não o que perdeu”.20 Essa característica tem implicações na estrutura egoica, pois, na melancolia, o ego se torna pobre e vazio, acarretando diminuição da autoestima, inibição da libido, desânimo, perda da capacidade de amar, autorrecriminação e autoenvilecimento, culminando em uma expectativa delirante de punição, enquanto que no luto é o mundo que se torna pobre e vazio, não o ego. Freud acredita que a autoacusação e a autocrítica, encontradas nos melancólicos, os dispõem a uma visão mais penetrante da verdade, se comparados a outras pessoas que não são melancólicas. Tal posição é justificada pelo fato de que o melancólico parece conhecer mais sobre si mesmo, visto que “ficamos imaginando, tão-somente, por que um homem precisa adoecer para ter acesso a uma verdade dessa espécie”.21 Tal postulação vai ao encontro do que é proposto por Aristóteles em O homem de gênio e a melancolia. Entretanto, como atesta Freud, é difícil ver até que ponto há uma correspondência entre o grau de autodegradação e sua real justificação. A psicanálise ainda não conseguiu explicar como o ego do melancólico pode consentir em sua própria destruição. O fato é que os melancólicos

chegam a usar o sadismo e a autopunição como vingança, para torturar o objeto amado por intermédio da sua doença, encontrando-se, em boa parte dos casos, esse objeto amado perto do melancólico. Freud ainda postula que não é fácil reconstruir o processo da melancolia, porque

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existem, num dado momento, uma escolha objetal, uma ligação da libido a uma pessoa particular; então, devido a uma real desconsideração ou desapontamento proveniente da pessoa amada, a relação objetal foi destroçada. O resultado não foi o normal – uma retirada da libido desse objeto e um deslocamento da mesma para um novo –, mas algo diferente, para cuja ocorrência várias condições parecem ser necessárias. A catexia objetal provou ter pouco poder de resistência e foi liquidada. Mas a libido livre não foi deslocada para outro objeto; foi retirada para o ego. Ali, contudo, não foi empregada de maneira não especificada, mas serviu para estabelecer uma identificação do ego com o objeto abandonado. Assim a sombra do objeto caiu sobre o ego, e este pôde, daí por diante, ser julgado por um agente especial, como se fosse um objeto abandonado. Dessa forma, uma perda objetal se transformou numa perda do ego, e o conflito entre o ego e a pessoa amada, numa separação entre a atividade crítica do ego e o ego enquanto alterado pela identificação.22

Por vezes, as mesmas condições do luto provocam a melancolia. Porém, “a melancolia está de alguma forma

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22. FREUD. Luto e Melancolia, p. 282.


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23. FREUD. Luto e Melancolia, p. 278.

24. FREUD. Luto e Melancolia, p. 289-290.

25. Cf. FREUD. Luto e Melancolia, p. 284.

relacionada a uma perda objetal retirada da consciência, em contraposição ao luto, no qual nada existe de inconsciente a respeito da perda”.23 Tanto no luto como na melancolia há a retirada do investimento libidinal e o objeto de amor não mais existe. No entanto, a afecção melancólica é ambivalente, pertencente, por natureza, ao recalcado.

na melancolia, o objeto não é nem apropriado nem perdido, mas as duas coisas acontecem ao mesmo tempo. E assim como o fetiche é, ao mesmo tempo, o sinal de algo e da sua ausência, e deve a tal contradição o próprio estatuto fantasmático, assim, o objeto da intenção melancólica é, contemporaneamente, real e irreal, incorporado e perdido, afirmado e negado.26

As causas excitantes da melancolia têm uma amplitude muito maior do que as do luto, que é, na maioria das vezes, ocasionado por uma perda real do objeto, por sua morte. Na melancolia, em consequência, travam-se inúmeras lutas isoladas em torno do objeto, nas quais o ódio e o amor se digladiam; um procura separar a libido do objeto, o outro defender essa posição da libido contra o assédio. A localização dessas lutas isoladas só pode ser atribuída ao sistema Ics. [inconsciente], a região dos traços da memória de coisas.24

Assim, o melancólico só consegue se apropriar do objeto amado quando afirma sua perda. E é nessa apropriação, a partir da falta, que o objeto se torna fetiche, por ser sinal de algo e de sua ausência, “triunfando” sobre o ego por meio da própria supressão. A retração da libido melancólica não visa senão tornar possível uma apropriação em uma situação em que posse alguma é, realmente, possível. Sob essa perspectiva, a melancolia não seria tanto a reação regressiva diante da perda do objeto de amor, quanto a capacidade fantasmática de fazer aparecer como perdido um objeto inapreensível. Se a libido se comporta como se tivesse acontecido uma perda, embora nada tenha sido de fato perdido, isso acontece porque ela encena uma simulação em cujo âmbito o que não podia ser perdido, porque nunca havia sido possuído, parece como perdido, e aquilo que não podia ser possuído porque, talvez, nunca tenha sido real, pode ser apropriado enquanto objeto perdido. Nesta altura, torna-se compreensível a ambição específica do am-

Essa ambivalência se deve ao fato de o melancólico possuir, em relação ao objeto amado, sentimentos de amor e ódio. O ódio pode se intensificar, se o melancólico se refugiar na identificação narcisista e colocá-lo em ação contra o objeto, degradando-o.25 Para Freud, esses sentimentos ambivalentes se dão no nível do inconsciente, como bem postulado acima. A seguinte formulação de Giorgio Agamben talvez se faça bastante pertinente no que tange à questão dessa ambivalência em Freud: EM  TESE

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26. AGAMBEN. Estâncias, p. 46.


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27. AGAMBEN. Estâncias, p. 45.

bíguo projeto melancólico, que a analogia com o mecanismo exemplar do luto havia desfigurado parcialmente e tornado irreconhecível, e que justamente a antiga teoria humoral identificava na vontade de transformar em objeto de abraço o que teria podido ser apenas objeto de contemplação. Cobrindo o seu objeto com os enfeites fúnebres do luto, a melancolia lhes confere a fantasmagórica realidade do perdido.27

Agamben, no capítulo intitulado “O fantasma de Eros”, comenta que Freud não desenvolveu uma teoria orgânica do fantasma, mas deixou resquícios ao pronunciar que o melancólico não aceita a realidade tal como lhe é apresentada, e se esquiva do real ao criar os fantasmas do desejo que penetram na consciência e que passam a ser aceitos como uma melhor realidade. O autor acrescenta que essa faculdade fantasmática já era há tempos vinculada à melancolia pela tradição antiga e que a psicanálise contemporânea resgatou essa ideia, sobretudo, a partir de Jacques Lacan, pois a gênese do amor já se apresentava como um processo fantasmático desde a lírica trovadoresca, que muito influenciou a poesia ocidental moderna:

que o desejo cria para o próprio cortejo do fantasma, e a introjeção da libido nada mais é que uma das faces de um processo, no qual aquilo que é real perde a sua realidade, a fim de que o que é irreal se torne real.28

Nos dias de hoje, ainda à sombra do modernismo, os elementos atribuídos aos três momentos históricos da melancolia – o temperamento saturnino na Antiguidade, as descrições patrísticas da acídia e os estudos da psicanálise, que traduzem a afecção para a linguagem da libido – encontram ecos em obras de muitos artistas, ratificando a sua fixidez ao longo dos séculos. Não seria muito assegurar, ao lado de certa tradição crítica até aqui exposta, que a melancolia seja um dos principais operadores de leitura de certos trabalhos contemporâneos, como no caso de Al Berto ao escrever obsessivamente sobre a ausência do amado. Vejase, a exemplo, o que diz o personagem Beno, do romance Lunário, em um tom reticente, elegíaco e, evidentemente, melancólico: Regressa, Nému. Regressa ao escorrer dos dedos enrolados no sexo, ao riso matinal dos corpos saciados, às nocturnas conversas das esplanadas, aos jogos de sedução, aos engates, ao murmúrio das vozes nos becos da cidade, à ofegante trepidação da manhã, regressa... regressa Nému. Porque as palavras não te substituem e estão cheias de pústulas no coração das sílabas.

a perda imaginária que se apodera tão obsessivamente da intenção melancólica não tem objeto real algum, porque sua fúnebre estratégia está voltada para a impossível captação do fantasma. O objeto perdido não é nada mais que a aparência

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28. AGAMBEN. Estâncias, p. 53.


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Regressa e oferece-te à preguiça triste de quem continua aqui, vivo, sorvendo a espiral da sua própria ausência. 29. AL BERTO. Lunário, p. 68.

Regressa, peço-te, mesmo antes de partires. Regressa à voracidade do desejo, e à incendiada paixão dos nocturnos tigres...29

Em toda tessitura de Al Berto (carta, diário, poema, conto, romance, dramaturgia, desenho, fotografia e performance), é recorrente o traço melancólico, que se potencializa exatamente pelo jogo de contraste, próprio de sua particularidade. Basta um rápido contacto com a sua obra para nos apercebermos da insistência com que o spleen e a Weltschmerz se erguem ao longo do seu Medo. Cercado pela solidão, praticamente fora de si próprio, o sujeito sabe entregar-se à amargura mas compensadora tirania de uma dor que só ele conhece e que, longe de ser causada por um motivo identificável, provém de uma presença-outra, inquietante e espectral, pairando sobre o sujeito como uma invisível e fatal condenação, qualquer coisa que devagar toma conta de cada pensamento ou cada gesto, o que leva à preguiça e à imobilidade.

30. AMARAL. Al Berto: um lirismo do excesso e da melancolia, p. 125.

nomear o mundo e suas vicissitudes. A melancolia pode também ser entendida como algo associado à perda de identidade e de laços do sujeito com a comunidade, ou mesmo à ausência de uma ideologia a que se apegar; ou, ainda, à sua própria disposição em direção à imobilidade. Assim, a busca de sentido para a vida narrada por essa voz dá, paradoxalmente, um caráter alegremente soturno ou soturnamente alegre à obra, exaltando a relação agonística entre autor e escrita – “calou-se quando percebeu que escrever podia ser um vício feliz ou a única mentira suportável”31 – como se verá a seguir, sendo necessário recorrer a fontes teóricas mais específicas para a articulação. FOTOGRAFIA E MELANCOLIA

(...) o receio de mais tarde olhar nas fotografias e já não sentir pulsar no papel vida nenhuma Al Berto

Essa ambivalência aparece em Al Berto na relação do sujeito com a escrita, pois este se trata quase sempre de um escritor a

Nas artes visuais, desde a Idade Média, a melancolia determina uma iconografia à parte. É o que constata a pesquisa de doutorado de Susana Kampff Lages, transformada no livro Walter Benjamin: tradução e melancolia,32 no qual a autora examina algumas gravuras, indicando, sobretudo, a importância de Melencolia I (1514), do renascentista alemão Albrecht Dürer. Essa análise ressalta um ponto destacado pelos estudos já mencionados, a ambivalência inerente a toda disposição melancólica,

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Assim se ascende, pouco a pouco, seja a uma serenidade rara, seja, com maior frequência, ao desconforto acidioso de ficar parado e absorto, sem energia, vítima da mais insidiosa angústia.30

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31. AL BERTO. O medo, p. 350.

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32. Cf. LAGES. Walter Benjamin: tradução e melancolia, p. 38-52. A autora se respalda em seu estudo na obra “antológica” Saturn and Melancholy, dos autores R. Klibansky, F. Saxl & E. Panofsky.


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que se caracteriza pela oscilação entre posições contraditórias: alto e baixo, triste e alegre, espiritual e material, infernal e divino; e, ao nível da representação pictórica, entre claro e escuro, e caracteristicamente, na gravura, entre linha, cheia, e espaço, vazio. Entretanto, esses polos não se deixam apreender facilmente; apenas recorrendo a um terceiro elemento, à ideia de mediação, a oposição entre eles se torna produtiva, indo além de uma mera representação maniqueísta de afetos e conceitos.33

33. LAGES. Walter Benjamin: tradução e melancolia, p. 49.

As duplicidades dessa disposição são correlatas à representação do pintor Dürer. Observe-se a imagem da referida pintura. A respeito dela, Walter Benjamin, em Origem do drama trágico alemão, ressalta também os traços ambivalentes. O quadrado mágico que vemos desenhado num quadro por cima da cabeça da Melancolia de Dürer é o selo planetário de Júpiter, cuja influência se opõe às forças obscuras de Saturno. Ao lado deste quadro está pendurada a balança, uma alusão ao signo astrológico de Júpiter. (...) Sob esta influência jupteriana, as inspirações nefastas transformam-se em benéficas, se Saturno torna-se protector das mais sublimes pesquisas.34

Elementos igualmente contraditórios, além da característica propriamente soturna da melancolia, são encontrados em toda a poética al-bertiana; assim, em suas encenações fotográficas não seriam diferentes. Nelas, constata-se de

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34. BENJAMIN. 3. Origem do drama trágico alemão, p. 160.


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maneira mais rápida e contundente o diálogo com a tradição melancólica. A fotografia de Al Berto estampada na capa de O livro dos regressos, feita por Helder Lage, sugere aproximações com a imagem de Dürer, sobretudo por causa da pose, aparentemente despretensiosa, ao lado dos óculos escuros sobre a toalha de renda e “o cigarro quase como parte integrante da morfologia do corpo”.35 Manuel de Freitas, atento a tais inclinações de Al Berto, ao analisar a imagem aponta também para os objetos que o cercam, bem como para o estado de ânimo do encenador, pois nessa foto podemos ver uns óculos escuros depostos sobre a mesa, que metonimicamente sublinham as fundas olheiras do rosto do poeta. O rosto está apoiado pela mão esquerda, que segura um cigarro, enquanto a direita repousa sobre a mesa vazia, a alguma distância dos óculos. O olhar, a preto e branco, impregna-se de uma tristeza que não hesitaremos em considerar afim dos versos que nesse livro rememoram a infância.36

A fotografia aparece em Al Berto já em À procura do vento num jardim d’agosto (1977), ainda timidamente, entre as páginas da série “Os equinócios de Tangerina”.37 O retrato, de Sérgio da Costa e Silva, é de uma encenação de Al Berto agachado, sem camisa, com as mãos à altura da boca, cabelos desalinhados e olhos arregalados, expressando uma fisionomia que nos faz pensar em medo.38 Segundo Eduardo

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35. CASTRO. Autorretrato e construção da subjetividade na poesia de Al Berto, p. 77.

36. FREITAS. Me, myself and I, p. 60-61.

37. AL BERTO. À procura do vento num jardim d’agosto, p. 42.

38. Cf. FREITAS. Me, myself and I, p. 55.


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39. COELHO. Pensar a ausência em Al Berto, p. 13. 40. AL BERTO. O medo, p. 234. 41. AL BERTO. O medo, p. 370.

42. AL BERTO. O medo, p. 317.

43. AL BERTO. O medo, p. 220.

Prado Coelho, o medo em Al Berto também foi detectado e assinalado pela escritora Maria Gabriela Llansol e Joaquim Augusto, seu marido, em uma viagem que fizeram junto com Al Berto para a França. Eles “disseram que no comboio tinham falado com o Al Berto sobre o medo. O medo das capas do Al Berto, as suas encenações fotográficas contra o medo”.39 O vocábulo medo, diga-se de passagem, além de intitular a sua obra completa, é bastante reincidente em seus escritos: “medo de escrever”;40 ou, pelo contrário disso, para se dissipar de tal sensação: “escrevo para não me deixar invadir pelo medo”.41 O tema por vezes se apresenta de maneira irônica associado à fotografia: “vou destruir todas as imagens onde me reconheço / e passar o resto da vida assobiando ao medo”.42 Ou, ainda, presente do modo mais costumeiro, ligado à memória, à melancolia, como no último poema, “12”, do livro Trabalhos do olhar: não não tenho medo de morrer aqui nem receio os cães velocíssimos de guarda às azenhas não reveladas de teu corpo medo da memória sim... receio que as cabeças tristes dos galgos aqueçam na fulguração breve dos relâmpagos e corram repentinamente para fora do papel fotográfico destruindo estes preciosos trabalhos do olhar.43

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44. SONTAG. Sobre fotografia, p. 26.

Susan Sontag, em seu livro Sobre fotografia, adjetiva a arte fotográfica de variadas maneiras: nostálgica, melancólica, elegíaca e crepuscular, pois “toda foto testemunha a dissolução implacável do tempo”,44 equivalendo a uma prova inconteste de que algo aconteceu. Assim, o retrato configura-se tanto como uma “pseudopresença” quanto como uma “prova de ausência” que as pessoas podem guardar e reencontrar outras vezes, tornando-se um fragmento do mundo capturado em miniatura. Tal postulação é recorrente em Al Berto, como se pode perceber em Lunário, na voz de Beno: Um dia, mais tarde, olharia as poucas fotografias de Nému que guardara numa gaveta, e lembrar-se-ia certamente da noite de agonia em que resolvera queimá-las e não fora capaz de fazer. Tinha chegado à conclusão de que nenhuma delas lhe transmitia a leveza, a lentidão, a quase etérea beleza, os gestos precisos de Nému. As fotografias (...) tinham fixado instantes agora mortos, escondidos ou desfeitos lado a lado, no chão, e acabara sempre por perder a cronologia daquele rosto. O rosto de Nému.

45. AL BERTO. Lunário, p. 58-59.

A fotografia é associada a um certo sentimento melancólico, de perda do objeto, de algo que foi “possuído”, seja pessoa ou objeto, em um tempo que não volta mais, pois ela só pode ser pretérita. É certo pensar que todos os objetos que nos cercam e todas as expressões artísticas que chegam à nossa percepção também têm sua história, mas o que se diferencia na fotografia é o fato de ela congelar o instante no qual os objetos ou pessoas estavam num determinado momento. Assim, distingue-se da filmagem, por exemplo, que a partir das imagens (fotogramas) dispostas em determinada sequência, em velocidade, configura-se em uma imagem em movimento. Poderíamos pensar na pintura, que também é uma imagem fixa, mas, no entanto, ela não tem o caráter de referencialidade que é peculiar à arte fotográfica, mesmo os retratos pictóricos mais comuns no século XIX. Então, o retrato possui um estatuto mimético particular, referindo-se à pessoa em dado momento histórico por meio de uma legenda ou outro dado de identificação qualquer, conforme atesta a portuguesa Margarida Medeiros, em seu estudo sobre fotografia e narcisismo: a imagem parada é sempre perturbante: ela nega o movimento, a mobilidade e plasticidade do eu, a possibilidade de arrependimento e do remorso, ela nega sobretudo a afirmação da vida, porque nos transforma em coisa. Esse corte temporal apenas nos surge no retrato fotográfico, pela sua natureza instantânea e capturante.46

No entanto, encontrara em todas elas um sinal de Nému. Numa, o sorriso ou uma pálpebra, noutra, os cabelos, o sexo ou a curva do pescoço... mas nunca o retrato completo. E estes frágeis e tênues vestígios, dispersos pelas imagens, perseguiam-no como se tivessem sido graves acidentes ao longo da sua vida.45

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46. MEDEIROS. Fotografia e narcisismo, p. 50.


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A assertiva de Medeiros está em consonância com a concepção de Roland Barthes de que a fotografia é o particular absoluto, tendo em vista que reproduz ao infinito o que nunca mais pode ser repetido existencialmente.

47. BARTHES. A câmara clara, p. 20.

48. BARTHES. A câmara clara, p. 28-29.

49. AL BERTO. O medo, p. 237.

E aquele ou aquela que é fotografado, é o alvo, o referente, espécie de pequeno simulacro, de eídolon emitido pelo objeto, que de bom grado eu chamaria de Spectrum da Fotografia, porque essa palavra mantém, através de sua raiz, uma relação com o “espetáculo” e a ele acrescenta essa coisa um pouco terrível que há em toda fotografia: o retorno do morto.47

Nessa passagem de A câmara clara, um dos livros canônicos sobre os estudos fotográficos, é enfatizado novamente um dos traços fundamentais da melancolia: o seu caráter fantasmagórico. Paira em toda fotografia, sobretudo de pessoas, essa aura saturnina, pois “quando me descubro no produto dessa operação, o que vejo é que me tornei Todo-Imagem, isto é, a Morte em pessoa”.48 O sujeito torna-se objeto, torna-se passivo, mortificado por meio da impressão de sua imagem no papel, como escreve Al Berto ao associar a imobilidade da fotografia à morte:

Não é em vão que Al Berto escolheu a fotografia como um de seus assuntos, bem como para ser estampada em seus livros. O fascínio por essa arte se desdobra e agrega temas complexos, como a reflexão sobre a memória e a própria escrita e o estatuto do eu e sua posição no mundo, como explícito em seu escrito diarístico “O medo (1)”: com fotografias consolo a saudade do rapaz que fui, embora saiba que há muito se apagaram os sorrisos de teu rosto. envelhecemos separados, o eu das fotografias e o eu daquele que neste momento escreve. envelhecemos irremediavelmente, tenho pena, mas é tarde e estou cansado para as alegrias dum reencontro. não acredito na reconciliação. ainda menos no regresso ao sorriso que tenho nas fotografias. não estou aqui. nunca estive nelas. quase nada sei de mim.50

Essa disposição está em estreita relação com o que Barthes nos propõe a pensar sobre o assunto: Eu queria, em suma, que minha imagem, móbil, sacudida entre mil fotos variáveis, ao sabor das situações, das idades, coincidisse sempre com meu “eu” (...); mas é o contrário que é preciso dizer: sou “eu” que não coincido jamais com minha imagem; pois é a imagem que é pesada, imóvel, obstinada (por isso a sociedade se apoia nela), e sou “eu” que sou leve, dividido, disperso e que, como um ludião, não fico no lugar, agitan-

pernoito neste corpo magro espero a catástrofe basta manter-me imóvel e olhar o que fui na fotografia não... não voltarei a suicidar-me pelo menos esta noite estou longe de desejar a eternidade.49 EM  TESE

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50. AL BERTO. O medo, p. 224.


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51. BARTHES. A câmara clara, p. 24.

52. MEDEIROS. Fotografia e narcisismo, p. 55.

53. BARTHES. A câmara clara, p. 27.

54. BARTHES. A câmara clara, p. 22.

do-me em meu frasco: ah, se ao menos a Fotografia pudesse me dar um corpo neutro, anatômico, um corpo que nada signifique! Infelizmente, estou condenado pela Fotografia, que pensa agir bem, a ter sempre uma cara: meu corpo jamais encontra seu grau zero, ninguém o dá a ele.51

Ressalte-se que, de maneira geral, segundo Margarida Medeiros, a fotografia é “pseudo-real, pseudo-especular, mas ainda assim real e especular, [pois] vai permitir ao sujeito jogar um novo jogo: o da inclusão mágica, de si mesmo, no olhar do Outro”.52 Para Barthes, o retrato está sempre inserido num tecido cultural, havendo, nesse campo de forças, possibilidades de leitura conforme a época. Por conseguinte, quatro imaginários se entrecruzam nesse jogo: “aquele que eu me julgo, aquele que gostaria que me julgassem, aquele que o fotógrafo me julga e aquele de que ele se serve para exibir sua arte”.53 Daí advém o espaço para se pensar na pose da encenação para o retrato: “a partir do momento que me sinto olhado pela objetiva, tudo muda: ponho-me a ‘posar’, fabrico-me instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em imagem. Essa transformação é ativa: sinto que a Fotografia cria meu corpo ou mortifica-o, a seu bel-prazer”.54 A pose está incluída, ao lado dos objetos colocados em cena, da trucagem, da fotogenia, do esteticismo e da sintaxe, como “procedimentos de conotação” da fotografia, EM  TESE

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55. BARTHES. A mensagem fotográfica, p. 16.

56. BARTHES. A mensagem fotográfica, p. 17.

57. A fotografia de Al Berto desaparece nas reedições de O medo de 1997 e 2000. O livro é editado apenas com as referências básicas para a distinção da obra – título, autor e editora. A capa é negra, com as lombadas arroxeadas, em alusão à morte recente do autor.

aspecto que Barthes desenvolve no ensaio “A mensagem fotográfica”, do livro O óbvio e o obtuso. Sobre os três primeiros procedimentos referidos, Barthes diz não serem específicos dessa arte, visto que: “a conotação é produzida por uma modificação do próprio real, isto é, da mensagem denotada (...); se o incluímos, porém, nos procedimentos de conotação fotográfica, é porque também se beneficiam do prestígio da denotação”.55 Ou seja, esses procedimentos conotativos agregam sentido à mensagem fotográfica e estão sempre subjugados à leitura de uma determinada cultura, isto é, sob a interferência de certos valores. Vejam-se apenas os procedimentos encontrados em Al Berto: a pose e o objeto. O primeiro resulta de um efeito do fato que “o leitor recebe como uma simples denotação o que é, na verdade, uma estrutura dupla, denotada-conotada”.56 O poeta-performer utilizava esse artifício em todas as suas fotografias. Seu retrato mais conhecido e difundido pela imprensa encontra-se na capa da obra reunida O medo (1987), fotografada por Nozolino.57 A encenação é uma referência a Michelangelo Caravaggio (15711610), pintor considerado enigmático, fascinante e perigoso – adjetivos encontrados igualmente no retrato al-bertiano. Ao examinar essa fotografia, infere-se certa intenção do bardo de dialogar com a época caravaggiana, atribuindo, dessa forma, uma justaposição temporal, trazendo mais elementos para sua análise, pois a imagem refere-se simultaneamente aos períodos medieval e barroco. Com relação à Idade Medieval, podemos EM  TESE

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destacar a alusão da imagem aos retratos pictóricos do fim dessa época – prática habitual –, devido à proximidade de Caravaggio a esse período e à afecção dos monges em seus claustros tomados pelo flagelo acidioso, representados pelas cores negra, ao fundo, e vermelho-sangue, do manto, além da sombra – o espectro humano – do poeta projetada numa parede. É essa imagem que primeiramente me punge ao mirar essa fotografia, pois a partir dela é refletida a possibilidade de articulação da teoria aristotélica do fantasma, apontada por Giorgio Agamben, com a pneumatologia estoico-médico-neoplatônica, em que uma experiência que é, ao mesmo tempo e na mesma medida, “movimento espiritual” e processo fantasmático. Só esta complexa herança cultural pode explicar a característica dimensão, contemporaneamente real e irreal, fisiológica e soteriológica, objetiva e subjetiva, que a experiência erótica tem na lírica estilo-novista. O objeto do amor é, com efeito, um fantasma, mas tal fantasma é um “espírito”, inserido, como tal, em um círculo pneumático no qual ficam abolidas e confundidas as fronteiras entre o exterior e o interior, o corpóreo e incorpóreo, o desejo e o seu objeto.58

Vale a pena também lembrar que esse período foi glorioso para a poesia galaico-portuguesa (período trovadoresco), a qual, em sua grande parte, cantava a ausência do amor. O torso nu traz uma leve erotização à imagem, acrescida à

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58. AGAMBEN. Estâncias, p. 182. Cf. AGAMBEN. A palavra e o fantasma – a teoria do fantasma na poesia de amor do século xiii. Estâncias, p. 119-214.


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59. BARTHES. A câmara clara, p. 27.

pose dual entre o êxtase e a aflição expressa em seu rosto, além das mãos teatralmente dispostas: uma lânguida sobre o pescoço, levemente erotizada, sugerindo um movimento ascendente e, a outra, tensionada, comprimindo-se para baixo (para despir o manto?). Dessa forma, retomando Barthes, a fotografia representa o “momento muito sutil em que, para dizer a verdade, não sou nem um sujeito nem um objeto, mas antes um sujeito que se sente tornar-se objeto: vivo então uma microexperiência da morte (do parêntese): torno-me verdadeiramente espectro”.59 Nesta altura, essa referida dualidade também aponta elementos para uma breve aproximação ao Barroco – época à qual o pintor Caravaggio é normalmente identificado, destacando-se como o primeiro grande representante desse estilo –, tendo em vista que, além do certo caráter religioso sugerido pela fotografia, percebe-se, em especial, a evidência da contradição – prazer e dor, forte e fraco, infernal e divino, espiritual e material – traços característicos desse período. O segundo procedimento de conotação referido por Barthes, o objeto, são propriamente os objetos encontrados na cena, capturados pela objetiva. É certo que a pose predomina em Al Berto, pois é o que, geralmente, mais chama a atenção em suas fotos, sobretudo a expressão facial. Porém, numa segunda instância, percebem-se os objetos dispostos teatralmente na última imagem a analisar, na qual se vê

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o cigarro mais uma vez à mão e as asas do homem alado. Barthes novamente nos ajuda a pensar acerca dos objetos em cena: o interesse está no fato de que esses objetos são indutores comuns de associações de ideias (biblioteca = intelectual) ou, de maneira menos evidente, verdadeiros símbolos (a porta da câmara de gás de Chessmann remete à porta fúnebre das antigas mitologias). Esses objetos constituem excelentes elementos de significação: por um lado, são descontínuos e completos em si mesmos, o que, para um signo, é uma qualidade física; e, por outro lado, remetem a significantes claros, conhecidos; são, pois, elementos de um verdadeiro léxico, estáveis a ponto de se poder facilmente estabelecer sua sintaxe. (...) O objeto talvez não possua mais uma força, mas possui, certamente, um sentido.60

Nesta fotografia na capa de O anjo mudo, de Adriana Freire, Al Berto está posando para uma cena fake; em uma idade já madura, o poeta usa pequenas asas postiças (não esconde-se a alça à altura dos ombros), segurando um cigarro entre os dedos próximos ao peito, e, mais uma vez, a sombra – espectro – aparece projetada na parede ao fundo da imagem. O retrato é em preto e branco, trazendo nuanças entre claro e escuro, contrastes entre luz e sombra, caracterizando juntamente com o olhar sóbrio e levemente interrogativo – levando em GUIMARÃES. Fotografia e melancolia: Al Berto (e Barthes)

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60. BARTHES. A mensagem fotográfica, p. 17-18.


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consideração o franzido da testa – uma oscilação entre posições contraditórias, típicas da disposição melancólica. Além, é claro, de o próprio anjo ser uma figura paradoxal – lembre-se de Satanás, anjo mau e rebelde. Esse indício fica ainda mais caracterizado quando pensamos que a imagem traz um tom de provocação à moralidade religiosa, através dos objetos em diálogo colocados diante da objetiva: o par de asas fake e o cigarro arranjados em uma mesma linha – o profano e o sagrado, a terra e o céu, o vício e a virtude. Vista por esse ângulo, a cena torna-se demasiadamente irônica. Nesse jogo especular, as questões pertinentes à identidade/ alteridade, familiar/estranho, sujeito/objeto, real/imaginário, desdobram-se em consonantes e complexas estratégias do autor para se autorretratar, suscitam discussões acerca da autoria e da função do autor nos dias atuais, questões muito caras também a Roland Barthes. Em Al Berto, há maior valorização da fonte factual ou documental – a exemplo das fotografias –, com o intuito de tensionar os limites entre vida e obra, há nele a inclinação de estetização de sua própria vida, a exemplo do que propõe Gilles Deleuze, no ensaio “A literatura e a vida”: “escrever não é contar as próprias lembranças, suas viagens, seus amores e lutos, sonhos e fantasmas. Pecar por excesso de realidade ou de imaginação é a mesma coisa. (...) A literatura segue a via inversa, e só se instala descobrindo sob as aparentes pessoas a potência de um impessoal”.61

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61. DELEUZE. Crítica e clínica, p. 12-13.


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Assim, este estudo reclama a importância das artes fotográficas como paratexto na obra al-bertiana, pois é curioso constatar que elas foram alijadas da obra completa do autor nas sucessivas edições de O medo. Essa aproximação em Al Berto nos fornece estudos ainda mais promissores. Para finalizar, ratifica-se que as fotografias estão, sem dúvida, entre os fatores que ajudam a compreender a obra al-bertiana, sobretudo ao lado da abordagem aqui proposta, em contato com a melancolia e com os textos barthesianos. Acrescentase um trecho da belíssima narrativa “O esconderijo do homem triste”, presente na terceira parte de O anjo mudo, na qual a voz que se enuncia refere-se ao processo de revelação fotográfica, fundindo-se a ele. Mostra-se, também, o lugar onde o sujeito se esconde e demonstra o desejo de se tornar Todo-Imagem – ou Eu-Fotografia: Fui ter com um fotógrafo meu amigo e pedi-lhe para me retratar. Ele acendeu um foco de luz. Sentei-me no centro dele. A máquina disparou sem cessar. Gesticulei, abri os braços, mexi-me muito – como se soubesse que nunca mais o voltaria a fazer. Quando o meu amigo mergulhou o papel fotográfico no revelador, eu também mergulhei. Mas devo ter desmaiado uns segundos, talvez minutos, porque ao retomar consciência senti as pernas e os braços dormentes – e todo o meu corpo estava mole. EM  TESE

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Um véu de luz toldou-me a visão. Ceguei por instantes, mas não foi uma sensação desagradável. Depois, o corpo começou a ondear, a impregnar-se no papel e a coincidir com o retrato que o meu amigo fizera de mim. Segundos mais tarde uma pinça – e toda a superfície da folha de papel, o meu novo corpo, brilhou. Em seguida deixei-me entorpecer na temperatura tépida, voluptuosa do fixador. Tinha encontrado meu esconderijo.62 REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Trad. Selvino José Assmann. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007. AL BERTO. Projectos 69. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002 [1972]. AL BERTO. À procura do vento num jardim d’agosto (fragmentos dum exílio) 1974-75. Lisboa: Alberto R. Pidwell Tavares, Editor, col. Subúrbios n. 2, 1977. (Capa de Alberto R. Pidwell Tavares). AL BERTO. Lunário. Lisboa: Contexto, 1988. Capa: fotografia do autor s/ autoria. 2ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 1999. (Capa: fotografia do autor s/ autoria). AL BERTO. O anjo mudo. Lisboa: Contexto, 1993. (Capa e contracapa: fotografias de Al Berto por Luísa Ferreira). 2ª ed. Assírio & Alvim, 2000. (Fotografia do autor por Adriana Freire).

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62. AL BERTO. O anjo mudo, p. 75-76.


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BECKETT COM DELEUZE: TECITURAS POSSÍVEIS DO ESGOTAMENTO

Fabiana Campos Baptista*

* fabianabap@ig.com.br Doutora em Psicopatologia e Psicanálise pela Universidade Paris Diderot Sorbonne Cité, Professora do Centro Universitário de Belo Horizonte.

RESUMO: Defendendo a ideia de que a tarefa maior do escritor contemporâneo é denunciar o caráter ilusório da arte representativa, o autor irlandês Samuel Beckett realiza em sua obra um processo, nomeado por Deleuze, de esgotamento da linguagem. Primeiramente, mostraremos esse exercício beckettiano na busca do esgotamento da linguagem em sua trilogia romanesca do pós-guerra. Em seguida, mostraremos como em suas peças para televisão, pouco analisadas por seus críticos, esse projeto de esgotamento se fará presente, indo inclusive mais além: Beckett propõe não somente esgotar as palavras e as vozes, mas esgotar todas as possibilidades de expressão através do espaço e das imagens.

RÉSUMÉ: A partir de l’idée que la tâche de l’écrivain contemporain est celle de montrer le caractère illusoire de l’art représentative, l’écrivain irlandais Samuel Beckett réalise dans son œuvre un processus, nommé par Deleuze, d’épuisement du langage. D’abord, nous allons montrer cette recherche de l’épuisement du langage dans sa trilogie romanesque du post guerre. Ensuite, nous allons montrer comment dans les pièces pour la télévision, peu analysés par ses critiques, le projet d’épuisement du langage sera présent, mais situé dans un au-delà: Beckett propose non seulement épuiser les mots et les voix, mais aussi d’épuiser toutes les possibilités d’expression à travers l’espace et les images.

PALAVRAS-CHAVE: esgotamento da linguagem; imagens; vozes; Beckett; Deleuze.

MOTS-CLÉS: épuisement du langage; images; voix; Beckett; Deleuze.


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INTRODUÇÃO

Em uma leitura das peças televisivas do escritor irlandês Samuel Beckett, o filósofo Gilles Deleuze desenvolve um conceito que, segundo ele, perpassa toda a obra beckettiana, desde a prosa linear e quase realista da juventude até as últimas peças, marcadas por um forte minimalismo e pelo abandono do suporte da linguagem. Esse conceito, chamado de “O esgotado”, é finamente destrinchado em uma publicação que Deleuze faz em 1992 e que foi anexada como posfácio de um livro que reúne quatro roteiros de peças para televisão de Beckett – Quad, Trio de Fântome, …que nuages… e Nacht und Traüme. Escritos primeiramente em inglês e publicados em 1980, esses roteiros irão ser objeto de estudo para Deleuze, que, em seu interesse pela imagem cinematográfica, irá articular a obra de Beckett a uma nova percepção de leitura, ligada à ideia da capacidade da imagem em produzir um evento. A análise deleuziana da obra de Beckett fará uso de uma noção nomeada por ele de “língua”, que, juntamente com o conceito de “esgotado”, servirão de norte teórico para a compreensão do caminho percorrido pelo escritor para livrar-se, paulatinamente, do suporte da linguagem. Assim, partindo da combinatória, o filósofo observa que em Beckett há uma preocupação com o que ele chama de processo de esgotamento da linguagem, processo esse que será realizado, primeiramente, através da combinatória exaustiva das palavras, em seguida das EM  TESE

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vozes e por último do espaço e das imagens. Essa combinatória exaustiva dará, então, origem a quatro maneiras de esgotar o possível: “língua I – língua de nomes”, “língua II – língua de vozes” ou “língua III – língua de espaços e de imagens”. Essas línguas evidenciam os movimentos de esgotamento do possível que perpassa toda a obra beckettiana. Haveria, assim, quatro caminhos para se esgotar o possível em Beckett: formando séries exaustivas de palavras, estancando-se os fluxos das vozes, extenuando as potencialidades do espaço ou dissipando a potência da imagem.1 Para compreendermos como se constituem essas línguas que promovem o esgotamento do possível, vejamos como Deleuze entende a figura do esgotado. A FIGURA DO ESGOTADO EM DELEUZE

Distinguindo a fadiga do esgotamento, Deleuze precisa que estar esgotado é estar ativo para nada. A figura do fatigado é apresentada como aquele que esgotou todas as possibilidades de um acontecimento qualquer se realizar. Ele explorou todo o possível e por isso se encontra fatigado dessa execução exaustiva. Para o fatigado, há sempre um objetivo a ser cumprido ao se realizar determinada tarefa. Para sair, explicita Deleuze, calçamos sapatos; para ficar em casa, pantufas. Se faz dia, saímos para realizar uma ação; se faz noite, ficamos em casa. Realizar o possível significa realizar uma ação levando-se em conta determinados objetivos e certas preferências pessoais. A realização é um horizonte de possibilidades. BAPTISTA. Beckett com Deleuze: tecituras possíveis do esgotamento

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1. DELEUZE. L’épuisé, p. 66-67.


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Contrapondo-se à figura do fatigado, Deleuze nota que o esgotado é aquele que renunciou a esses objetivos, que renunciou à realização de algo visando um objetivo específico e que renunciou até mesmo à realização de algo segundo suas preferências. A figura do esgotado nos remete àquele que, tendo explorado todas as possibilidades, as esgota de tal forma que o sentido daquela ação se perde completamente. Aliás, a preocupação do esgotado não é com o sentido, mas com a própria exploração de todas as possibilidades do possível. Para esgotar o possível, Deleuze sublinha que se deve primeiramente realizar a arte ou a ciência da combinatória. O que importa na combinatória não é exatamente o sentido das ações ou das palavras em si, mas a articulação delas entre si. O objetivo dessa combinatória é o próprio ato de combinar. Preocupa-se com o número de maneira que se pode arrumar determinados elementos em posições diversas, em que cada maneira se diferencie, por exemplo, pela ordem em que os elementos aparecem na série. Para se realizar essa combinatória é preciso, entretanto, “ser esgotado”, isto é, realizar a combinatória só faz sentido se o próprio sujeito se apresente como esgotado. O esgotado é aquele que renunciou a toda ordem de preferência, que renunciou à realização de objetivos, que renunciou à significação das palavras e das coisas. É preciso assim que ele seja bastante desinteressado e bastante escrupuloso.

Para explicitar como a figura do esgotado e as formas de esgotamento se tecem nos escritos de Beckett, Deleuze parte do pressuposto que a função primordial da linguagem é nomear o possível. Ele chama de língua I a língua de nomes, que é uma língua que enumera os objetos e as palavras. Ela aparece notadamente nos romances e nas peças de teatro do pós-guerra, tais como Malone Morre ou Esperando Godot. A língua I corresponde à primeira maneira de esgotar o possível, através da formação infinita e quase exaustiva de séries de coisas, de objetos ou de palavras. Trata-se de uma língua que visa combinar, seriar e associar palavras ou objetos, realizando inventários. É uma língua “atômica, disjuntiva, cortada, picada, em que a enumeração substitui as proposições, e as relações combinatórias, as relações sintaxes: uma língua de nomes”2. Para que essa associação de palavras e de coisas seja possível, é preciso que as relações de coisas sejam idênticas às relações de palavras, de tal modo que as palavras não simplesmente permitam a realização do possível, mas que deem a esse possível uma realidade que o seja própria, mais precisamente esgotável. Na realização desse esgotamento das palavras através da combinatória exaustiva, Beckett evita se ocupar do sentido das palavras, das frases ou da própria história, produzindo romances provocadores, de difícil leitura e por vezes considerados pela crítica como obscuros.

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2. DELEUZE. L’épuisé, p. 66.


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A FIGURA DO ESGOTADO EM BECKETT

Na trilogia romanesca do pós-guerra, composta por Molloy, Malone Morre e O Inominável, podemos observar o uso que Beckett faz dessa “língua de nomes”, até ultrapassá-la e passar a usar a língua II, “língua de vozes”. Considerada como um grande monólogo de um mesmo personagem, a trilogia encena, de modo gradativo, o processo de fracasso da linguagem em dar conta de representar sua experiência subjetiva. Este narrador-personagem atravessa a obra beckettiana, deixando rastros de sua escrita nominativa e enumerativa, apontando para as experiências de um corpo macilento e pálido em um espaço literário cada vez mais retraído. A linguagem é, assim, um meio e um muro: um meio de se ter acesso às experiências subjetivas e um muro que impede a simbolização total dessas experiências. O personagem aceita o acesso à linguagem para em seguida negá-la, é um “sim” para um “não”: Molloy a utiliza como ferramenta de trabalho, Malone a utiliza para esperar a morte e O Inominável a utiliza em seu aspecto fonético e a nega, mostrando que nem tudo pode ser passado à palavra. Assim, a língua I aparece na trilogia, segundo Deleuze, como um experimento beckettiano, em que ele opera pela via da combinatória exaustiva das palavras e das coisas. Em Molloy, a personagem vive, após um período de errância forçada, em um espaço delimitado, mais propriamente, o

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quarto de sua mãe. Molloy se movia até então por inércia, mostra-se incapaz de se lembrar porque iniciou seu relato e sua existência é quase um fardo. Ele está só, doente, velho. É das palavras que tira seu sustento, escrevendo folhas que “eles” o levam, a recompensa vinda de sua produtividade. Suas histórias são, assim, relatadas por uma espécie de compulsão interior, revelando que a obsessão pela escrita aponta para o fato de que a linguagem não serve. Esta, desgastada e incapaz de levar ao diálogo, não dá conta nem mesmo de elaborar um discurso interior reconfortante. Sua maneira de esgotar o possível emerge de forma inusitada na célebre cena em que Molloy se ocupa de suas pedras de chupar. Ele as combina de tal forma a produzir o esgotamento das possiblidades. O esgotamento é extenuado, dissipado, e renuncia a qualquer organização em torno de um objetivo: Bom. Agora posso começar a chupar. Olhem bem para mim. Pego uma pedra no bolso direito do casaco, chupo-a, não a chupo mais, coloco-a no bolso esquerdo do casaco, o vazio (de pedras). Pego uma segunda pedra no bolso direito do casaco, chupo-a, coloco-a no bolso esquerdo do casaco. E assim por diante, até que o bolso direito do casaco esteja vazio (fora seu conteúdo habitual e de passagem) e que as seis pedras que acabo de chupar, uma após a outra, estejam todas no bolso esquerdo do casaco. Parando então, e me concentrando, pois trata-se de não fazer uma besteira, transfiro para o bolso di-

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3. BECKETT. Molloy, p. 106.

4. BECKETT. Malone Morre, p. 09.

reito do casaco, onde não há mais pedras, as cinco pedras do bolso direito das calças, que substituo pelas cinco pedras do bolso esquerdo das calças, que substituo pelas seis pedras do bolso esquerdo do casaco; eis então que não há de novo mais pedras no bolso esquerdo do meu casaco, enquanto o bolso direito do meu casaco está de novo guarnecido, e da maneira certa, quer dizer, com pedras diferentes daquelas que acabo de chupar e que me ponho a chupar por sua vez, uma após a outra, e a transferir gradativamente para o bolso esquerdo do meu casaco, tendo a certeza, tanto quanto se pode ter certeza com essa ordem de ideias, de que não chupo as mesmas pedras que ainda há pouco, mas outras (…). E aqui estou pronto para recomeçar. Devo continuar? Não, pois está claro que ao fim da próxima série de chupadas e transferências, a situação inicial se restabelecerá.3

De Molloy, personagem que consegue se manter em um corpo, ainda que errante, Beckett dá origem, no segundo romance da trilogia, a Malone, que espera a morte em sua cama. Aliás, sua única preocupação é acabar de morrer. Malone espera – não Godot – mas o último golpe que vai, finalmente, retirá-lo a vida: “logo enfim vou estar bem morto apesar de tudo. (…). Poderia morrer hoje, se quisesse, fazendo um pequeno esforço, seu eu pudesse querer, se eu pudesse fazer um esforço. Mas não me custa nada me deixar morrer, quietinho, sem precipitar as coisas”.4 Enquanto

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a morte não vem, Malone se conta histórias. Seu material consiste em um pequeno lápis, um pedaço de papel e ideias. Ele escreve pequenas histórias, inventadas na hora – textos para nada – em uma tentativa insólita de fazer o tempo passar mais rápido, enquanto a morte não vem. Seu espaço reduz-se a um quarto repleto de palavras e histórias que delimitam um espaço literário. Se seu corpo é moribundo, seu psiquismo fala através dessas histórias sem sentido ou mesmo através do silêncio: “sim, não preciso refletir, nem antes nem depois, é só abrir a boca para que ela preste testemunho sobre minha velha história e sobre o longo silêncio que me deixou mudo, tanto que agora tudo é silêncio. E se um dia eu me calar, é porque não há mais nada a dizer, embora nada tenha sido dito”.5 Entretanto, para esgotar o possível com as palavras é preciso ir mais além, pois será preciso esgotar as próprias palavras, ou seja, tentar não mais precisar delas. Deleuze mostra que a superação ou o abandono da superfície das palavras não será alcançada com a língua de nomes, mas com uma outra língua, chamada por ele de língua de vozes. Tal língua não se interessa pela combinatória exaustiva de nomes e de objetos, mas por seu fluxo. As vozes, tomadas como ondas que distribuem as palavras, permitem estancar o fluxo. Essa preocupação beckettiana em fazer desabar o edifício de palavras surge claramente com O Inominável: estamos diante de

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5. BECKETT. Malone Morre, p. 79.


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uma “bola falante” sem nome. O que existe aqui é uma voz - ou vozes - que falam sem cessar. Não se trata mais exatamente de produzir significados, mas de inventar histórias, evocar lembranças, construir narrativas sem fazer apelo ao sentido. O “eu” não habita um corpo, mas é reduzido a uma rede de palavras, ou mais precisamente, a uma máquina de palavras, funcionando de forma quase autônoma:

6. BECKETT. O Inominável, p. 150.

Sou toda uma outra coisa, uma coisa muda, num lugar duro, vazio, fechado, seco, nítido, negro, onde nada se mexe, nada fala, e que eu escuto, e que eu ouço, e que eu procuro, como um animal nascido numa jaula de animais nascidos numa jaula de animais nascidos numa jaula de animais nascidos numa jaula de animais nascidos numa jaula de animais nascidos numa jaula de animais nascidos e mortos numa jaula de animais nascidos e mortos numa jaula de animais nascidos numa jaula mortos numa jaula nascidos e mortos nascidos e mortos nua jaula numa jaula nascidos e depois mortos nascidos e depois mortos.6

Seu monólogo interior faz existir um referente enigmático que não nos permite chegar à significação do que ele diz. O Inominável atesta que as palavras não servem e seu discurso é produzido à duras penas, em que cada palavra se junta à outra, não produzindo, entretanto, um sentido. O estilo de seu texto se define por uma contínua recapitulação EM  TESE

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para apagar os traços da escrita, produzindo no leitor um efeito perturbador. Neste romance, não há “nada de eu, nada de ter, nada de ser. Nada de nominativo, nada de acusativo, nada de verbo. Não há meio de ir adiante”.7 Assim, Beckett evoca não personagens protegidos por um nome, mas a vozes que ecoam nesse personagem: “mas é unicamente uma questão de vozes, qualquer outra imagem deve ser afastada”8 e mais adiante: “é uma questão de palavras, de vozes, é preciso não esquecer”.9 É o Outro que será o enunciador das palavras, já que, afinal, a língua é sempre estrangeira. Operando a linguagem dessa forma, Beckett rejeita todo recurso possível ao sentido, em que a língua aparece e se mostra a partir daquilo que é ela realmente: essencialmente xenopática. A referência é sempre ao que falha e ao que faz ruptura na fala e na aparelhagem do discurso. Retendo a significação à referência, Beckett nos mostra a linguagem como uma sequência de palavras, de significantes articulados entre si, confinados ao fora de sentido e se produzindo a partir de uma perda fundamental quanto ao Outro. Este romance faz assim vibrar o vazio – e não o sentido – apontando para a escolha de uma solidão radical, que prescinde do Outro.10 Os personagens evocados pelo Inominável fazem parte dele mesmo, são na verdade múltiplas facetas de um Eu fragmentado, sem individuação. As vozes se proliferam e falam através dele, sem que ele tenha

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7. BECKETT. O Inominável, p. 42.

8. BECKETT. O Inominável , p. 100. 9. BECKETT. O Inominável , p. 147.

10. BAPTISTA. Les écrits innommables de Samuel Beckett, p. 23.


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controle sobre isso. São as variadas entonações e modulações da voz que evocam uma gramática pulsional, puro encontro com a língua e seus efeitos sobre o corpo.

11. BLANCHOT. Le livre à venir, p. 35.

12. ANDRADE. Samuel Beckett: o silêncio possível, p. 56.

13. BECKETT. L’image, p. 18.

Ao discutir sobre o lugar da escrita, do vazio e da obscuridade do eu nos textos beckettianos, Blanchot afirma que estes giram constantemente em torno de uma fala errante, ávida e exigente.11 Blanchot aponta que, nessa trilogia, ocorre a retração espacial e egoica do personagem, que é um só. Ele se questiona quem é esse que fala no Inominável, quem é esse eu condenado a falar sem repouso e sem descanso. Há um lugar vazio a partir do qual se estrutura uma fala vazia, coberta apenas de um eu poroso e agonizante. Para ele, o ato de escrever faz funcionar um espaço coberto pelo anonimato da linguagem. Beckett inventa e se reinventa, em uma tentativa paulatina de colocar em prática seu projeto estético apresentado ainda em 1936, em uma carta dirigida a um colega alemão.12 O autor irlandês defende que o esgotamento da linguagem é a tarefa maior do escritor contemporâneo. Se esse projeto estético de esgotamento da linguagem se esboça na trilogia, será nas peças para televisão, pouco analisadas por seus críticos, que esse projeto de esgotamento se fará presente, indo inclusive mais além: Beckett propõe não somente esgotar as palavras e as vozes ou esgotar a linguagem, mas esgotar todas as possibilidades de expressão através do espaço e das EM  TESE

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imagens. Beckett é bem claro ao apresentar, por exemplo, sua peça para televisão, Quad: trata-se de esgotar o espaço. O esgotado, tomado aqui não no sentido negativo, mas no sentido positivo de abertura para uma gama de infinitas possibilidades, dá a ver o valor de uma obra. O esgotado revela a invenção desse modo menor do dizer, em um “work in regress”. Mas de que se trata esse esgotamento? Como é possível esgotar o espaço ou as imagens? “FAZER UMA IMAGEM”

Segundo Deleuze, após ter esgotado o possível através das palavras e em seguida das vozes, Beckett continuará seu exercício de esgotamento através das imagens e do espaço. Esse processo de esgotamento via imagens e espaço será o foco da análise de Deleuze, em um segundo momento. Não mais combinatórias, séries, objetos enumeráveis, mas buracos ou alguma coisa que se refira ao visual ou ao sonoro. Essa é a língua III, totalmente liberada do aprisionamento das palavras e das vozes, pois não mais se trata de criar uma imaginação que evoque a memória, não mais se trata de criar vozes que evoquem lembranças insuportáveis ou histórias absurdas. Trata-se de criar uma imagem pura, que não esteja ligada a nenhuma lembrança. Trata-se de produzir, ou melhor dizendo, de “fazer uma imagem” – “c’est fait je fait l’image” –,13 que não é um objeto, mas um processo de criação com duração limitada. BAPTISTA. Beckett com Deleuze: tecituras possíveis do esgotamento

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Para se esgotar o possível através das imagens, Beckett faz uso de seu caráter efêmero: uma imagem “que é feita” tem a duração do nosso olhar sobre ela. Em ...que nuages... o rosto feminino aparece quase sem cabeça, como um rosto suspenso no vazio. Ele será revelado somente no final da peça, aparecendo como cabeça morta, sob os apelos obsessivos do personagem H pedindo que o rosto retorne. Esse rosto se inclina, vira para o lado, se apaga e se desfaz exatamente como uma nuvem ou uma fumaça de neblina. A imagem se dissipa como as nuvens que passam pelo céu, tal como indicado no poema de William Buttler Yeats, que dá título à peça.

entanto, utilizar o auxílio das palavras. A fala não está necessariamente articulada a um discurso, já que se apoia em uma vertente libidinal e não em seus efeitos de significação. Por sua vez, a imagem não é definida por seu conteúdo, mas sobretudo por sua forma, por uma espécie de tensão interna, que a permite de se liberar de lembranças. Ela não é um objeto, mas um processo indefinido e efêmero, aparecendo àquele que a faz como uma repetição visual ou sonora, que se compõe e se decompõe de forma exaustiva.

Certamente as imagens se proliferam em uma série de romances beckettianos, mas na televisão elas ganham um contorno diferente. Em Trio de Fantôme, por exemplo, o velho personagem S (silhueta) termina a cena levantando a cabeça e mostrando seu rosto gasto. A imagem se apaga nesse momento, em que a composição de Beethoven, que dá origem ao nome da peça – Trio para piano, viola e violoncelo, Opus 71, número 1, conhecido como O Fantasma – parece ecoar do gravador que o velho mantinha todo o tempo em seu colo. É interessante notar como a ideia de Beckett é de iniciar a peça com uma voz feminina que tem como função descrever o local da ação, da qual ela não participa. Ela introduz, na verdade, os elementos que irão compor a imagem da personagem S, até que a imagem falará por si só, sem, no

A língua III remete também ao espaço, mais precisamente à sua vastidão. Tal espaço deve ser um espaço qualquer, desafetado, ou um espaço que nunca foi afetado, ainda que ele seja bem determinado geometricamente. O espaço é, pois, uma repetição motora, onde se encenam posturas e posições. O esgotamento do espaço aparecerá de forma clara na peça Quad.

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A VASTIDÃO LIMITADA DE QUAD

Em Quad, peça televisiva escrita originalmente em inglês em 1980, o esgotamento aparece em seu estado puro e nos interroga sobre seu lugar na obra de Beckett. Composta para a televisão e traduzida pelo próprio autor para o francês, Quad foi encenada pela primeira vez em 1981 pela Stüddeutscher Rundfunk e transmitida pela RFA. É uma peça composta por quatro intérpretes, de preferência com

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alguma experiência na dança, que percorrem uma área determinada e seguindo um trajeto pessoal igualmente pré-determinado. As indicações cênicas de Beckett são extremamente precisas e imutáveis. A área onde os intérpretes devem realizar seu traçado é a forma de um quadrado, cujo título Quad vem justificar essa apócope de quadrilátero. Trata-se de percorrer o quadrado de forma a esgotar suas potencialidades. Para fazê-lo, os intérpretes devem percorrer toda a área do quadrado a partir de trajetos que formam combinações variadas e nunca iguais. Cada um terá uma trajetória bem delimitada e seguirá seu caminho sem se chocar com o outro intérprete, que também terá seu caminho determinado previamente.

e dá início a uma nova combinatória, que começará pelo trajeto solo do intérprete 2. Todos esses movimentos devem ser executados de forma ininterrupta pelos intérpretes, que serão filmados por uma câmera única e fixa, colocada ao alto do quadrado. Os solos possíveis a serem realizados pelos intérpretes devem ser todos esgotados, como bem indica Beckett: “quatro solos possíveis, todos assim esgotados. Seis duos possíveis (de dois a dois), todos assim esgotados. Quatro trios possíveis duas vezes, todos assim esgotados. Sem se chocarem, começar, continuar e fechar ao fundo em 1, que termina seu trajeto sozinho”.14

Assim, o intérprete 1 traçará um trajeto que vai de AC, CB, BA, AD, DB, BC, CD e DA. O trajeto de 2 será BA, AD, DB, BC, CD, DA, AC e CB, o do intérprete 3 será CD, DA, AC, CB, BA, AD, DB e BC. E o trajeto de 4 será DB, BC, CD, DA, AC, CB, BA e AD. O intérprete 1 entrará em A, realizará seu trajeto e em seguida 3 irá se juntar a ele. Eles seguirão seus trajetos e 4 se juntará eles. Juntos, eles realizarão seus trajetos e 2 se juntará a eles. Finalmente, os quatro realizarão juntos seus trajetos até que o intérprete 1 saia de cena. Os outros continuarão seus trajetos, até que o intérprete 3 saia de cena. Os intérpretes 2 e 4 continuam a trajetória deles, até que 4 abandone a cena. A primeira série é assim esgotada

Cada um dos intérpretes terá uma luz de cor específica que se acenderá a cada vez que entrar na área do quadrado. Vestidos de longas túnicas com capuz, os intérpretes devem ser tão parecidos quanto possível em estatura e a diferenciação entre eles se fará somente pela cor da roupa, a mesma cor que se acenderá assim que eles iniciarem seus trajetos. A peça é pura imagem, a música é garantida pelos passos e ruídos rítmicos de cada um durante o trajeto, como corpos que falam através dos sons que eles produzem. Assim os intérpretes caminham, desaparecem, retornam, somem e voltam a aparecer, marcando uma paisagem própria. A caminhada é fatigante, mas o que importa é o espaço a ser esgotado, pelas múltiplas combinatórias que se fazem. Aqui, o objeto a ser esgotado não é a palavra, mas as potencialidades de

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um espaço qualquer, mas limitado. As potencialidades desse espaço limitado referem-se à exploração de todas as suas possibilidades, dando suporte para que um acontecimento se realize. Quad é, assim, uma espécie de criação pictórica. Há na peça a visualização do tempo, fazendo de suas personagens prisioneiras do tempo, isto é, do quadrado. A exploração do espaço é exaustiva, pois ela investe em todos os pontos cardinais. Trata-se de recobrir e de percorrer todas as direções possíveis, em linha reta. Trata-se de considerar o espaço em um sentido novo. As potencialidades do espaço se referem à exploração de todas as suas possibilidades, dando suporte para que um acontecimento se realize. O espaço é, assim, anterior à realização e sua potencialidade pertence ao possível.

percepções buscando uma visão clara, concentrada, do ser interior fundamental”.15 Segundo ele, a tarefa do escritor deve ser a de mostrar a impossibilidade de representar a realidade subjetiva através das palavras. Essa tarefa será paulatinamente realizada em seus escritos que não cessarão de revelar que a linguagem representa, na verdade, a coisa morta. Ele leva o leitor a compreender que o significante não representa a coisa e que a palavra é a morte da coisa. Assim, o autor irlandês inventa uma estética bem original: nenhum recurso ao sentido e nenhuma referência ao Outro.

Essas línguas finamente destrinchadas por Deleuze se constituíram como uma maneira de se aproximar do exercício beckettiano do esgotamento. Ultrapassando a ideia de um certo niilismo, as análises de Deleuze apontam, ao contrário, para seu avesso: trata-se de se estar ativado, não para a realização de um objetivo qualquer, mas ativado para nada. Para escrever seus romances, Beckett insiste na ideia de que a arte provém do fato que “o artista deve se livrar de conhecimentos exteriores, a fim de refinar suas

Suportando cada vez menos as palavras, Beckett tenta fazer operar em sua obra, notadamente nas peças para televisão, sua dissolução. As palavras são plenas de significação, de intenções, de lembranças pessoais, de “velhos hábitos” que acabam por cimentá-las e aprisioná-las. Para Deleuze, faltam às palavras uma certa “pontuação de deiscência”. Seria somente a partir de seu esvaziamento, de seu esgotamento e do fim da “apoteose da palavra”, que poderíamos chegar à “criação do possível”, como aponta Pál Pelbart.16 Beckett ultrapassa essa limitação da linguagem notadamente ao construir suas peças para televisão, apresentando-as seja como palavras faladas, como em Quad, seja servindo-se delas para enumerar, apresentar ou servir de decoração, como em Trio de Fantôme.

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DA CRIAÇÃO DO POSSÍVEL

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15. BAIR. Samuel Beckett, p. 198.

16. PAL PELBART. O avesso do niilismo, p. 67.


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REFERÊNCIAS ANDRADE, Fábio. Samuel Beckett: o silêncio possível. São Paulo: Ateliê editorial, 2001. BAIR, Deirdre. Samuel Beckett. Traduit de l’anglais par Léo Dilé. Paris: Fayard, 1979. BAPTISTA, Fabiana. Effondrement du langage et inexistence de l’Autre dans L’Innommable de Samuel Beckett. 2010. Dissertação de mestrado. Université Paris 8. Paris, 28 de junho de 2010. BAPTISTA, Fabiana. Les écrits innommables de Samuel Beckett. La lettre mensuelle: revue des ACF, nº 306, 2011. BECKETT, Samuel. L’image. Paris: Les éditions de Minuit, 1988. BECKETT, Samuel. Malone Morre. São Paulo: Codex, 2004. BECKETT, Samuel. Molloy. São Paulo: Editora Globo, 2007. BECKETT, Samuel. O Inominável. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2009. BECKETT, Samuel. Quad et autres pièces pour la télévision. Paris: Les Éditions de Minuit, 1992. BLANCHOT, Maurice. Le livre à venir. Paris: Gallimard, 1986. DELEUZE, Gilles. L’épuisé. In: BECKETT, Samuel. Quad et autres pièces pour la télévision. Paris: Les Éditions de Minuit, 1992. PÁL PELBART, Peter. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: N-1 Edições, 2013.

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THE TEMPTATION SCENE IN ORSON WELLES’S AND FOLIAS D’ARTE’S ADAPTATIONS OF OTHELLO

Janaina Mirian Rosa* Ketlyn Mara Rosa**

* janainamrosa@yahoo.com.br ** ketlynrosa@yahoo.com.br Doutorandas do Programa de Pós-Graduação em Inglês: Estudos Linguísticos e Literários da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

RESUMO: O objetivo deste artigo é comparar e contrastar a representação da chamada cena da tentação no filme de Orson Welles intitulado Othello (1952) e na produção teatral de Otelo pelo grupo Folias d’Arte, que estreou em São Paulo, no ano de 2003, ambas adaptações da peça de William Shakespeare. A cena da tentação é considerada um momento crucial da peça, já que se refere ao momento em que Iago astutamente reúne todas as suas forças como estrategista para influenciar os pensamentos de Otelo com a ideia de que Desdemona está traindo o Mouro com Cássio − e Iago atinge seu objetivo.

ABSTRACT: The aim of this article is to compare and contrast the portrayal of the temptation scene in both Orson Welles’s film adaptation of William Shakespeare’s Othello (1952) and Folias d’Arte’s theatrical production of the same play, which premiered in 2003 in São Paulo, in order to identify and analyze the depiction of Iago’s manipulative schemes towards Othello. The temptation scene is considered a crucial moment in the play in which Iago cleverly gathers all his strength as a strategist to influence Othello’s mind with the idea that Desdemona is betraying him with Cassio−and Iago achieves such obstinate goal.

PALAVRAS-CHAVE: Orson Welles; Folias d’Arte; Othello; Cena da tentação.

KEYWORDS: Orson Welles; Folias d’Arte; Othello; Temptation scene.


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INTRODUCTION

It seems that throughout the years William Shakespeare’s works continue to inspire theater directors, as well as film directors to adapt Shakespeare’s plays. Each theatrical production and film adaptation of Shakespeare’s works offers a different reading and a unique interpretation of the plays, especially regarding some specific scenes that are considered crucial to the narrative and the building of the characters.

1. HELIODORA. Falando de Shakespeare, p. 122. The play’s central scene. The translation into English was provided by the authors of this article. 2. HONIGMANN in SHAKESPEARE. Othello, p. 104.

The temptation scene in Shakespeare’s Othello, a play which was highly influenced by Giraldi Cinthio’s short story, can be considered a vital moment in the play which reveals Iago’s abilities as a strategist. Barbara Heliodora in Falando de Shakespeare claims that such passage in Othello is the “cena central da peça”.1 E. A. J. Honigmann in the Arden Shakespeare edition of Othello endorses the importance of this passage when he points out that the temptation scene is one of the most impressive episodes of the play.2 This particular passage in Othello is located in act 3, scene 3, and represents the decisive moment when Iago puts into practice his schemes towards influencing Othello’s thoughts. During the temptation scene, Iago poisons Othello’s mind with the idea that Cassio is having an affair with the Moor’s − that is Othello’s − wife, Desdemona. From that moment on, Othello never recovers himself again, becoming deeply disturbed by jealousy, and a chain of unfortunate events escalate in the play. The aim of

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this article is to draw a comparison between one scene from Orson Welles’s film adaptation of Othello and Folias d’Arte’s theatrical production of the same play, more specifically the temptation scene. The analysis of this particular scene will consist in identifying and investigating the portrayal of Iago’s manipulative schemes against Othello through the cinematic and theatrical devices. OTHELLO’S MAIN SOURCE: GIRALDI CINTHIO’S NOVELLA

Before embarking on the analysis of scenes, it is quite significant to explore the fact that Giraldi Cinthio’s short story strongly influenced Shakespeare’s Othello. As Honigmann mentions, “The principal source of Othello is the seventh novella in the third decade of Giraldi Cinthio’s Hecatommithi (1565)”.3 Honigmann explains that Cinthio’s third decade stories are quite connected and related to the themes of “infidelity of husband and wives”.4 For instance, the sixth story tells the tale of a husband that seeks revenge for being betrayed by his wife, and therefore kills her and makes it look like an accident. The seventh story, the one that is closer to Shakespeare’s Othello, brings the same issues as in the previous tale.5 Such themes would be later refined in Othello. Other aspects of Cinthio’s seventh story can be observed in Shakespeare’s Othello. One of them regards the main characters, such as the ones in Cinthio’s story, the Moor,

ROSA; ROSA. The temptation scene in Orson Welles’s and Folias d’Arte’s […] p. 124-135

Crítica Literária, outras Artes e Mídias

3. HONIGMANN. Cinthio and minor sources, p. 368. 4. HONIGMANN. Cinthio and minor sources, p. 369.

5. HONIGMANN. Cinthio and minor sources, p. 370.


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Disdemona, the Corporal, and the Ensign. They are in fact quite similar to the characters in Shakespeare’s play, Othello, Desdemona, Michael Cassio, and Iago, respectively. However, Shakespeare cleverly added a new character in his story, and that would be Roderigo. Cinthio’s Ensign could be considered the blending of Iago and Roderigo, since in his story, the Ensign is in love with Disdemona and at the same time is considered a true villain, as it can be observed in the following passage of Cinthio’s seventh story, extracted from the Arden Shakespeare edition of Othello:

6. Quoted in HONIGMANN. Cinthio and minor sources, p. 373-374.

The Moor had in his company an Ensign of handsome presence but the most scoundrelly nature in the world. He has in high favour with the Moor, who had no suspicion of his wickedness; for although he had the basest of minds, he so cloaked the vileness hidden in his heart with high sounding and noble words, and by his Achilles. [...] The wicked Ensign, taking no account of the faith he had pledged to his wife, and of the friendship, loyalty and obligations he owed the Moor, fell ardently in love with Disdemona, and bent all his thoughts to see if he could manage to enjoy her; but he did not dare openly show his passion, fearing that if the Moor perceived it he might straightway kill him. [...] Turning over in his mind divers schemes, all wicked and treacherous, in the end he determined to accuse her of adultery and to make her husband believe that the Corporal was the adulterer.6

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Thus Shakespeare’s Roderigo is the character that would represent the Ensign’s feelings for the wife of the Moor, leaving enough room for Iago’s evilness to gradually develop in the story. By the addition of Roderigo, Shakespeare creates a more unscrupulous villain in Iago, a character that has somehow intrigued and captured the attention of the most various audiences throughout the world. Another similar aspect regarding Cinthio’s story and Shakespeare’s Othello is related to some details of the plot itself. The Ensign and Iago are solely focused on creating schemes to deceive their main targets, and do not mind if they hurt or even kill whoever crosses their paths. The Corporal and Cassio, as well as the Moor and Othello, become imminent targets of both villains, and the whole scheme eventually culminates in the death of various characters, including Disdemona and Desdemona. The handkerchief is also treated as the false proof to implicate that the Corporal and Disdemona, as well as Cassio and Desdemona, would be having an affair. Shakespeare greatly applied Cinthio’s seventh story as a source material in many ways, but he has also added other elements into Othello. For instance, in terms of plot, Iago does not help Othello to kill Desdemona, as it happens with the Ensign and the Moor. Besides that, perhaps in order to enhance the tragedy in the story, Othello does not deny ROSA; ROSA. The temptation scene in Orson Welles’s and Folias d’Arte’s […] p. 124-135

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7. HONIGMANN. Cinthio and minor sources, p. 387.

that he has killed Desdemona in front of the Venetians, and kills himself, as opposed to the Moor who denies the crime that he had committed and is later killed by Disdemona’s relatives. In addition Honigmann points out that “apart from Cinthio, many other writers and sources contributed to Othello”.7 Thus, Shakespeare, inspired by Cinthio’s short story and other sources, wrote an astounding tragic play, in which he created new characters and details in the plot, and added other elements. He has built the characters in a more complex manner in which contemporary adaptations, either in theatrical plays or films, continue to experiment as much as possible with different creative processes in order to portray their intrinsic relationships. Honigmann adds some final words on how Shakespeare has detached Othello from Cinthio’s story, for instance, by bringing a greater complexity to the characters and using the handkerchief as a significant element in the plot with heritage ties to Othello: But Shakespeare’s greatest effort went into characterization, converting Cinthio’s stereotype men and women, who exist only as plot mechanisms, into individuals interesting in themselves. Shakespeare’s imagination also seized on many details, some of them barely hinted at by Cinthio, and conjured gold out of dross (the threat form ‘the Turk’, the imagery of sea and water, a generalized sexual antagonism). The handkerchief becomes crucial exhibit in the play’s treatment

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of ‘chance’ and also brings with it glimpses of the Egyptian and sibyl, and of Othello’s father and mother. [...] Anyone who thinks of Othello as a short story blown up beyond its capacity should keep in mind that Shakespeare packed into it much miscellaneous reading as well as something not far removed from research, his perusal of very recent books on the Mediterranean world, on north Africa and on Venice.8

8. HONIGMANN. Cinthio and minor sources, p. 387.

THE ANALYSIS OF IAGO’S MANIPULATION IN THE TEMPTATION SCENE

In 1952, Welles released his film adaptation of Othello, which was acclaimed by the critics. Anthony Davies in Filming Shakespeare’s Plays praises Welles’s film by commenting on the successful fusion of theatrical and cinematic spaces in the visual construction: The techniques of Othello are considerably more refined. The theatricality of constructed décor gives way to the realism of sea and sky, and to the architectural polarities of Venice and Mogador. For the first time [...] we are faced with a film which aims at reconciling theatrical drama with the realism of non-theatrical spatial elements. The sustained insistence with which the film achieves this reconciliation, and its integration or architectural realism not simply as a justification for cinema but as a thematic statement, is the major distinction which distances Welles’s Othello from every other major Shakespearean film.9

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9. DAVIES. Filming Shakespeare’s Plays, p. 100.


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Paolo Mereghetti also comments on Welles’s film by stating that the inventive mise-en-scène was a clear sign of his departure from Hollywood’s standards of realism:

10. MEREGHETTI. Masters of Cinema: Orson Welles, p. 62.

11. DAVIES. Filming Shakespeare’s Plays, p. 109.

12. BORDWELL; THOMPSON. Film Art: an Introduction, p. 195.

13. BORDWELL; THOMPSON. Film Art: an Introduction, p. 208.

Othello, the product of years of work and financial wrangling, became for Welles the means by which he could assert, with total conviction, his decision to reject Hollywood’s facile dependence on cinematic realism. The richness of Shakespeare’s text, the variety of readings and interpretations it offered, enabled Welles to reject naturalism and opt for a more creative mise-en-scène. [...] His mise-en-scène is imposing and majestic, as the film’s opening and closing scenes clearly demonstrate; ‘his’ Othello−a towering, tragic figure−is an instinctive and uncultured individual at war with a civilization from which he feels hopelessly excluded.10

In Welles’s Othello, the initial part of the temptation scene is filmed in what Davies calls a long tracking shot, which in the film lasts eighty seconds.11 David Bordwell and Kristin Thompson in Film Art: An Introduction explain that in a tracking shot “the camera [...] change[s] position traveling in any direction along the ground−forward, background, circularly, diagonally, or from side to side”.12 Also, Bordwell and Thompson define the concept of long take as “lengthy shots”.13 Thus in Welles’ film the long tracking shot works as a long take as it is presented on screen for an extensive period without interruptions. The camera then follows Othello EM  TESE

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(Orson Welles) and Iago (Michéal MacLimmóir) while they are walking along the parapet of a castle in Cyprus and having a conversation, which in this case corresponds to the initial part of the temptation scene in the play. One result of filming the initial part of the temptation scene in a long tracking shot is that this filmic device helps emphasize the notion that Iago skillfully uses his manipulative abilities on Othello. This particular passage of the play, as well as the long tracking shot, start in the film right after Desdemona (Suzanne Cloutier) leaves the scene, as she was previously talking to Othello. Iago and Othello then start walking along the parapet (see fig. 1). At first, Othello gives the impression that he is very confident about his relationship with his wife, and he is even smiling. As Iago starts his moves to distort the reality of Othello’s relationship with Desdemona by incriminating Cassio (Michael Laurence), Othello’s facial expression changes to uncertainty, which hints that Iago is starting to succeed in his plans of influencing Othello. Welles then manages, using the long tracking shot, to intensify the impression that Iago is a despicable fellow, who coldly and quickly calculates his way to destroy Othello’s happiness. Besides, it is possible to observe the rapid effect of Iago’s arguments in Othello’s facial reaction, which highlights the naiveté of Othello as the grand general who succumbs to the words of his ensign. In addition, in

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14. DAVIES. Filming Shakespeare’s Plays, p. 110.

relation to the end of the long tracking shot, Davies comments that Iago “walks abruptly forward out of the frame and the camera stops its tracking movement to isolate Othello in the frame, standing still. Iago has abandoned him at a moment calculated to leave him overbalancing on the threshold of curiosity and doubt [...]”.14 Therefore, with the aid of cinematographic devices, Welles cleverly succeeds in portraying the idea that Iago is a cold strategist that can effectively influence and manipulate Othello’s mind.

Orson Welles exploited the mobile camera to suggest the title character’s dynamic energy in Othello. Early in the movie, the confident Moor is often photographed in traveling shots. In the ramparts scene (the temptation scene), he and Iago walk with military briskness as the camera moves with them at an equally energetic pace. When Iago tells him of his suspicions, the camera slows down, then comes to a halt. Once Othello’s mind has been poisoned, he is photographed mostly from stationary set ups. Not only has his confident energy drained away, but a spiritual paralysis invades his soul. In the final shots of the movie, he barely moves, even within the still frame. This paralysis motif is completed when Othello kills himself.15 Furthermore, the dialogue during the entire temptation scene in Welles’ version was streamlined, a common practice, according to Alan Dessen in Rescripting Shakespeare, in the majority of Shakespeare’s adaptations.16 Welles’s dialogue in the temptation scene probably went through the

FIGURE 1 The long tracking shot frames Othello walking beside Iago. Source: WELLES. Othello, 1952. FIGURE 1

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In relation to Othello and the camera movement in the film, Louis Giannetti in Understanding Movies points out that there is a change from an energetic photography of Othello in the beginning to a static portrayal of the character by the end of the film due to the poisoning of Iago’s schemes in his mind:

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15. GIANNETTI. Understanding Movies, p. 119.

16. DESSEN. Rescripting Shakespeare, p. 2.


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17. DESSEN. Rescripting Shakespeare, p. 3.

18. DESSEN. Rescripting Shakespeare, p. 3.

19. DESSEN. Rescripting Shakespeare, p. 3.

20. DESSEN. Rescripting Shakespeare, p. 3.

21. DESSEN. Rescripting Shakespeare, p. 3.

process of “rescripting”, a term proposed by Dessen that has to do with the changes in the playscript because of “a perceived problem or to achieve an agenda”.17 Dessen gives as an example of rescripting the cutting of speeches and scenes in order to streamline the playscript and therefore save running time, as well as the removal of characters and passages that do not seem appropriate in relation to the concept of the production.18 Another term proposed by Dessen is “rewrighting”, which is related to “situations where a director or adapter moves closer to the role of the playwright so as to fashion a script with substantial differences from the original”.19

film, through which it is possible to notice the intensity of Iago’s coldness and his effectiveness as a manipulative character. Perhaps this could serve as an element in the film that would help compensate for the absence of Iago’s soliloquies. In 2003, the Brazilian theatrical group Folias d’Arte staged in São Paulo a production of Shakespeare’s Othello, in this case, Otelo. The staging, set in contemporary times, was acclaimed by critics in Brazil and Portugal. Otelo received the 2003 APCA (Associação Paulista de Críticos das Artes) award for Best Play and the 2003 Prêmio Shell awards for Best Director and Best Scenography. This production was directed by Marco Antonio Rodrigues, and had the original text especially translated by Maria Sílvia Betti, who works as a professor at Universidade de São Paulo. The producers were Patrícia Barros and Alexandre Brazil.

Dessen also calls attention to the fact that rescripting and rewrighting decisions should take into account the appropriate “trade-offs”.20 Such term refers to the idea that if something in the original playscript is changed, it is necessary to balance such alteration. In other words, the evaluation of both “pluses and minuses” of rescripting and rewrighting decisions is required.21 For instance, in Welles’ adaptation of Othello, Iago’s soliloquies are entirely cut from the narrative. Iago’s soliloquies are an essential device for the audience to perceive his malignant temper. Thus the long tracking shot in the initial part of the temptation scene could be considered an asset in the

Mariângela Alves de Lima in “Folias d’Arte oferece as outras faces de Otelo” comments on the performance of Otelo, played by Ailton Graça. According to Lima, Graça carefully emphasizes the idea that Otelo is a respectful and sensitive character. Besides, Lima approves Otelo’s silence and pauses when he is being instigated by Iago.22 In fact, concerning Graça’s portrayal of Otelo, it is possible to observe a balance between the two categories of performance

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22. LIMA. Folias d’Arte oferece as outras faces de Otelo, p. D7.


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23. HONIGMANN in SHAKESPEARE. Othello, p. 94.

24. LIMA. Folias d’Arte oferece as outras faces de Otelo, p. D7.

25. NÉSPOLI. Um Novo Olhar Sobre a Tragédia da Traição, p. D1. Based on the rehearsal session in which Estado was present, this is going to be an exceptional production of Othello. The translation into English was provided by the authors of this article.

pointed by Honigmann. The critic mentions that actors tend to portray Othello either as a “thoughtful, noble, (and) tender” character or as an “explosive” one.23 Graça’s Otelo would then represent a balance between these two aforementioned groups of actors. Lima also comments on the performance of Iago, played by Francisco Brêtas. The critic points out that Brêtas portrays the ideal villain, controlling words and gestures for his own benefit. In addition, regarding the interaction of both characters Otelo and Iago, Lima mentions that there is an equilibrium between the extensive verbal efforts of Iago and the general silence of Otelo.24 Another feature of Brêtas’s portrayal of Iago that can be pointed is that Iago is quite an explosive character in this production. His horrendous laughing at Otelo’s disgrace seems to intensify Iago’s villainy. Beth Néspoli in “Um Novo Olhar Sobre a Tragédia da Traição” for O Estado de São Paulo praises some aspects of the production. Néspoli enthusiastically comments that “A julgar pelo ensaio presenciado pelo Estado, vem aí uma excepcional montagem de Otelo”.25 Folias’ production, as the critic argues, prioritizes the political context of the play, and the visual aspects of Otelo have a striking impact on the audience. Concerning the performances of Graça and Brêtas, Néspoli highly praises both actors by stating that their acting EM  TESE

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can be considered as notable depictions of Otelo and Iago. Graça finds the perfect balance between moments of tranquility and desperation of his character, and Brêtas masterly reveals Iago’s several personality traits.26

26. NÉSPOLI. Um Novo Olhar Sobre a Tragédia da Traição, p. D1.

As Welles makes use of cinematic devices, more specifically the long tracking shot, Folias d’Arte’s Otelo also relies on creative theatrical elements in the portrayal of the temptation scene. One relevant aspect of the temptation scene in Otelo is the fact that the seats for the audience are arranged in different places. While Otelo and Iago are having a conversation at the beginning of the aforementioned scene, the crew moves the seats closer to the stage, with the audience still sitting on them (see figs. 2-3). Unavoidably, the audience is positioned very near the stage, which creates the opportunity for people to follow closely the manipulative moves of Iago and Otelo’s reactions to them. Néspoli in “Palcos mutantes atiçam criatividade” comments on the challenges of the arrangement of the audience seats for the artists. The critic points out that the possibility of moving seats in the audience motivates artists to overcome several problems, such as the lack of adequate space for theatrical performances. On the other hand, as Néspoli mentions, artists are creatively motivated by this challenge of performing on such a different type of stage.27

27. NÉSPOLI. Palcos mutantes atiçam criatividade, p. D3.

IASCA. Mesa redonda: Condições presentes da crítica de arte

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FIGURES 2 AND 3 Folias’ crew moves the seats during the performance. Source: RODRIGUES, 2003.

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28. HONIGMANN in SHAKESPEARE. Othello, p. 19.

29. HONIGMANN in SHAKESPEARE. Othello, p. 19.

Another significant aspect of Folias d’Arte’s temptation scene is the suggestion that the character Otelo has vision problems. He wears glasses during practically the entire temptation scene. Honigmann comments that a possible impaired vision of Othello could generate a dependency on Iago, as he states, “Shakespeare seems to suggest that Othello sees less clearly than Iago, that he depends on Iago’s eyes”.28 The critic continues by giving examples: “Othello asks ‘But look, what lights come yond?’ and Iago tells him ‘Those are the raised father and his friends’. A moment later he asks again ‘Is it they?’ [...] Iago sees (Brabantio) first and reports ‘It is Brabantio; general be advised’“.29 The addition of glasses in Otelo surely implies more than a certain advance in age, that is, the fact that the character cannot see for himself and blindly relies on Iago’s vision of the world. In Folias’ portrayal of the temptation scene, Otelo’s use of glasses could represent an element that favors the influence of Iago’s manipulative arguments, since Otelo would depend on Iago’s perspective on the circumstances. One final aspect of the analysis of Otelo’s temptation scene is the performance of the character Iago by Brêtas. Initially in the production, Brêtas reveals Iago as an explosive character, laughing loudly and screaming in certain occasions. In the temptation scene, his pattern of voice is altered and Iago transforms himself in a humble and gentle

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servant in order to deceive Otelo. Patrice Pavis in Analysing Performance calls attention to the voice of actors on stage. Intensity of voice,30 pauses, and breathing are some of the elements that should be taken into account in a performance.31 Brêtas, in his portrayal of Iago in the temptation scene, presents a calm tone of voice that implies simplicity of character and servitude. He also includes, as Graça does, pauses in his speech, which gives the idea that Brêtas is not only in control of the character, but also that Iago is thoughtfully concerned about his master. In addition, concerning what Honigmann calls stage imagery, which he defines as “objects and actions shown on stage”,32 Iago for a moment in the temptation scene looks quite like a fragile and simple-minded figure, pressing gently with his fingers the bottom part of his jacket (see fig. 4). In fact, Iago is acting and pretending to be a good servant to Otelo, so that he can be more effective in his malignant purposes. Honigmann endorses Iago’s abilities as an actor, when he states that “the temptation scene [...], perhaps the most breath-taking scene in the whole of Shakespeare, has been prepared for by the gradual revelation of Iago’s outstanding dramatic talents [...]”.33 Therefore, the controlling of voice and bodily actions of Iago in the temptation scene of Otelo demonstrates that he is undoubtedly a cold hearted and skillful manipulative character.

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30. PAVIS. Analysing Performance, p. 134. 31. PAVIS. Analysing Performance, p. 139.

32. HONIGMANN in SHAKESPEARE. Othello, p. 86.

33. HONIGMANN in SHAKESPEARE. Othello, p. 37.


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seats, which encourages the audience to attentively follow Iago’s schemes, as well as Otelo’s use of glasses, signaling his dependency on Iago’s ideas. Besides, Brêtas’s modulation of voice and stage imagery put Iago in control of the situation, and reveal that he is aware of what course of action he should take in order to manipulate Otelo’s thoughts. Such a complex character invites adapters to experiment diversity in his portrayal, since Iago is one of the most intriguing villains in Shakespeare’s works. The power of rhetoric will always be one of Iago’s strongest features, and filmmakers and theatrical directors can make use of an array of both cinematic and theatrical devices in order to enhance this characteristic on screen and on stage.

FIGURE 4 Iago manipulating Othello. Source: RODRIGUES, 2003.

REFERENCES FIGURE 4

BORDWELL, David; THOMPSON, Kristin. Film Art: an Introduction. New York: McGraw-Hill, 2008.

CONCLUSION

Both adaptations of Othello, Welles’s and Folias d’Arte’s, present elements in the temptation scene that help emphasize Iago’s manipulative skills and influence over Othello. Welles works with a long tracking shot, in which the time exposure of the characters on screen encourages the notion that Iago is a good strategist and that Othello easily believes in his lies. Folias d’Arte’s temptation scene includes elements such as the proximity of the audience due to the moveable

DAVIES, Anthony. Filming Shakespeare’s Plays. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.

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DESSEN, Alan. Rescripting Shakespeare. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. GIANNETTI, Louis. Understanding Movies. New Jersey: Prentice Hall, 2002. HELIODORA, Barbara. Falando de Shakespeare. São Paulo: Perspectiva, 2001.

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HONIGMANN, E. A. J. Cinthio and minor sources. In: SHAKESPEARE, William. Othello. Edited by E. A. J. Honigmann. London: Arden Shakespeare, 1996. p. 368-387. LIMA, Mariângela Alves de. Folias d’Arte oferece as outras faces de Otelo. O Estado de São Paulo, D7, jul. 2003. MEREGHETTI, Paolo. Masters of Cinema: Orson Welles. Paris: Cahiers du cinéma, 2011. NÉSPOLI, Beth. Palcos mutantes atiçam criatividade. O Estado de São Paulo, D3, nov. 2003. NÉSPOLI, Beth. Um novo olhar sobre a tragédia da traição. O Estado de São Paulo, D1, nov. 2003. PAVIS, Patrice. Analysing Performance: Theater, Dance, and Film. Trans. David Williams. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2003. RODRIGUES, Marco Antonio. Otelo. Brasil: Folias d’Arte Produções Artísticas, 2003. 2 DVDs (191 min). SHAKESPEARE, William. Othello. Edited by E. A. J. Honigmann. London: Arden Shakespeare, 1996. WELLES, Orson. Othello. EUA: Mercury Productions, 1952. 1 DVD (90 min).

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UMA LEITURA DE ESCRITA TRAUMÁTICA EM DUAS DRAMATURGIAS CONTEMPORÂNEAS BRASILEIRAS: AGRESTE E BR-3

Thiago Henrique Fernandes Pereira*

* thiagohfernandesp@gmail.com Mestrando em Letras pelo programa de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo.

RESUMO: O presente texto focaliza a produção dramática brasileira que, mais propriamente a partir da década de 1990, explora a ficcionalidade da errância – personagens em constante trânsito. Abordamos os textos Agreste (2004), de Newton Moreno, e BR-3 (2005), de Bernardo Carvalho, numa investigação a respeito da forma literária/dramática em sua relação com o deslocamento a partir de termos correspondentes como errância. A violência e a manutenção de uma memória repetida serão elementos que definirão em tais textos sua relação com o referente de enunciação urbano, tal qual, de sua abertura à questão das identidades subjetiva e nacional.

ABSTRACT: This text focuses on a brasilian dramatic production that, more specifically starting from the 1990s, explores the fictionality of wandering with their characters in constant transit. We approach the texts Agreste (2004), by Newton Moreno, and BR-3 (2005) by Bernardo Carvalho, in an investigation about the literary/dramatic form in its relation to the movement, from the corresponding terms as wandering. The violence and the maintenance of a repeated memory are elements that will define in these texts their relationship with the referent of urban enunciation, as is, from its opening to the issue of subjective and national identities.

PALAVRAS-CHAVE: dramaturgia contemporânea; errância; luto; identidade; território.

KEYWORDS: contemporary drama; wandering; grief; identity; territory.


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Moça – Eu não me lembro da dor. Só do susto. Eu estava lá e vi quando me levou para dentro de você. Eu lembro quando você falou: “Posso te morder? Posso arrancar um pedaço seu?”.1

1. MORENO. A refeição, p. 66.

2. Composto pelos textos A cicatriz é a flor e Dentro.

No rol de dramaturgias do recifense Newton Moreno, como no referido trecho de “A refeição: ensaios dramáticos sobre o canibalismo”, ou, ainda, no díptico Body Art,2 destaca-se um ímpeto vital de encontro, de pertencimento, de possessão, na medida sempre liminar de seus atores e do sentido localizado num constante elaborar de interstícios. Nunca o espaço ocasional, neutro, mas sempre o espaço de conflito que se insinua na investigação do autor por práticas e ritos, muitas vezes implicados em determinado círculo, como o homoerotismo, mas, acima de tudo, revelando um caráter especular; o interesse discursivo, de “voz” se mescla ao interesse formal, estético. Agreste (2004) pertence a esse mesmo panorama, e em meio às considerações de autoria, em que Newton Moreno declara estar ali interessado mais uma vez nos desdobramentos entre teatro e homoerotismo e numa volta muito pessoal à cultura popular nordestina, à figura do contador, sobressai-se o caráter de “dramaturgia desejante”, nas palavras de Antonio Rogério Toscano. Desejo este “da transitividade, do devir criativo”, que muito claramente circunscreve o lugar dessa parcela de dramaturgia:

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Lá onde dramaturgo, encenador, ator-criador e público (além dos demais criadores por ventura envolvidos no projeto) se reúnem para cravar no espaço e no tempo a sua escritura espetacular. Lá, onde os procedimentos colaborativos modificam o próprio conceito de dramaturgia. Mais longe ainda, lá, onde a relação entre texto e cena está por ser (re-)inventada, é que está a morada do trabalho de Newton Moreno como dramaturgo contemporâneo.3

Se tomarmos de empréstimo tal localização do conceito de dramaturgia e o estendermos a outro exemplo que nos ocupa, a saber, BR-3, de Bernardo Carvalho, ele ainda vigora apesar de se tratarem de resultantes distintas. BR-3, que não chega a ser editorado, alcança-nos, de modo geral, já no limite de sua afirmação partilhada, já é ele, como num arquivo estabelecido, junto do trabalho do Teatro da Vertigem e de Bernardo Carvalho, toda uma gama de textos confluindo para um ponto comum, tal qual a corrente do rio Tietê, seu espaço de realização, cruzando a cidade de São Paulo. Textos procedentes do advento documental e investigativo que perpassa a cena contemporânea; documento que assinala uma lógica confessual que contrariaria a máquina criativa através do gesto de implicar, em alguma instância, legitimidade social; textos-objetos em acordo com a ressignificação, “a partir da expansão semiótica e do pensamento pós-estruturalista”, que sofre a

PEREIRA. Uma leitura de escrita traumática em duas dramaturgias […]

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3. TOSCANO. Agreste: uma dramaturgia desejante, p. 106.


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noção mesma de texto, abarcando todo um conjunto de “práticas significantes”, como esclarece Ileana Diéguez Caballero.4

5. SARRAZAC. A invenção da teatralidade, p. 57.

6. SARRAZAC. O futuro do drama, p. 9.

7. SARRAZAC. Sobre a fábula e o desvio, p. 88.

Em ambos os casos, conservadas as especificidades de gestão de cada uma das obras, a qualidade desejante é dado que aponta para o quadro histórico no qual a conformação teatral pela arte da cena e pela literatura dramática conjugadas sofre um abalo, convocação e ruptura de teatralidades. Mas, conquanto o teatro, na passagem do século XIX para o XX, “toma consciência de seu vazio interior e projeta esse vazio para o exterior”,5 não mais se atualizando no limite do modelo dramático, a autonomia será também da palavra. Autonomia performativa que ilumina um estado fronteiriço – variedade de procedimentos composicionais em diálogo.

obras, Agreste e BR-3, nos horizontes da dramaturgia e da literatura brasileiras contemporâneas simultaneamente. Para tanto, tomamos um ponto de comunhão à elaboração de ambas, independentemente do afunilamento temático, sendo o deslocamento físico pelo espaço geográfico brasileiro, espécie de argumento dramatúrgico focado na condição não nucleada do indivíduo, disfunção do referente residencial. Comunhão fundada no devir errante, potência esclarecedora do fluxo que se estabelece entre os motivos ficcionais e a clareza ou maior exposição dos procedimentos de composição e de crítica.

Entendido o panorama e tendo-o como referencial, é de nosso interesse propor uma leitura que problematize as duas

Agreste perfura “o Brasil mais fundo”.8 O faz através de uma estrutura de contação – voz perfurando a memória –, e através do “homem sertanejo”, representado aqui pelo casal formado por duas mulheres, uma que se traveste de homem, e assim se reconhece, silenciosamente, tal qual a consciência de seu amor. Ao romper com a lógica de pertencimento terreno, partem para o desconhecido. BR-3 deslumbra-se com a nossa geografia traçando o mapa de três brasis: Brasilândia, Brasília, Brasileia. Espaços os mais diversos que se sobrepõem, surgem e desaparecem dando a ver simulacros, quase esboços de uma memória ficção, tal como os filmes lembrados pela personagem Evangelista, exibidos no cinema onde se erguera a sua igreja. Nesse traçado de espaços e tempos se estabelece a jornada de sobrevivência – encontros e perdas – que delineia a saga de uma família.

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Em se tratando de um texto dramático híbrido, a garantia de unidade cede lugar ao caráter movente, no sentido de que há implicação de movimento ao assentamento de gênero. Liberdade de escritura, de estruturação, aproximada do romance, assim defendido por Jean-Pierre Sarrazac. Numa perspectiva “contra naturam”,6 antípoda ao modelo aristotélico, o professor e ensaísta francês convida a investigar sobre as novas configurações da fábula, das fábulas possíveis, “mosaico de formas breves”.7

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4. CABALLERO. Cenários liminares, p. 26.

8. MORENO. Agreste, p. 21.


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Com efeito, independentemente do sentido operado pelo deslocamento, prevalece o horizonte do incerto, no qual o indivíduo torna-se necessariamente vulnerável. O percurso, tratado às cegas, conduz a zonas de conflito e evidencia de imediato a fragilidade do corpo físico. Assim sendo, torna-se preeminente a relação do corpo que padece e a resolução trágica, anotada frequentemente na multiplicação de atos de violência.

9. RESENDE. Contemporâneos, p. 27. 10. SÜSSEKIND. Desterritorialização e forma literária, p. 12.

A respeito de uma expressão literária brasileira fortemente marcada pelo imaginário urbano, é sabido que a tópica da violência nos grandes centros urbanos ascende em importância, sendo este um dos pontos de apoio recorrentes pela crítica, a fim de se discutir um olhar obcecado e urgente sobre um presente dominante; “presentificação radical”, como sugere Beatriz Resende,9 “presentificação restritiva, estática, fundamentada no modelo da coleção”, na perspectiva de Flora Süssekind.10 Desviando de tais associações, Agreste e BR-3 constroem gradativamente um sentido não cotidiano para a violência, revista dentro de um processo contínuo de abandono, de esvaziamento de referentes, como poderemos observar. Paralelamente à persistência de atos de violência, e a frequente conclusão pela morte, ditando o senso de tragicidade, destacamos uma igual fragilidade de espírito por parte dos personagens, de elementos que confiram à sua vivência individual a solidez de uma experiência (inter)subjetiva, resultando EM  TESE

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na sua incapacidade e/ou falha de reflexividade. De maneira que a errância do corpo corresponderia a uma igual errância do eu, a uma subjetividade cada vez mais imprecisa. Com efeito, surge no estudo de Oliveira, focado na relação entre drama e narrativa, a expressão “narrativas do luto”.11 Tomando por análise textos essencialmente narrados, a saber, Borandá: auto do migrante, de Luís Alberto de Abreu; Assombrações do Recife Velho, de Newton Moreno; e A procissão, de Gero Camilo, o autor verifica em tais obras um silenciamento generalizado de vozes e imaginários, um irrestrito manuseio da perda. O detalhe é lido pelo autor como uma alegoria que ultrapassa a individualidade, ou, como quer Ricœur, encontra o seu equivalente para além da situação patológica de que se ocupa a psicanálise, sustentando a ideia de que identidade pessoal e identidade comunitária constituem-se bipolarmente: [...] É a constituição bipolar da identidade pessoal e da identidade comunitária que, em última instância, justifica estender a análise freudiana do luto ao traumatismo da identidade coletiva. Pode-se falar em traumatismos coletivos e em feridas da memória coletiva, não apenas num sentido analógico, mas nos termos de uma análise direta. A noção de objeto perdido encontra uma aplicação direta nas “perdas” que afetam igualmente o poder, o território, as populações

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11. OLIVEIRA. Trajetórias de migrantes, p. 75.


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12. RICŒUR. A memória, a história, o esquecimento, p. 92. Paul Ricœur se baseia na análise operada por Freud em Luto e melancolia (1915).

que constituem a substância de um Estado. As condutas de luto, por se desenvolverem a partir da expressão da aflição até a completa reconciliação com o objeto perdido, são logo ilustradas pelas grandes celebrações funerárias em torno das quais um povo inteiro se reúne. Nesse aspecto, pode-se dizer que os comportamentos de luto constituem um exemplo privilegiado de relações cruzadas entre a expressão privada e a expressão pública.12

Nesse sentido, o curso do protagonismo suscita forte remanescência de individualidade, como que se apartando ou particularizando-se das grandes correntes da mobilidade humana. Contrários ao fluxo de ação, condicionada severamente pela imposição da realidade sobre o indivíduo – dado que antecede o horizonte do incerto citado anteriormente –, a pausa, o detalhe do gesto e o momento emudecido revelam a tendência reflexiva, o voltar-se para si. Perfuraram o Brasil mais fundo. Desmontaram dos pés no meio da seca. E pensaram que não devia existir um lugar mais árido que aquele. Mas o Nordeste surpreende a gente. Vai ter sempre uma rês mais murcha e um filho mais moribundo. O peito arfava de contentamento e pavor. Era como se inspirassem alegria e expirassem receio. Uma pausa de um silêncio pesado.

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Desviavam olhares, cabisbaixos. Não queriam mostrar a dúvida passeando dentro dos seus olhos. Pior: não queriam ver nos olhos do outro a dúvida. Voltar? Mesmo se quisesse, não saberiam como. As pegadas úmidas já não existiam; foram sorvidas com força por aquela terra saudosa da água.13

No referido trecho de Agreste, que pontua o momento de desterro, explicita-se o contraponto entre exterior, cenário e o corpo reagindo a esse, e interior, negativado pelo olhar, pela cabeça baixa. Percebe-se que tal interioridade censurada repercute mediante a tensão situacional, ou acúmulo de tensões que compõem o relato. Essa mesma qualidade de subjetividade será indicativa de um duplo movimento de antecipação: a relação de anos entre ambos, que, descrita através de melindre, termina resvalando na fuga; e a descrição de sentimentos contrários que terminam por sugerir um comportamento desviante, como na dualidade entre contentamento e pavor, alegria e receio, ou ainda nos trechos: Se chegassem perto, Deus sabe o que aconteceria. Tinha alguma coisa no amor deles que não devia acontecer. Mas aconteceu.14 Se ele tocasse nela? Se ela aceitasse ele? Às vezes, é preciso muita coragem para dar um passo. Uma criança brincando onde não devia.15

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13. MORENO. Agreste, p. 21.

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14. MORENO. Agreste, p. 19.

15. MORENO. Agreste, p. 20.

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De maneira que, como operado, o desejo de reflexão não afirma ou confirma indissociação do coletivo, foco na pulsão individual, mas problematiza sua possibilidade, sugere que corpo físico e corpo subjetivo se estranham, não encontram um denominador comum. Ainda que voltado para dentro, abandonado o cenário, não se concretiza o exercício da reflexão, da consciência da qual se tomaria proveito quando retornada ao externo. Nesse momento, passar-se-ia à mediação em relação ao corpo do outro e ao corpo social, mediação essa que fracassa.

16. SARRAZAC. Sobre a fábula e o desvio, p. 86.

A particularização do protagonismo, rebatido por uma individualidade falha, apontará fortemente, através desse eu errático, para uma alternância da pulsão dramática pelo acontecimento interpessoal, que segue, como dito por Sarrazac,16 obliterada “pela relação, pelo combate do homem contra o mundo”. Neste caso, não necessariamente relação de combate, mas propriamente relacional, situação de embate, também ele silencioso. Passo a passo, o trajeto expõe a subtração da expressão privada em favor da expressão coletiva, ou histórica, nos termos de Ricœur. O aporte se dará na violência extremada, quando já em virtude da morte de Etevaldo, sua anatomia feminina se converter em prova de processo, prova da inquisição que se seguirá. Fato que tratamos de uma dramaturgia que se desdobra sobre uma carga lírica dando a ver aparências, no EM  TESE

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sentido mesmo de aspectos sobre os quais se voltará; ou seja, dramaturgia que avança para voltar sobre si mesma, como que desvelando sua própria ficção. Ademais, a violência do processo de inquisição tende, por outro lado, a se confundir mesmo com celebração, ao passo que os moradores se convertem num todo unívoco, instituem um evento prolongado ao mesmo tempo que o significam mutuamente. O luto, numa camada outra, desvia-se do nível intersubjetivo da personagem e se reconfigura no movimento coletivo. Anterior ao gesto anônimo de se atear fogo no casebre, o que sustenta a pertinência do todo, afirma-se: [...] Um grupo velou a madrugada inteira com impropérios, xingamentos, escárnios, maldições, pragas. Criaram um ódio. Desenterraram a pior parte deles. Desenterraram as piores palavras da língua. Nem bem a madrugada se punha, trancaram portas e janelas das casas delas. Envergonhavamse delas. Queriam apagá-las de suas memórias. Cercaram a casa. Enterravam-nas vivas.17

17. MORENO. Agreste, p. 35.

A aflição da perda é traduzida em ódio; perda da ordem moral, da ética terrena, da lógica comunitária. A reconciliação com o objeto perdido acontece no gesto concreto

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de violência, o atear fogo, contínuo de substituição e expressão do pensamento pela e na ação. O “acting out”, concentrando-nos ainda em Ricœur, evoca no autor a relação entre história e violência, na qual o ato violento substitui a lembrança e contraria afirmar que o presente esteja reconciliado com o passado. Há um detalhe a ser lido no frame das duas mulheres, sendo o deslumbre do indivíduo consigo, na medida em que o processo do luto se dá em sua extensão; há a aflição da perda, assim como a reconciliação, visto que a Viúva se permite observar, pela primeira vez, a nudez de Etevaldo, descobrindo-o ser mulher, tal qual beijar-lhe na boca. Para além de tal lampejo, a referida tragicidade resvala igualmente na completa despessoalização do indivíduo, que se torna unicamente um objeto catártico, ou projeta tal ilusão do coletivo. O dado reprimido, pressuposto na ação de desenterrar, é justamente a mácula do imaginário, do corpo histórico. A queima do casebre com as duas mulheres dentro, uma morta e outra viva, é a falsa reconciliação, o comportamento repetido. Diferente da “memória lembrança”, desenterrar a “pior parte” (dados comportamentais) e as “piores palavras” é memória-repetição, resistente, por sua vez, à crítica. Jonas, de BR-3, não possui melhor final. Sendo empurrado dentro de uma estrutura narrativa híbrida de longa extensão,

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como a trabalhada por Bernardo Carvalho, a personagem acaba protagonizando uma epopeia invencionária, inventar um personagem para si, um nome, por fim, uma religião. O desfecho está no ato suicida, tendo angariado para si o título de traidor e assassino de seus entes. “Tudo em que eu toco morre”, como sentença disfórica crônica. O corpo enforcado numa jangada segue pelo rio num sábado de aleluia, e confundido com um boneco de Judas, é crivado de tiros por todo tipo de gente. A sequência aparece na primeira versão do texto de Bernardo Carvalho como prólogo, como verificado no excerto reproduzido na revista Subtexto. BR 3 (primeira versão) Prólogo. Malhação de Judas. Do lado das margens do rio começa a surgir gente de todos os tipos e de todas as classes. Homens, mulheres, velhos e crianças, todos com bandeirinhas coloridas nas mãos. Mulheres com colares de pérolas saem de carros conduzidos por motoristas uniformizados e descem correndo para a margem puxando os filhos pelas mãos (vêm acompanhadas de seguranças armados). Motoboys largam suas motos no alto e descem até o rio, com bandeirinhas nas mãos. Favelados com seus filhos correm para o rio, com bandeirinhas nas mãos. Todos se aglomeram nas margens para ver alguma coisa. Esperam, ansiosos, a chegada de alguma coisa, ou alguém, que vem pelo

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18. CARVALHO. BR-3, p. 32.

rio. Uma criança aponta para um dos lados, rio acima, e grita: Lá vem ele! Todos ficam em silêncio. Lá de longe vem vindo uma jangada com um boneco pendurado num mastro. Os adultos tiram suas armas da cintura, dos bolsos, de dentro das camisas, etc. As mães tiram as pistolas de dentro das bolsas. Entregam as pistolas para as crianças. Todos estão armados, ricos e pobres, adultos e crianças. Quando a jangada passa pela multidão, começam a atirar no boneco. Uma saraivada de balas. Gritam: Judas! Judas! Conforme a jangada avança, eles também correm pelas margens, tentando acompanhá-la, rindo e atirando. E no meio da salva de tiros, as próprias pessoas começam a cair, sem saber de onde vêm, as balas. Os da margem esquerda matam os da margem direita e vice-versa, sempre rindo, sem se dar conta, até não sobrar mais ninguém de pé.18

Em sua versão final, a sequência se concentra de maneira sucinta na última cena, “Brasília. Às margens do lago. Ao fundo, o Congresso Nacional”. Nela, um senador em entrevista coletiva tenta discorrer sobre o tráfico animal. Há um coro, inclusas as personagens mortas, que repete “puna e coíba”, termos retirados da fala do próprio senador, impedindo-o de prosseguir. Já na companhia de sua esposa, relata ter comprado terras no Acre, em plena decadência pela derrocada da extração de borracha, afirmando que “o homem precisa tanto de madeira quanto de sangue para viver. A

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gente nasceu para queimar”.19 A história de Jonas é referida pela esposa, tendo-a ouvido no rádio. Defende que todos acreditaram se tratar de um boneco, por isso atiraram nele, “como há cem anos”. A morte de Jonas como se dá aproxima-o em demasiado da referência bíblica: o destino irremediável da morte, como no Jonas bíblico, e a corporificação do boneco de Judas em homem. A composição, em última instância, desvia-o para fora da história e reforça uma situação mítica, como se se tratasse de uma condução coerente para a impossibilidade de solução. A jangada na qual Jonas segue enforcado cruza finalmente com o pedalinho que leva o Senador e sua esposa, que não a veem. A frase é definitiva: “é como se a jangada e o pedalinho estivessem em dimensões diferentes”. O corpo coletivo definindo evento aparece nas duas situações que se cruzam: o costume expresso pela data católica e o público/coro reunido para o pronunciamento. Novamente verifica-se o exercício da memória repetida, denotada explicitamente na indicação temporal. A tragicidade está em não se perceber no fluxo histórico, repetindo frases sem daí tirar nenhum sentido e crivando de balas um homem acreditando ser um boneco. Em sua versão inicial é ainda mais contundente, na medida em que todos os presentes na “celebração” se tornam simultaneamente algozes e vítimas.

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19. Original do autor.


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A impossibilidade da consciência subjetiva e a continuidade de um inconsciente coletivo projetam uma atenção especial ao corpóreo. Para Gumbrecht, diferentes formas de “apropriação-do-mundo” correspondem, por sua vez, a diferentes ideais de cultura, um de sentido e outro de presença. Obviamente, tal relação pressupõe um agente de apropriação e seu respectivo objeto. Tendo como referência uma cultura idealizada pela presença, o gesto de apropriação passa mesmo pelo ato em si, a exemplo:

20. GUMBRECHT. Produção de presença, p. 114-115.

Penetrar coisas e corpos – ou seja, contato corporal e sexualidade, agressão, destruição e assassínio – constitui um segundo tipo de apropriação-do-mundo, no qual a fusão de corpos ou com coisas inanimadas é sempre transitória e, por isso, abre necessariamente um espaço de distância ao desejo e à reflexão.20

Perda e reconciliação não se diferem; perde-se pela violência e se reconcilia pela violência. É através da morte, portanto, que se afirma o conjunto, que se identifica novamente o traço solidário, a exemplo de Agreste, perdido, destituído pela quebra da ética sertaneja e pela negação – impossibilidade de reconhecimento – do eu e do outro. A gravidade, portanto, com que se delineia a constante do fator morte, numa tomada que requer para si certa legitimidade do trágico, não figura, de fato, ou não pressupõe o movimento de luto em sua plenitude, como afirma Oliveira, para que as dramaturgias sejam assim definidas – do luto –, o que, por outro lado, também nos parece supor uma simplificação temática.

O “receio”, o “medo”, a distância à “reflexão” definem a possibilidade do inverso, ou seja, que o agente de apropriação se torne o objeto desse mesmo tipo de apropriação. Fato que corrobora com desconfortos comunicativos, assuntos silenciados ou tabus. O que se percebe, a exemplo de Agreste e BR-3, é ausência de tal pressuposto reverso, para o qual não há tempo. Os movimentos são osmóticos, a mão que propaga o fogo é indiferente, assim como a procedência dos tiros.

A não reconciliação com a perda, o afunilamento do tempo presente, desalinhando-o com o passado e futuro, deixa ver como dado essencial o traumatismo, conquanto o luto é movimento interrompido. O trauma exposto pelo retorno do incompreendido, entretanto, não servirá à busca da solução como se pode verificar na clínica psicanalítica. Reviver, repetir como essência da harmonia, do empenho em se pontuar novamente, ou ineditamente, com clareza, o eu e o outro, é anulado pela incapacidade e falha de reflexão reforçada pelas dramaturgias. Trauma, portanto, que localizado fora do ego, afasta-se da fala, da cognição, passando ao já citado

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acting out, como são os comportamentos/ritos recalcados que finalizam tanto Agreste como BR-3. A perda da identidade em golpes contínuos, falseando a promoção da reconciliação... a movência se torna imposta, alternada em assentamentos provisórios nos quais o indivíduo se liga ao ambiente no limite do necessário, não o pertence. Portanto, não há luto, apenas traumatismo.

21. GUATTARI; ROLNIK. Micropolítica, p. 323.

Se a ideia de território pressupõe um vetor de saída do mesmo, e se tal saída pressupõe ao menos o esforço de se territorializar em outra parte – princípio para o conceito deleuze-guattariano de desterritorialização –, enquanto apropriação, “espaço vivido” e “sistema percebido”,21 o gesto não encontraria em definitivo o seu objetivo, operação nunca bem-sucedida. Impossibilidade de se reterritorializar como máxima que circunda as questões de identidade – individual e coletiva – e, logo, de pertencimento. Como último apontamento, e ampliando-se à perspectiva dramatúrgica, naquilo que transparece de condição criativa, o traumático estaria para além do nível ficcional. A sugestão recai especificamente sobre uma possível visão particularizada de presente, que assim como no trauma, revela haver uma ruptura da lógica corrente e progressiva do tempo histórico. Ainda que tratemos de uma produção literária surgida no âmbito de um imaginário criativo

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urbano, no qual a violência e a morte pudessem assumir um caráter de presentificação mais cotidiana, banal, prevaleceria um contorno de presente assombrado pelo passado e de futuro incerto. Em alguma medida, formas de escrita, também elas, sugerindo impossibilidade de pertencimento, de territorialização. REFERÊNCIAS CABALLERO, Ileana Diéguez. Cenários liminares: teatralidades, performances e política. Trad. Luis Alberto Alonso e Angela Reis. Uberlândia: EDUFU, 2011. CARVALHO, Bernardo. BR-3. Original do autor. GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1993. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Trad. Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2010. MORENO, Newton. Agreste, Body Art, A refeição. São Paulo: Aliança Francesa – Consulado Geral da França em São Paulo; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008. OLIVEIRA, Kildervan Abreu de. Trajetórias de migrantes: narrativa e questões de gênero na dramaturgia brasileira contemporânea. 2006. 89 p. Dissertação (Mestrado em Artes) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.

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RESENDE, Beatriz. Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século XXI. Rio de Janeiro: Casa da Palavra; Biblioteca Nacional, 2008. RICŒUR, Paul. A memória, a história e o esquecimento. Trad. Alain François. Campinas: Unicamp, 2008. SARRAZAC, Jean-Pierre. Sobre a fábula e o desvio. Trad. e org. Fátima Saadi. Rio de Janeiro: 7 Letras; Teatro do Pequeno Gesto, 2013. ­­ ______. A invenção da teatralidade. Sala Preta, São Paulo, v. 13, p. 56-70, 2013. ______. O futuro do drama. Trad. Alexandra Moreira da Silva. Lisboa: Campo das letras, 2006. 240 p. (Cadernos Dramat, 9). SÜSSEKIND, Flora. Desterritorialização e forma literária. Sala Preta, São Paulo, v. 4, p. 11-29, 2004. TOSCANO, Antônio Rogério. Agreste: uma dramaturgia desejante. Sala Preta, São Paulo, v. 4, p. 105-113, 2004.

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A ESCRITA DO DESASTRE (FRAGMENTOS CAÍDOS DE UM TEXTO ARDENTE)*

Maurice Blanchot Tradução: João Rocha**

O

desastre ruína tudo deixando tudo em perfeito estado. Ele não atinge este ou aquele; “eu” não estou sob sua ameaça. É na medida em que, negligenciado, deixado de lado, o desastre ameaça-me que ele ameaça, em mim, o que está fora de mim, um outro eu que devém passivamente outro. Não há alcance do desastre. A salvo está aquele a que ele ameaça, não saberíamos dizer se de perto ou de longe – o infinito da ameaça rompeu, de certa maneira, todo limite. Nós estamos na beira do desastre sem que possamos situá-lo no futuro: ele é desde sempre passado e, entretanto, estamos na beira ou sob ameaça; todas as formulações que implicariam o porvir se o desastre não fosse o que não

** jarochabr@yahoo.com.br Doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pelo Programa de Estudos Literários da UFMG.

chega, o que barrou toda chegada. Pensar o desastre (se fosse possível, mas isso não o é, na medida em que pressentimos que o desastre é o pensamento) é não ter mais porvir para pensá-lo. O desastre é separado, é o que há de mais separado. Quando o desastre sobrevém, ele não vem. O desastre é sua iminência, mas já que o futuro, conforme o concebemos na ordem do tempo vivido, pertence ao desastre, o desastre desde sempre o retirou ou o dissuadiu; não há porvir para o desastre, como não há tempo nem espaço onde ele se realize.

* A opção por “A escrita do desastre” ao invés de “A escritura do desastre” é pelo fato de que para Blanchot a “escrita do desastre” já está do lado do que Roland Barthes denomina de “escritura”, isto é, textos que põem em crise a relação do sujeito com a linguagem, textos que não se acomodam na massa apaziguadora da cultura. Dessa maneira, dizer “escritura do desastre” seria redundante em Blanchot. Por outro lado, a “escrita do desastre” parece ir além da noção de escritura, pois é uma escrita que provém do desastre. Talvez esteja mais próxima do que Barthes chamou de “texto ardente”: “É legível o texto que eu não poderia reescrever (…); é escriptível o texto que leio com dificuldade, exceto se eu transferir completamente o meu regime de leitura. Imagino agora (certos textos que me são enviados o sugerem) que existe talvez uma terceira entidade textual: ao lado do legível e do escriptível, haveria qualquer coisa como o receptível. >>>


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Não se crê no desastre, não se pode crer nisto: que se vive ou que

se morre nele. Nenhuma fé que esteja à sua altura e, ao mesmo tempo, uma espécie de desinteresse desinteressado do desastre. Noite, noite branca – assim o desastre: essa noite à qual a escuridão falta, sem que a luz a clareie. O círculo, desenrolado sobre uma direita rigorosamente pro-

longada, refaz um círculo eternamente privado de centro.

A “falsa” unidade, o simulacro da unidade a comprometem

mais que a sua evidência direta que, de resto, não é possível.

Escrever em um livro seria tornar-se legível para cada um e,

para si mesmo, indecifrável? (Jabès não nos quase disse isso?).

Se o desastre significa estar separado da estrela (o declínio

que marca o desvio quando é interrompida a relação com o acaso daquilo que vem do firmamento), ele indica a queda sob a necessidade desastrosa. Seria a lei o desastre, a lei suprema ou extrema, o excessivo da lei não codificável: a isso somos destinados sem nos concernir? O desastre não nos olha, ele é o ilimitado sem olhar, o que não pode se medir em termos de fracasso nem como a perda pura e simples.

Nada é suficiente para o desastre; o que quer dizer que, mesmo a destruição em sua pureza de ruína não lhe convém, mesmo a ideia de totalidade não saberia marcar seus limites: todas as coisas alcançadas e destruídas, os deuses e os homens EM  TESE

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reconduzidos à ausência, o nada no lugar de tudo é muito e muito pouco. O desastre não é maiúsculo, ele oferece, talvez, a morte banal; ele não se sobrepõe, estando aí como suplemento, ao espaçamento do morrer. Morrer nos dá, às vezes (indiretamente, sem dúvida), o sentimento de que se morrêssemos, escaparíamos do desastre e não de nos abandonar ao desastre – de onde vem a ilusão de que o suicídio libera (mas a consciência da ilusão não a dissipa, não nos deixa nos desviar dela). O desastre do qual se deveria atenuar – reforçando-a – a cor preta, expõe-nos a uma certa ideia da passividade. Nós somos passivos em relação ao desastre, mas o desastre é talvez a passividade, por ela atravessado e sempre atravessado. O

desastre cuida de tudo.

O

desastre: não o pensamento tornado louco, nem mesmo, talvez, o pensamento como aquele que carrega, sempre, sua loucura.

O

desastre nos retira esse refúgio que é o pensamento da morte, dissuadindo-nos do catastrófico ou do trágico, desinteressando-nos de todo querer como também de todo movimento interior, não nos permite mais jogar com esta questão: o que você fez para conhecer o desastre?

O desastre é do lado do esquecimento; esquecimento sem me-

mória, retirada imóvel do que não foi traçado – o imemorial, talvez; lembrar-se pelo esquecimento, novamente o fora.

BLANCHOT; ROCHA. A escrita do desastre […]

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* >>> O receptível seria o ilegível que prende, o texto ardente, produzido continuamente fora de qualquer verossimilhança e cuja função – visivelmente assumida por seu escriptor – seria a de contestar o constrangimento mercantil do escrito; esse texto, guiado por um pensamento do impublicável, atrairia a seguinte resposta: não posso ler nem escrever o que você produz, mas eu o recebo, como um fogo, uma droga, uma desorganização enigmática”. (BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Cultrix, 1975, p. 127: “Legível, escriptível e mais além”).


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“Você sofreu pelo conhecimento?”. Isso nos foi pergunta1. A palavra “pas”, em francês, comporta estes dois significados: passo e não. A opção em manter os dois sentidos da palavra em português foi por conta da construção textual deste fragmento de Blanchot: “[…] le subissement, le ‘pas’ du tout à fait passif en retrait par rapport à toute vue, tout connaître.” A passagem “le ‘pas’ du tout à fait passif” poderia ser traduzida por “o passo do absolutamente passivo”, mas nela também se escuta, claramente, a expressão “pas du tout” que significa “absolutamente não”. Dessa forma, optou-se por traduzir a palavra “pas” por “passo-não”, apostando menos na ideia de um “aí não passo” e mais na noção de um “passo do não”.

do por Nietzsche, na condição de que nós não menosprezemos a palavra sofrimento: a submissão, o “passo-não”1 do absolutamente passivo recuado em relação ao tudo visto, ao tudo conhecer. A menos que o conhecimento, não sendo o do desastre, mas conhecimento como desastre e por desastre, carregue-nos, deporte-nos, surpreendidos por ele, o conhecimento, mas sem que ele nos toque, ao cara a cara com a ignorância do desconhecido, assim esquecendo sem cessar.

O

desastre, inquietação do ínfimo, supremacia do acidental. Isso nos faz reconhecer que o esquecimento não é negativo ou que o negativo não vem depois da afirmação (afirmação negada), mas relaciona-se com o que há de mais antigo, com o que viria do longínquo das eras sem jamais ter sido dado.

É

verdade que, em relação ao desastre, morre-se muito tarde. Mas isso não nos dissuade de morrer, convida-nos, escapando do tempo onde é sempre muito tarde, a suportar a morte inoportuna, sem relação com nada, somente com o desastre como retorno.

Jamais

decepcionado, não pela falta de decepção, mas a decepção sendo sempre insuficiente.

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Não

direi que o desastre é absoluto, ao contrário, ele desorienta o absoluto, ele vai e vem, desassossego nômade, porém com a instantaneidade insensível, mas intensa, do fora, como uma resolução irresistível ou imprevista que nos viria do além da decisão.

Ler, escrever como se se vivesse sob a vigilância do desas-

tre: expostos à passividade para além da paixão. A exaltação do esquecimento.

Não é você que falará; deixe o desastre falar em você, mesmo que seja pelo esquecimento ou pelo silêncio. O

desastre já ultrapassou o perigo, mesmo quando estamos sob a ameaça de –. O traço do desastre é que não se está nunca nesse lugar senão sob sua ameaça e, como tal, ultrapassagem do perigo.

Pensar,

isso seria nomear (chamar) o desastre como as costas do pensamento2.

Não

sei como eu vim de lá, mas é possível que, a partir daí, eu chegue ao pensamento que conduz a se manter à distância do pensamento, pois ele dá isto: a distância. Mas ir aos confins do pensamento (sob essa espécie de pensamento da extremidade, da borda) não é possível somente mudando de pensamento? Daí esta injunção: não mude de pensamento, repita-o, se você puder.

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2. O termo utilizado por Blanchot é arrière-pensée. Optou-se por “costas do pensamento” por conta da polifonia da palavra “costa” na língua portuguesa: ela traz o sentido de algo que está atrás, mas ao mesmo tempo é “costa”, é “litoral”. O desastre estaria então às costas do pensamento, mas também no seu litoral – limiar entre dois campos heterogêneos. E aqui o tradutor refere-se à noção de letra como litoral, formulada por Jacques Lacan, em seu texto “Lituraterra”: “Não é a letra... litoral, mais propriamente, ou seja, figurando que um campo inteiro serve de fronteira para o outro, por serem eles estrangeiros, a ponto de não serem recíprocos? A borda do furo do saber, não é isso que ela desenha? E como é que a psicanálise, se justamente o que a letra diz de sua boca “ao pé da letra” não lhe conveio desconhecer, como poderia a psicanálise negar que ele existe, esse furo, posto que, para preenchê-lo, ela recorre a invocar nele o gozo?”. (LACAN, Jacques. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. P. 18: “Lituraterra”).


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O

desastre é o dom, ele dá o desastre: é como se ele passasse além do ser e do não-ser. Ele não é advento (a particularidade do que acontece) – isso não acontece, de maneira que não alcanço nem mesmo esse pensamento, exceto sem saber, sem a apropriação de um saber. Ou então ele é advento do que não acontece, daquilo que viria sem chegada, fora do ser, como por deriva? O desastre póstumo?

Não

pensar: isso, sem retenção, como excesso, na fuga pânica do pensamento. (p. 13)

Dizia-se:

você não se matará, seu suicídio o precede. Ou então: morre-se inapto a morrer.

O

espaço sem limite de um sol que testemunharia não através do dia, mas pela noite livre de estrelas, noite múltipla.

O

desastre não é sombra. Ele se libertaria de tudo se pudesse ter relação com alguém. Nós o conheceríamos em termos de linguagem e ao termo de uma linguagem por um gai savoir. Mas o desastre é desconhecido, o nome desconhecido pelo qual, mesmo dentro do pensamento, nos dissuade de ser pensado, distanciando-nos pela proximidade. Somente para se expor ao pensamento do desastre que desfaz a solidão e transborda todo tipo de pensamento como a afirmação intensa, silenciosa e desastrosa do fora.

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Uma

repetição não religiosa, sem arrependimento nem nostalgia, retorno não desejado; o desastre não seria então repetição, afirmação da singularidade do extremo? O desastre ou o inverificável, o impróprio.

O esquecimento imóvel (memória do imemoriável): nisto

se descreve, grita3, o desastre sem desolação, na passividade de um abandono que não renuncia, não anuncia senão o retorno impróprio. O desastre, nós o conhecemos talvez por outros nomes talvez jocosos, declinando todas as palavras, como se aí pudesse haver, para as palavras, um todo.

3. A passagem em questão é a seguinte: “[…] en cela se décrit le desastre sans désolation […]”. A cisão no verbo “décrire”, conjugado na terceira pessoa do singular, faz ressaltar um “crit” que, por ter a mesma sonoridade, leva-nos ao “cri”, ao “grito”.

A calma, a queimadura do holocausto, o aniquilamento do meio

dia – a calma do desastre. Ele não está excluído, mas é como alguém que não entra-

ria mais em parte alguma.

O

que é estranho é que a passividade nunca é bastante passiva: é aí que podemos falar de um infinito; somente, talvez, porque ela escapa a toda formulação, mas parece que há nela como uma exigência que a chamaria sempre a vir aquém dela mesma – não a passividade, mas exigência da passividade, movimento do passado em direção ao intransponível.

Passividade, paixão, passado, passo-não4

(às vezes negação e traço, às vezes movimento da caminhada), esse jogo semântico

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4. No original, encontra-se: “Passivité, passion, passé, pas”.


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nos dá um deslizamento de sentido, mas nada em que possamos confiar como uma resposta que nos contentaria. A recusa, diz-se, é o primeiro grau da passividade – mas se

5. No francês, ao pronunciarmos “l’être” (o ser) escutamos também “lettre” (letra, carta).

ela é deliberada e voluntária, se ela exprime uma decisão, seja ela negativa, isso não permite ainda se destacar sobre o poder de consciência, restando, na melhor das hipóteses, um eu que recusa. É verdade que a recusa tende ao absoluto, a uma espécie de incondicional: é o nó da recusa que torna sensível o inexorável “eu preferiria não (fazer)” de Bartebly, o escritor, uma abstenção que não pôde ser decidida, que precede toda decisão e que é mais que uma denegação, é antes de tudo uma abdicação, a renúncia (jamais pronunciada, jamais esclarecida) a nada dizer – a autoridade de um dizer – ou ainda a abnegação recebida como o abandono do eu, a deserção da identidade, a recusa de si que não se ouriça sobre a recusa , mas abre à falência, à perda de ser, ao pensamento. “Eu não o farei” teria significado ainda uma determinação enérgica, chamando por uma contradição enérgica. “Eu preferiria não...” pertence ao infinito da paciência, não deixando refém à intervenção dialética: “nós caímos para fora do ser, para fora da letra5, no campo do fora onde, imóveis, caminhando com passos iguais e lentos, vão e vêm os homens destruídos”.

(A edição referência para esta tradução é: BLANCHOT, Maurice. L’écriture du désastre. Gallimard: Paris, 1980)

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O NASCIMENTO DO CINEMA E A SIMULTANEIDADE*

Pär Bergman Tradução: Júlio Bernardo Machinski** 1. TRANCHANT, L. La cinématographie pour tous. Paris: Comptoir d’éditions de “Cinemarevue”, 1913. (Ver a Introdução.) Ao que parece, foi [Riccioto] Canudo quem lançou a expressão “a sétima arte” em relação à cinematografia. 2. DUPUIS, Ch. La cinématographie. Cahors: A. Coueslant, 1913. p. 3. 3. Cinéma-Revue, agosto de 1911, nº 5, p. 6. 4. Apud: LA QUESTION cinématographique: son état actuel, sa solution. Lille: L. Danel, 1912. p. 30 [autoria desconhecida].

Muitas pessoas acreditavam que o cinema do pré-guerra era um meio de recreação qualquer que podia ser comparado às gomas de mascar e ao circo; mas, para muitos outros, o cinema era de extrema importância – até mesmo “a oitava maravilha do mundo”.1 Em 1913, época em que há, em Paris, cerca de 200 cinemas e, em Marselha e Lyon, uma quarentena em cada uma das cidades, Charles Dupuis escreve o seguinte no início de um pequeno livro dedicado ao cinema: “Uma fada boa previu que, sem dúvida, o cinema teria, desde o seu nascimento, um brilhante destino, pois, mal chegado ao mundo, ele conquistou todos os favores e, hoje, menos de vinte anos depois de seu início, sua reputação é universal”.2

** jmachinski@yahoo.com.br Mestre em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutorando no Programa de Pós-Graduação em Teoria e História Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.

A forte influência exercida pelo cinema sobre os espectadores desperta discussões acaloradas, e os produtores de cinema estão dispostos a dar ao público “a ilusão completa de assistir (...) a uma cena que se desenrola realmente sob seus olhos”.3 O cinema impõe-se a todo mundo e ao mundo inteiro: Carlitos é admirado simultaneamente em Tóquio, em Roma, em Chicago e em Buenos Aires. O cinema é, como escreveu um dos pioneiros do cinema francês no Cine-Journal, em 1912: “uma sexta [sic] arte que, no mesmo segundo, faz vir lágrimas aos olhos do árabe e do esquimó (...)”.4 Desde a sua infância, o cinema visou mostrar o mundo inteiro aos espectadores. A conclusão de uma pesquisa era

* Tradução da parte final da introdução (“Le ‘Mythe du Moderne’ au début du XXe siècle”) do livro “Modernolatria” et “Simultaneità”: recherches sur deux tendences dans l’avant-garde littéraire en Italie et en France à la veille de la première guerre mondial, publicado em 1962, por Pär Bergman, originalmente apresentado como tese de doutorado na Universidade de Uppsala. No fragmento selecionado, após abordar o impacto que algumas invenções tecnológicas no início do século XX (como a bicicleta, o automóvel, o avião, os transatlânticos e o telégrafo) causaram sobre os modos de viver e sobre a produção artística da época, Bergman concentra sua atenção em aspectos que cercam o surgimento do cinema, abordando as características da linguagem cinematográfica e os efeitos dessa então nova arte sobre a percepção do espaço e do tempo. Agradecemos ao autor pela gentileza de autorizar a publicação, bem como à professora Maria Eugenia Boaventura, por ter possibilitado o acesso ao texto original.


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a de que podia ser observado que o cinema se servia, entre outras, das seguintes expressões:

5. BLASETTI, A. Come nasce un film. ± 2000: arte teatro letteratura futurista, número único, Bari, 1931. p. 28 ss. Cf. CARLSOON, L. Om våra dagars kinematografi [sobre a cinematografia atual]. Nordisk filmtidning. Estocolmo, março de 1909, nº 3, p. 1. 6. DOUMIC, R. Revue dramatique: l’âge du cinéma. Revue des deux mondes, 15 de agosto de 1913, p. 919. 7. Cinéma-Revue, agosto de 1911, nº 5, Introdução. 8. Ver, por exemplo, SADOUL, G. Histoire générale du cinéma, III, vol, I. 2. ed. Paris: Denöel, 1948. p. 264.

a África, as moçoilas, os cossacos, o Pólo Norte, a Oceania, os negros, os negreiros, a Europa, o arrombamento, os condenados, a América, os contrabandistas de álcool, a grande quebra da bolsa, os bon vivants às duas da manhã, a Torre Eiffel, a Ásia, o Estreito de Dardanelos, o Oeste, o Leste, ursos polares, a selva, as pirâmides, o Coliseu (...)5

Os primeiros filmes consistem em atualidades de toda espécie: “Em todas as regiões e sob todas as latitudes sucedem-se cerimônias, incidentes, acidentes, dramas e faits divers: imediatamente, eles são reproduzidos sobre a tela mágica.”6 O número de agosto de 1911 da Cinéma-Revue agrupa os novos filmes do mês sob três rubricas: filmes de viagem (que conduzem os espectadores, por exemplo, a Níjni Novgorod, ao Senegal, à Ístria, à Nápoles, ao Japão, à Hungria e à Melanésia), filmes cômicos e documentários, mostrando, entre outras coisas, a China, a Arábia, o Texas e a Austrália.7 Filmes já haviam sido realizados durante as expedições polares de 1906,8 e o Canal do Panamá reaparecia a cada passo em documentários. Note-se, também, o importante papel desempenhado pelos meios de transporte de todo tipo. Carlitos inicia-se no cinema em uma farsa cinematográfica intitulada La course d’auto

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(1912),9 e Georges Méliès, célebre, sobretudo, por suas realizações cinematográficas dos livros de Júlio Verne, inventa em A viagem através do impossível (Le voyage à travers l’impossible, 1904) o formidável “automabouloffe”10, síntese dos meios de transporte modernos.11 A viagem ao Pólo Norte em A conquista do pólo (À la conquête du pôle, 1912), de Méliès, é feita, justamente, no “aerobus” do engenheiro Mabouloff.12 Desde a Exposição Universal de Paris, em 1900, os inventores franceses esforçaram-se em dar aos espectadores a ilusão completa de assistirem aos eventos que ocorriam sobre toda a superfície da Terra. Graças ao “ciclorama” de Grimoin Sanson, os visitantes com estado de espírito aventureiro puderam subir no cesto de um balão contendo dez aparelhos cinematográficos sincronizados que, sobre a parede circular, projetavam filmes mostrando os lugares visitados, realizando, desse modo, seus sonhos de turistas, pela empresa “Viagens de balão através da Europa e África”. Infelizmente, tais viagens foram interrompidas depois de três voltas, por razões de segurança. Ainda mais notáveis parecem-nos as tentativas feitas por Baron a fim de criar um “cinematorama”, o qual carecia apenas da dimensão de profundidade para a realização do “cinema total”, onde os espectadores viam, ao redor de si mesmos, cowboys a cavalo e podiam ouvir, por trás, aproximarem-se os PelesVermelha em perseguição etc. “Naquele dia, o público, jogado no centro da ação, quase deixou de ser espectador para identificar-se com os heróis”.13 BERGMAN; MACHINSKI. O nascimento do cinema e a simultaneidade

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9. Bergman deve estar referindose a Kid Auto Races at Venice, também conhecido, em inglês, como The Pest; Charlot est content de lui, na França; Charlot si distingue, na Itália e Corrida de automóveis para meninos, no Brasil. Foi nesse filme de 1914 que, pela primeira vez, Charles Chaplin apareceu para o público completamente caracterizado como o “vagabundo”. Quanto às diferenças e imprecisão dos títulos, Carlos Heitor Cony observa: “Há muita confusão sobre a titulagem desses primeiros filmes de Chaplin. O próprio Senett [produtor], para alongar o tempo de projeção de alguns deles, fazia letreiros e subdivisões. Posteriormente, algumas das primeiras bobinas foram reunidas a outras numa espécie de filme único – o que torna extremamente difícil a pesquisa”. Cf. CONY, C. H. Chaplin e outros ensaios. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012. [N.T.]. 10. Palavra-valise utilizada para designar, no filme, um veículo extraordinário que reúne as características do automóvel, do trem, do dirigível e do submarino. [N.T.] 11. Ver BESSY, M.; LO DUCA, J.-M.. Georges Méliès: mage. Paris: Prisma, 1945. p. 108. 12. Ib., p. 61. 13. SADOUL, G. Histoire générale du cinéma, II, p. 108. Sobre “as maravilhas da exposição de 1900”, ver o capítulo 6, em geral.


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14. Film-Revue – hebdomadaire du cinématographe, janeiro de 1913, nº 2, p. 10.

Por certo, o poder do cinema de mostrar o mundo inteiro aos homens despertava entusiasmo e perplexidade. Em Film-Revue, cujas reproduções cinematográficas conduziam o leitor através do mundo inteiro, um entusiasta convidava todo mundo a olhar “Como o sol se põe” em Paris, nos Pirineus, nas margens do Nilo e no Mar Negro.14 Remy de Gourmont, num artigo escrito em 1907, destaca o poder do cinema de incutir nos espectadores um sentido daquilo que chegava simultaneamente de todos os cantos do mundo. O célebre crítico consegue representar aqui todos aqueles que, no início do século, graças ao cinema, puderam realizar seus sonhos de globetrotter e ir aonde bem lhes pareceu: Amo a cinematografia. Ela satisfaz a minha curiosidade. Por ela eu faço a volta ao mundo e paro, segundo minha vontade, em Tóquio, em Singapura. Estou nas rotas mais malucas. Vou a Nova Iorque, que não é bonita, por Suez, que também não o é, e percorro na mesma hora as florestas do Canadá e as montanhas da Escócia; subo pelo Nilo até Cartum e, no instante seguinte, da ponte de um transatlântico, contemplo a extensão morna do Oceano.15

15. DE GOURMONT, R. Cinématographe. Mercure de France, 1º de setembro de 1907, vol. 69, p. 124.

Parece evidente que o cinema contribuiu para criar um “sentido global” bastante amplo naquela época. É possível mesmo que os procedimentos técnicos do cinema, assim como os automóveis e os aviões, tenham contribuído para dar novas EM  TESE

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perspectivas, no sentido literal da palavra, a muitas pessoas. Obviamente que as câmeras cinematográficas do período, em contraste com a fotografia estática, destacaram-se em relação aos padrões de movimento. Já as séries de Muybridge, O cavalo em movimento (“The Horse in Motion”), e outras pesquisas semelhantes feitas durante a era pré-cinematográfica são significativas. “O movimento, é o seu (do cinema) triunfo e sua essência”,16 movimento que pode ser condicionado por um objeto em movimento ou por uma câmera em movimento. Gance, um pioneiro do cinema francês, qualifica o cinema de “admirável síntese do movimento no espaço e no tempo”.17 Uma vez que Georges Méliès, antes de se fazer produtor de cinema, era um prestidigitador renomado, os filmes baseados em truques e armações logo se tornaram muito na moda na França, e Méliès foi, talvez, o primeiro cineasta a utilizar em seus filmes a câmera lenta e a sobreposição. Parecem-nos de evidente importância as possibilidades do cinema de perturbar a ordem estabelecida do tempo. Já em 1896, os irmãos Lumière, projetando um filme de trás-pra-frente, mostraram aos espectadores uma parede rasa que se construía a si própria e, nesse mesmo ano, Méliès criava novas ilusões de tempo servindo-se da aceleração. Se o cineasta fotografa uma flor oito vezes por dia, a intervalos fixos, por quatro meses, e depois dispõe cinematograficamente essas fotografias, podemos ver desenvolver-se sobre a tela toda a vida da flor, em um minuto e meio.18

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16. Revue des deux mondes, 15 de agosto de 1913, p. 924.

17. Apud: La question cinématographique, p. 30.

18. Ver, por exemplo, Revue lumineuse, 1907, p. 160.


19. BANET-RIVET, P. La représentation du mouvement et la vie: la cinématographie. Revue de deux mondes, 1º de agosto de 1907, p. 605. Cf. WALDEKRANZ, R. Levand bilder i Sverige [As imagens vivas da Suécia]. Estocolmo: Förb, 1955. p. 9. [reed, ital.: La nascita del cinema in Scandinavia. In: USAI, P. C. (org.). Schiave bianche allo specchio: le origini del cinema in Scandinavia. Pordenone: Studio Tesi, 1986.] 20. Cf. MARTIN, M. Le langage cinématographique. Paris: CERF, 1955, p. 186. [ed. bras.: MARTIN, M. A linguagem cinematográfica. Belo Horizonte: Itatiaia, 1963; reed.: A linguagem cinematográfica. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2009 (1ª ed. 1983); ed. port.: A linguagem cinematográfica. Trad. Vasco Granja e Lauro António. Lisboa: Prelo, 1971; reed.: A linguagem cinematográfica. Trad. Lauro António e Maria Eduarda Colares. Lisboa: Dinalivro, 2005.] 21. KRESS, E. Trucs et illusions: applications de l’optique et de la mécanique au cinématographe. Paris: Comptoir d’édition de “Cinéma-Revue”, 1912. p. 3. 22. Em 1908, a Pathé ou Pathé Frères, companhia cinematográfica e fonográfica francesa fundada em 1896, inovou ao inserir filmes comerciais ou documentários antes da exibição dos filmes de longa-metragem. [N.T.] 23. GUIART, J. La vie révélée par le cinématographe. Revue Scientifique, 13 de junho de 1914, vol. I, p. 745.

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Durante muito tempo, aliás, as representações cinematográficas não nos mostraram muito mais do que uma roseira que, em alguns segundos, perdia as folhas, as flores e murchava; uma paisagem que se cobria de neve, despojava-se, enchia-se de pastagens e de plantações.19

Em 1912, Duran mostra-nos em seu filme Onésime Horloger, como o personagem principal, a fim de obter mais rapidamente a posse de uma herança, quebra o relógio do Observatório, após o que os eventos ganham uma aceleração formidável. Uma criança nasce e torna-se adulta em alguns instantes.20 Através do cinema, uma ilusão subjetiva da velocidade do tempo pode tornar-se objetiva, realizada sobre a tela. Há também quem explique o sucesso do cinema a partir das possibilidades que ele possui de dar uma forma concreta ao sonho.21 O professor Guiart, durante um filme Pathé22 intitulado Eclosion de fleur, que acompanha sua conferência científica, compara-se, em 1914, com “esses faquires indianos que colocam na palma de suas mãos alguns grãos, um pouco de terra e fazem brotar plantas que se recobrem de folhas e de flores, sob os olhos dos maravilhados espectadores”.23 Graças à “montagem”, à “organização dos planos, em certas condições de ordem e de tempo”,24 o cinema e a câmera cinematográfica conquistaram um poder ditatorial sobre o tempo e o espaço, criando um tempo e um espaço

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cinematográfico que diferem do tempo e do espaço matemáticos. O cinema é sempre do tempo presente e o espectador encontra-se sempre no centro dos acontecimentos do filme, seguindo alternadamente os heróis e os bandidos, que podem se encontrar a milhares de quilômetros um do outro. Considerando as decupagens e o “crossing-up”,25 técnicas não muito utilizadas antes da guerra, os espectadores são levados a trocar de ponto de vista a todo o momento, e observamos que os filmes da época, os filmes de aventura à maneira de Porter, acabam, geralmente, de forma súbita, fazendo com que os espectadores prendam a respiração, enquanto as decupagens e os cortes cada vez mais frequentes precipitam os acontecimentos. Surpreendente seria se essas mudanças rápidas de ponto de vista não tivessem exercido influência sobre muitos autores contemporâneos. A sobreposição, as mudanças rápidas (a “decupagem poética”), a “aceleração”, o acúmulo de imagens, a montagem associativa e ilógica e outros procedimentos também encontrados em muitos poetas da época não são, em parte, devidos ao cinema, ainda que tal hipótese pareça um tanto difícil de ser comprovada? Estamos inclinados a crer que diversos poetas, sobre muitos pontos, modelaram seus próprios procedimentos sobre os procedimentos técnicos do cinema, ilustrando, em grande medida, a simultaneidade da vida sobre toda a superfície da terra e, mais ainda, as possibilidades de alcançar uma simultaneidade ilógica e irreal. BERGMAN; MACHINSKI. O nascimento do cinema e a simultaneidade

24. MARTIN, op. cit., p. 125

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25. “Crossing up”: quando dois fragmentos de uma mesma história ocorrem simultaneamente em lugares diferentes, a câmera oscila de um a outro. MAGNY, C.-E. L’âge du roman américain. Paris: Editions du Seuil, 1948.


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26. BESSY; LO DUCA, op. cit., p. 28.

27. LANG, A. Théâtre et cinéma. In: MAUROIS, A. et. al. L’art cinématographique, III. Paris: Felix Alcan, 1927, p. 67 ss.

“O progresso da mecânica, do cinema ensina a ver rápido, a pensar direito ‘em velocidade’, a discernir com rapidez”, escreveram Bessy e Lo Duca.26 Considerando as trucagens relativas ao tempo bem como o movimento característico do cinema, o teatro parece demasiado “estático” aos olhos de muitos jovens no início do século. O teatro obriga-os a esperar vinte minutos entre dois atos que podem acontecer, além do mais, em um mesmo cenário, ao passo que o cinema os leva rapidamente do Pólo Norte ao Saara, de Paris à Índia, com ângulos de visão que mudam sem parar. “O cinema, o que você quer! é o futuro (...). Ele é o companheiro do automóvel, do avião, da T.S.F., das descobertas mecânicas, do conforto, da higiene e da velocidade, rei do tempo! Negar a sua força, o seu poder, a sua ação, é negar o evidente, é negar o século”.27 Temos tomado por ponto de partida a “máquina” e a “velocidade”, os dois elementos fundamentais do “mito do moderno”, a fim de delinear as origens do homem “novo”, o homem moderno que vive intensamente, que multiplica suas sensações e que, a um grau até então desconhecido, possui um sentido mundial, uma vez que é capaz de ter conhecimento dos eventos contemporâneos que se passam sobre toda a superfície do globo terrestre, até mesmo de experimentar o que acontece quase simultaneamente em lugares muito distantes uns dos outros. Percebemos que mesmo na vida real diária,

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um grande número de coisas ocorre de uma só vez. Por que o mesmo não aconteceria simultaneamente na poesia e nas artes em geral?28 Segundo o crítico Octave Béliard, o grande poeta seria, em breve, justamente “aquele que fará fervilhar ao redor de seus estados de espírito todos os movimentos ambientes, simultaneamente”, os ruídos do avião e do trem, assim como o tique-taque do relógio.29 A rapidez tem aberto os olhos de muitas pessoas, “porque a velocidade tem verdadeiramente mudado a face da Terra. Ela renovou toda a nossa estética, todo o nosso prazer de viver”.30 A velocidade tem ensinado aos “homens novos” a pensar rapidamente, de uma maneira sumária e sintética, e tem-lhes dado novas perspectivas,31 frequentemente expressas em uma arte também sintética. Roger Allard escreveu, em tom de brincadeira, em Ecrits français: “O fato de poder transportar-se com uma velocidade extrema de um lugar a outro, parece a muitos de nossos contemporâneos como a mais bela conquista, e a última palavra da Ciência e do Progresso (com maiúsculas)”.32 “O homem moderno”33 pensa! Ele se encontra sempre no centro dos acontecimentos registrados diretamente, à semelhança de um aparelho Morse, em toda a vida ambiente, explosiva e rodopiante em sua modernidade. Ele prefere o aeródromo e o cinema à igreja, ele tem gosto pelos vôos e pelas viagens de automóvel mais do que pelos museus, ele canta o deus dos tempos novos – o Homem – celebrando o herói do século: o aviador destemido. BERGMAN; MACHINSKI. O nascimento do cinema e a simultaneidade

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28. Ver, por exemplo, Poème & Drame, vol. VII, janeiro-março de 1914, p. 35 (Aldington).

29. Les hommes du jour, 6 de setembro de 1913 (Les livres).

30. STROWSKI, F. L’homme moderne. Paris: Bernard Grasset, 1931. p. 52.

31. Ver, por exemplo, Pan, fevereiro de 1911, p. 99 ss.

32. ALLARD, R. Futurisme, simultanéisme et autres métachories. Écrits français, 5 de fevereiro de 1914, p. 255.

33. Ver a obra de Strowsky citada acima.


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É interessante notar a que ponto extremo esse homem novo procura exprimir seus ideais na literatura já no decorrer dos anos que precedem imediatamente a Grande Guerra. Determinar cronologicamente o nascimento literário de seus ideais é quase impossível. Henri-Martin Barzun, um dos porta-vozes mais entusiastas da “nova beleza”, refletiu sobre essa questão. Ele encontra a seguinte solução: E se obras diversas apresentam-nos (...) um fundo de tendências idênticas, é porque a percepção da nova beleza é simultânea aos nossos olhos; é porque as mesmas formidáveis realidades atacam nossos sentidos; é porque o tempo único em que todos vivemos marca com sua impressão indelével nossas meditações e proporciona à nossa voz o canto moderno.34 34. Poème & Drame, janeiro de 1913, vol. II, p. 40-41.

e o Espaço estariam mortos graças à Velocidade onipresente. A redação do Le Figaro notou, em margem, que o autor do manifesto em questão anunciava a todos “a Escola do Futurismo, na qual as teorias superam em ousadia todas aquelas das escolas anteriores ou contemporâneas”.35 O manifesto é assinado “F. T. Marinetti”. Algumas palavras preliminares sobre os antecedentes desse homem, notável em muitos aspectos, parecem-nos bastante apropriadas como introdução à primeira parte deste livro.

Barzun nota, também, que essa explicação, aos olhos dos pesquisadores futuros, pareceria bastante simples. Contudo, é a única explicação possível. No entanto, a julgar pelos críticos, ao que tudo indica, o francês médio ficou chocado ao ler, na primeira página do Le Figaro de 20 de fevereiro de 1909, um manifesto violento e agressivo que pregava, entre outras coisas, uma nova beleza, ou seja, aquela da Velocidade (um automóvel de corrida é mais belo que a Vitória de Samotrácia!), que celebrava o homem ao volante, as cidades modernas, as usinas, as locomotivas e os aviões, manifesto que declarava que o Tempo

(A edição referência para esta tradução é: BERGMAN, Pär. “Modernolatria” et “Simultaneità”: recherches sur deux tendences dans l’avant-garde littéraire en Italie et en France à la veille de la première guerre mondial. Uppsala: Svenska Bökforlaget/Bonniers, 1962, p. 26-33).

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35. Le Figaro, 20 de fevereiro de 1909.


A POÉTICA LÍQUIDA NA ESCRITURA DE CLARICE LISPECTOR

Danilo França do Nascimento*

* danilofn@gmail.com Mestrando em Estudos de Linguagens CEFET/MG, atuando nas áreas de teatro e literatura. Possui licenciatura em Artes Cênicas pela UFOP.

RESUMO: Neste ensaio é analisado o papel da água – e de seus ressoadores – enquanto matéria poética na escritura de Clarice Lispector, sobretudo em seu livro Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. De acordo com o filósofo Gaston Bachelard, concentrar-se em uma matéria pode resultar em uma imaginação aberta, pois qualquer criação artística precisa de uma ‘essência’ (densidade) material, que encontre a sua matéria poética. É nesse sentido que se entende o papel da água na escritura clariceana, pois observa-se que desde seu primeiro conto publicado, a água se mostra um tipo de mote criativo para a escritora. Para a análise aqui pretendida, utiliza-se como aporte teórico principalmente estudos de Gaston Bachelard, Roland Barthes, Leyla Perrone-Moisés, Jean Chevalier & Alain Gheerbrant.

ABSTRACT: In this essay the role of water is analyzed – and its resonators – as poetic material in the deed of Clarice Lispector, especially in the book Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. According to the philosopher Gaston Bachelard, focus on a material may result in an open imagination, for any artistic creation needs a material essence (density), to find the poetic material. It is in this sense that we understand the role of water in Clarice’s deed, because it is observed that since her first published short story, the water refers to a kind of creative theme for the writer. For the analysis here intended, is used as the theoretical studies mainly of Gaston Bachelard, Roland Barthes, Leyla PerroneMoisés, Jean Chevalier & Alain Gheerbrant.

PALAVRAS-CHAVE: Clarice Lispector; água; Gaston Bachelard; escritura.

KEYWORDS: Clarice Lispector; water; Gaston Bachelard; deed.


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Estava à porta do terraço e só acontecia isto: ela via a chuva e a chuva caía de acordo com ela. Ela e a chuva estavam ocupadas em fluir com violência. (Clarice Lispector)

1. A epifania possui como etimologia o termo grego epipháneia, referindo-se a uma aparição, ou manifestação. Além de referir-se a uma manifestação que revela sobre uma divindade, o termo é empregado em estudos literários para designar um repentino entendimento profundo da essência de algo ou de alguém. Nesse último sentido é que muitas vezes Clarice Lispector utiliza esse recurso em sua escritura, como no conto “Amor” (Laços de Família), quando a personagem Ana tem uma epifania por simplesmente ver um homem cego mascando chiclete.

A relação entre Clarice Lispector e a água remonta a sua infância, quando relata em uma de suas crônicas-memórias, publicada no livro A descoberta do mundo, os mergulhos noturnos de mar que dava com suas irmãs e seu pai em Olinda, Recife. Seu pai acreditava que se banhar no mar antes do sol nascer, em jejum, traria um poder de cura, e assim era realizado com a família Lispector. Clarice conta que sempre se entusiasmava neste ritual de banho de mar salutar, pois era o que trazia um pouco de alegria à sua infância triste marcada pela doença e morte da mãe. E a escritora ainda revela algo que fazia nestes rituais de cura e continuou fazendo durante toda a sua vida: com as mãos em concha, bebia das salgadas águas do mar, qual era a sua necessidade de se unir a ele. Este foi decerto o começo de uma estreita relação com a água a qual Clarice traspassou de sua vida pessoal para a literatura. Desde seu primeiro conto publicado, Triunfo, a água se mostra um tipo de mote criativo para a escritora. No conto, Clarice explora as potencialidades poéticas da água ao escrever sobre a epifania1 da personagem Luísa enquanto toma banho, após se ver abandonada pelo namorado:

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Tirou a roupa, abriu a torneira até o fim, e a água gelada correu-lhe pelo corpo, arrancando-lhe um grito de frio. Aquele banho improvisado fazia-a rir de prazer. De sua banheira abrangia uma vista maravilhosa, sob um sol ardente. Um momento ficou séria, imóvel. O romance inacabado, a confissão achada. Ficou absorta, uma ruga na testa e nos cantos dos lábios. A confissão. Mas a água corria gelada sobre seu corpo e reclamava ruidosamente sua atenção. Um calor bom já circulava em suas veias. De repente, teve com um sorriso, um pensamento. Ele voltaria.2

2. LISPECTOR. Outros escritos, p. 14.

No primeiro romance de Clarice Lispector, Perto do coração selvagem, a água também se faz presente em forma de um banho que se mostra iniciador para a protagonista Joana, contando com a mesma característica sinestésica de Luísa: A água cega e surda mas alegremente não muda brilhando e borburando de encontro ao esmalte claro da banheira. [...] Alisa a cintura, os quadris, sua vida. Imerge na banheira como no mar. Um mundo morno se fecha sobre ela silenciosamente, quietamente. [...] A água esfria ligeiramente sobre sua pele e ela estremece de medo e desconforto. Quando emerge da banheira é uma desconhecida que não sabe o que sentir. Nada a rodeia e ela nada conhece.3

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3. LISPECTOR. Perto do coração selvagem, p. 64-67.


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Esta poética líquida e fluída não se faz diferente em seu sexto romance publicado, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. No entanto, antes de realizar uma análise mais pormenorizada da água enquanto matéria poética nesse livro, faz-se relevante compreender primeiramente o conceito de matéria e imagem poéticas. Pois se busca neste ensaio entender, ainda que brevemente, o processo criativo em relação com a água desta escritora que é considerada uma das figuras mais importantes da literatura brasileira. 4. BACHELARD. A água e os sonhos.

De acordo com o filósofo Gaston Bachelard,4 concentrar-se numa matéria pode resultar numa imaginação aberta, pois qualquer criação artística precisa de uma ‘essência’ (densidade) material, que encontre a sua matéria poética. Nesse sentido, as imagens são como um inexaurível alimento para a imaginação material. Logo, a imagem poética é aludida pelo filósofo a uma planta que necessita de substância e forma para que possa se desenvolver. Devido a isso que se torna mais acessível estudar a imaginação poética desde que se entenda que as imagens poéticas também possuem uma matéria. Pode-se designar, por conseguinte, uma lei dos quatro elementos, a fim de classificar as imagens poéticas de acordo com as possíveis associações com o fogo, o ar, a água e a terra. Esses quatro elementos “sugerem confidências secretas e mostram imagens resplandecentes. Todos os quatro têm seus fiéis, ou, mais exatamente, cada

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um deles é já profundamente, materialmente, um sistema de fidelidade poética”.5 Nesse sentido, a matéria água e seu sistema de fidelidade poética – os ressoadores – são estudados neste trabalho com o objetivo de identificar a matéria poética da água como uma fonte de criação (imaginação) artística, utilizada amplamente na literatura de Clarice Lispector, sobretudo em Uma aprendizagem. Desse modo, entende-se aqui o termo ressoador como um dinamizador de uma matéria, ou seja, elementos que dão densidade, dinâmica, eco à matéria poética de uma obra.6 Nesse sentido, entender brevemente o simbolismo da água torna-se um meio de alcançar tal pretensão de análise. De acordo com Jean Chevalier & Alain Gheerbrant,7 no livro Dicionário de símbolos, a água universalmente representa a fecundidade e a fertilidade, desempenhando um importante papel regenerador. Para a cultura asiática, a água simboliza o germe da vida, a fertilidade e a pureza: a matéria-prima (prakriti). Como símbolo de bênção, é ela que permite a vida. Para as tradições judaica e cristã, embora o simbolismo da água se refira à origem da vida, ela ainda pode ser analisada como uma fonte de morte (dilúvio, grande calamidade, como punição aos iníquos), que pode criar do mesmo modo como pode destruir. A água também possui uma forte potencialidade simbólica de iniciação, renascimento. NASCIMENTO. A poética líquida na escritura de Clarice Lispector

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5. BACHELARD. A água e os sonhos, p. 5.

6. Cf.: SANTIAGO SOBRINHO. As imagens de água no romance Grande sertão: veredas de João Guimarães Rosa. 7. Cf.: CHEVALIER & GHEERBRANT. Dicionário de símbolos.


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8. PERRONE-MOISÉS. Texto, crítica, escritura, p. 49.

9. BARTHES. O prazer do texto, p. 24.

Ainda, vale esclarecer que se utiliza neste ensaio o termo escritura, com base em estudos do escritor e filósofo francês Roland Barthes, no sentido de se referir a um texto que produz uma significação circulante, um disseminador de múltiplos sentidos. Por conseguinte, o termo texto é utilizado neste trabalho na concepção de ser um produto inacabado, no sentido de poder ser ressignificado (traduzido) quantas vezes for necessário. De acordo com Leyla Perrone-Moisés,8 “o texto é o lugar da escritura, um lugar onde o sujeito se arrisca numa situação de crítica radical, e não o produto acabado de um sujeito pleno”. Nesse sentido, entende-se que por ser uma desfuncionalização da linguagem – pois não concerne a uma função da linguagem –, a escritura obriga a língua a significar além de suas funções. Acredita-se aqui, portanto, que a literatura de Clarice Lispector possui essencialmente esta característica de significar a mais do que a língua pode oferecer, conforme escreveu Barthes9 sobre o prazer do texto: “é esse momento em que meu corpo vai seguir suas próprias ideias – pois meu corpo não tem as mesmas ideias que eu”. Clarice soube produzir com sua escritura os mais variados sentidos de um modo dinâmico, colocando a sua literatura em um patamar ainda pouco explorado pelos escritores de seu tempo, conforme bem observou Antonio Candido: “tive verdadeiro choque ao ler o romance diferente que é Perto do coração

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selvagem, de Clarice Lispector, escritora até aqui completamente desconhecida para mim. Com efeito, este romance é uma tentativa impressionante para levar a nossa língua canhestra a domínios pouco explorados”.10

10. CANDIDO. No raiar de Clarice Lispector, p. 127.

O crítico literário ainda faz outras oportunas considerações sobre o estilo de sua recém-descoberta escritora, o que corrobora o sentido de escritura na literatura clariceana: “o seu ritmo é um ritmo de procura, de penetração que permite uma tensão psicológica poucas vezes alcançada em nossa literatura contemporânea. Os vocábulos são obrigados a perder o seu sentido corrente, para se amoldarem às necessidades de uma expressão sutil e tensa”.11

11. CANDIDO. No raiar de Clarice Lispector, p. 129.

Em suma, este entendimento corrobora o objetivo deste ensaio, por ser a escritura um dinamizador de sentidos, o que oportuniza a difusão da matéria poética da água e seus ressoadores em Uma aprendizagem, de Clarice Lispector, como a secura, a lua e o mar. A água e seus ressoadores (com as suas potencialidades simbólicas) perpassam por todo o romance Uma aprendizagem. A princípio, os dois títulos possivelmente referentes à primeira parte do livro – A origem da primavera ou A morte necessária em pleno dia – denotam uma possibilidade de alusão ao renascimento (do mortífero inverno à úbere primavera; a necessidade de morrer para que se possa renascer),

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o que se torna plausível referir-se à água enquanto símbolo de iniciação. Estes possíveis títulos mostram ao leitor uma premissa da situação de Lóri, a protagonista.

12. LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p. 24.

13. LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p. 42; 85.

14. LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p. 25.

No começo de Uma aprendizagem, Lóri se vê numa completa secura: falta água em seu apartamento, assim como falta água em sua vida amorosa e espiritual (alma seca). Há uma secura como falta de fertilidade motivada pelo ódio, pela angústia existencial que fazia com que tampouco houvesse lágrima ou suor na vida de Lóri: “era por ódio que não havia água [...] E não chove, não chove. Não existe menstruação. Os ovários são duas pérolas secas”.12 Torna-se evidente a relação com que Clarice faz desta secura com a infertilidade, pois a protagonista se sentia como “parada da vida dos sentimentos”, fazendo com que Lóri se sentisse “uma mulher infeliz”.13 Não obstante, em meio à falta de água em sua vida, Lóri pressente um momento de reviravolta: “ela só percebe que agora alguma coisa vai mudar, que choverá ou cairá a noite”.14 Lóri percebe então uma transformação devido ao encontro com Ulisses. Não com o uso de máscaras sociais, como sempre o fez, mas uma transformação real de vida. Por isso que Lóri se banha nos raios lunares à procura de se purificar, como um meio de se obter uma epifania (revelação) de vida. E conta com a ajuda de Ulisses para essa realização: “de madrugada ia ao pequeno terraço e quando tinha sorte era madrugada com lua cheia. Tudo isso já aprendera através de EM  TESE

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Ulisses”.15 Assim como a lua precisa do sol para brilhar, Lóri precisa de Ulisses para aprender. Conforme a descrição feita por Clarice Lispector, Lóri é um ser lunar: “mas da lua ela não tinha receio porque era mais lunar que solar e via de olhos bem abertos nas madrugadas tão escuras a lua sinistra no céu. Então ela se banhava toda nos raios lunares. [...] E ficava profundamente límpida”.16 A lua pode ser considerada como um ressoador de água devido ao seu simbolismo, que é a de reger os ritmos da vida no que se refere à água, à chuva, e à fertilidade das mulheres, animais e vegetação. Por este motivo que diversos rituais de iniciação acontecem quando a lua está bem visível. Ainda, a lua tem correlação à dependência e ao princípio feminino, pois não tem luz própria, apenas se manifesta devido aos raios do sol que reflete.17 É possível então fazer uma conexão com a personagem Lóri, que procura descobrir-se devido ao contato com Ulisses. Por isso que, já no final do livro, Lóri admite a necessidade do homem para que possa ser mulher: “eu sempre tive que lutar contra a minha tendência a ser a serva de um homem, disse Lóri, tanto eu admirava o homem em contraste com a mulher. No homem eu sinto a coragem de se estar vivo”.18 Igualmente, pode-se fazer uma relação de iniciação de Lóri em Uma aprendizagem com este ressoador da água, pois a lua “é também o primeiro morto. Durante três noites, em cada NASCIMENTO. A poética líquida na escritura de Clarice Lispector

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15. LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p. 34.

16. LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p. 34.

17. Cf.: CHEVALIER & GHEERBRANT. Dicionário de símbolos.

18. LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p. 154.


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19. CHEVALIER & GHEERBRANT. Dicionário de símbolos, p. 561.

20. LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p. 98.

mês lunar, ela está como morta, ela desapareceu... Depois reaparece e cresce em brilho. [...] A Lua é para o homem o símbolo desta passagem da vida à morte e da morte à vida”.19 Com o intuito de aprender, tornar-se outra, Lóri recorre a um tipo de ritual lunar, o que corrobora o conceito de iniciação da personagem: é preciso morrer para que se possa renascer. Faz-se relevante notar que o nome da protagonista de Uma aprendizagem possui uma evidente referência à água e ao mar (outro ressoador). Lóri é uma abreviação de Loreley, figura mítica que a própria Clarice elucida sobre sua origem: “Loreley é o nome de um personagem lendário do folclore alemão, cantado num belíssimo poema por Heine. A lenda diz que Loreley seduzia os pescadores com seus cânticos e eles terminavam morrendo no fundo do mar”.20 Já o nome do outro personagem central de Uma aprendizagem, Ulisses, pode-se relacioná-lo ao herói da mitologia grega segundo a obra Odisseia de Homero, que também possui alusão ao mar. Ulisses (segundo a mitologia romana) ou Odisseu (para a mitologia grega) é o rei da ilha grega de Ítaca que participou com grande destaque na Guerra de Troia. O herói tem como grande paixão o mar, apesar de, com a guerra findada, ter de passar dez anos em navegação buscando retornar à Ítaca. Em meio a sua odisseia em alto mar, o Ulisses homérico se depara com o canto das ninfas aquáticas, ordenando então a EM  TESE

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seus companheiros de viagem que tapem seus ouvidos com cera para não serem levados às profundezas do oceano. Já Ulisses, ávido por ser seduzido pelo canto das sereias, demanda ser amarrado no mastro do navio para não morrer em decorrência dessa experiência. No caso de Uma aprendizagem, Clarice Lispector ironiza ao fazer o contrário: é a sereia Loreley quem faz uma longa viagem (odisseia) ao encontro de si mesma, buscando o autoconhecimento, chamada pelo canto de Ulisses. A protagonista clariceana decide por não se amarrar ao mastro e segue o canto de seu sedutor até as profundezas de si mesma, para morrer e posteriormente renascer como uma nova mulher. Ainda de acordo com a mitologia grega, Teresinha Silva analisa o romance entre Lóri e Ulisses como uma apropriação por Clarice Lispector do mito de Eros e Psiqué.21 Valendo-se de estudos de Junito Brandão, a pesquisadora elucida que as sereias são personificações de forças da deusa grega do amor, Afrodite – uma divindade aquática. O amor afrodisíaco é diferente do senso comum, pois é um amor voltado à satisfação dos instintos sexuais mais primitivos. É uma deusa que possui uma força irreprimível da fecundidade, uma força física que se traduz em desejo e prazer sensoriais. Logo, a transformação do amor instintivo em amor humano torna-se a base do mito de Eros e Psiqué.

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21. Cf.: SILVA. Mito em Clarice Lispector.


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22. SILVA. Mito em Clarice Lispector, p. 33.

23. Cf.: SILVA. Mito em Clarice Lispector.

Esse se refere ao embate entre Afrodite e a princesa Psiqué pelo amor de Eros, filho da deusa do amor. A luta de Psiqué é a de tirar Eros do plano divino, coletivo e inconsciente relacionado à Afrodite, com o fim de trazê-lo ao plano humano, individual e consciente. Psiqué vence o embate contra Afrodite e tira seu amado do paraíso sexual dos instintos de sua mãe-deusa, e o traz para um encontro consciente com outro humano. “O mito de Eros e Psiqué narra, portanto, uma história de humanização através do desenvolvimento da consciência: de como Eros, o amor só instinto, só corpo, transformou-se até ser humanizado, através da união consciente com a Psiqué, alma humana”.22 Portanto, torna-se plausível relacionar tal mito com a história clariceana de Lóri e Ulisses. Fazendo as vezes de Psiqué, Ulisses almeja que Lóri aprenda o amor consciente e humano: ter o prazer da vida pela humanização dos desejos. No caso, é Ulisses quem seduz pacientemente a sereia Loreley, e a humaniza, fazendo com que Lóri resista às forças inconscientes e afrodisíacas do desejo não humano, para que então saiba viver de corpo e alma. Esta humanização de Lóri se efetiva quando aprende que não mais se chama Lóri, mas Eu.23 Para efetivar esta iniciação de uma vida completamente nova, Lóri recorre a um ritual de autobatismo no mar, o qual se torna um ponto alto da potencialidade poética da água em EM  TESE

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Uma aprendizagem. Às cinco e dez da manhã Lóri se arrisca no desconhecido, e vai à praia deserta: “alguma coisa se desencadeara nela, enfim. E aí estava ele, o mar. Aí estava o mar, a mais ininteligível das existências não-humanas. E ali estava a mulher, de pé, o mais ininteligível dos seres vivos. [...] Ela e o mar”.24 Como a água pode simbolizar tanto a vida quanto a morte, torna-se evidente a relação em morrer e renascer outro: uma iniciação. Bachelard considera que “a água, substância de vida, é também substância de morte para o devaneio ambivalente. [...] Diz-nos C. G. Jung que ‘o morto é devolvido à mãe para ser re-parido’. A morte nas águas será para esse devaneio a mais maternal das mortes”.25 Ainda citando Jung, o filósofo defende que o desejo do homem é que as águas da morte se transformem em águas de vida, que a morte seja um colo materno, assim como é o mar. Tal devaneio de Bachelard e Jung – a água que re-pare – torna plausível relacioná-lo à iniciação de Lóri no trecho do mar: ela ali morre nas águas, para então renascer como uma nova mulher. É a partir deste trecho que Lóri passa a se entender, finalmente, como iniciada à vida: ela é a mulher, é a amante, é viva, está sendo, de acordo com a sua aprendizagem do prazer humanizado. Clarice Lispector continua relatando a iniciação de Lóri ao mar. Quando a protagonista decide tomar coragem de se NASCIMENTO. A poética líquida na escritura de Clarice Lispector

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24. LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p. 76; 78.

25. BACHELARD. A água e os sonhos, p. 75.


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abismar no desconhecido, no mistério que é o imenso mar, no mistério que é descobrir-se enfim, sente frio e toma consciência de si mesma:

26. LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p. 79.

27. LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p. 80.

Esse corpo entrará no ilimitado frio que sem raiva ruge no silêncio da madrugada. A mulher não está sabendo: mas está cumprindo uma coragem. [...] A coragem de Lóri é a de, não se conhecendo, no entanto prosseguir, e agir sem se conhecer exige coragem. Vai entrando. A água salgadíssima é de um frio que lhe arrepia e agride em ritual as pernas. [...] O caminho lento aumenta sua coragem secreta – e de repente ela se deixa cobrir pela primeira onda! O sal, o iodo, tudo líquido deixam-na por uns instantes cega, toda escorrendo – espantada de pé, fertilizada. [...] Avançando, ela abre as águas do mundo pelo meio. Já não precisa de coragem, agora já é antiga no ritual retomado que abandonara há milênios.26

Para finalizar o ritual, Lóri entende a necessidade de sentir o mar também por dentro, assim como a pequena Clarice fazia nos rituais de banho de mar em Olinda. Por isso, “com a concha das mãos cheias de água, bebe-a em goles grandes, bons para a saúde de um corpo. E era isso o que estava lhe faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um homem”.27 A metáfora que Clarice faz das águas do mar como o esperma de um homem ainda pode remeter ao nascimento

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de Afrodite, devido às semelhanças das qualidades nívea e densa entre o esperma e a espuma do mar. De acordo com a mitologia grega, Afrodite (Αφροδίτη) é considerada uma divindade aquática, por ter nascido das espumas do mar: “o grego αφρός (aphrós), ‘espuma’, teve evidentemente influência na criação do mito da deusa nascida das ‘espumas’ do mar. [...] Afrodite é a forma grega da deusa semítica da fecundidade e das águas fertilizantes, Astarté”.28 Realizando um diálogo deste entendimento com a observação de Sándor Ferenczi – de que as secreções sexuais de Afrodite cheiram a peixe, haja vista que o psicanalista acredita que a deusa do amor nunca tenha saído das águas29 –, torna-se plausível que o renascimento de Lóri no mar seja amparado pela bênção divina de Afrodite. Apesar do processo de humanização ao qual Ulisses faz Lóri passar, ela não recusa seus desejos mais primitivos. Por isso que após seu autobatismo, Lóri convida Ulisses a ver os peixes no mar, pois se vê como uma nova mulher, dupla: humanizada e afrodisíaca, desejosa de seu amante na forma mais primitiva possível: Os pescadores continuavam a esvaziar na areia novas redes onde os peixes ainda se mexiam quase mortos. E deles vinha o forte cheiro sensual que o peixe cru tem. Lóri aspirou profundamente o cheiro quase ruim, quase ótimo. Só a própria pessoa podia exprimir a si própria o inexprimível cheiro do peixe cru – não em palavras: o único modo de

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28. BRANDÃO. Mitologia grega, p. 215.

29. Cf.: DEBRAY. Acreditar, ver, fazer.


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30. LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p. 100-101.

32. Cf.: BARTHES. O prazer do texto.

exprimir era sentir de novo. E, pensou ela, e sentir a grande ânsia de viver mais profundamente que esse cheiro provocava nela. [...] Lóri quereria dizer a Ulisses como o cheiro de maresia lhe lembrava também o cheiro de um homem sadio, mas jamais teria coragem. Aspirou de novo a morte viva e violentamente perfumada dos peixes azulados, mas a sensação foi mais forte do que pôde suportar e, ao mesmo tempo, que sentia uma extraordinariamente boa sensação de ir desmaiar de amor, sentiu, já por defesa, um esvaziamento de si própria.30

olhos avermelham-se pelo sal que seca, as ondas lhe batem e voltam, lhe batem e voltam pois ela é um anteparo compacto”.31 Esta análise serviu, portanto, como uma busca intuitiva para compreender como, na escritura fragmentária de Clarice Lispector, a água se refere a uma matéria poética necessária à imaginação criativa da autora. Entende-se que a escritura clariceana estimula o leitor a se envolver em sua multiplicidade de sentidos e de resignificações. Assim sendo, a escritura de Clarice Lispector se mostra como um caleidoscópio em que, de acordo com o olhar de cada leitor, exibe um mundo singular em que a água e seus ressoadores são constantemente evidenciados em prol de uma poética líquida.

Conforme já visto, o amor relacionado à Afrodite concerne à satisfação dos mais primitivos instintos sexuais, sendo esses o resultado de uma grande força do desejo e do prazer sensoriais. Portanto, fica evidente que o trecho acima demonstra o momento em que Lóri se permite sentir a sua latente sexualidade mais primitiva (ligada à deusa do amor), conforme se pode notar nas seguintes passagens: “e deles vinha o forte cheiro sensual que o peixe cru tem”; “o cheiro da maresia lhe lembrava também o cheiro de um homem sadio”; “sentia uma extraordinariamente boa sensação de ir desmaiar de amor”. Outra característica afrodisíaca está no mesmo trecho do mar, quando, após Lóri ter sentido o mar por dentro, as ondas realizam nela os movimentos característicos de uma relação sexual: “agora ela está toda igual a si mesma. A garganta alimentada se constringe pelo sal, os

Ainda, vale considerar que a escritura não concerne a um mero meio de comunicação. Ela se volta para o mundo assim como se volta para si mesma, pois ela se basta. Segundo Barthes, no texto não existe ribalta entre escritor e leitor, pois não há um ser ativo, o escritor, nem tampouco passivo, o leitor.32 A escritura é considerada pelo filósofo como uma ciência das fruições da linguagem, possuindo somente um tratado: a si mesma. Assim, a escritura não apenas diz algo, mas diz ela mesma, “pois mesmo quando ela afirma, não faz mais do que interrogar. Sua ‘verdade’ não é uma adequação a um referente exterior, mas o fruto de sua própria organização, resposta provisória da linguagem a uma pergunta sempre aberta”.33

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31. LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p. 80.

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33. PERRONE-MOISÉS. Texto, crítica, escritura, p. 33.


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34. LISPECTOR. A hora da estrela, p. 11.

35. LISPECTOR. Um sopro de vida, p. 14.

Essa concepção de escritura, portanto, dialoga com a motivação que Clarice Lispector possuía para escrever, conforme se pode notar no livro A hora da estrela: “enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever”;34 como também no póstumo livro Um sopro de vida: “‘escrever’ existe por si mesmo? Não. É apenas o reflexo de uma coisa que pergunta. [...] Escrever é uma indagação. É assim: ?”.35 E assim o fez, escrevendo o mistério por si mesmo, sem necessidade de entendimento ou comunicação. Por isso que Clarice Lispector foi – e continua sendo – uma pergunta.

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REFERÊNCIAS

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NASCIMENTO. A poética líquida na escritura de Clarice Lispector

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AS SIMBÓLICAS VIAGENS DE BARCO EM TRÊS ROMANCES DE MIA COUTO: A DIREÇÃO DA MORTE

Luara Pinto Minuzzi*

RESUMO: Buscar, nos meandros de três romances do escritor moçambicano Mia Couto, quaisquer referências a barcos, barcas, naus, navios, canoas (enfim, a transportes aquáticos em geral) e perceber como a simbologia referente à viagem pela água do mundo dos vivos ao mundo dos mortos (ou dos mortos para o dos vivos) e aos barqueiros da morte relaciona-se com e enriquece tais narrativas são os principais objetivos desta pesquisa. Assim, os textos literários a formarem o corpus do presente estudo são Terra sonâmbula, O outro pé da sereia e A confissão da leoa – cada volume representando uma década da produção do autor, uma vez que os livros foram publicados em 1992 (seu primeiro romance), 2006 e 2012, respectivamente. Já a teoria do trabalho embasa-se, principalmente, nas obras do antropólogo Gilbert Durand, do filósofo Gaston Bachelard e do teórico das religiões Mircea Eliade, no que diz respeito às questões relacionadas ao imaginário e a seu funcionamento. PALAVRAS-CHAVE: Mia Couto; Teorias do Imaginário; Literatura Africana; Simbologia de Barcos.

* luarapm@gmail.com Mestra e doutoranda em Teoria da Literatura pela PUCRS.

ABSTRACT: Search, in the narratives of in three novels by the Mozambican writer Mia Couto, any references to boats, barges, ships, vessels, canoes (finally, water transport in general) and realize how the symbolism related to journeys by the water from the world of the living to the world of the dead (or from the dead to the living) and to boatmen of the death relate to and enrich such narratives are the main objectives of this research. Thus, the literary texts that form the corpus of this study are Terra Sonâmbula, O outro pé da sereia and A confissão da leoa – each volume representing a decade of the author’s production, since the books were published in 1992 (his first novel), 2006 and 2012, respectively. This work theory of this work was grounded mainly in the works theses of the anthropologist Gilbert Durand, the philosopher Gaston Bachelard and theoritician of the religions Mircea Eliade, in regards to issues relating to the imaginary. KEYWORDS: Theories of the Imaginary; Mia Couto; African literature; Symbologies related to boats.


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1. Cf.: DURAND. As estruturas antropológicas do imaginário.

2. Este artigo é um excerto adaptado da dissertação de mestrado em Teoria da Literatura, defendida em 2012, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. O título do trabalho é “Mia Couto e a simbologia de barcos: navegar, mais do que possível, é sonhável”.

Naus, navios, barcos, barcas, canoas, jangadas: tantos são os tipos de transportes aquáticos quanto as diferentes simbologias das quais esses elementos foram carregados ao longo dos tempos. Se com Caronte (e com diversos outros barqueiros) essa simbólica é conduzida para a questão do transporte rumo ao mundo dos mortos, Jung aponta o leme em direção ao simbolismo da viagem de barco como um mergulho no inconsciente, nas origens – o que faz com que o mar possa também adquirir atributos maternos; se o mar é o único meio pelo qual os europeus poderiam chegar a terras longínquas, estranhas e desconhecidas, se essa jornada representava uma aventura cheia de perigos com destino a lugares fantásticos, ela também pode representar uma ida ao literalmente fantástico, ao mágico, ao imaginário, ao literário – sendo o ponto de partida o mundo real, concreto, não literário. Partindo da ideia de Gilbert Durand1 de que os arquétipos (transcendentes) são atualizados em símbolos (contingentes), esses meios de transporte revestem-se de inúmeros significados – tudo depende para onde a bússola do imaginário de cada povo, de cada tempo, de cada indivíduo, de cada texto de literatura, aponta. Assim, o propósito deste trabalho é analisar como um desses significados dados às viagens pela água (aquele que diz respeito a uma jornada ao mundo dos mortos) se apresenta dentro de três romances do escritor moçambicano Mia Couto: Terra Sonâmbula, O outro pé da sereia e A confissão da leoa2 – cada EM  TESE

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obra representando uma década de produção do autor, visto que elas foram publicadas em 1992 (seu primeiro romance), 2006 e 2012, respectivamente. “Não terá sido a Morte o primeiro Navegador?” é o eloquente questionamento lançado por Bachelard,3, na sua obra A água e os sonhos. Por muito tempo, o mar foi o local privilegiado dos mortos (e da morte), uma vez que o grande oceano era um espaço totalmente desconhecido que despertava muito mais medo do que curiosidade às pessoas. Porém, apesar de elas próprias não se aventurarem nessas águas, lançavam ataúdes, durante as cerimônias fúnebres – dessa forma, era apenas após a falecimento que os homens desbravam esse misterioso sítio. Assim, segundo o filósofo, a simbologia dos barcos ficou inevitavelmente impregnada das exalações e miasmas da morte e, consequentemente, “[...] a função de um simples barqueiro, quando encontra seu lugar numa obra literária, é quase fatalmente tocada pelo simbolismo de Caronte”4 – ou pelo complexo de Osíris, como prefere Durand,5 ou ainda pelo de Kwasi Benefo, herói mítico africano que atravessa um rio em busca da alma de suas esposas mortas6. Portanto, o único caminho para se chegar ao mundo dos mortos, ao avesso do mundo dos vivos, é através das águas, em cima de um flutuante veículo, o que transforma a morte em uma viagem, em algo não tão definitivo: toda viagem pode ter uma ida e uma volta.

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3. BACHELARD. A água e os sonhos, p. 75.

4. BACHELARD. A água e os sonhos, p. 80. 5. Cf.: DURAND. Imagens e reflexos do imaginário português. 6. Cf.: FORD. O herói com rosto africano.


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E se essa viagem aquática está íntima e irremediavelmente relacionada à morte, é devido também à conexão entre o devir aquático e a passagem do tempo, como explica Durand:

7. DURAND. As estruturas antropológicas do imaginário, p. 96.

8. COUTO. O outro pé da sereia, p. 19.

A primeira qualidade da água sombria é o seu caráter heraclitiano. A água escura é “devir hídrico”. A água que escorre é amargo convite à viagem sem retorno: nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio e os cursos de água não voltam à nascente. A água que corre é figura do irrevogável. [...] A água é epifania da desgraça do tempo, é clepsidra definitiva. Este devir está carregado de pavor, é a própria expressão do pavor.7A morte é inevitável, porque o passar do tempo é; todos os rios levam ao rio dos mortos, pois todos os rios representam a temporalidade não controlável. Porém, um barco que atravesse para uma margem sempre pode voltar ao lado de origem. Para Mwadia, de O outro pé da sereia, por exemplo, aqueles mortos que não conseguiram atravessar a fronteira entre a vida e a morte corretamente permanecem perdidos pelo mundo: “[...] aquilo que se vê no céu nem sempre são astros. Aprendera com o pai a distinguir os verdadeiros dos falsos corpos celestes. Esses outros, os enganosos astros, são barcos em que viajam os que não souberam morrer”.8

esses dois planos. Quem percorre essa distância, em uma canoa, é Mwadia: a mulher e seu marido, Zero Madzero, vivem em Antigamente, localidade completamente isolada. O casal encontra a estátua de uma santa, a Virgem Maria, um baú com os documentos da nau Nossa Senhora da Ajuda e o esqueleto de Dom Gonçalo da Silveira, que estavam escondidos em um rio. Quando se inteira do ocorrido, o curandeiro Lázaro Vivo sentencia que Mwadia deveria voltar à Vila Longe, onde a moça havia passado sua infância e onde sua família ainda residia, a fim de encontrar um lugar seguro e sagrado para abrigar a imagem – caso contrário, uma terrível maldição recairia sobre Zero. Por esse motivo, a mulher regressa à sua terra natal e a viagem é realizada por via aquática. Uma vez que, como lembra Bachelard, “todos os rios desembocam no Rio dos mortos”,9 podemos pensar nessa travessia como uma jornada para o mundo dos que já se foram – ou uma jornada de volta ao mundo dos vivos, pois, ao longo da narrativa, surge a dúvida em relação a que personagens estariam vivos e quais estariam mortos.

Assim, em O outro pé da sereia, a viagem de barco simboliza justamente essa extensão que se deve percorrer para ir do mundo dos vivos ao dos mortos, o único caminho ligando

Logo que a mulher chega à sua antiga aldeia, depois de deixar o marido em Antigamente, iniciam os rumores de que Zero já teria morrido há alguns anos – e, antes mesmo de abandonar sua casa, ela diz perceber que o companheiro não deixa pegadas atrás de si e parece um fantasma. Ao final da trama, a mãe

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9. BACHELARD. A água e os sonhos, p. 77.


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10. COUTO. O outro pé da sereia, p. 327.

11. COUTO. O outro pé da sereia, p. 319.

12. COUTO. O outro pé da sereia, p. 119.

13. COUTO. O outro pé da sereia, p. 146.

de Mwadia tenta chamá-la à realidade e relata as circunstâncias do assassinato: teria sido o próprio padrasto da personagem a matar Zero com facadas. A senhora, então, sentencia: “Quando você soube da notícia, você ficou maluca, filha. Enlouqueceu e saiu para esse lugar, para além das montanhas. É lá que vive sozinha, você e seus burros, seus cabritos”.10 Por outro lado, há também evidências de que a situação seria justamente o inverso do que desejam crer os habitantes de Vila Longe: todos estariam mortos, menos Zero e Mwadia. Mestre Arcanjo, por exemplo, barbeiro e político de esquerda, exorta-a a sair da cidade imediatamente, perguntando se a mulher “nunca ouviu falar de terras que deixaram de constar? Foram varridas, erradicadas”11. Além do local, os habitantes não constavam mais, pois não possuíam nem a capacidade de sonhar, como é ressaltado por Dona Constança. O narrador ainda relata como os cachorros da vila ficavam assustados com a chegada da jovem, “[...] como se há muito se tivessem desabituado do convívio humano”,12 como se há um longo tempo esses animais não houvessem cruzado com vivos. Até mesmo em relação aos americanos, Benjamin e Rosie Southman, que vão à Vila Longe com o intuito de realizar pesquisas sobre a escravidão, há indícios de morte, como quando a protagonista segura a mão de Rosie: “Mwadia estranhou o frio no corpo da estrangeira. Frio igual ela só tinha sentido quando tocou o cadáver de seu pai”.13

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Finalmente, quando Mwadia volta a Antigamente, ao término da narrativa, o esposo lhe pergunta se as campas de Vila Longe estavam bem tratadas e lhe diz: “Custa-lhe aceitar, eu sei, Mwadia. Com o tempo você vai aceitar”.14 Logo depois, o narrador descreve a visão que toma a mulher: uma parede cheia de fotografias de todos os seus familiares e amigos de sua terra da infância – a “parede dos ausentes”, costume de sua mãe, que pendurava o retrato de alguém assim que esse morresse. Além disso, o próprio narrador já adverte seu leitor que, no local onde Mwadia passara sua meninice, essa questão realmente é complexa, uma vez que lá “a morte não é exactamente um facto”15: as pessoas falecem sem chegar a morrer, pois suas almas permanecem “entre sombras, suspiros e silêncios”.16 Quem realmente define a questão (ou define a natureza essencialmente indefinida da questão) é Constança: “A gente nunca sabe quando está morta”.17 Dessa forma, é através de uma viagem de barco que Mwadia vai do mundo dos vivos para o dos mortos – ou dos mortos para o dos vivos, cabe ao leitor escolher qual das possibilidades sugeridas pelo romance ele prefere. A personagem, então, exerce a função de um barqueiro e, como já foi explicado, segundo Bachelard, quando há um barqueiro em uma obra literária, sua figura é fatalmente tocada pelo simbolismo de Caronte, aquele que transporta os mortos para MINUZZI. As simbólicas viagens de barco em três romances de Mia Couto

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14. COUTO. O outro pé da sereia, p. 330.

15. COUTO. O outro pé da sereia, p. 77. 16. COUTO. O outro pé da sereia, p. 77. 17. COUTO. O outro pé da sereia, p. 146.


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18. BACHELARD. A água e os sonhos, p. 81.

19. COUTO. Terra sonâmbula, p. 30. 20. COUTO. Terra sonâmbula, p. 66. 21. COUTO. Terra sonâmbula, p. 111.

22. COUTO. Terra sonâmbula, p. 9. 23. COUTO. Terra sonâmbula, p. 11. 24. COUTO. Terra sonâmbula, p. 98.

o Hades navegando pelas águas dos rios Estige e Aqueronte. O autor explica que “por mais que atravesse um simples rio, ele traz o símbolo de um além. O barqueiro é guardião de um mistério”.18 Assim como Vila Longe já era uma localidade morta e povoada por quase defuntos, a cidade de Terra sonâmbula também já havia soltado seus últimos suspiros – o que pode levar o leitor a pensar em uma viagem empreendida pelos personagens no sentido contrário: do mundo dos mortos para o dos vivos. O contexto histórico no qual se passa a história é a Moçambique assolada pela guerra civil, por essa desordem sem “[...] nenhuma comparação, nem com as antigas lutas em que se roubavam escravos para serem vendidos na costa”;19 essa desgraça que igual nem os mais-velhos nunca viram20 e que, por isso, ainda não tem nome.21 Devido ao fato de a guerra ser maior do que a terra, de ela ter afetado praticamente todos os habitantes do país de uma forma arrasadora e terrível, há várias alusões, ao longo do romance, a uma Moçambique morta, a uma população já defunta: “naquele lugar, a terra tinha morto a estrada. [...] Aqui o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem de morte”;22 “É que estou farto de viver entre mortos”;23 “É que quase eu penso que na morte se está melhor do que aqui”;24 “Lá fora havia o matraquear da morte, lamentos de vidas que

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se apagavam. Para nós, porém, aquele ruído era já parte da paisagem”;25 “Vendo bem, o cadáver descuidado no passeio não descondizia com tudo resto. Simbolizava aquilo que a vila se tinha tornado: uma imensa casa mortuária”.26 Assim, tanto Kindzu, quanto Farida, personagens do romance, em seus ímpetos de deixar para trás toda essa desgraça, estão, na verdade, tentando fugir de uma terra já morta – e, por isso, ambos devem realizar essa travessia através da água, a fim de atravessar a margem entre os dois mundos. O homem vai, em sua canoa, por terras desconhecidas e a mulher parte com barqueiros que a abandonam no navio encalhado que deveria enviar mantimentos a Matimati. No caso de Farida, tanto o navio no qual ela ficara presa, quanto o farol situado em uma ilha próxima à embarcação, representam uma esperança: “Havia, por fim, alguém que não estava metido no mesmo lodo em que todos chafundávamos, alguém que mantinha a esperança, louca que fosse. Farida, ao menos, tinha uma ilha com um inviável farol, um barco que viria de lá onde habitam os anjonautas”.27 Por isso, por essa tresloucada fuga, Carolinda, sua gêmea, nutria uma profunda cobiça em relação à irmã: “Ou seria inveja da outra estar a caminho de sair daquele inferno? Sim, Farida fugia da pequeninez daquele lugar mesmo que o fizesse pela loucura de embarcar num barco encalhado. Mas sempre era uma viagem, uma saída daquele inferno”.28 MINUZZI. As simbólicas viagens de barco em três romances de Mia Couto

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25. COUTO. Terra sonâmbula, p. 110-111. 26. COUTO. Terra sonâmbula, p. 121.

27. COUTO. Terra sonâmbula, p. 104.

28. COUTO. Terra sonâmbula, p. 173.


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Assim, a viagem da personagem vai do mundo dos mortos em busca de uma terra onde ainda houvesse vida.

29. COUTO. Terra sonâmbula, p. 174.

30. ELIADE. Tratado de história das religiões, p. 158.

31. COUTO. Terra sonâmbula, p. 27.

Muidinga, leitor dos cadernos de Kindzu e, consequentemente, da história de Farida, compreende a mulher. Quando Tuahir lhe questiona o motivo de desejar ver o mar, o menino reflete: “O jovem nem sabe explicar. Mas era como se o mar, com seus infinitos, lhe desse um alívio de sair daquele mundo. Sem querer ele pensava em Farida, esperando naquele barco. E parecia entender a mulher: ao menos, no navio, ainda havia espera”.29 Dessa forma, fica clara a função do barco como transporte de um mundo já em decomposição com destino a um mundo não morto, um mundo que ainda fosse habitado por vivos. Aqui, a água ainda representa a vida, porém, nesse trecho, não propriamente a criação da vida, mas a renovação: como explica Eliade, o elemento aquático “[...] cura, porque, em certo sentido, refaz a criação”.30 O menino desejava ter sua infância, destruída e acabada por conta da guerra, curada.

de lendas e mitos e, caso eles realmente existam, não são daquela terra – mostrando, mais uma vez, que a esperança só é possível ao cruzar a margem, ao atravessar a fronteira. Já em A confissão da leoa, mesmo que não haja dúvidas sobre a condição de vivos ou de mortos dos personagens para o leitor, como em O outro pé da sereia, os próprios personagens, por vezes, duvidam de que estejam realmente vivos por causa das precárias condições de vida, da tristeza e do sofrimento constantes, do preconceito e da falta de aceitação – como aparece no seguinte excerto acerca dos menos favorecidos econômica e socialmente: “Há mortos que trabalham de noite para que uns poucos fiquem vivos”.32

No caso de Kindzu, essa partida pelas águas também representa uma tentativa de transformar seu mundo morto em vivo novamente: ele deseja juntar-se aos naparamas, esses “[...] guerreiros tradicionais, abençoados pelos feiticeiros, que lutavam contra os fazedores de guerra”.31 Porém, seu sonho pode ser mais uma ilusão, pois os mais-velhos de sua aldeia lhe advertem que talvez esses guerreiros não passem

Mariamar (a narradora dos capítulos “A versão de Mariamar”, morta em vida devido à sua condição de mulher e louca, como veremos mais adiante), por exemplo, deseja fugir de Kulumani e a única forma possível de abandonar definitivamente o povoado seria por meio aquático, pois, na estrada, estaria seu pai, pronto para barrar seu caminho, e, na floresta, os leões devoradores. Dessa forma, a única via de acesso de Kulumani ao resto do mundo seria a aquática, o que, mais uma vez, nos faz lembrar de Caronte e do mundo dos mortos na outra margem do rio e também faz pensar se os habitantes da aldeia não estariam, na verdade, mortos – mesmo que apenas figuradamente – e, nesse caso, o mundo dos que já faleceram estaria não em outra margem, mas na

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32. COUTO. A confissão da leoa, p. 115.


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33. COUTO. A confissão da leoa, p. 109.

34. COUTO. A confissão da leoa, p. 44.

35. COUTO. A confissão da leoa, p. 23.

própria margem onde está a mulher e Kulumani. Aliás, alusões ao definhamento da população são abundantes ao longo do romance: um camponês, por exemplo, sentencia que “todos voltamos mortos da guerra”33 e todos os refugiados da guerra civil, é importante ressaltar, vivem do outro lado do rio Lideia; Mariamar, por sua vez, declara que a aldeia onde vive “[...] era um cemitério vivo, visitado apenas pelos seus próprios moradores”;34 além disso, após alguns anos do término desse conflito, a estrada continuava morta – condição igual àquela de Terra sonâmbula. Como consequência dos constantes combates, brigas e injustiça, a cidade adquire o reflexo de se defender: “Tudo o que é vivo, em Kulumani, está treinado para morder”.35 Mais uma vez, portanto, a personagem, em uma viagem aquática, fugiria da morte e procuraria pela vida, o que aproxima a sua travessia das de Farida e de Kindzu. No romance Terra sonâmbula, por sua vez, há uma personagem cuja condição de morta ou de viva, como a dos de O outro pé da sereia, não fica completamente definida para o leitor: essa personagem é Farida e a dúvida se ela realmente pertenceria ao mundo dos vivos surge quando a mulher explica para Kindzu que ela seria, na verdade, um xipoco, um espírito: Sei que sou um deles, um espírito que vagueia em desordem por não saber a exacta fronteira que nos separa de vocês, os

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viventes. Nós somos sombras no teu mundo, tu jamais nos tinha escutado. É porque vivemos do outro lado da terra, como o bicho que mora dentro do fruto. Tu estás do lado de fora da casca.36

Neste trecho, surgem alguns termos e expressões recorrentes e importantes para o estudo dos barcos como sendo transportes para o mundo dos mortos: “exacta fronteira que nos separa de vocês, os viventes”, “outro lado da terra” e “lado de fora da casca”. Como esclarece Bachelard, “a todo além associa-se a imagem de uma travessia”37 – assim, todas essas expressões citadas, por carregarem uma ideia de um além, de um longe de onde estamos, estão relacionadas com viagens, travessias, deslocamentos. Além disso, é importante ressaltar onde Farida está e onde ela revela sua verdadeira natureza a Kindzu: a mulher havia decidido fugir de Matimati, das infelicidades da guerra civil e da sua condição amaldiçoada e estigmatizada de gêmea, indo “[...] para uma terra que ficasse longe de todos os lugares”.38 Para isso, a personagem embarca em uma viagem com alguns pescadores que desejavam assaltar um navio com donativos que havia naufragado e encalhado. Entretanto, após encherem o barco com os produtos do roubo, os homens decidem não haver mais espaço para a moça, trocando “pessoa por coisa”.39 Assim, Farida permanece sozinha no

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36. COUTO. Terra sonâmbula, p. 83.

37. BACHELARD. A água e os sonhos, p. 77.

38. COUTO. Terra sonâmbula, p. 82.

39. COUTO. Terra sonâmbula, p. 82.


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40. COUTO. Terra sonâmbula, p. 61. 41. COUTO. Terra sonâmbula, p. 61.

42. COUTO. Terra sonâmbula, p. 61.

43. BACHELARD. A água e os sonhos, p. 80.

44. COUTO. A confissão da leoa, p. 49.

navio até a chegada de Kindzu ao seu novo mundo – portanto, é uma viagem de barco que leva o narrador ao navio encalhado de Farida, esse navio estranho, “maior que um país”,40 onde se ouvem “vozes, ordens, gritos, gemidos”,41 que se originam das paredes, do piso e do teto do próprio barco: Kindzu chega a um lugar onde os xipocos, os espíritos, sentem-se em casa, uma vez que “aquele barco estava espiritado, guardado contra intrusos”.42 É como se o próprio navio fosse o mundo dos mortos, o Hades coutiano – e sobre subir em embarcações desconhecidas, estranhas, Bachelard já fala: “A sabedoria popular aconselha aos navegantes que não subam num barco desconhecido. [...] Em suma, todos os barcos misteriosos, tão abundantes nos romances do mar, participam da barca dos mortos”.43 Já em A confissão da leoa, é o rio Lideia a via de acesso ao mundo dos mortos – curso de água atravessado por Mariamar, outra barqueira como Mwadia e uma das protagonistas do romance, “[...] contra o destino, mas a favor da corrente”.44 Tal afirmação um tanto enigmática de que a personagem estaria remando contra o seu destino adquire um novo sentido quando pensamos nessa trajetória como tendo fim o mundo dos mortos, enquanto Mariamar está viva, ainda não pertencendo a esse domínio. O fato de serem forças desconhecidas (e de a moça afirmar categoricamente a vontade de que permaneçam desconhecidas) as que

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conduzem o barco apenas reforça a ideia de uma viagem mítica e simbólica a esse universo paralelo ao dos vivos. Assim, quando Mariamar chega a um remanso, local “[...] sagrado, onde apenas os feiticeiros ousam chegar”, onde “[...] a água faz seu ninho”,45 território, portanto, onde se refugia o princípio, a origem, o começo, a mulher sente algo estranho, diferente e, de repente, enxerga uma leoa. Tendo em vista as diversas mortes já causadas por esse animal (inclusive a de sua irmã Silência), seria esperado que a mulher ficasse assustada, receosa por sua vida. Entretanto, de acordo com a personagem, a felina olha-a com respeito de irmã e Mariamar depois afirma que “[...] aos poucos, um religioso sentimento de harmonia se instala”.46 Então, a narradora procura explicar seu próximo ato:

45. COUTO. A confissão da leoa, p. 54.

46. COUTO. A confissão da leoa, p. 55.

Qualquer coisa, que não conseguirei nunca descrever, subitamente me rouba discernimento e o grito me irrompe do peito: – Mana! Minha irmã! Os meus pulsos fincam-se, com desespero, nos remos, apressando a canoa de encontro à margem: – Silência! Uminha! Igualita!47

Mariamar não enxerga apenas sua irmã devorada pelo animal, mas as outras duas que já haviam falecido há anos, Umita e Igualita – ela havia, portanto, atravessado a fronteira MINUZZI. As simbólicas viagens de barco em três romances de Mia Couto

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47. COUTO. A confissão da leoa, p. 56.


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48. COUTO. A confissão da leoa, p. 181.

49. COUTO. A confissão da leoa, p. 113-114.

entre a morada dos vivos e dos mortos, entre o Ntoto, o mundo comum, e o Mputu, o domínio dos falecidos, atravessando as águas míticas de Kalunga, que se constitui no grande oceano (crença da civilização congo), mas que aqui é representada pelo rio Lideia. Ela havia chegado a essa margem, a esse limite no qual ela e suas irmãs mortas poderiam conviver, estabelecer contato.

com produtos típicos da modernidade: baterias de carro, teclados de computadores, telefones celulares. Além disso, tais leões fabricados teriam alvos específicos; as mortes, as vítimas, seriam encomendadas: “que outra razão os leva a não comerem a carne envenenada que já antes se deixara como isco? E por que motivo rasgam as roupas deixadas nos estendais?”.50

Arcanjo Baleiro, outro personagem e narrador do romance, também é tão surpreendido pela leoa e por algo mais que o homem enxerga nesse animal, porém não consegue definir, que é incapaz de apertar o gatilho, mesmo sendo um profissional experiente. Caça e caçador estão frente a frente e o homem sente que a felina o estranha, pois não era por ele que o bicho esperava: “No mesmo instante deixa de ser leoa. Quando se retira já transitou de existência. Já não é sequer criatura”.48 Portanto, aqui é sugerido que talvez esse não seja um leão de verdade: existem três tipos distintos desses felinos, como explicam os homens de Kulumani, “há o leão-do-mato que aqui se chama de ntumi va kuvapila, há o leão-fabricado a quem apelidam de ntumi ku lambidyanga; e há os leões-pessoas, chamados de ntumi va vanu”.49 Além disso, em outros trechos, fica evidente a diferenciação entre leões de verdade e leões fabricados – os últimos seriam construídos com mintela, que poderiam ser materiais tirados da natureza, como raízes, ossos e cascas ou, mais recentemente,

Portanto, muitas possibilidades de explicação para os leões que apavoram Kulumani são fornecidas ao longo da narrativa, porém uma delas esclarece o fato de a leoa ter “transitado de existência ao enxergar o caçador”, como comentamos acima, e de não o ter atacado (assim como Mariamar não fora): a de que os animais seriam, como já foi comentado, ntumi va vanu, leões-pessoas – no caso, a leoa seria as irmãs de Mariamar. Outra cena que reforça essa interpretação é aquela na qual Genito, pai de Mariamar, falece nas garras da fera e todos comentam a estranheza da situação, pois o homem pareceu até mesmo conversar com o animal e os dois morreram abraçados, como explica Florindo Makwala: “O administrador não conhecia os pormenores. Sabia, sim, que o pisteiro e a leoa morreram abraçados, como se os dois se reconhecessem, íntimos parentes”.51 Ele completa a descrição dizendo que a cena “parecia um parto às avessas”52 – parto de suas filhas que morreram, indiretamente, por culpa do pai, por seus constantes molestamentos, proibições e

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50. COUTO. A confissão da leoa, p. 196.

51. COUTO. A confissão da leoa, p. 229. 52. COUTO. A confissão da leoa, p. 229.


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53. COUTO. A confissão da leoa, p. 177.

54. Cf.: DURAND. As estruturas antropológicas do imaginário.

55. COUTO. A confissão da leoa, p. 24.

interdições, crueldades e maus-tratos: “Naquela fatídica madrugada, Silência estava escapando de Kulumani, fugindo do regime despótico de Genito Mpepe”.53

animal, como se nessa outra margem ela não estivesse mais morta: quando Maliqueto Próprio tenta lhe molestar, ela ataca o homem “gritando, cuspindo e arranhando”.56

Além disso, é interessante o fato desse animal terrível que está amedrontando Kulumani inteira ser uma fêmea; de ser uma leoa, e não um leão (e de essa condição ser bastante ressaltada ao longo da narrativa), uma vez que esse bicho está simbolicamente ligado ao sol, à masculinidade agressiva e, muitas vezes, mortífera, segundo explicita Durand.54 No romance, essa espécie também está ligada à morte, já que ela é tanto o seu causador, como o representante dos que já faleceram para os ainda vivos – entretanto, o caráter masculino perde espaço para a feminilidade, até porque, é importante salientar, um dos temas do romance em questão é o papel da mulher na sociedade representada. A posição subalterna do feminino é denunciada através, por exemplo, da total submissão de Mariamar e de sua mãe às vontades do pai Genito Mpepe, como fica claro no trecho a seguir sobre a vontade de Hanifa: “A mulher não respondeu. Preferir não era um verbo feito para ela. Quem nunca aprendeu a querer como pode preferir?”.55 Devido a essa impossibilidade de ter voz, Mariamar afirma estarem as mulheres de Kulumani já mortas. A leoa pode representar, portanto, o renascimento dessas mulheres, pois, quando Mariamar atravessa o Lideia e encontra suas irmãs felinas, transforma-se ela própria nesse

Assim como as irmãs de Mariamar aparecem para a personagem quando ela chega à margem dos mortos, a morte de Edmundo Esplendor Marcial Capitani, pai de Mwadia, também surge para a personagem como o ato de embarcar, de iniciar uma viagem marítima: “Assim ofuscada, Mwadia viu o seu velho pai desembarcar num cais enevoado, os pés molhados escorregando sobre as tábuas de madeira”.57 E se esses mortos ainda podem surgir para os vivos, se as irmãs falecidas de Mariamar encontram-se com ela, assim como se encontram Mwadia e o pai, isso ocorre porque, mais uma vez, a morte na água não é definitiva. Como Eliade explica: “[...] a imersão nas águas não equivale a uma extinção definitiva, mas somente a uma reintegração passageira no indistinto, à qual sucede uma nova criação, uma nova vida ou um homem novo [...]”.58

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Além disso, há, ao longo dos três romances, diversos acontecimentos, pensamentos e falas de personagens que colocam essa outra margem (apenas acessível a partir de uma viagem pela água, portanto) como o local onde habitam os mortos. Em O outro pé da sereia, por exemplo, aparecem, no decorrer de toda a narrativa, diversas sugestões relacionadas à existência de duas margens, de dois lados da existência. A

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56. COUTO. A confissão da leoa, p. 57.

57. COUTO. O outro pé da sereia, p. 162.

58. ELIADE. Tratado de história das religiões, p. 172.


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59. COUTO. O outro pé da sereia, p. 71. 60. COUTO. O outro pé da sereia, p. 88.

61. COUTO. O outro pé da sereia, p. 123.

62. ELIADE. Tratado de história das religiões, p. 153.

protagonista, ao desembarcar em Vila Longe, afirma sentir “[...] saudade do seu oculto lugar, além do rio. Ao menos lá, em Antigamente, ela se esquecia de ter nome, ter rosto, ter idade”;59 o narrador também afirma que Zero havia escolhido o seu destino, a sua morada, “para lá do rio, onde nenhum lugar é de viver”.60 Em uma conversa com Arcanjo Mistura, Mwadia ainda explica a localização de Antigamente: do lado de lá do rio. Então, o interlocutor lembra-se: “A propósito de lado de lá: os meus irmãos também falecerem, você sabe?”.61

uma vez que, ao enxergar o padrasto, Mwadia diz ter “[...] a mesma sensação de irrealidade de quando contemplava Zero Madzero, na casa de Antigamente”63 e, ao final da história, a protagonista ainda tem a visão da parede com as fotografias dos parentes e percebe que carrega nas mãos uma moldura sem imagem, a “foto do último ausente”,64 para pendurar na parede juntamente aos retratos dos amigos e familiares de Vila Longe. Com a frase que fecha o romance, é sugerido que esse último ausente seria seu marido: “Ainda hesitou, à saída do quintal, como se escolhesse entre que ausentes ela deveria viver. Só depois tomou o caminho do rio”65 – assim, existe a possibilidade de todos os personagens do livro, menos Mwadia, estarem mortos devido ao cataclismo que foi a guerra colonial e a posterior guerra civil nessa região de Moçambique.

Dessa forma, as referências a duas margens, neste romance de Mia Couto, em geral estão intimamente relacionadas com a ideia de vida e morte, do tênue limiar entre esses dois estados e, consequentemente, da possibilidade de se passar de um ao outro através de uma viagem por água – o que reforça o caráter ambíguo do elemento aquático, símbolo tanto dos vivos quanto dos mortos, como explicita Eliade: “princípio do indiferenciado e do virtual, fundamento de toda a manifestação cósmica, receptáculo de todos os germes, as águas simbolizam a substância primordial de que nascem todas as coisas e para a qual voltam, por regressão ou cataclismo”.62 Portanto, a água não apenas pode simbolizar o início e o fim de vidas individuais, mas de toda a humanidade (o dilúvio, por exemplo, representa o fim de toda uma população nos mitos de diversos povos) – o que pode ter ocorrido em Vila Longe e em Antigamente,

Já em A confissão da leoa, quando o pai de Arcanjo Baleiro, Henrique, morre com um tiro disparado pelo filho mais velho, Rolando, seu falecimento é, para o pequeno menino que assiste à cena, como um nado em direção a essa outra margem: “Na sala encontrei meu pai com o peito desfeito, os braços esgravatando por entre um mar de sangue, como se nadassem para uma margem que só ele visse”66 – como se o patriarca já estivesse visualizando esse mundo onde vivem os ancestrais. Assim, Henrique também precisou atravessar um curso de água para atingir os domínios dos mortos,

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63. COUTO. O outro pé da sereia, p. 127.

64. COUTO. O outro pé da sereia, p. 331.

65. COUTO. O outro pé da sereia, p. 331.

66. COUTO. A confissão da leoa, p. 31.


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como os mortos da Grécia antiga que tinham moedas colocadas em seus olhos a fim de pagarem a travessia de barco para o outro lado dessa fronteira. Na outra margem do rio Lideia também é onde a vizinha viúva de Hanifa estabelece contato e faz amor com os mortos. A mãe explica para Mariamar as vantagens de tal ação:

67. COUTO. A confissão da leoa, p. 45.

Entendia eu o que aquela confissão escondia? A vizinha só fazia amor com os mortos. Era isso que Hanifa me estava dizendo. Gerações e gerações de falecidos desfilaram pelos braços da nossa vizinha. Gente de longe, gente de raça, gente que nunca foi gente: todos se acenderam no seu líquido leito. De todos esses amores, cada um por si escolhido, aquela mulher só colhia vantagens: não havia doença, não havia traição, não havia risco de engravidar. Restavam simples lembranças, nem cinza nem semente. Apenas longe dos vivos, as mulheres de Kulumani encontram correspondidos amores: era isso que minha mãe me ensinava.67

Também é do outro lado do rio Lideia que se encontra a campa de Adjiru Kapitamoro, tio de Mariamar. A moça até poderia fazer o caminho por terra, a fim de visitar e prestar homenagem ao ancestral, porém os parentes não acham a ideia conveniente, uma vez que, devido à loucura que tomara conta da personagem, ela poderia contaminar os carros – portanto, optaram por conduzi-la “[...] numa embarcação, rio abaixo, até ao bosque sagrado onde repousavam Adjiru e o bisavô Muarimi”.68 Nesse trecho, portanto, faz-se necessário abordar dois pontos importantes: a possibilidade de se atingir o outro lado de um curso de água para se chegar aos mortos e ao seu território e a questão da loucura como uma forma de partir, de se ausentar, de morrer.

As mulheres, tantas vezes apontadas na narrativa como mortas em vida pelo fato de não possuírem direito sequer de sonhar, de escolher, de preferir, de ser feliz, apenas encontram homens semelhantes a elas, homens que as correspondem, no outro lado do rio Lideia, no mundo dos mortos – ou seja, falecidos, espíritos para aquelas mortas em vida.

Primeiramente, em relação a essa viagem de barco ao mundo dos mortos, é importante ressaltar que Adjiru é um morto que não habita mais o mundo dos vivos, mas habita um tão próximo, que é capaz de interferir na vida e no destino dos parentes e amigos que ficaram: ele, por exemplo, envia uma carta à Mariamar explicando que ela não era estéril como todos sempre pensaram – essa foi apenas uma invenção do velho para impedir que a sobrinha não se casasse com um local e levasse a mesma vida de sofrimento, submissão e abnegação de suas conterrâneas. Assim, ele altera a percepção da mulher sobre si mesma, devolve-lhe a esperança há muito naufragada e, consequentemente, modifica o seu destino.69

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68. COUTO. A confissão da leoa, p. 190.

69. Sobre essa proximidade entre o mundo dos vivos e dos mortos, o pai de Mariamar ressalta a importância de cuidar dos mortos e, consequentemente, sua proximidade com os vivos, quando a esposa lhe implora que partam de Kulumani e deixem alguém tratando das campas de seus mortos: “É o contrário, mulher: se formos, as campas é que deixarão de tratar de nós” (COUTO, A confissão da leoa, p. 44).


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70. MORIN. O homem e a morte, p. 173.

71. Cf.: LEITE. A questão ancestral.

E essa capacidade de os mortos (e de Adjiru) irem e voltarem do mundo dos mortos para o dos vivos está relacionada, mais uma vez, ao conceito de morte como uma travessia. Edgar Morin, em sua obra O homem e a morte, explica que, se existe uma morada dos mortos, os que faleceram devem realizar uma viagem para chegar a esse destino. Segundo o teórico, adeuses fúnebres como “tu partes” e “tu deixa-nos” reforçam essa ideia da morte como partida, que também está ligada à passagem pela água e “[...] concilia-se igualmente com as intuições imediatas da presença-ausência do morto, que continua perto, embora partindo para muito longe [...]”.70 Além disso, se Adjiru transformou-se em antepassado, em um espírito capaz de se comunicar com os vivos, isso se deu porque ele é um morto especial, enterrado em um bosque sagrado – como explica Fábio Leite,71 nem todos os mortos possuem as condições de se transformarem em antepassados: alguns requisitos devem ser preenchidos para que isso ocorra, como ter atingido a velhice, ter formado uma família numerosa e, consequentemente, possuir uma descendência significativa, ser respeitado por seus conhecimentos na comunidade, etc. No caso do personagem em questão, todas as exigências foram cumpridas, portanto o mais velho migrou para a condição de antepassado. Dessa forma, a distinção de Adjiru reside na sua importância não só para a família, pois ele era o mais antigo, o anakulu, a

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fonte de sabedoria do clã (e, por isso, todos o chamavam de avô), mas também para a comunidade inteira: “Exercendo serviços de chão, continuou sendo ele a derramar sombra em Kulumani. E agora, que a aldeia estremecia perante a ameaça dos leões, todos sentiam saudade dessa divina proteção”.72 Aliás, segundo Leite, [...] um velho africano é quase um ancestral vivendo na comunidade. Desse conjunto de proposições de realização, que compreende o acesso mais possível e eficaz ao sagrado, resulta o grande respeito geralmente devotado aos idosos e a legitimação do poder gerontocrático.73

72. COUTO. A confissão da leoa, p. 47.

73. LEITE. A questão ancestral, p. 96.

Assim, mesmo antes de sua morte, o tio de Mariamar já era tomado como detentor de saberes especiais e exclusivos, devido, em grande parte, à sua avançada idade – por isso, Genito Mpepe, pai da protagonista, ao tentar tomar o lugar do parente, não é capaz, como fica claro no seguinte trecho: Em tudo, afinal, Genito ambicionava seguir as passadas do destronado caçador. Todavia, o estatuto do avô era inalcançável. Adjiru fora mais que um mweniekaya, um chefe de família. A sua autoridade sempre se estendeu a toda vizinhança. Era um mando silencioso, sem proclamação, de quem exerce grandeza sem precisar de palavra.74 MINUZZI. As simbólicas viagens de barco em três romances de Mia Couto

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74. COUTO. A confissão da leoa, p. 48.


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75. COUTO. A confissão da leoa, p. 206.

Além disso, abordando o segundo ponto relacionado ao partir e à loucura, é possível incluir no grupo dos que já se foram não apenas os falecidos, mas também os loucos e os exilados, como é dito por Mariamar. Também para Rolando, os loucos estão ainda mais ausentes do que os mortos: “Certa vez, depois do falecimento da nossa mãe, tu disseste: quem me dera morrer. Pois eu te digo, agora. Não é a morte que confere ausência. O morto está ainda presente: todo o passado lhe pertence. O único modo de deixarmos de existir é a loucura. Só o louco fica ausente”.75 Assim, retomando o trecho no qual os parentes de Mariamar obrigam-na a visitar a campa do avô em um barco, é importante ressaltar que essa personagem, uma ausente por ser considerada louca, apenas poderia viajar nesse meio de transporte ideal e característico dos que já se foram. À mulher, pertencente a uma espécie de mortos, somente seria permitido visitar o familiar falecido em um meio de transporte propício à condição dos dois: o aquático. Também há outra ocasião na qual a mulher sente a presença de Adjiru enquanto navega pelas águas do rio Lideia: na sua tentativa de fugir de Kulumani, a embarcação da personagem parece possuir vida própria, ser conduzida por forças alheias à moça, fazendo com que, posteriormente, ela conclua ser tudo culpa do parente: “E então, entendo: mais do que a terra, minha prisão era o avô Adjiru. Tinha sido ele EM  TESE

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que imobilizara a canoa e me prendera no remanso sagrado do rio Lideia”.76

76. COUTO. A confissão da leoa, p. 57.

Fazendo a ligação entre a água e a morte também há um sonho relatado por Mariamar: ela e o caçador Arcanjo Baleiro transformavam-se em água, numa espécie de abandono, para evitar a morte por afogamento. Para ela, essa imagem foi uma descoberta, uma epifania: sua morte ideal, sua morte sonhada deveria ser na água, uma vez que [...] morrer na água é um regresso. Foi isso que senti ao ver o mar pela primeira vez: saudade desse ventre para onde, naquele momento, eu retornava. Saudade dessa morte doce, desse pulsar de um duplo coração, dessa água que, afinal, é todo o nosso corpo. Queixava-se minha mãe, Hanifa Assulua, que, em Kulumani, nós estávamos enterrados. Era o contrário. Afogados, sim. Todos nós, já antes, estivemos afogados antes de nascermos. A luz que nos recebeu no parto foi a primeira praia onde desembocámos.77

Nesse fragmento, pode-se observar novamente a questão da água como receptáculo da vida e da morte: a origem de todos e de tudo ocorreu no meio aquático; o fim de todos e de tudo será também na fluida corrente – assim como a narradora, que, de acordo com o tio, “[...] veio do rio. E ainda

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77. COUTO. A confissão da leoa, p. 161.


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78. COUTO. A confissão da leoa, p. 48.

79. BACHELARD. A água e os sonhos, p. 75.

80. COUTO. Terra sonâmbula, p. 97.

81. COUTO. Terra sonâmbula, p. 97.

82. COUTO. A confissão da leoa, p. 234.

há de surpreender a todos: um dia você irá para onde o rio vai”.78 Se, novamente, todos os rios desembocam no rio dos mortos, a personagem teria como destino final esse mundo, esse fim. Sobre essa morte como um regresso também fala Bachelard: “A morte não seria a última viagem. Seria a primeira viagem”79 – portanto, aqui fica clara a ambivalência do elemento aquático, símbolo de vida e de morte e da vida junto à morte, colada, amalgamada para sempre à morte (ou da morte junto à vida, é claro). Farida, de Terra sonâmbula, também compreende essa ambivalência quando confirma o seu desejo de permanecer no barco assombrado: “Eu quero sair, continuar viva”.80 Kindzu explica da seguinte forma tal inversão do valor atribuído à viagem por via aquática: “É verdade que o melhor lugar para o vivo se esconder é no meio de um enterro”.81 Assim, a água é o berço da vida e o esquife da morte: o elemento é berço da vida, pois Mariamar nasce morta, é enterrada perto da água, sepultura para os que não têm nome, e renasce da terra úmida, com os olhos “[...] tão fundos quanto o remanso das águas do rio”.82 Mwadia, de O outro pé da sereia, assim como Marimar, renasce das águas: Lázaro estava batizando a criança, quando algo inesperado ocorreu: “as ondas levantaram-se e o rio tornou-se caudaloso a ponto de ele próprio, o cerimoniante Lázaro, fugir e deixar a menina abandonada. Quando voltou, já não a encontrou.

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Dias depois, Mwadia foi encontrada na margem, envolta em folhagens que a corrente arrastava”.83 Sobre crianças abandonadas na água e salvas, Durand afirma que isso seria a evidência de uma consagração iniciática – e tanto Mwadia como Mariamar são personagens que enxergam além, que enxergam melhor do que seus próximos, que possuem, portanto, poderes especiais. A canoa igualmente reveste-se desse simbolismo de vida, por assemelhar-se a um ventre: “enrosco-me no ventre da almadia, deito-me a buscar o sono dos que ainda não nasceram”,84 afirma a protagonista de A confissão da leoa. Como explica Durand,85 esse meio de transporte esteve também sempre ligado à fertilidade, ao embalo materno e ao berço. Porém, a água também é esquife da morte, quando, por exemplo, Mariamar, procurando salvar as irmãs Umita e Igualita dos sofrimentos e dores futuros, sabota a embarcação na qual as duas viajariam, provocando a morte das meninas – morte, entretanto, que não é definitiva, que permite um regresso, mesmo que na forma de animal, de leoa, apesar de Arcanjo sentenciar que “[...] a morte era uma lagoa mais escura e mais lenta que o firmamento”.86 Além disso, Mariamar percebe a semelhança da canoa em que vai remando com um caixão: “O mesmo bojudo ventre, o mesmo itinerário para fora do tempo”.87

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83. COUTO. O outro pé da sereia, p. 273.

84. COUTO. A confissão da leoa, p. 59. 85. Cf.: DURAND. As estruturas antropológicas do imaginário.

86. COUTO. A confissão da leoa, p. 36.

87. COUTO. A confissão da leoa, p. 59.


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88. COUTO. A confissão da leoa, p. 203.

89. COUTO. A confissão da leoa, p. 32.

90. BARTHES. Mitologias, p. 57.

Também é morte, dor, medo e sofrimento o que traz Henrique Baleiro toda vez que chega à casa do trabalho. Maus tratos e abusos eram algumas das atividades mais corriqueiras do homem em relação aos dois filhos e à esposa. Além disso, sua mulher, Martina, morreu por suas mãos, como Luzilia, namorada de Rolando, revela a Arcanjo: “Antes de emigrar para trabalhar, há homens que costuram a vagina da mulher com agulha e linha. Muitas mulheres contraem infecções. No caso de Martina Baleiro, essa infecção foi fatal”.88 Arcanjo, quando menino, associou essa chegada, portanto, a uma viagem de barco rumo à destruição, ao perecimento, ao fim: “Meu pai era um homem que enchia o mundo, o pé dele entrava em casa e sentíamos o balanço do seu peso como se, de repente, estivéssemos num pequeno barco”.89 Henrique chegava em casa sempre trazendo uma visita indesejada: a morte. Dessa forma, toda a família estaria a bordo da barca de Henrique, o Caronte da alma desses três personagens.

um caixão em diversas passagens (mesma comparação feita por Mariamar): “Meu concho semelhava a um caixãozito, flutuando em fúnebre compasso”;91 “O que queria mesmo era ir mar adentro, como Assma, empurrado num barquinho sem destino. [...] É isso que desejo: me apagar, perder voz, desexistir”.92 Também é em um barco onde Farida morre, ao tentar acender a luz do farol e padecer em uma explosão, assim como é em um barco que Tuahir pede a Muidinga para colocá-lo quando contrai uma forte febre e está à beira da morte: “Me deite no barco, filho. Quero morrer sem ver nenhuma terra, só água em todo lado”.93 Também é interessante notar que, na medida em que Muidingda e Tuahir aproximam-se do mar, o mais velho igualmente aproxima-se dos “derradeiros finais”94 – como já havia ressaltado o narrador, “a gente vai chegando à morte como um rio desencorpa no mar”,95 e, novamente, como Bachelard96 também destaca, o ponto final de todos os rios sempre é o rio dos mortos.

Relacionada ao fato de o barco ser o berço da vida e o esquife da morte está a afirmação de Barthes: “o barco pode ser o símbolo da partida; mais profundamente, é o sinal da clausura. O gosto pelo navio é sempre a alegria do enclausuramento perfeito”.90 Morte e vida fecham, completam o eterno ciclo a bordo de uma canoa, em meio à água.

Já em O outro pé da sereia, é o nascimento de Jesustino Rodrigues, padrasto de Mwadia, que representa a vida e a morte concomitantes, vida e morte navegando pelos cursos de água: “A mãe, Esmeralda da Anunciação, morreu durante o parto. Nascimento e morte ocorreram em simultâneo, como dois barcos que se cruzam em sentido inverso”.97 É ainda em um naufrágio que morre o pai do personagem, Agnelo Rodrigues, e o consequente nascimento de uma nova

Tal ambivalência também está presente em Terra sonâmbula. O barco, em um primeiro momento, é identificado com EM  TESE

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91. COUTO. Terra sonâmbula, p. 59.

92. COUTO. Terra sonâmbula, p. 200.

93. COUTO. Terra sonâmbula, p. 194.

94. COUTO. Terra sonâmbula, p. 194. 95. COUTO. Terra sonâmbula, p. 84. 96. Cf.: BACHELARD. A água e os sonhos.

97. COUTO. O outro pé da sereia, p. 279.


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98. COUTO. O outro pé da sereia, p. 228.

99. COUTO. Terra sonâmbula, p. 31-32.

mãe para Jesustino, sua irmã Luzmina, como ela própria explica: “Primeiro fui sua irmã, depois fui sua mãe [...]”.98 Em Terra sonâmbula, aparece ainda um outro aspecto da relação entre barco e morte: quando Kindzu decide deixar sua terra, o feiticeiro local lhe adverte que sua viagem deveria ser pela água a fim de ludibriar o espírito do pai, insatisfeito com o tratamento recebido pelos parentes ainda vivos: Essa viagem, porém, teria que seguir o respeito de seu conselho: eu deveria ir pelo mar, caminhar no último lábio da terra, onde a água faz sede e a areia não guarda nenhuma pegada. Eu que levasse o amuleto dos viajeiros e o guardasse em velha casca do fruto ncuácuá. E procurasse os confins onde os homens não amealham nenhuma lembrança. Para me livrar de ser seguido por meu pai eu não podia deixar sinais do meu percurso. Minha passagem se faria igual aos pássaros atravessando os poentes.99Assim, surge mais uma vez, a questão dos antepassados e seu envolvimento com o mundo dos vivos, além da necessidade de cumprir diversos rituais para satisfazer esses que já foram e, dessa forma, garantir a boa sorte para os vivos. Além disso, mais uma vez, a viagem de barco serve para fugir da morte – ou, mais apropriadamente, dos mortos, do pai de Kindzu cujo desejo era estragar e prejudicar sua viagem. Porém, não são apenas os antepassados, mas as próprias águas que obrigam a rituais, como fica claro em A confissão da leoa, conforme explica a EM  TESE

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feiticeira Apia Nwapa a Arcanjo: “Para vos dar autorização para caçarem tenho que, primeiro, pedir licença ao rio. [...] O rio tem os seus mandos”.100

Finalmente, percebemos que a simbologia dos barcos relacionada à morte e à travessia entre o mundo dos vivos e dos mortos é bastante rica e navega por cursos com sentidos distintos nos três romances estudados neste artigo. Entretanto, um aspecto que fica bastante claro ao final da análise é o quanto o mundo dos vivos e dos mortos estão, ao contrário do que comumente se pensa, muito próximos e o quanto a vida e a morte acabam por se confundir, por se amalgamar, constituindo as duas faces de uma mesma moeda. REFERÊNCIAS BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaios sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 2002. BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: DIFEL, 1975. COUTO, Mia. O outro pé da sereia. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. COUTO, Mia. A confissão da leoa. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. COUTO, Mia. Terra sonâmbula. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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100. COUTO. A confissão da leoa, p. 174.


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DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2002. DURAND, Gilbert. Imagens e reflexos do imaginário português. Lisboa: Hugin, 1997. ELIADE, Mircea. Tratado de história das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2010. FORD, Clyde. O herói com rosto africano: mitos da África. São Paulo: Summus, 1999. LEITE, Fábio. A questão ancestral: África negra. São Paulo: Palas Athena; Casa das Áfricas, 2008. MORIN, Edgar. O homem e a morte. Lisboa: Europa-América, 1970.

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MINUZZI. As simbólicas viagens de barco em três romances de Mia Couto

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SYLVIA PLATH E ROLAND BARTHES: FRAGMENTOS DE UM DIÁRIO AMOROSO

Beatriz Viana Lopes Saltarelli* RESUMO: Este ensaio traz uma discussão sobre Os diários de Sylvia Plath, tomando como base alguns conceitos propostos por Roland Barthes. Procuramos discutir aqui a questão de Eros que pode se dar em uma relação escritor/ escritura e quais as características marcantes nessa relação. Uma relação que vai muito além do simples ofício da escrita e que pode ser mesmo equiparada a uma relação amorosa. PALAVRAS-CHAVE: Roland Barthes; Sylvia Plath; diários; Morte do autor.

* beatrizsaltarelli@gmail.com Mestranda em Estudos Literários pela UFMG.

ABSTRACT: This paper brings a discussion of The Journals of Sylvia Plath, based on some concepts proposed by Roland Barthes. Here, we discuss the question of Eros that can happen in a relationship writer / write and what the striking features in this relationship. A relationship that goes far beyond the simple craft of writing and can even be equated to a loving relationship. KEYWORDS: Roland Barthes, Sylvia Plath, Journals, Death of the autor.


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1. BARTHES. Fragmentos de um discurso amoroso, p. 49.

2. HUGHES. Prefácio, p. 22.

3. Expressão usada por Barthes no texto Aula: “a escritura se encontra em toda parte onde as palavras têm sabor (saber e sabor têm, em latim, a mesma etimologia). Curnonski dizia que, na culinária, é preciso que ‘as coisas tenham o gosto que são’. Na ordem do saber, para que as coisas se tornem o que são, o que foram, é necessário esse ingrediente, o sal das palavras. É esse gosto das palavras que faz o saber profundo, fecundo” (p. 21), grifos meus. 4. BARTHES. O rumor da língua, p. 66.

Catástrofe. Crise violenta no curso da qual o sujeito, experimentando a situação amorosa como um impasse definitivo, uma armadilha da qual não poderá jamais sair, se vê fadado a uma destruição total de si mesmo.1

Em um de seus mais difundidos textos, Barthes nos fala sobre a morte do autor. E, se existe uma escritora que tem uma relação quase intrínseca com a morte, essa é Sylvia Plath. Seja pelo suicídio cometido aos 30 anos de idade ou pela natureza extrema de seus poemas. Parece que quanto mais se fala sobre o assunto mais duvidas e questionamentos surgem. Ou, como ressalta Frieda Hughes – filha de Sylvia – no prefácio de Ariel: “Desde que ela morreu, ela tem sido dissecada, analisada, reinterpretada, reinventada, ficcionalizada e, em alguns casos, completamente fabricada”.2 No entanto, neste ensaio a ideia é discutir uma Plath para além da morte. Não queremos desvendar suas razões para se matar através de seus poemas como tem sido feito com afinco ou encontrar confissões em seus textos. Não nos interessa aqui a morte do corpo, porque isso seria reduzir a linguagem de seus escritos, mas sim a morte em favor da literatura. Ou, a vida que a autora construiu para e pela escritura. Indo além, o apagamento da vida em prol do sabor da linguagem.3 Para este ensaio tomaremos como base Os diários de Sylvia Plath. Ora, por que a escolha dos diários se, assim como na visão de Mallarmé, queremos “suprimir o autor em proveito da escritura?”.4 EM  TESE

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Atualmente existe uma proliferação de biografias no mercado editorial e cada vez mais estudos sobre biografias, autobiografias, destaques para arquivos de escritores e gêneros confidenciais e também uma superexposição através de blogs e internet. Por si só esse fato já traz relevância para o estudo dos diários para a teoria literária. Enquanto Blanchot afirma que “o que impulsiona o artista não é diretamente a obra, é sua busca, o movimento que conduz a ela”.5 Barthes destaca que a “obra se escreve procurando a obra”,6 que só se escreve mesmo em algum lugar intermediário entre o desejo de escrever e a decisão de escrever. Também confirma o mesmo conceito num texto sobre Flaubert: “escrever é viver [...], a escrita é o próprio fim da obra, não a sua publicação”.7 Por isso a escolha dos diários – que foram mantidos por longos anos - como objeto principal dessa discussão, nos quais estão documentadas sensações dessa procura incessante pela obra. Em diversas passagens a autora fala sobre a importância da escrita, de se tornar uma escritora reconhecida e publicada e também da necessidade de escrever. Também em outros trechos ela destaca a importância do diário como instrumento necessário à própria vida: “Suponho que o simples fato de eu ser capaz de escrever aqui, segurando a caneta, prove minha capacidade de seguir vivendo”.8

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5. BLANCHOT. O livro por vir, p. 291 6. BARTHES. Crítica e verdade, p. 18.

7. BARTHES. O grau zero da escrita, p. 163.

8. PLATH. Os diários de Sylvia Plath, p. 387.


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9. BARTHES. O rumor da língua, p. 66.

Além disso, é o próprio Barthes quem também destaca o ponto de destaque recebido pelo autor:

10. Cf.: NIETZSCHE. Ecce Homo, p. 96.

11. É possível observar referências ao filósofo em alguns escritos de Barthes, como nesse trecho de Aula: “Infelizmente a linguagem humana é sem exterior: é um lugar fechado. Só se pode sair dela pelo preço do impossível: pela singularidade mística, tal como a descreve Kierkegaard, (...); ou então pelo amen nietzschiano, que é como uma sacudida jubilatória dada ao servilismo da língua, àquilo que Deleuze chama de ‘capa reativa’. Mas a nós, que não somos nem cavaleiros da fé nem superhomens, só resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, o esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo quanto a mim: literatura”. 12. BARTHES. O grau zero da escrita, p. 75.

O autor é uma personagem moderna, produzida sem dúvida por nossa sociedade na medida em que [...] ela descobriu o prestígio do indivíduo ou, como se diz mais nobremente, da “pessoa humana”. [...] O autor reina ainda nos manuais de história literária, nas biografias de escritores, nas entrevistas dos periódicos, e na própria consciência dos literatos, ciosos por juntar, graças ao seu diário íntimo, a pessoa e a obra; a imagem da literatura que se pode encontrar na cultura corrente está tiranicamente centralizada no autor, sua pessoa, sua história, seus gostos, suas paixões.9

Sendo assim, não podemos ignorar algo que é parte essencial de uma cultura. Estudar um diário é estudar também a história. Não os fatos históricos como algo idealizado, mas sim aquilo que há de mais humano na história: as emoções de uma vida. Como afirma Nietzsche, só o espírito que é livre pode se desprender dos ideais e ver as coisas humanas, demasiado humanas.10

não há humanismo poético na modernidade: esse discurso de pé é um discurso cheio de terror, isto é, coloca o homem em ligação não com outros homens, mas com as imagens mais desumanas da Natureza; o céu, o inferno, o sagrado, a infância, a loucura, a matéria pura, etc.13

É nos Diários de Plath que podemos encontrar também o registro de uma vida que é marcada pela necessidade vital da escrita. Mais do que o desejo de ser uma autora reconhecida, a escrita permeava todos os acontecimentos da vida de Sylvia: “Como ele poderia entender que justifico minha vida, minhas emoções ardentes, meu sentimento, ao passá-lo para o papel?”.14 E Barthes também destaca esse ponto que atinge certos escritores: “o que o segura (aos seus próprios olhos) não é o que ele escreveu, mas a decisão obstinada de o escrever”.15

E, além de tudo, o diário de uma escritora pode nos trazer pistas sobre o trabalho pela busca das fronteiras da linguagem, porque em uma posição de concordância com Nietzsche,11 Barthes também afirma que uma obra-prima moderna é impossível.12 De maneira que,

Ou seja, ser escritor não é apenas uma ocupação ou uma profissão. É algo que vai além. Algo da ordem da responsabilidade, pois, “para o escritor, a verdadeira responsabilidade é a de suportar a literatura como um engajamento fracassado”.16 Responsabilidade maior consigo do que com o mundo, uma vez que “a escrita é uma realidade ambígua: por uma parte nasce incontestavelmente de um confronto do escritor com a sua sociedade”.17 E Plath também menciona esse conflito permanente e angustiante com a sociedade ao expressar: “Eu também quero ser importante. Sendo diferente. E essas garotas são todas iguais”.18

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13. BARTHES. O grau zero da escrita, p. 45

14. PLATH. Os diários de Sylvia Plath, p. 36. 15. BARTHES. Crítica e verdade, p. 17.

16. BARTHES. Crítica e verdade, p. 35

17. BARTHES. O grau zero da escrita, p. 15.

18. PLATH. Os diários de Sylvia Plath, p. 230.


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19. BARTHES. O grau zero da escrita, p. 162 20. BARTHES. O grau zero da escrita, p. 163. 21. BARTHES. Crítica e verdade, p. 20.

A partir dessa discussão podemos pensar no tipo de relação que existe entre o escritor e a escrita. Naquilo que Barthes, ao analisar Flaubert e Proust, cita como um processo atroz do escritor, no qual este está o tempo todo em busca, sempre escrevendo, enclausurado na linguagem, na própria escritura: “Esse circuito sisifeano é chamado por Flaubert com uma palavra muito forte: é atroz, única recompensa que recebe pelo sacrifício de uma vida toda”.19 E ainda reforçado, no mesmo texto pela máxima: “escrever é viver”.20 Ninguém pode escrever sem tomar apaixonadamente partido,21 é o que afirma Barthes. Ora, podemos então começar a perceber algo da dimensão amorosa na escritura. Afinal existe uma relação. De necessidades e sentimentos. É antes pelo sentir que se escreve. Talvez por isso alguns escritores tenham algo de extremo em seus escritos. Talvez pela exacerbação dos sentimentos. Sabemos que em Plath, esse fato não é só verdadeiro como determinante, uma vez que ela foi tantas vezes, rejeitada por causa de sua linguagem violenta e natureza extrema, como podemos observar nas seguintes passagens:

(...) Escreverei histórias malucas. Mas sinceras. Conheço o horror dos sentimentos primais, das obsessões.22

Se é pelo sentir que se escreve, como afirma Barthes, a mensagem não é nada mais do que aquilo que arde em nós, “não há outro significado primeiro da obra literária senão um certo desejo: escrever é um modo do Eros”.23 Sendo assim, precisamos então entender como essa questão erótica se faz presente na literatura.

Minha tarefa inicial é abrir a experiência real, como uma ferida antiga; depois ampliá-la; depois inventar a partir de uma pena esvoaçante o pássaro colorido, completo. (...) Devo desprezar o mercado e os veículos, para enviar coisas que escrevo nas quais nada há de sincero e realmente proveitoso.

Para entender melhor esse processo de completude do Eros, podemos tomar como base alguns conceitos da

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23. BARTHES. Crítica e verdade, p. 21.

No entanto, antes de falar de questões eróticas precisamos, em primeiro lugar, conhecer o mito de Eros: [...] antes do surgimento de Eros, a humanidade se compunha de três sexos: o masculino, o feminino e o andrógino. Os seres andróginos eram redondos e possuíam quatro mãos, quatro pernas, duas faces, dois genitais, quatro orelhas e uma cabeça. Esses seres, por sua própria natureza se tornaram muito poderosos e resolveram desafiar os deuses, sendo por isso, castigados por Zeus, que decidiu cortá-los em duas partes. (...) os novos seres, mutilados e incompletos, passaram a procurar suas metades correspondentes. (...) E daí se originou Eros, o impulso para “recompor a antiga natureza” e “restaurar a antiga perfeição”.24

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22. PLATH. Os diários de Sylvia Plath, p. 589; 590; 591.

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24. BRANCO. O que é erotismo, p. 9-10.


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psicanálise. De acordo com as bases da teoria psicanalítica a mulher é marcada, antes de tudo, pela falta. Segundo Freud a sexualidade começa na infância, quando a criança passa por fases e fatores que terão implicações sobre toda a vida sexual. E é nessa fase que a questão da falta começa a permear a mulher, com efeitos e consequências do mito de Édipo que, para Freud, se constitui como o fenômeno central do período sexual da primeira infância e também do Complexo de castração. De acordo com essas ideias, na infância a menina se reconheceria em comparação ao menino, como castrada, uma vez que não possui o pênis. Serge André destaca as reflexões de Freud em torno da feminilidade sob uma identidade faltosa, pois enquanto o falo funciona como referência única, a feminilidade só pode se colocar como incerta. Dessa forma, destituída de uma identidade inicial, a mulher só consegue apreender a feminilidade indiretamente, em comparação ao outro.

28. BRANCO. Chão de letras, p. 56, grifo meu.

O mesmo autor também chama atenção para a problemática do Édipo feminino, uma vez que não é possível determinar se a relação da menina com o pai pode realmente ser um substituto equivalente para a relação com a mãe. Se “no menino o complexo de Édipo se dissolve sob o efeito do complexo de castração, o da menina é tornado possível e introduzido pelo complexo de castração”.25 Assim, o próprio complexo de Édipo feminino é “produzido” a partir da falta. EM  TESE

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É pela ausência do falo e o desejo de alcançá-lo que ela faz sua nova escolha objetal, passando da mãe para o pai. Não só Freud define a mulher como um ser de falta, mas segundo Barthes, a própria sociedade a marca como tal; “Historicamente o discurso da ausência é sustentado pela Mulher: a Mulher é sedentária, o Homem é caçador, viajante; a Mulher é fiel (ela espera), o homem é inconstante (ele navega, corre atrás de rabos-de-saia). É a Mulher que dá forma à ausência”.26 Ora, se a mulher é permeada pela falta não é de se estranhar que a escrita que tomamos como tipicamente feminina27 também tenha essas características. Com base nesses conceitos, podemos perceber que essa questão da erótica talvez se faça ainda mais evidente em tal escrita. De acordo com Branco a partir da leitura de diversos textos de autoria feminina, pôde-se verificar como eles se distinguiam dos demais, possuindo tom, dicção, respiração e ritmo próprios. Assim, podemos perceber que tal escrita se constitui exatamente num discurso construído a partir da perda. Desconexo, descompassado, abrupto, sôfrego (...) o texto terminará por se construir em torno da lacuna (...), da falta, do vazio e muitas vezes do silêncio. Embora, em sua grande parte, o texto pareça falar e falar e não querer outra coisa senão falar. Mas essa fala excessiva, esse discurso tagarela, antes adorna o vazio que o preenche, antes margeia a lacuna que a obtura.28

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26. BARTHES. Fragmentos de um discurso amoroso, p. 36.

27. Cf.: BRANCO. O que é escrita feminina.

25. ANDRÈ. O que quer uma mulher?, p. 27.


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29. BRANCO. A mulher escrita, p. 160.

30. LACAN. O seminário: livro 20, p. 98.

31. ANDRÈ. O que quer uma mulher, p. 333.

Branco ainda chama atenção para uma preferência em tal escrita pelos chamados gêneros do impossível: diários, cartas, memórias e autobiografias. “E quem sabe assim se explique a frequência com que as mulheres se dedicaram a essa escrita particularmente íntima, peculiarmente corporal, como a do diário. (...) Por esse motivo talvez se possa dizer que a escrita do diário é, por excelência, feminina”.29 Ainda tomando como base a teoria psicanalítica, Lacan aprofunda as teorias sobre a sexualidade de Freud e afirma que a mulher se situa como não toda na função fálica. Por isso, por ser destituída de significante ele afirma que não pode existir A mulher: “só que A mulher, isto só se pode escrever barrando-se o A. Não há A mulher, artigo definido para designar o universal. Não há A mulher pois por sua essência ela não é toda”.30 Serge André faz ainda um paralelo com a teoria de Lacan e retoma a questão proposta por Freud afirmando que “o que uma mulher quer é que alguma coisa advenha ao lugar deste significante faltoso, que um ponto de apoio lhe seja fornecido precisamente lá onde o inconsciente a deixa abandonada”.31 Ora, agora podemos pensar que se a mulher é não toda ela também pode ser outra. É justamente pela falta de significante que a mulher se coloca nesse lugar além, tão além que

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às vezes não cabe em si. Assim, podemos relacionar a “falta” à busca incessante pela obra também ao processo de busca de completude de Eros. “Outro desses processos – e talvez o mais poderoso, porque menos facilmente manipulável e, por isso, mais ameaçador à ordem social – é a arte”.32 Bataille destaca ainda que o erotismo trata-se de um aspecto interior da vida do homem, “esse objeto responde à interioridade do desejo”.33 Nesse ponto chegamos a uma questão crucial deste ensaio. Ora, se o erotismo é algo interior e se a arte pode se configurar como um desses processos, podemos agora confirmar que essa relação entre o escritor e a escrita, traga a possibilidade de uma experiência erótica. Uma experiência interna, mas que só pode se realizar quando externada. Experiência esta entre o “eu que escreve” e o que não escreve. Entre o que Barthes nomeia de escritor/ escrevente. Ou, como encontramos em um registro de Plath: “Eu o amo porque você sou eu... minha escrita, meu desejos de muitas vidas”.34 Nessa relação que agora podemos chamar amorosa, percebemos que existem algumas características específicas como o tempo no qual o escritor está inscrito. Aquele tempo já mencionado anteriormente, localizado em algum lugar intermediário entre o desejo - de escrever – e a decisão – da escrita. “É que o tempo do escritor não é um tempo diacrônico, mas um tempo épico; sem presente e sem passado, ele SALTARELLI. Sylvia Plath e Roland Barthes: fragmentos de um diário amoroso p. 186-195

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32. BRANCO. O que é erotismo, p. 12.

33. BATAILLE. O erotismo, p. 53.

34. PLATH. Os diários de Sylvia Plath, p. 35.


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35. BARTHES. Crítica e verdade, p. 18, grifo meu.

36. ROLLYSON. Ísis Americana, p. 127.

37. BARTHES. Fragmentos de um discurso amoroso, p. 91.

está inteiramente entregue a um arrebatamento cujo objetivo, se pudesse ser conhecido, pareceria tão irreal aos olhos do mundo”.35 Apesar de esse tempo ser desconhecido, a questão do arrebatamento é determinante. O mesmo arrebatamento que toma conta de um amante, de alguém que se encontra profundamente enamorado. Deve ser por isso que, enquanto leitores, somos também, às vezes, arrebatados por certos livros, uma vez que o que se lê é da ordem do sentir, daquilo que se encontra também ardente em nós. E provavelmente por esse mesmo sentir que em uma carta para a mãe, Aurélia, Plath afirma que: “escrever é a primeira paixão da minha vida”.36 Também é pelo desejo amoroso que tantas vezes encontra-se a ambiguidade da relação entre escritor-mundo. Pois se existe uma inconformidade com o mundo, muitas das vezes existe também o desejo de ser reconhecido no mundo como um ser da arte. Dessa forma, surge a inquietação interna: “O que o mundo, o que o outro vai fazer de meu desejo? Essa a inquietude em que se encontram todos dos movimentos do coração, todos os ‘problemas’ do coração”.37 Nos diários de Plath, isso pode ser observado quando a autora descreve o desejo desesperado – nas palavras dela - de ser publicada por uma revista. Por mais que, por vezes, ela considerasse que o mundo não estava à sua altura, ela ainda EM  TESE

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buscava reconhecimento externo da mesma maneira que o enamorado busca ser correspondido pelo objeto de sua paixão: “Além disso, dependo desesperadamente de tornar meus poemas, meus pobres poemas loquazes, menores e bem-arrumados, aceitos pela New Yorker”.38 Mais uma ideia trabalhada por Barthes de uma escrita erótica diz respeito à linguagem dos amantes: “a linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras. Minha linguagem treme de desejo”.39 Ou seja, uma linguagem na qual as palavras tomam forma, na qual as palavras têm sabor. Sabor ardente, de desejo. Pensando nisso, é fácil perceber porque Plath sente-se estéril quando se encontra sem criatividade. Porque a linguagem fala ao mesmo tempo, no corpo e para o corpo. Porque para escritores assim, é a palavra que alimenta; a alma e o corpo: “Sinto-me pouco criativa. Estou seca, seca e estéril. Preciso produzir”.40 Temos ainda a questão da solidão. Não é raro ver escritores solitários, considerados pelo mundo como desajustados, “o desclassificado, aquele que não está ‘religado’ a nenhum ser além dele mesmo”.41 Ora, se o objeto amoroso do escritor é a própria escrita é exatamente por isso que ele não está ligado a outro, mas em uma busca por si. No entanto, essa busca é ambígua, pois é interna, mas só se concretiza quando SALTARELLI. Sylvia Plath e Roland Barthes: fragmentos de um diário amoroso p. 186-195

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38. PLATH. Os diários de Sylvia Plath, p. 232.

39. BARTHES. Fragmentos de um discurso amoroso, p. 99

40. PLATH. Os diários de Sylvia Plath, p. 317

41. BARTHES. Fragmentos de um discurso amoroso, p. 316.


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42. PLATH. Os diários de Sylvia Plath, p. 103.

43. BARTHES. Fragmentos de um discurso amoroso, p. 157.

é exteriorizada, por meio da obra. E podemos pensar que é dessa mesma solidão que Sylvia escreve em um trecho do diário: “Se não tiver esse período para ser eu mesma, para ficar aqui sozinha, escrevendo, de certo modo perderia minha integridade, inexplicavelmente”.42 Outro ponto relevante é a necessidade de escrever sobre o ser amado: “Engodos, debates e impasses provocados pelo desejo de ‘exprimir’ o sentimento amoroso numa ‘criação’ (particularmente de escrita)”.43 No caso dessa vivência do Eros pelo escritor isso pode ser veementemente observado, uma vez que surge, muitas vezes, o anseio de escrever sobre a própria escrita. Não raro são os casos de autores que expressam sua relação com a própria escrita em suas obras. Sou ao mesmo tempo grande demais e fraco demais para a escrita: estou ao lado dela, que é sempre rigorosa, violenta, indiferente ao eu infantil que a solicita. O amor tem decerto um pacto com minha linguagem (que o mantém), mas não pode alojar-se em minha escrita. (...)

44. BARTHES. Fragmentos de um discurso amoroso, p. 159; 161.

Saber que não escrevemos para o outro, saber que essas coisas que vou escrever jamais me farão amado de quem amo, saber que a escrita não compensa nada, não sublima nada, que ela está precisamente ali onde você não está – é o começo da escrita.44

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Voltemos agora ao início, na epígrafe que abre esse texto. O que poderia ser considerado uma catástrofe real para um escritor? Podemos encontrar alguma pista sobre isso na mais recente biografia escrita sobre a Plath, na qual Rollyson destaca a necessidade vital da escrita para a escritora: “Quando sucumbiu a um bloqueio criativo pela primeira vez, no verão de 1953, Sylvia o encarou como uma morte em vida e tentou pôr fim à própria existência”.45 Ou seja, o que desencadearia em um escritor uma crise violenta, que poderia levar até à destruição de si mesmo? Para escritores que escrevem acompanhados de Eros, nessa experiência tão passional com seu objeto amoroso, provavelmente a falta da escrita. Talvez por isso tão poucos escritores sejam corajosos como Rimbaud ao tomar a decisão de não mais escrever: “eis por que tão poucos escritores renunciam a escrever, pois isso significa literalmente matar-se, morrer para ser o que escolheram; e se esses escritores existem, seu silêncio ressoa como uma conversão inexplicável (Rimbaud)”.46 É por isso que aqui não nos interessamos em discutir o suicídio. Porque a verdadeira catástrofe de Plath, não foi a morte, mas sim a vida. A vida em situação extrema. A catástrofe interna: “situações definitivas, sem retorno: projetei-me no outro com tal força que, quando este me falta, não posso me reencontrar, me recuperar: estou perdido para sempre”.47 SALTARELLI. Sylvia Plath e Roland Barthes: fragmentos de um diário amoroso p. 186-195

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45. ROLLYSON. Ísis Americana, p. 31.

46. BARTHES. Crítica e verdade, p. 35.

47. BARTHES. Fragmentos de um discurso amoroso, p. 50.


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48. NOBRE. O amor artístico, s/p.

Plath passou a vida perdida. E o único modo de sobreviver era escrever. Ela sobreviveu e a resposta dessa sobrevivência é a intensidade que pode ser sentida em seus escritos e a vida subestimada em função da escritura. A verdade é que no final “pouco interessa se a arte, enfim, lhe foi salvação ou perdição. A positividade da arte está em ser ela testemunho vivo, vibrante e irrefutável de embriaguez, excesso, audácia, aprofundamentos e desencaixes do homem”.48

BARTHES, Roland. O rumor da língua. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.

REFERÊNCIAS

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BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Trad. Leyla Perone-Moisés. 2ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013. BRANCO, Lucia Castello. Chão de letras: as literaturas e a experiência da escrita. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. BRANCO, Lucia Castello. O que é erotismo. São Paulo: Brasiliense, 1984.

BRANCO, Lucia Castello; BRANDÃO, Ruth Silviano. A mulher escrita. Rio de Janeiro: Lamparina editora, 2004. FREUD, Sigmund. Um caso de histeria, três ensaios sobre a sexualidade e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

BARTHES, Roland. Aula. Trad. L Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora Cultrix. BARTHES, Roland. Crítica e verdade. Trad. Leyla PerroneMoisés. São Paulo: Perspectiva, 2007.

FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 16: O eu e o id, “autobiografia” e outros textos (1923 – 1925). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2011.

BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

HUGHES, Frieda. Prefácio. In: PLATH, Sylvia. Ariel. Edição restaurada e bilíngue. Trad. Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo. 2ª ed. Campinas: Verus Editora, 2010.

BARTHES, Roland. O grau zero da escrita: seguido de novos ensaios críticos. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

LACAN, Jacques. O seminário. Livro 20. Mais, ainda. 2ª edição. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

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NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Ecce homo: de como a gente se torna o que é. Porto Alegre: L&PM, 2014. NOBRE, Renarde Freire. O amor artístico. Belo Horizonte (Inédito). PLATH, Sylvia. Ariel. Edição restaurada e bilíngue. Trad. Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo. 2ª ed. Campinas: Verus Editora, 2010. PLATH, Sylvia. Os diários de Sylvia Plath – 1950-1962. Editado por Karen V. Kukil. Trad. Celso Nogueira. São Paulo: Globo, 2004. ROLLYSON, Carl. Ísis americana: a vida e a arte de Sylvia Plath. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015.

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VELHICE, MEMÓRIA E PODER EM DIARIO DE LA GUERRA DEL CERDO, DE ADOLFO BIOY CASARES

Letícia Malloy*

RESUMO: Este ensaio objetiva apresentar reflexões sobre o romance Diario de la guerra del cerdo, escrito pelo argentino Adolfo Bioy Casares e publicado no ano de 1969. Toma-se por foco a análise de três eixos temáticos de relevo constantes do referido texto literário, quais sejam, a velhice, a memória e o poder. Para tanto, dialoga-se perspectivas teóricas de Simone de Beauvoir, no que toca à velhice, e Gerard Genette e Phillipe Lejeune acerca do narrador e do registro de memórias. Discorrese, ainda, a respeito das relações de poder fomentadas ao longo do romance com fundamento em teses desenvolvidas por Michel Foucault, Louis Althusser e Pierre Bourdieu. PALAVRAS-CHAVE: Adolfo Bioy Casares; velhice; conflito geracional; memória; relações de poder.

* leticiamalloy@gmail.com Doutoranda em Teoria da Literatura e Literatura Comparada junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários UFMG. Mestre em Estudos Literários pela UFMG. Bolsista FAPEMIG.

ABSTRACT: This paper aims at presenting reflections upon the novel Diario de la guerra del cerdo, written by the Argentinian Adolfo Bioy Casares and published in 1969. The study focuses on the analysis of three outstanding thematic axes that can be verified in the above-mentioned literary text: old age, memory, and power. For such, it dialogues with theoretical perspectives developed by Simone de Beauvoir, regarding old age, as well as Gerard Genette’s and Phillipe Lejeune’s works relating to the narrator and to the act of writing about memories. It also discusses power relations fuelled throughout the novel by taking Michel Foucault’s, Louis Althusser’s, and Pierre Bourdieu’s theories into account. KEYWORDS: Adolfo Bioy Casares; old age; generational conflict; memory; power relations.


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1. MACHADO. Bem do seu tamanho, p, 5; 6; 11.

2. MARTINEZ. Contracapa (parecer da comissão julgadora do Prêmio Fernando Chinaglia de 1979).

No ano de 1979, o texto de literatura infantil intitulado Bem do seu tamanho, da escritora brasileira Ana Maria Machado, foi agraciado com o segundo lugar no Prêmio Fernando Chinaglia e, em 1980, foi classificado como “Altamente Recomendável para Crianças” pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. O volume tem seu enredo organizado em função da jornada da menina Helena, que, em companhia de Bolão, um boi de mamão, parte em busca de uma resposta sobre seu exato tamanho – algo como “muito grande”, “pequenininha”, “bem grandinha” ou “muito pequena”.1 Segundo observa Marina Quintanilha Martinez, Bem do Seu Tamanho “(...) aborda o problema da relatividade da dimensão do eu, a dificuldade de precisar e definir cada ser humano, como ser relacional”,2 É razoável supor que a indagação sobre a precisa medida dos seres tenha sido levantada, de maneiras mais ou menos inquietantes, em algum momento da infância da maior parte dos sujeitos. Afinal, como no caso da perspicaz Helena, uma importante parcela das histórias individuais e dos traços compositivos da identidade é delimitada, desde cedo, a partir de exercícios comparativos e de relações entabuladas com os pais, os avós, os irmãos mais velhos e mais novos, os amigos, os objetos domésticos, as tarefas e brincadeiras permitidas e, também, com as atividades apenas imaginadas, próprias de um futuro em que os indivíduos, por serem mais

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velhos, tornam-se aptos ou simplesmente autorizados a desempenhá-las. Durante a infância, é lícito almejar, a exemplo do que faz Helena, um valor de grandeza capaz de conciliar os aspectos físico, psíquico, emocional, social, cultural, histórico e econômico que participam do desenvolvimento de cada individualidade. Ao combinar tantas nuances, tal valor de grandeza poderia oferecer respostas categóricas e apaziguadoras sobre a extensão de cada um. É interessante observar que a busca por respostas classificatórias dos estágios da existência pode se estender à vida adulta, ensejando a elaboração de categorizações como a que se apresenta no texto enciclopédico Le Grand Propriétaire de toutes choses, compilado no século XIII e citado por Philippe Ariès em História social da criança e da família. Segundo o texto do período medievo, as idades podem ser classificadas segundo sete agrupamentos: inicialmente, tem-se a infância, que “(...) começa quando a criança nasce e dura até os sete anos”, seguida da pueritia, que se estende “(...) até os 14 anos”. Após esses ciclos, o indivíduo experimenta a adolescência, que pode ir “(...) até os 30 ou 35 anos”, e a “(...) juventude, que está no meio das idades [termina aos 45 anos], embora a pessoa aí esteja na plenitude de suas forças”. A quinta fase corresponderia à senectude, que “(...) está a meio caminho entre a juventude e a velhice” e também recebe a denominação de “(...) gravidade, porque a pessoa nessa idade é grave nos costumes e nas

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3. GLANVILLE apud ARIÈS. História social da criança e da família, p. 36. Todos os fragmentos se encontram dispostos à mesma página. 4. GLANVILLE apud ARIÈS. História social da criança e da família, p. 37.

maneiras”.3 Posteriormente, dá-se a chegada da velhice, que perdura até os 70 anos e pode se desdobrar em uma sétima fase da existência, denominada senies, na qual “(...) o velho está sempre tossindo, escarrando e sujando (...), até voltar a ser a cinza da qual foi tirado”.4

Tentativas de delimitação das fases da vida humana, como a constante de Le Grand Propriétaire de toutes choses, foram compostas e reformuladas ao longo do tempo, apresentando variações orientadas por contingências históricas distintas. Reconhecendo-se, entretanto, a impossibilidade de que uma qualificação certeira e definitiva dos períodos da vida seja elaborada, resta a cada sujeito conviver com a angústia sobre a relatividade de seu “tamanho”, sentimento que emerge na infância e perdura existência afora até a idade madura. Em estudo sobre o tema da longevidade na literatura brasileira, Carmen Lucia Tindó Secco afirma que, na velhice, aquela angústia chega a assumir dimensões ainda maiores que as verificadas na juventude: O exílio dos anos, provocado por civilizações que rejeitam o velho, aumenta a solidão, porém esta, povoada por um lastro de experiências, torna a crise da velhice mais aguda que a da adolescência, pois, ao contrário desta, não pára (sic) no circuito narcísico da procura da identidade, mas estilhaça a própria imagem, fazendo o idoso enfrentar o vazio que se esconde atrás da máscara das

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rugas. O adolescente se debate e se angustia, contudo espera conquistar um lugar no futuro; o ancião, geralmente, sente-se triste, por pensar “não poder lutar mais por espaço algum”.5

Tal angústia, verificável no texto da brasileira Ana Maria Machado e abordada no estudo de Carmen Lúcia Tindó Secco, pode ser visitada, também, a partir da análise do enredo de Diario de la Guerra del Cerdo, romance escrito pelo argentino Adolfo Bioy Casares (1914-1999). Na narrativa em questão, publicada em 1969, a reflexão acerca da idade e de suas implicações na relação com o outro parte não de crianças, mas de idosos. O protagonista Isidoro Vidal, conhecido como don Isidro, e seus amigos, que referem a si mesmos como muchachos,6 veem-se confrontados com a superveniência da idade madura e têm suas rotinas atravessadas pela animosidade vinda de jovens, que tomam por indesejável a presença da velhice à medida que transitam por um espaço narrativo construído a partir de referências à cidade de Buenos Aires. Interpelado pelo meio, o grupo de amigos idosos é levado à formulação de indagações aflitivas sobre aspectos que participam da caracterização daquelas personagens. Em linhas gerais, é possível enumerar as seguintes questões que perpassam o enredo: já sou idoso? Sou tão idoso assim? Ser velho é inconveniente e repulsivo? Por que a um idoso não é mais admissível fazer isso ou aquilo? A velhice implica o insulamento em relação à dinâmica social? MALLOY. Velhice, memória e poder em Diario de la guerra del cerdo

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5. SECCO. Além da Idade da Razão, p. 37, grifo nosso.

6. BIOY CASARES. Diario de la guerra del cerdo, p. 9.


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Cumpre observar que, de maneira geral, questionamentos dessa ordem podem surgir espontaneamente nas dinâmicas firmadas entre o idoso e os grupos familiar e social a que pertence. No entanto, em situações específicas de turbação das relações quotidianas, provocadas pela discriminação e pela ameaça de violência, tal como é verificado em Diario de la guerra del cerdo, aquelas indagações sobre a velhice podem ganhar maior relevo e passar ao rol das discussões emergenciais. Envoltas em uma atmosfera opressiva, as personagens idosas do romance de Adolfo Bioy Casares são deslocadas à condição de alvos das manifestações hostis e de ataques físicos empreendidos por uma organização liderada por um demagogo de nome Arturo Farrell e denominada Jóvenes Turcos. Ao longo da narrativa, a delimitação das categorias de agressor e vítima é esboçada, mas, continuamente, escapa aos olhos do leitor. Com efeito, as relações entre opressor e oprimido ocorrem por meio da fluidez dos conceitos de juventude e de velhice. Se o “tamanho” de cada um é impreciso, quem está passível de ser atacado e quem não está? Quem já é idoso e quem não o é? Diario de la guerra del cerdo não oferece respostas a essas perguntas, o que resulta na dificuldade em definir quem são as potenciais vítimas, na impossibilidade de precisão dos contornos da face inimiga e em obstáculos à identificação dos motivos propulsores da hostilidade aos mais velhos.

A nebulosa demarcação dos territórios da juventude e da velhice em Diario de la guerra del cerdo amplia as possibilidades de as personagens tomadas por idosas ou possíveis idosas manifestarem sua complexidade e expressarem a humanidade de sua condição. Nesse sentido, a figuração da senescência naquele romance não toca o extremo da sacralização ou beatificação da velhice, tampouco tende à completa vitimização do idoso no contexto social de que participa. Em verdade, o homem envelhecido disposto ao centro da narrativa casareana é apresentado como portador de angústias, receios e virtudes, protagonista de intercalados momentos de covardia e de coragem, titular de uma sexualidade desejosa de expressão e, também, autor de reflexões e práticas preconceituosas dirigidas à velhice alheia. O realce em âmbito ficcional ao fato de que o sujeito senescente não é despojado de seus vícios, tampouco das virtudes constitutivas de sua personalidade, coaduna-se com certa ponderação desenvolvida por Simone de Beauvoir acerca da velhice. Segundo observa a filósofa francesa em obra publicada no ano de 1970, a voz humana – e a complexidade que por meio dela se expressa – assenta raízes inamovíveis no idoso, ainda que os mais jovens não desejem ouvi-la:

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Na França, onde a proporção de velhos é a mais elevada do mundo – 12% da população já ultrapassou os 65 anos de idade – êles (sic) se vêem (sic) condenados à miséria, à solidão,

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7. BEAUVOIR. A velhice, p. 6, grifo nosso.

8. GENETTE. Discurso da narrativa, p. 187. 9. BIOY CASARES. Diario de la guerra del cerdo, p. 91.

10. Segundo Genette, a narrativa autodiegética, “em que o narrador é o herói de sua narrativa, [...] representa o grau forte do homodiegético”. Cf. GENETTE. Discurso da narrativa, p. 244.

às enfermidades e ao desespero. Nos Estados Unidos, êles (sic) não são mais afortunados. A fim de conciliar semelhante barbárie com a moral humanista por ela professada, a classe dominante toma a cômoda decisão de não os considerar homens; sua voz, se fôsse (sic) ouvida, forçá-la-ia a reconhecer que se trata de uma voz humana.7

Por outro lado, se no plano fático, conforme observado por Simone de Beauvoir, verificam-se movimentos em que se procura obliterar a voz do idoso, no texto literário de Adolfo Bioy Casares os atos de enunciação advindos da idade madura ganham destaque, são problematizados e consistem em cerne do enredo. No entanto, a concessão de voz à velhice não ocorre de maneira unívoca, visto que a trama avança em meio a um significativo grau de incerteza no que toca à função narrativa. O leitor avança as páginas de Diario de la guerra del cerdo valendo-se da “focalização interna”8, isto é, do olhar, das reflexões, das memórias e dos questionamentos de Isidoro Vidal durante a guerra al cerdo9 sem, entretanto, poder afirmar com precisão se o estatuto do narrador é ou não conferido ao protagonista. Pode-se afirmar que a identidade entre protagonista e narrador vacila entre três hipóteses. A primeira delas sugere que don Isidro consiste em narrador “autodiegético”10 que, sendo o autor do diário e o herói da narrativa, assume

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uma atitude de distanciamento ao optar pelo uso da terceira pessoa gramatical para registrar memórias sobre uma passagem específica de sua vida. Na segunda hipótese, tem-se um narrador “homodiegético”11, não coincidente com don Isidro, que participa da narrativa desempenhando um papel secundário e exercendo a função de um observador que busca acessar a cadeia de eventos da guerra al cerdo pela perspectiva de Isidoro Vidal. A terceira hipótese, sustentada pelo professor espanhol Javier de Navascué,12 consiste na possibilidade de que o autor do diário seja heterodiegético, contando, dessa maneira, uma história da qual não participa. Cumpre, neste ponto, lembrar a assertiva de Phillippe Lejeune sobre a complexidade da tarefa de categorização do narrador. Consoante exposto por Lejeune, Gérard Genette (...) deixa claro que pode haver narrativa “em primeira pessoa” sem que o narrador seja a mesma pessoa que o personagem principal. É o que chama, numa perspectiva mais ampla, de narração “homodiegética”. Basta continuar esse raciocínio para ver que, no sentido inverso, é perfeitamente possível que haja identidade entre o narrador e o personagem principal sem o emprego da primeira pessoa.13

Em face da ponderação de Lejeune acerca da classificação proposta por Genette, seria lícito supor que don Isidro é, a um só tempo, sujeito do enunciado e sujeito da enunciação, e MALLOY. Velhice, memória e poder em Diario de la guerra del cerdo

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11. GENETTE. Discurso da narrativa, p. 244.

12. NAVASCUÉS. El esperpento controlado, p. 64.

13. LEJEUNE. O pacto autobiográfico, p. 16.


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que o emprego da terceira pessoa gramatical se dá com vistas à produção de determinado efeito. Uma vez transpostas para o universo romanesco as considerações de Lejeune sobre a autobiografia, é possível cogitar que o narrador de Diario de la guerra del cerdo, coincidindo com a figura de Isidoro Vidal, tenha utilizado a terceira pessoa com o objetivo de estabelecer um distanciamento em face dos eventos traumáticos ocasionados pelas agressões perpetradas por jovens contra velhos e, também, para conferir maior credibilidade ao testemunho concernente aos eventos experimentados. Percebe-se, de qualquer modo, a impossibilidade de eleição, em definitivo, desta ou das outras hipóteses acima listadas como resposta sobre o estatuto do narrador no romance, o que confere à narrativa uma tessitura complexa.

14. MACHADO. A teoria do romance e a análise estético-cultural de M. Bakhtin, p. 137.

A indefinição quanto ao estatuto do narrador de Diario de la guerra del cerdo, aliada à utilização de características usualmente atribuídas ao diário, guarda afinidade com afirmação de Mikhail Bakhtin, segundo o qual “o romance é um gênero em devir”, passível, destarte, de constantes modificações em seu modo de composição.14 A aproximação entre o romance em análise e a assertiva de Bakhtin ocorre, também, em virtude do modo como a narrativa é estruturada: os quarenta e nove capítulos do romance são mesclados a uma intermitente indicação de datas, dispostas à maneira de um diário, sendo este amalgamado às vozes das personagens e a menções a outros registros textuais, como versos de músicas. EM  TESE

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Verifica-se, além disso, que o sujeito escrevente organiza suas páginas pessoais a partir da disposição de um início, um meio e um desfecho, isto é, por meio de uma lógica de circularidade que, via de regra, não consiste em uma preocupação daqueles que se dedicam à manutenção de um diário. No romance-diário, executa-se um recorte temporal que dá a conhecer, apenas, pouco mais de uma semana da vida do sexagenário don Isidro. Poucas são as vezes em que é franqueado acesso a memórias da infância e da mocidade do protagonista, e, quando isso ocorre, estabelece-se uma relação direta entre aquelas memórias e determinado evento relacionado à guerra al cerdo. O narrador não se dedica, portanto, a um arrazoado sobre o passado remoto, tampouco a uma apologia das tradições como estratégia de defesa do idoso em face dos ataques empreendidos por jovens; apenas acessa episódios pretéritos quando nestes encontra chaves para a interpretação do que vivencia durante a guerra al cerdo. Não obstante o fato de serem dados a conhecer poucos dias da vida do protagonista, percebe-se a complexidade de don Isidro na contradição que a personagem que leva consigo: Vidal tem desnudada, aos olhos do leitor, sua admiração pelas habilidades retóricas de Arturo Farrel, líder dos Jóvenes Turcos e, consequentemente, seu potencial algoz. À primeira vista paradoxal, a simpatia de don Isidro pelo demagogo que incita a violência contra os idosos serve de sustentação ao exame da guerra al cerdo como um todo. Isso porque a MALLOY. Velhice, memória e poder em Diario de la guerra del cerdo

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ambiguidade da personagem, estendida ao contexto em que está inserida, denota a ausência de lados precisamente demarcados e em clara oposição de interesses. Afinal, o jovem agressor e o idoso que ele virá a ser estão na mesma pessoa, e o decurso do tempo acaba por se afigurar como o grande vencedor do embate.

15. FOUCAULT. Microfísica do poder, p. 141. 16. Segundo Roberto Machado, “não existe em Foucault uma teoria geral do poder. O que significa dizer que suas análises não consideram o poder como uma realidade que possua uma natureza, uma essência que ele procuraria definir por suas características universais. Não existe algo unitário e global chamado poder, mas unicamente formas díspares, heterogêneas, em constante transformação. O poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída historicamente.” Cf. MACHADO apud FOUCAULT. Microfísica do poder, p. X.

Ao revelar a contradição acima referida e chamar para si características próprias do sujeito que reproduz percepções pejorativas acerca da velhice, sem, contudo, possuir a liberalidade de imunizar-se dos inconvenientes causados por aquelas mesmas percepções, don Isidro se desdobra em papeis e toma parte em práticas sociais por meio das quais relações de poder são engendradas. Consistindo em um dos agentes responsáveis por fiar teias de poder no âmbito do romance, don Isidro pode ter sua conduta examinada à luz da tese de Michel Foucault segundo a qual o poder não se encontra localizado em uma instância – como o Estado ou as instituições jurídicas – , mas se realiza nas articulações intersubjetivas.15 Desse modo, a interação entre o protagonista e as demais personagens é exemplificativa do fato de que o poder se instaura no manejo de forças estabelecido na esfera interpessoal, já que nem don Isidro, nem os Jóvenes Turcos ou qualquer outra personagem podem ser considerados detentores de “um objeto natural, uma coisa”16 denominada poder.

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No comportamento de don Isidro, identifica-se o entabulamento de relações de poder em que o oprimido consiste, especialmente, na figura da mulher idosa. A reprimenda dirigida pelo protagonista à velhice feminina consubstancia-se em pensamentos de reprovação, olhares de censura e escusas quanto ao estabelecimento de relações de solidariedade. Desse modo, as articulações entre don Isidro e idosas qualificam-se como uma espécie de “relação negativa”,17 isto é, consistem em um silêncio prenhe de mensagens de desprezo e rejeição. Sem percorrer a via do confronto direto, o protagonista coloca seus preconceitos à vista, por exemplo, durante encontro com os muchachos no café de Canning, ocasião em que se depara com uma velha senhora: Entró el diarero don Manuel, bebió en el mostrador su vaso de vino tinto, se fue y, como siempre, dejó la puerta entreabierta. Ágil para evitar corrientes de aire, Vidal se levantó, la cerró. De regreso, al promediar el salón, por poco tropezó con una mujer vieja, flaca, estrafalaria, una viviente prueba de lo que dice Jimi: ‘¡La imaginación de la vejez para inventar fealdades!’. Vidal dio vuelta la cara y murmuró: — Vieja maldita. En una primera consideración de los hechos, para justificar el exabrupto, Vidal atribuyó a la señora el chiflón que por

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17. FOUCAULT. História da sexualidade I, p. 81.


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18. BIOY CASARES. Diario de la guerra del cerdo, p. 12, grifos nossos.

19. FREUD apud COELHO. O estranho, o estranhamento e o estrangeiro em Monique Proulx e Clarice Lispector, p. 171. 20. COELHO. O estranho, o estranhamento e o estrangeiro em Monique Proulx e Clarice Lispector, p. 185.

poco le afecta los bronquios y entre sí comentó que las mujeres no se comiden a cerrar las puertas porque se creen, todas ellas, reinas. Luego recapacitó que en esa imputación era injusto, porque la responsabilidad de la abertura recaía sobre el pobre diarero. A la vieja sólo podía enrostrarle su vejez.18

Ao virar o rosto para imprecar contra a mulher, don Isidro questiona a simples presença da idosa em espaços franqueados ao público, como se àquela não fosse lícito exibir aos demais as marcas que o tempo deixou em seu corpo. Comportando-se desse modo, Vidal oferece sua parcela de contribuição para que a velhice feminina seja relegada a uma sorte de desterro e, consequentemente, coopera para o insulamento daquelas mulheres que não deseja ter ao alcance dos olhos. O incômodo sentido pelo protagonista potencializa, no romance, o estranhamento nos termos propostos por Freud. Conforme observado por Haydée Ribeiro Coelho em ensaio dedicado à análise de textos de Monique Proulx e Clarice Lispector, o estranhamento é relacionado por Freud àquilo que provoca temor e “(...) deveria ter permanecido secreto e oculto mas veio à luz”.19 A referida professora chama atenção para a impossibilidade de que se mantenham, fora do horizonte de convívio, aspectos e sujeitos tidos como indesejados, já que “(...) o estranho, o estranhamento e o estrangeiro estão imersos no cotidiano, entrelaçados à maneira como os indivíduos se representam, se olham, e, igualmente, são representados”.20 EM  TESE

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A partir da maneira como don Isidro participa das relações de poder e do modo como suas memórias são organizadas, percebe-se que a personagem se agarra a uma precária sensação de estabilidade, oferecendo resistência aos paulatinos abalos que o atingem durante a guerra al cerdo. Ao início da narrativa, o protagonista procura segurança no espaço por onde transita: “(...) en voz alta se preguntó qué tenía esa mañana la ciudad, porque parecía más linda y más alegre”.21 Com essa observação, don Isidro reivindica a manutenção do sentimento de pertença à cidade e a acolhida em um ambiente onde possa encontrar traços de sua memória afetiva e das práticas que lhe são familiares. A reclamação de vínculos positivos com o espaço a seu redor implica, também, uma tentativa de escape tanto dos estranhos olhares dos pedestres quanto da ansiedade sentida em relação ao não recebimento de sua aposentadoria – supostamente, uma medida de apoio do Estado aos Jóvenes Turcos. Enquanto percorre a avenida Las Heras, Isidoro Vidal promove o contato entre duas temporalidades distintas, quais sejam, a de suas lembranças e a daquela manhã em que a mirada alheia o perturba. Como assinala Hans Belting, citado por Elisa Maria Amorim Vieira, “o intercâmbio entre experiência e recordação, diz Belting, é um intercâmbio entre mundo e imagem. Dessa forma, tais imagens participam em cada nova percepção do mundo, uma vez que se superpõem às impressões sensoriais”.22 No caso de don Isidro, para além de uma superposição, opera-se uma

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21. BIOY CASARES. Diario de la guerra del cerdo, p. 20.

22. BELTING apud VIEIRA. 19361937: imagens e memórias de um cotidiano virtualmente abolido, p. 302.


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desconfortável fricção entre as imagens pretéritas de Buenos Aires, condensadas na observação positiva sobre a cidade, e a interação pouco aprazível de olhares no espaço público.

23. BIOY CASARES. Diario de la guerra del cerdo, p. 22.

A resistência oferecida por don Isidro ao deslocamento imposto pela guerra al cerdo também se deixa verificar no zelo demonstrado pela personagem quanto à manutenção da estabilidade das relações sociais de que participa. A personagem não abre mão das habituais visitas à padaria do amigo Rey, ainda que as filhas deste lhe dispensem um tratamento ríspido. No entanto, aquela resistência não ganha proporções de embate ou profundo apego ao passado. Em suas caminhadas, o homem percebe a inexorável mudança nas feições da cidade, mas não as maldiz ou se atém a uma reflexão angustiada sobre tais alterações. Nessa linha de raciocínio, destaca-se a passagem em que, diante de uma casa em processo de demolição, don Isidro detém a caminhada para mirar um cômodo e formular uma observação despretensiosa: “Debió de ser una sala”.23 A relativa indiferença expressa defronte o prédio parcialmente destruído passa a consistir, desse modo, em forma de resistência silenciosa ao apagamento de partes da cidade por onde a personagem transita. O apego de don Isidro à noção de quotidianidade, não obstante as ameaças de ataque vindas dos jovens, associa-se a processos rememorativos notadamente quando as lembranças guardam uma conotação de utilidade, já que se prestam EM  TESE

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ao conforto da personagem ou expressam um intento de fuga das reconfigurações promovidas na cidade em decorrência da guerra al cerdo. Na impossibilidade de um compartilhamento daquelas memórias – ou mesmo em razão de um desinteresse em fazê-lo quando em companhia dos muchachos – , Vidal acaba por acessá-las na solidão de suas meditações, o que contribui para a incrustação da personagem. O protagonista recorre ao alento propiciado pelas lembranças, por exemplo, durante o velório de Huberman, uma das vítimas dos Jóvenes Turcos. Sem que os demais presentes à ocasião o saibam, don Isidro mais é confortado que conforta, pois a lembrança dos laços afetivos com a família do falecido consiste em afirmação de que a personagem possui vínculos com o meio em que vive e não foi completamente posta à margem em razão da guerra. Se as turbações na dinâmica social contribuem para o ensimesmamento da personagem, o ambiente privado o potencializa. Logo à primeira página de Diario de la guerra del cerdo, don Isidro é encontrado sozinho em seu quarto. Os limites de sua privacidade estão circunscritos àquelas quatro paredes, localizadas em uma pensão, que mais parecem abafar do que acolher: “Confinado a su cuarto, y al contiguo de su hijo Isidorito, quedó por entonces desvinculado del mundo”.24 Os momentos desse retiro são consequência de dores em um dente molar, e os dias posteriores, em que “la fiebre le daba pretextos

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24. BIOY CASARES. Diario de la guerra del cerdo, p. 7.


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25. BIOY CASARES. Diario de la guerra del cerdo, p. 9.

26. BIOY CASARES. Diario de la guerra del cerdo, p. 8.

para seguir en el cuarto y no dejarse ver”,25 decorrem da visita de don Isidro a um dentista, ocasião em que teve todos os seus dentes retirados e substituídos por uma dentadura. Os primeiros parágrafos do romance já ilustram a maneira como se estabelecem relações de poder em face do idoso e mostram que, para além de oprimir outra subjetividade – a mulher idosa – , don Isidro é vitimado por aquelas relações. Em sua ida a um consultório dentário, a personagem espera encontrar uma solução para a dor causada por apenas um dente. Contudo, a violência do procedimento técnico-científico inutiliza toda sua arcada dentária porque, em referência às gengivas (encías) o dentista afirma que “a cierta edad las encías, como si fueran de barro, se ablandan por dentro y (...) felizmente ahora la ciencia dispone de un remedio práctico: la extirpación de toda la dentadura y su remplazo por otra más apropiada”.26 Na remoção dos dentes de don Isidro, verifica-se o exercício de poder da ciência diante do homem velho, que tem parte de seu organismo considerado inútil ou indesejável. A medida adotada pelo dentista, autoridade portadora do conhecimento, proporciona ao paciente um estado de desassossego maior que quaisquer sensações de alívio e satisfação. Nesse sentido, o episódio vai ao encontro de certa assertiva de Anthony Giddens, para quem um dos desdobramentos de nossa época reside na “confiança” – equiparada a um “artigo de fé” – forçosamente depositada

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pelo leigo em chamados “sistemas peritos”,27 isto é, em campos especializados do saber que dificilmente são questionados e reduzem o nível de autonomia do sujeito na tomada de decisões. As relações de poder ganham relevo em Diario de la guerra del cerdo à medida que são trabalhadas para além de interlocuções entre particulares, como don Isidro e o dentista, e passam a incluir outros atores, como o Estado e veículos de comunicação de massa. A associação entre os Jóvenes Turcos e a esfera estatal se deixa revelar, por exemplo, em determinado questionamento de Leandro Rey, um dos muchachos: “¿Por qué el gobierno tolera que ese charlatán, desde la radio oficial, difunda la ponzoña?”.28 Embora o consórcio entre jovens e gestores públicos esteja sugerido na indagação feita por Rey, faz-se oportuno confrontar tal informação com breve passagem constante das primeiras linhas do romance, a partir das quais se infere que as ações de violência orquestradas por Arturo Farrell são praticadas na clandestinidade e, aparentemente, toleradas por um governo não democrático: “Vidal echaba de menos las cotidianas ‘charlas de fogón’ de un tal Farrell, a quien la opinión señalaba como secreto jefe de los Jóvenes Turcos, movimiento que brilló como una estrella fugaz en nuestra larga noche política”.29 Percebe-se que o alinhamento entre juventude e governo é facilitado pelas nuances totalitárias deste, visto MALLOY. Velhice, memória e poder em Diario de la guerra del cerdo

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27. Cf.: GIDDENS. As consequências da modernidade.

28. CASARES. Diario de la guerra del cerdo, p. 50.

29. BIOY CASARES. Diario de la guerra del cerdo, p. 7, grifos nossos.


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que um período político caracterizado como uma “longa noite” pode ser interpretado como um regime de exceção. Levando-se em conta que até mesmo governos com características ditatoriais costumam se preocupar com a elaboração de justificativas que legitimem suas ações e empenham-se em revesti-las de uma aparente legalidade, é possível compreender por que o apoio estatal irrestrito aos Jóvenes Turcos não poderia vir a público. Assim, se o Estado demonstra aquiescência em relação aos discursos proferidos por Farrell, por outra parte, preserva conveniente distância das práticas agressivas dos jovens. Em face da opinião pública, a contribuição do regime político então vigente às atividades dos jovens ocorre de maneira subliminar, a partir de modulações do discurso oficial, que relativiza a magnitude das práticas de violência:

31. CASARES. Diario de la guerra del cerdo, p. 91.

– La verdad es que yo no envidio al gobierno – reconoció el de las manos enormes – . Hágase cargo: una situación por demás delicada. Si usted no atrae a la oficialidad joven y a los conscriptos, caemos en la anarquía. Un hecho aislado, de vez en cuando, es el precio que debemos pagar. – ¿Qué les ha dado a estos? Todos hablan de hechos aislados – preguntó Arévalo. Jimi explicó:

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– Escucharon anoche el comunicado del ministerio. Decía que la situación estaba perfectamente controlada, salvo hechos aislados.30

Levando-se em conta que a intrincada feição do opressor em Diario de la guerra del cerdo é composta por traços advindos de outros atores sociais e políticos, para além dos Jóvenes Turcos e do Estado, ressalta-se a atuação de veículos midiáticos durante os dias de abalo à paz social em Buenos Aires. Assim como no caso dos discursos de Arturo Farrell, o leitor do romance de Adolfo Bioy Casares não tem acesso direto ao conteúdo das matérias publicadas nos jornais a respeito dos ataques aos idosos. Uma informação pontual, no entanto, assume elevada importância para a interpretação das relações de poder verificadas no enredo e para a compreensão do título do texto literário. Trata-se de artigo publicado no periódico Ultima Hora, comentado por Arévalo, um dos muchachos, em conversa entabulada durante o velório de Néstor, um dos membros do círculo de amigos. Naquele texto de jornal, o período de violência sofrida pelos idosos ganha o rótulo de guerra al cerdo.31 O papel desempenhado pelos jornais em tempos de animosidade contra os idosos pode ser avaliado a partir da reação de seus leitores, representados no romance pelos próprios muchachos. Isso porque no diálogo mantido entre os amigos acerca do termo guerra al cerdo verifica-se a força da

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30. BIOY CASARES. Diario de la guerra del cerdo, p. 96, grifo nosso.


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32. NAVASCUÉS. El esperpento controlado, p. 73. 33. CASARES. Diario de la guerra del cerdo, p. 92. O Crítica a chama de Caça às corujas. Cf. CASARES. Diário da guerra do porco, p. 84.

mídia no processo de apreensão de dados brutos e o subsequente manejo de informações com vistas à criação de sentidos que, no caso em análise, não são favoráveis à velhice. Mediante a designação guerra al cerdo, constata-se primeiramente o incômodo de Leandro Rey no que toca ao emprego da contração al, que lhe parece incorreta. Ainda que se restrinja a um comentário de ordem gramatical, a inquietação do muchacho espanhol pode ser considerada pertinente, pois a contração al guarda em si a ideia de alvo, de algo que deve ser exterminado, apontando desse modo a significação guerra contra o cerdo. Constata-se, assim, no que parece ser um simples detalhe, a desqualificação do idoso a partir de um termo que sugere o extermínio de uma espécie animal.

Os questionamentos de Rey e Arévalo afiguram-se superficiais, visto que se atêm mais a questões formais do que ao conteúdo dos artigos publicados nos jornais Última Hora e Crítica. Confrontado pela força de dois veículos de comunicação de massa, até mesmo Arévalo, o mais perspicaz dos muchachos, curva-se à autoridade discursiva da mídia impressa, tornada inconteste, utilizando-se a perspectiva de Pierre Bourdieu, pelo “capital simbólico”34 que possui. Com efeito, a credibilidade dos posicionamentos assumidos pelos periódicos é incutida de tal maneira no imaginário da comunidade de leitores que estes – aí incluídos os muchachos – não questionam as políticas editoriais adotadas, tampouco as implicações negativas dos termos pejorativos conferidos aos idosos.

A inquietação de Rey é seguida de ponderação feita por Arévalo, que indaga por que o autor do artigo teria escolhido o vocábulo cerdo, isto é, porco, ao invés de chancho. A esse respeito, Javier de Navascués esclarece que “la palavra ‘cerdo’, de origen peninsular, no se emplea en la Argentina, en donde resulta mucho más habitual hablar de los ‘chanchos’”.32 O diálogo dos muchachos tem continuidade com a informação, prestada por Dante, de que o jornal Crítica atribuíra a denominação Cacería de búhos,33 ou seja, caça às corujas, ao período de violência contra os idosos. De posse das designações cunhadas pelos dois periódicos, os muchachos se limitam a comentários sobre o termo mais vantajoso aos senescentes: porcos ou corujas.

A ausência de uma reação contestatória em face das matérias de jornal se coaduna com a óptica de Pierre Bourdieu que, ao refletir sobre as dinâmicas nas quais se verifica o exercício do “poder simbólico”, ressalta que “as relações de comunicação são, de modo inseparável, sempre, relações de poder que dependem, na forma e no conteúdo, do poder material ou simbólico acumulado pelos agentes (ou pelas instituições) envolvidos nessas relações”.35 Desse modo, as práticas de poder estabelecidas entre instituições e sujeitos são sustentadas, em importante medida, pela legitimidade atribuída àquelas sem que tenha havido, por parte destes, uma reflexão detida sobre as decisões e os interesses implícitos nos posicionamentos institucionais. Trata-se, portanto,

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34. BOURDIEU. O poder simbólico, passim. A noção de “capital simbólico” diz respeito a diversas formas de capital (social, econômico, linguístico, intelectual etc.) acumulado pelos agentes ou pelas instituições dos diferentes campos, revestindo-os de autoridade legítima para enunciar e definir formas de ver o mundo. Enquanto o “capital simbólico” se refere a esse material acumulado, o “poder simbólico” aponta, sobretudo, para o exercício da violência simbólica possibilitada pela detenção daquele capital.

35. BOURDIEU. O poder simbólico, p. 11.


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de uma relação de reconhecimento, em que o capital só é possuído se reconhecido. Levado ao extremo no romance, tal reconhecimento se manifesta na ausência de uma contestação acerca do posicionamento assumido pelos jornais e dos rótulos por estes cunhados.

36. BIOY CASARES. Diario de la guerra del cerdo, p. 92.

Percebe-se, assim, que Última Hora e Crítica se apropriam de determinados repertórios e os modulam, criando uma informação e ofertando uma nova maneira de mirar a realidade a partir da interpretação construída em textos jornalísticos. Para proceder de tal forma, a mídia impressa pressupõe a receptividade crédula e passiva do público leitor, o que se verifica no comportamento dos muchachos. O grupo de amigos não cogita questionar a utilização do termo guerra – quando, em verdade, o termo massacre seria mais adequado – e a desqualificação do idoso por meio de sua animalização. Não questiona, ainda, a responsabilidade dos jornais por um encorajamento indireto à violência contra os idosos a partir da equiparação destes a porcos ou corujas; afinal, hipoteticamente, seria mais fácil levantar a mão contra um porco do que contra alguém que é considerado um semelhante. A associação dos velhos a porcos é reforçada em observação feita por Arévalo, que, fazendo uso do sujeito indeterminado, lista adjetivações depreciativas da velhice: “—¿De dónde sacaron la idea? Dicen que los viejos —explicó Arévalo— son egoístas, materialistas, voraces, roñosos. Unos verdaderos chanchos”.36 A força enunciativa dos jornais leva Arévalo, por fim, EM  TESE

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a render-se e a relativizar o respeito ao idoso, associando a denominada guerra al cerdo a variações de tratamento dirigidas à velhice conforme percepções culturais distintas: “ – Por algo los esquimales o lapones llevan a los viejos al campo para que se mueran de frío (...). Solamente con argumentos sentimentales puede uno defender a los viejos: lo que hicieron por nosotros, ellos tienen también un corazón y sufren, etcétera”.37 Verifica-se, destarte, que as relações de poder entre mídia e leitor trabalhadas na narrativa acabam por ilustrar o modus operandi do “poder simbólico”, nos termos da reflexão desenvolvida por Pierre Bourdieu: O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a acção sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou económica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário.38

Na conversa dos muchachos a respeito das publicações nos jornais – e, especialmente, nas observações feitas por Arévalo – , nota-se que os discursos das personagens são atravessados por vetores políticos, econômicos, sociais e culturais que condicionam seus modos de agir e reagir aos acontecimentos do entorno. Aqueles vetores provêm de

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37. CASARES. Diario de la guerra del cerdo, p. 92.

38. BOURDIEU. O poder simbólico, p. 14, grifo original.


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39. BIOY CASARES. Diario de la guerra del cerdo, p. 102.

40. ALTHUSSER. Aparelhos ideológicos de Estado, p. 54. 41. ALTHUSSER. Aparelhos ideológicos de Estado, p. 67. 42. ALTHUSSER. Aparelhos ideológicos de Estado, p. 87.

origens múltiplas e se organizam em um arranjo que conta com a participação de instâncias outras, articuladas, cada qual a seu modo, na rede de relações de poder constituída pelos Jóvenes Turcos, pelo Estado e pela mídia. De maneira específica, a orquestração composta por uma significativa variedade de atores é apontada na fala de um jovem desconhecido, que comparece ao velório do muchacho Néstor: “ – Me consta. Hay estudiosos. Detrás de todo esto hay mucho médico, mucho sociólogo, mucho planificador. En la más estricta reserva le digo: hay también gente de iglesia”.39 A partir dessa assertiva, é possível pensar sobre as atuações da ciência e da técnica – representadas por médicos, sociólogos e planejadores – e de instituições, como a imprensa e a igreja, adotando-se a óptica de Louis Althusser, segundo o qual o Estado atua sobre a “formação social”40 ao lançar mão de seu aparelho repressivo, constituído pelo “governo, a administração, o exército, a polícia, os tribunais, as prisões, etc”,41 e, também, por meio do funcionamento de aparelhos ideológicos, constantes das esferas “religiosa, moral, jurídica, política, estética, etc”.42 Compreendendo-se que a ciência, a técnica, a imprensa e a igreja pertencem ao círculo dos chamados “aparelhos ideológicos” de Estado, cumpre ressaltar, na esteira das reflexões de Louis Althusser, que cada campo do saber e cada instituição, ao reverberar valores e preceitos políticos e normativos

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emanados do âmbito estatal, opera de maneira parcialmente autônoma. Nesse sentido, a atuação de cada instância ocorre qual engrenagem ajustada às demais, porquanto todas teriam seu funcionamento orientado por um viés ideológico semelhante, cuja fonte não residiria no Estado em si mesmo, mas em uma “classe dominante”, formuladora das diretrizes que subordinam as “forças produtivas” e das “relações de produção”.43 Em menção a certa perspectiva de Sartre, Simone de Beauvoir ressalta que, numa sociedade, os indivíduos estabelecem, uns com os outros, “laços de reciprocidade” fundados na “diversidade de sua praxis”44: “Nesta relação cada um rouba ao outro um aspecto do real e lhe indica seus limites: o intelectual se reconhece como tal em face do trabalhador manual.” Desprovido de uma “dimensão teleológica”, expressa em atividade por meio da qual possa oferecer algo ao grupo, o velho é definido “(...) por uma exis e não por uma praxis. O tempo o leva para um fim – a morte – que não é o seu fim, nem é proposto por algum projeto. Surge, por isto, diante dos indivíduos ativos, como uma ‘espécie estranha’ na qual êles (sic) não se reconhecem”.45 Em Diario de la guerra del cerdo, a estruturação do conflito possui, como ponto de partida, os comportamentos do jovem e do adulto, que, seguindo linha semelhante à verificada por Beauvoir, inclinam-se a tratar o velho como uma “espécie MALLOY. Velhice, memória e poder em Diario de la guerra del cerdo

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43. ALTHUSSER. Aparelhos ideológicos de Estado, p. 71; 54.

44. SARTRE apud BEAUVOIR. A velhice, p. 242.

45. BEAUVOIR. A velhice. A realidade incômoda, p. 243.


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estranha” e desprovida de utilidade. Valendo-se dessa atitude de estranhamento diante da senescência, os Jóvenes Turcos e seus aliados fomentam a distância criada pelo falacioso binarismo não-velho – velho. Curioso é observar que, se por um lado, a guerra al cerdo se reveste de um pretexto de diferenciação entre jovens e velhos, por outro iguala a todos por meio da bestialização dos envolvidos. Enquanto os idosos são associados a porcos ou corujas, os jovens se comportam, segundo observado por Arévalo, à maneira de matilha que se permite conduzir por uma liderança demagoga:

46. BIOY CASARES. Diario de la guerra del cerdo, p. 113.

– Ésta es la juventud, que debía pensar por sí misma – adujo Arévalo – . Piensa y actúa como una manada. (…) Ya no hay lugar para individuos – aseguró flemáticamente Arévalo – . Sólo hay muchos animales, que nacen, se reproducen y mueren. La conciencia es la característica de algunos, como de otros las alas o los cuernos”.46

O fio condutor do conflito reside em don Isidro, personagem de ambiguidades manifestas e, por isso, a um só tempo porco e membro da matilha. Dá-se a conhecer, dessa maneira, um protagonismo que ultrapassa tanto a pura e simples vitimização do idoso quanto a intenção de um perfeito enquadramento do sujeito nos domínios da velhice, pois Vidal atravessa a guerra al cerdo perambulando pela embaçada fronteira entre vida adulta e senescência. Amigo dos muchachos, EM  TESE

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embora deteste a velhice que nestes habita, portador de ligeira e confessa simpatia pelos discursos de Arturo Farrell e repositório de elevada repulsa ao envelhecimento feminino, don Isidro oferece contributo à configuração da face inimiga, ainda que assim não proceda deliberadamente. Em sua trajetória titubeante, o protagonista realça a incoerência de uma demarcação de lados criada por uma guerra que, de antemão, derrotou a todos. Afinal, os jovens que, combativos, põem-se na linha de frente das ações de extermínio, acabam implicados em verdadeira quixotada: almejam, em última análise, controlar a condição humana por meio da extirpação de um de seus aspectos essenciais. Como bem observa Arévalo, “ – En esta guerra los chicos matan por odio contra el viejo que van a ser. Un odio bastante asustado...”.47 Em face do exposto, cabe retomar a inquietação de Helena, protagonista da obra infantil Bem do seu tamanho, acerca de sua justa medida. Ao expressar a indagação “ – Espelho meu, espelho meu, que tamanho tenho eu?”,48 a menina se coloca, sem que o saiba, como voz representativa da angústia quanto à impossibilidade de uma precisa correspondência entre subjetividades e rótulos pertinentes a exatos estágios da vida. Em circunstâncias distintas e experimentando o processo de envelhecimento, don Isidro ratifica, em Diario de la guerra del cerdo, o caráter fugidio das respostas que se poderiam apresentar à pergunta de Helena. Ao longo da narrativa

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47. BIOY CASARES. Diario de la guerra del cerdo, p. 107.

48. MACHADO. Bem do seu tamanho, p. 6.


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casareana, Isidoro Vidal perambula pelos territórios da vida adulta e da velhice por meio de comportamentos, meditações e enunciados, e, também, a partir de juízos postos pelo olhar do outro, que ora o qualifica como jovem, ora o toma por velho. Ao desfecho da obra, don Isidro não apenas reafirma a conduta oscilante como nesta se embrenha, colocando-se além de designações estanques a propósito de sua idade e transitando entre a mocidade de Nélida, por quem se enamora, e a velhice de seus amigos, os muchachos. REFERÊNCIAS

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ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Trad. Dora Flaksman. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981.

MACHADO, Ana Maria. Bem do seu tamanho. Il. Gerson Conforto. 8. ed. Rio de Janeiro: Brasil-América, 1986.

BEAUVOIR, Simone de. A velhice. A realidade incômoda. vol. I. Trad. Heloysa de Lima Dantas. São Paulo: Difel, 1970.

MACHADO, Irene A. A teoria do romance e a análise estéticocultural de M. Bakhtin. In Revista USP. Seção Livros. n. 5, p. 13542. mar.-mai., 1990.

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SECCO, Carmen Lucia Tindó. Além da Idade da Razão: longevidade e saber na ficção brasileira. Rio de Janeiro: Graphia, 1994. VIEIRA, Elisa Maria Amorim. 1936-1937: imagens e memórias de um cotidiano virtualmente abolido. In: CORNELSEN, Elcio Loureiro; VIEIRA, Elisa Maria Amorim; SELIGMANN-SILVA, Márcio (orgs). Imagem e memória. Belo Horizonte: Rona; FALE/ UFMG, 2012.

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BARTHES, LUCIA E EU: CONVERSA EM TORNO DOS CAMINHOS

Lucia Castello Branco Entrevista por: João Rocha*

A noite já começava a avançar, quando cheguei à casa da Avenida Brasil, chamada Cas’a’screver. Já estava atrasado, pois marquei nosso encontro para o fim da tarde e, quando subi as escadas da casa, a noite já se iniciava. Lá dentro, Lucia Castello Branco já me esperava. Lembro que ela estava vestida de branco e pensei, imediatamente, nesta frase de Maria Gabriela Llansol: “o devir de cada um está no som do seu nome”. Pedi desculpa pelo atraso e ela disse que não havia problema. Lucia, então, me conduziu para a sala onde nossa conversa se daria e me disse que aquele espaço seria inaugurado dentro de alguns dias e receberia o nome de (Pausa)Ler. O que nos reunia, ali, naquele dia, era a alegria da companhia, pois estávamos eu, Lucia e, silenciosa e discretamente, Roland Barthes, em torno do qual nossa conversa se teceria. O que se segue é a transcrição da alegria de um encontro

* jarochabr@yahoo.com.br Professor e Doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada, pela UFMG.

que passou por caminhos transitáveis, como o é uma corda bamba: os deslocamentos entre o professor e o escritor, a psicanálise, a questão da universidade, o exílio, a casa, a comunidade, os biografemas… Caminhos que se sustentam sob a forma de tensões e atritos, como a colocação de uma frase nominal que coloca lado a lado três nomes próprios. Uma frase muito próxima, muito distante, muito perigosa, pois se encontra no litoral do que escreveu Rimbaud, “eu é um outro”, mas é somente com ela que poderia responder a alguém sobre o que conversamos ali, nas paredes daquela casa, naquela sexta-feira de outubro. Eis a frase absurda que guarda os caminhos da conversa que se segue: “Barthes, Lucia e eu”. *


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JOÃO ROCHA: LUCIA, VOCÊ JÁ DISSE, ALGUMAS VEZES, QUE O PRIMEIRO TEXTO QUE OS ALUNOS DEVERIAM LER, QUANDO ENTRAM PARA A FACULDADE DE LETRAS, É AULA, DE ROLAND BARTHES. GOSTARIA QUE COMEÇÁSSEMOS COM VOCÊ DIZENDO POR QUE.

Lucia Castello Branco: Para começar, porque aquilo é uma aula e uma aula inaugural. Ele é um texto da década de 70 e tem uma importância histórica para os estudos barthesianos. Barthes, nesse momento, só falava de escritura. Ele tinha abandonado o termo literatura, desde que ele tinha, digamos assim, inventado ou descoberto essa noção de escritura, que é a escrita do escritor. Diferentemente de Blanchot, que nunca o abandonou. Não interessava mais a ele pensar a literatura como uma essência. Barthes retorna a ela contaminado pela escritura. Ele faz as pazes com a literatura nesse texto. Essa é a leitura que a Leyla PerroneMoisés faz também. Eu a vi apresentando uma leitura da Aula, na década de 80, em um congresso da ABRALIC, e deu um quebra-pau danado depois. Era a época do princípio da discussão da primeira noção, digamos, da pós-modernidade. Então, acharam que ela estava fazendo uma leitura muito essencialista do Barthes. Mas eu concordo com ela: Barthes retorna à literatura. Portanto, em primeiro lugar, esse texto deve ser conhecido, porque, dentro da obra de Barthes, ele ocupa um lugar super importante, que é o de um retorno à literatura. Depois, porque é uma aula e é uma aula muito

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importante, pois ele é convidado a ocupar um importante lugar de saber, no Collège de France, e ele nomeia Foucault como quem o convidou. Barthes e Foucault tinham uma amizade e uma diferença. Em alguns momentos, Barthes era criticado por Foucault como aquele sujeito que não se assumia, não ia à passeata dos homossexuais… Vamos pensar que Foucault sempre assumiu essa questão e a assumiu publicamente. Ele foi um dos primeiros intelectuais, de que nós temos notícia, que morreu de Aids, em uma época em que a Aids parecia ser alguma coisa do reduto dos homossexuais… E Barthes era sempre aquele sujeito discreto. Então, eu acho que ele aceita esse lugar no Collège de France e dá uma resposta a Foucault, quando formula que a literatura é o saber que deveria permanecer e o engajamento do escritor é o engajamento com a própria língua. Ele está falando da posição dele. Depois, Barthes diz que é um sujeito incerto. Acho bonito, quando ele começa dizendo isso, pois, pensando que ele está dialogando com Foucault, há uma conotação importante porque ele não tinha título, João. Barthes era um cara sem mestrado, sem doutorado… Um notório saber. E o último motivo que me faz dizer que os alunos deviam ler a Aula é que Barthes é um super professor, que nunca deixou de ser escritor, sendo professor. Talvez seja

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em uma aula dele – nos seminários também – que você o vê se colocar como professor e escritor, juntos. Ele consegue reunir essas duas coisas. Para a professora que eu sou, ou que eu acredito ter sido, já que eu estou, digamos assim, encerrando uma carreira dentro da Faculdade de Letras, Barthes é a voz. Sempre houve esta divisão, de alguma forma, nas Letras: Fulano é mais acadêmico… Esse aqui é mais poeta. E Barthes reúne essas duas coisas. Ele é o escritor-professor. Ele mesmo faz a diferença. Ele diz que um professor é aquele que termina suas frases e o escritor é aquele que não termina. JR: ELE É UM PROFESSOR QUE TERMINA COM RETICÊNCIAS…

LCB: É. E ele mesmo ensina, para mim, que um professor

pode não terminar as suas frases. Eu aprendi isso com ele. Hoje mesmo, eu dei uma aula, e pensei: o primeiro pé dela está em Barthes e o segundo em Llansol. Eu tinha todo um esquema sobre aquele texto do Gérard Pommier, “Até onde as palavras podem nos transportar”. Todo um esquema dessa aula, porque na graduação esse assunto é difícil, sobretudo para um curso que está começando. Eu comecei a aula e uma aluna fez a seguinte intervenção: “Isso não tem a ver com o ‘eu mesmo’?”. E eu falei: “Quem é o ‘eu mesmo’?”. Aí, a aula se deslocou para a questão do je e do moi e do sujeito do inconsciente. E eu fiz uma enorme EM  TESE

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digressão contando, publicamente, essa história que eu te contei do Caetano1, comentando que eu queria dizer para ele que eu era eu mesma. Mas quando eu dizia que eu era eu mesma, eu pensava: “Como assim, eu sou eu mesma?” (risos). Ou seja, a aula, que era sobre até onde as palavras podem nos transportar, foi uma aula sobre o transporte, porque a aluna disse: “Essa questão do gozo não tem a ver com o ‘eu mesma’? Com o sujeito?”. E aí a aula virou outra coisa! Eu disse, bom gente, eu apenas introduzi esse texto e vocês leem para a próxima aula. Depois, eu me dei conta de que a aula foi guiada por um mecanismo, um método, digamos, ou uma autorização que Barthes nos dá, que é a autorização da digressão. Você lembra quando ele fala disso? Que a digressão é o grande movimento do texto… O grande movimento que o texto pode fazer. Você aprende que a digressão é parte daquele contorno. E você só se permite isso, se você conseguir ter uma abertura, que eu acho que a psicanálise dá. Há, para mim, um Barthes antes e depois da psicanálise. O Barthes depois da psicanálise é um Barthes muito mais autorizado a ser… Barthes. JR: HOJE, EM UMA AULA, UMA ALUNA ESTAVA FALANDO, REPETIDAMENTE, DO REAL LACANIANO. ELA DIZIA QUE, DEPOIS DE LACAN, NÃO HÁ COMO FALAR DE REAL SEM O CONTEXTUALIZAR. E ESSE REAL ELA O ESCREVIA COM LETRA MAIÚSCULA. E EU PERGUNTEI SE ELA

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1. Nesse dia, antes de começarmos a gravação desta entrevista, Lucia Castello Branco me contou que, uma vez, Caetano Veloso lhe enviou um email, mas, por razões desconhecidas, ele chegou para uma homônima que respondeu dizendo que, embora tivesse o mesmo nome, não era a Lucia Castello Branco ao qual o email era destinado. Até tudo se esclarecer, houve uma certa confusão e essa história rendeu boas gargalhadas.


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SABIA QUE O REAL, COM MAIÚSCULA, ERA DO ROLAND BARTHES, EM AULA, OBVIAMENTE INFLUENCIADO PELA PSICANÁLISE LACANIANA.

LCB: Sim, é ele quem vai cunhar essa escrita. JR: LUCIA, VOCÊ FALANDO DE DIGRESSÃO E EU AGORA VOU TENTAR ELABORAR UMA. QUANDO VOCÊ DIZIA DA FUNÇÃO DO PROFESSOR, O MÉTODO DO PROFESSOR, VOCÊ FALOU DA VOZ. PARECE LÓGICO, MAS EU NUNCA TINHA ME ATENTADO PARA A VOZ DO PROFESSOR. E EU LEMBREI QUE SEU ÚLTIMO LIVRO, MARIA LUA DA MINHA ESCURIDÃO, UM LIVRO INFANTO-JUVENIL, VOCÊ TAMBÉM LANÇOU EM ÁUDIO.

LCB: Foi. Inclusive, o lançamento do livro em áudio atrapa-

lhou o e-book demais, porque muita gente ouviu e já ficou satisfeito e achava que não precisava ver o livro (risos). Eu pensei: “Gente, o negócio ficou bom mesmo!” (risos). Muita gente tem preguiça de baixar, de comprar… JR: O QUE EU QUERO TE PERGUNTAR É ISTO: SE ESSA JUNÇÃO DO PROFESSOR E DO POETA, DO PROFESSOR E DO ESCRITOR, NÃO SE DARIA TAMBÉM NO PONTO DO GRÃO DA VOZ, OU SEJA, POR ALGO QUE É DO CAMPO DA VOZ. 2. Escola que Maria Gabriela Llansol coordenou, junto com outros amigos, na Bélgica, durante o período em que estava exilada.

LCB: Eu acho que sim. Há aquela expressão sobre a subli-

mação, aquele teoremazinho que Lacan constrói: a sublimação seria elevar o objeto à dignidade da coisa. Eu acho que Barthes faz isso com o professor. Ele eleva o objeto. Porque o professor é uma coisa tão degradada, não é, João? É uma coisa tão degradada! Quer dizer, não tem nobreza, EM  TESE

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hoje, no lugar do professor. E Barthes, eu acho, conseguiu elevar isso que é enorme na função do professor, essa coisa do mestre, à dignidade. Porque ou o mestre é uma bobagem… Ou é o discurso do mestre, como se fala na psicanálise… Aquele que impõe um saber… E Barthes vai trazer aquilo que aparece naquele texto do Peter Pal Pelbart: a função do professor é reconciliar o aluno com sua própria solidão. Isso não é lindo? E eu acho que Barthes faz isso. Ele, e essa é a impressão que eu tenho, quando estava ali dando uma aula, reconciliava-se com a própria solidão. Então, é muito doido, porque talvez o que eu tenha mais aprendido com Barthes, que, para mim, é, acima de tudo, um grande escritor, foi a dar aula. JR: ISSO É BONITO.

LCB: Isso é sensacional! Sinceramente, eu aprendi a dar aula

com duas pessoas: Barthes e Llansol. Barthes eu posso dizer que eu o vi, o ouvi dando aula, na medida em que eu li, por exemplo, a Aula, os seminários deles etc. Mas Llansol eu nunca vi… Nem ela fazendo um ateliê na École da la Rue de Namur2. Contudo, Llansol, sendo a escritora que ela é, da maneira que ela é, me autorizou a ser a professora que eu sou. Isso é muito doido, mas é! Quando eu encontrei a Llansol, em 1992, eu era professora da Faculdade de Letras desde 1984. Então, eu tinha CASTELLO BRANCO; ROCHA. Barthes, Lucia e eu: conversa em torno […]

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oito anos como professora da Letras. Eu estava muito cansada de dar aula e ficava triste quando ia trabalhar, pois eu pensava assim: “Eu vou ter que fazer isso a minha vida inteira! Trinta anos fazendo isso! Como é possível?!”. Porque nós recebíamos as ementas e eu achava que dar aula era segui-las… Eu achava que tinha que fazer aquilo daquele jeito. E aí, a primeira alegria, quando eu encontrei o texto da Llansol, foi pensar assim: “Gente, eu vou poder me ocupar disso a vida inteira!”. Então, já havia melhorado a situação. Quando nos encontramos, eu falei com ela que eu estava muito esgotada de dar aula… Que às vezes eu achava que dar aula me roubava das outras coisas… De ser escritora… De escrever, pesquisar… Foi um encontro que a gente teve, muito interessante. A gente se despediu na estação de Sintra, eu, voltando para Lisboa, e me lembro que a última frase dela para mim foi assim: “Mas é uma atividade muito importante. É muito importante”. E aí, ela foi embora. E eu, na hora que entrei no trem, tive uma espécie de visão, muito doida, como se ela estivesse subindo uma montanha. Sabe, a visão de uma ermitã? Aquela pessoa com um cajado subindo uma montanha. Ela falou essa frase que ficou para mim. Logo depois, teve a Carta ao legente3, que ela escreve para Lucia Castello Branco e seus alunos. Então, ela me deu um lugar. Como uma pessoa que diz: “Toma essa missão e sustenta isso, até o fim”. EM  TESE

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JR: MUITO INTERESSANTE VOCÊ LEVANTAR ESSA QUESTÃO DAS EMENTAS E DA PRISÃO QUE PODE SER, POR VEZES, SEGUI-LAS. ISSO PORQUE UMA DAS MINHAS QUESTÕES, HOJE EM DIA, É JUSTAMENTE ESSA… É UM CONFLITO.

LCB: Eu levantava para dar aula numa tristeza, João, você

não acredita. Aí, chegava lá e eu melhorava, porque lá a coisa acontecia. Até o dia que eu cheguei para os alunos e disse: “Gente, eu odeio dar aula”. Os alunos olharam para mim com cada olho! (risos). “Eu acho insuportável isso… Eu me arrasto até aqui”, eu falei. Era uma coisa assim: eu podia ter sido aquelas professoras que entram em depressão e ficam pedindo licença para o resto da vida. De tanto que aquilo era insuportável. Para mim, como professora, foi assim: um antes e depois de encontrar Llansol e de reencontrar Barthes. Logo depois que eu encontrei a Llansol, voltei para o Brasil e, nessa época, eu tinha dois alunos, que foram meus alunos de iniciação científica, Paulo de Andrade e Sérgio Antônio Silva. Paulo é poeta e Sérgio, escritor e editor. Ambos, hoje, são professores. Eles me procuraram para orientá-los em um projeto de iniciação científica, pois estavam com a seguinte questão: eles tinham feito uma prova para um professor da Faculdade de Letras e esse professor tinha corrigido a prova deles – eles escrevem muito bem, sempre escreveram, desde novinhos – e tinha dado A para os dois, com a nota 90, ao invés de 100, colocando o seguinte comentário na prova: “Mas o que é isso? Crítica barthesiana?”. E eles CASTELLO BRANCO; ROCHA. Barthes, Lucia e eu: conversa em torno […]

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3. LLANSOL, Maria Gabriela. Carta ao legente. O fio de água do texto. 2011. Disponível em: < https://fiodeaguadotexto. wordpress.com/2011/06/07/cartaao-legente-2/>. Acesso em: 02 nov. 2015.


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ficaram muito tocados, pensando porque tinham recebido essa crítica. Eles nem sabiam, nem conheciam ainda Roland Barthes. Então, queriam entender o porquê daquela pecha de bartesianos. Aí, decidiram estudar Roland Barthes para saber o que era isso, crítica barthesiana. O primeiro projeto de iniciação científica deles foi sobre Roland Barthes, por causa da crítica que eles receberam desse professor. E são, justamente, esses dois, mais Cristiano [Florentino], que Llansol cita naquele texto “O sonho de que temos a linguagem”. Uma vez, eles mandaram uns trabalhos para ela e ela os respondeu nesse texto, dizendo: “Só posso dizer que são textos fortes, os deles abertos ao meu. Como não abrir o meu texto ao deles?”. E aí, ela começa a citar a prova do Sérgio… Quer dizer, uma escritora, como Maria Gabriela Llansol, tinha recebido dos alunos trabalhos que nem eram sobre ela, porque o do Paulinho era sobre Cesário Verde; o do Sérgio era sobre Amar um cão, mas misturado com Lacan e não sei mais o quê; tinha trabalhos “acadêmicos”, digamos… E tinha se aberto aos textos deles, reconhecendo, neles, textos de escritores. Logo em seguida eu pensei: “Essa Llansol tem a ver com Roland Barthes”.

sua relação com Roland Barthes. E ela falou: “Ele é meu livro de cabeceira”. Eu nem sabia que ela ia responder isso, mas eu intuí que tinha alguma coisa nela que tinha a ver com Roland Barthes. Depois que eu fiquei sabendo, então, que a única atividade que Llansol teve, além de ser escritora, de escrever a vida inteira, foi coordenar uma escola e que ela, mais do que isso, relaciona o início da textualidade, que é O livro das comunidades, à experiência da École de la rue de Namur e ao fato de ter trazido uma criança autista à fala, percebi que ela junta, na textualidade – isso é uma tese que ainda deve ser feita sobre Llansol, não é? – a educação – a pedagogia, vamos pensar assim –, a psicanálise – pois ela trouxe uma criança autista à fala, e ela diz: “Quando eu conduzi uma psicanálise” – e a textualidade.

Como Llansol nunca o citou, eu acho, em algum texto dela, consegui com que a Rebecca [Cortez de Paula Carneiro], minha orientanda nessa época, fizesse uma entrevista com Llansol e uma das perguntas que a gente elaborou era sobre

Então, a textualidade tem a ver com isso. Isso é sensacional! E eu acho que Barthes fez isso na carreira dele. Ele é esse sujeito impuro… Esse sujeito incerto… Que escrevia sobre moda… Que escrevia para jornal… Que ficava falando dos gostos peculiares dele por uma caneta, por um papel, por um não sei quê… Quer dizer, isso eu também acho genial, porque ele desierarquizou os temas da crítica literária. Llansol também tem a ver com isso. Ela é aquela que escreve até sobre as hemorroidas, não é? A vaca louca… Isso entra no texto dela e tal… Então Barthes desierarquiza tudo. Ele pode ser tudo isso, mas uma coisa que eu acho que ele fez,

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elevando o objeto à dignidade da coisa, foi juntar a prática do professor à prática do escritor e à prática psicanalítica, pois mesmo ele, não sendo um psicanalista, foi completamente atravessado pela psicanálise. E ele leva a psicanálise para os textos dele.

Shoshana Felman vai ler o desejo do analista, de Lacan, completamente ligado ao desejo de transmissão. Lacan, depois de expulso, depois de ser sabotado pelos amigos etc., não podia mais ser analista didata. Ele continuou dando os seminários dele. Isso ele não pára de fazer. Mesmo já velho, já no final da vida, não pára de fazer essa coisa do seminário público…

JR: VOCÊ SABE SE ELE FEZ ANÁLISE?

LCB: Sei. Ele procurou análise com Lacan – isso está em

JR: … DA TRANSMISSÃO…

alguma biografia do Lacan ou dele, já não me lembro mais – e Lacan recusou, o que eu acho super curioso, dizendo assim: “Continue escrevendo as suas coisas que está ótimo”. Não acho que ele recusou porque Barthes era um escritor, porque Lacan atendia outros escritores… Sollers, por exemplo. Ele recusou o Barthes. Mas parece que eu li, se não me engano, em uma dessas biografias, não sei se é a da Leda Tenório, que ele foi fazer análise, então, com outra pessoa.

LCB: Isso. Vinha quem quisesse, entrava quem quisesse e

De fato, ele é completamente atravessado pela experiência do inconsciente. O texto dele é completamente atravessado por conceitos da psicanálise. O prazer do texto é completamente atravessado… Há horas em que eu acho que ele é quase citação do “Além do princípio do prazer”, do Freud… O conceito de Real, como você lembrou… A Aula, para mim é isso… E se a gente for pensar, na época do Barthes, quem era o sujeito que estava “dando aula” para multidões em Paris? Era Lacan.

JR: EU ESTAVA PENSANDO… QUANDO VOCÊ REÚNE A FIGURA DO PROFESSOR, DO ESCRITOR E DO PSICANALISTA, REMETE-ME À NOÇÃO BARTHESIANA DE BIOGRAFEMA, MUITO TRABALHADA POR VOCÊ, E TAMBÉM ÀS PRÁTICAS DA LETRA, QUE VOCÊ JÁ FAZ HÁ MUITO TEMPO E QUE, DE ALGUMA MANEIRA, TOCAM ESSES TRÊS LUGARES…

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lá estava Lacan. Dizem que era uma coisa insuportável, disse Shoshana, porque todo mundo fumava, nessa época, dentro do ambiente… Tinha que chegar umas quatro horas antes para ter uma cadeira para sentar. E Lacan com aquela multidão… Ele adorava. Ficava pensando alto… Falando aquelas coisas… Barthes também, não é? Multidões iam assistir ao Barthes.

LCB: A prática da letra, que você me acompanhou por muito

tempo e acompanha até hoje, não é aula, mas é aula também, em certo sentido, se a gente entende “aula” no sentido lá da

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“Leçon”, de Barthes. Nesse caso, você não está ensinando nada para o sujeito, mas se a gente entende que também em uma aula não se ensina nada, a única coisa que Barthes te ensina é o que todos os grandes mestres ensinam… Um grande pintor, um grande escritor ensinam a você a encontrar uma coisa tão certa quanto esta. Leyla Perrone fala muito lindo sobre isso naquele texto “Lição de casa”, no fim da Aula. Ela diz assim: “Ninguém ensina nada para o outro… Você não pode mais fazer como Barthes… Porque viraria uma idiotice fazer como Roland Barthes… Encontra a sua coisa tão certa quanto esta.” Isso não é a lição do Lacan? “Se vocês quiserem sejam lacanianos, quanto a mim sou freudiano. Sejam como eu, não me imitem.” Porque o que se transmite é um estilo. É a única coisa que se transmite. JR: A GENTE PODERIA PENSAR QUE, NESSE TIPO DE AULA, O QUE TAMBÉM SE TRANSMITE É UM BIOGRAFEMA?

LCB: É. Vamos pensar: o que é um estilo? É um biografema,

a única coisa que se transmite… Um, dois, três… E o mais legal é isto: o biografema, de quem é? A quem pertence um biografema?

JR: ISSO ERA UMA OUTRA PERGUNTA…

LCB: Vamos pensar na palavra que ele cria: bio, vida, e grafe-

ma, letra. O biografema é: a letra de uma vida. Mas, pensando em uma vida, no sentido de Deleuze, naquele texto4 que

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você e o Érick [Gontijo Costa] traduziram, o que é uma vida, senão uma imanência pura? Pode-se falar de “uma vida” em um sujeito só no momento do moribundo. Nesse momento, fala-se de uma vida. Ela é a mais absoluta singularidade e a mais absoluta impessoalidade. Eu acho que é isso que acontece, quando um sujeito consegue ser um professor como Roland Barthes. Imagina aquela aula cheia de digressões, cheia de biografemas… Ele conta do Foucault… Conta que é um sujeito impuro… Incerto… Agradece pela alegria, pois a honra pode ser imerecida, mas a alegria nunca o é… Quer dizer, ele está falando um monte de coisas dele, entregando um monte de biografemas para gente, mas esses biografemas só serão biografemas, de fato, se aquele ouvinte, ou, no caso, o leitor que estiver lendo aquele texto, pescar aquilo. Os biografemas não são como cinzas lançadas ao vento que têm que tocar um corpo futuro fadado à mesma dispersão? Então, se não tocar o corpo daquele aluno, nada se deu, não é? E, para que toque o corpo daquele aluno, deve haver alguma coisa nele que recolha o biografema. Porque o biografema tem a ver com o legente5, João. O legente, o legere, é aquele que colhe, “alguém que colhe a flor que falta para que se acalme a minha perturbação pessoal”, escreve Llansol na Carta ao legente. Então, é aquele que colhe. E você vai colher um biografema, o fulano de tal colhe outro, e tem gente que não vai colher nenhum. Ele só se dá na colheita (risos).

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5. Forma que a escritora Maria Gabriela Llansol chama o “leitor” em sua obra.

4. Lucia Castello Branco se refere ao texto, de Deleuze, “Imanência: uma vida”.


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E a colheita só se dá, se há um legente ou um espectador… Alguém que receba aquilo ali. JR: POR ISSO É TÃO INÚTIL AQUELA POLÊMICA COM RELAÇÃO AOS DIREITOS AUTORAIS DAS BIOGRAFIAS… PORQUE, NELA, TEM-SE A IDEIA DE QUE A VIDA PERTENCE A ALGUÉM…

LCB: Eu me lembro de que uma vez, discutindo isso com o

Eduardo Vidal, ele falou assim: “Como alguém pode pensar que a vida lhe pertence?”. E eu, rapidamente, falei: “E como alguém pode pensar, então, que a escrita lhe pertence?” Pensando aí na vida escrita… JR: E ESSA, FAZENDO UMA DIGRESSÃO, FOI A QUESTÃO DA SUA ALUNA ESTA MANHÃ. E ELA TEM A VER TAMBÉM COM OUTRA COISA. EU LI MUITO ROLAND BARTHES COM VOCÊ, EM AULAS SUAS, E EU ME LEMBRO DE QUE, NA ÚLTIMA DISCIPLINA SUA QUE EU SEGUI, NÓS LEMOS MUITO BARTHES, SOBRETUDO, A PREPARAÇÃO DO ROMANCE, SEU ÚLTIMO SEMINÁRIO. NESSA “AULA”, DIGAMOS ASSIM, BARTHES, PARA FALAR DA PREPARAÇÃO DO ROMANCE, COMEÇA NA POESIA, MAIS ESPECIFICAMENTE, NO HAI-KAI. NESSE SEMINÁRIO, SE NÃO ME ENGANO, ELE TAMBÉM FALA QUE O MEIO DA VIDA DE ALGUÉM NÃO É CRONOLÓGICO, MAS UM PONTO EM QUE SE ENCONTRA COM UMA ESCRITA…

LCB: … Ou se muda de escrita. JR: SIM. VOCÊ PODERIA COMENTAR UM POUCO SOBRE ESSA TRANSPOSIÇÃO DO POEMA PARA A NARRATIVA? SE HÁ, AÍ, DE

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FATO UMA TRANSPOSIÇÃO… E, SE É UMA ESCRITA O QUE SE ENCONTRA NO MEIO DA VIDA DE UM SUJEITO, NÃO É ESSE MEIO DA VIDA O PRÓPRIO PONTO DA POESIA?

LCB: Essa é uma pergunta super difícil, mas eu me lembro de

um momento nesse seminário, no final do volume um, que pode nos levar para próximo dela. Toda discussão, inclusive dos críticos de Barthes, os biógrafos de Barthes, os amigos de Barthes, era esta: o grande desejo de Barthes era escrever um romance. O grande emblema do romance, para ele, é Proust. Então, digamos que Barthes quisesse ser um Proust quando crescesse. JR: HÁ, INCLUSIVE, AQUELE TEXTO “DURANTE MUITO TEMPO FUI DORMIR CEDO”.

LCB: Exatamente. Onde ele conta que o chamaram para

falar sobre Proust e ele diz que falará sobre “Proust e eu”. E o que eu acho que ele diz disso? Ele diz que o desejo era escrever um romance. Aí, ele resolveu dar um seminário que era o seu próprio desejo – olha o biografema colocado aí! –, A preparação do romance, ou seja, a preparação do romance dele, Roland Barthes. Contudo, ele nunca, classicamente, escreveu um romance. Há quem diga, e eu concordo, que o romance de Roland Barthes é o Fragmentos de um discurso amoroso. E eu acho que ele concordaria com isso.

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No final do primeiro ano desse curso [A preparação do romance], ele vai batalhando nessa ideia do romance, vai batalhando… vai batalhando… Mas diz assim: “Vamos pensar primeiro na poesia. O que seria a poesia? A poesia é a forma curta, lembra? A forma condensada, a forma do hai-kai que não tem a ver com a inspiração, mas com uma certa contemplação, o esvaziamento do eu etc.” Depois dele ter falado o volume inteiro disso, sei lá quantos meses de aula, ele diz assim: talvez não seja possível passar… Por que a pergunta é esta: “Como passar da forma curta, do poema, à forma longa, do romance?” Ele, então, diz: talvez não seja possível passar da forma curta à forma longa… Talvez, haja aí um impedimento moral… E o impedimento moral é: aceitar a narrativa é aceitar aquela mentira, ou seja, a mentira ficcional que a poesia não aceita. Ele fala isso, João, e é maravilhoso. E esse momento, como você disse, é o meio de uma vida… Nesse seminário, que não chegou ao fim porque Barthes foi atropelado – esse é seu último seminário –, ele começa falando sobre o meio de uma vida e morre mesmo, ali, literalmente. Mas, se nós pensarmos aquele seminário como um todo, pensando que a tarefa de um escritor é sempre mais longa que a sua própria vida, então, o seminário não acabou, ele foi acabado. Aquele momento em que Barthes chega à formulação de que há um impedimento moral na passagem do poema para

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a narrativa, eu diria um impedimento ético, é o meio de uma vida. Ali que é o meio de uma vida, entende? Porque ele podia acabar ali o seminário, dizer que então não dá… Acabou… Eu estou querendo preparar um romance e cheguei à conclusão de que o meu romance vai ser o Fragmentos de um discurso amoroso… Porque eu gosto do fragmento (ele já falou isto em entrevista: “Eu gosto de começar mas eu gosto de terminar também”)… Então, é do fragmento que ele gosta… Começou, terminou, começou, terminou (risos). Entretanto, ele continua, no volume dois, portanto, no outro ano, falando do romance. Nesse momento, aquele seminário é outra coisa. Já não é mais o meu romance, entendeu? É o romance do outro. Aquele que ele não alcançará, porque ele tinha um impedimento ético que o impedia de alcançar isso. Barthes é aquele sujeito que consegue falar isso, o que é fenomenal (e, nesse ponto, ele é um sujeito mais radical que Blanchot), em primeira pessoa. Em primeira pessoa e na radicalidade do je est un autre, do Rimbaud. Mas ele assume essa primeira pessoa como professor, como escritor… Quer dizer, ele não usa, em momento algum, o truque ficcional. JR: ELE CONSEGUE MANTER ESSA DISTÂNCIA…

LCB: “Distante como a palma da mão”6… Ele consegue. E

isso é de uma sutileza, de uma delicadeza, de uma beleza! Eu imagino, por exemplo, que Foucault, um grande filósofo, CASTELLO BRANCO; ROCHA. Barthes, Lucia e eu: conversa em torno […]

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6. LLANSOL, Maria Gabriela. Hölder, de Hölderlin. Lisboa: Colares editora, 1993.


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um grande militante, um grande pensador, mas que não é, necessariamente, um grande escritor, não partilhe dessa delicadeza, porque essa é uma delicadeza de escritor, e Foucault, talvez, não compreendesse isso muito bem.

contemporâneo, entende? Blanchot, de vez em quando, parte para esse grande mistério da ficção, digamos assim. Ele é despojado no Instante da minha morte, mas, por exemplo, no Pena de morte, ele não é tão despojado.

JR: LUCIA, QUANDO VOCÊ FALA SOBRE ESSA DELICADEZA DE UM ESCRITOR COMO BARTHES, QUE SE CONTRAPÕE, EM UMA CERTA MEDIDA, À MILITÂNCIA COBRADA POR UM FOUCAULT, POR EXEMPLO, EU ME LEMBREI DESTAS DUAS PASSAGENS DO LIVRO INCIDENTES: “ABDER – QUER UMA TOALHA LIMPA QUE, POR TEMOR RELIGIOSO DA SUJEIRA, É PRECISO COLOCAR ALI, AO LADO, PARA SE PURIFICAR MAIS TARDE DO AMOR”. E: “ALIWA (BONITO NOME PARA REPETIR INCANSAVELMENTE) GOSTA DE CALÇAS BRANCAS IMACULADAS (NO FIM DA ESTAÇÃO), MAS, EM VISTA DO DESCONFORTO DOS LUGARES, NESSE BRANCO DE LEITE SEMPRE VEIO COLOCAR-SE UMA MANCHA”. A IMPRESSÃO QUE EU TENHO DE BARTHES É QUE ELE ESCREVE NO PONTO DESSAS PEQUENAS MÁCULAS. MÁCULAS DO AMOR, EM UMA TOALHA; MÁCULAS DO PERCURSO DE UM SUJEITO, EM SUAS CALÇAS BRANCAS, COMO O LEITE. NÃO É NECESSÁRIO EXPLICITAR… EXPLICITAR NO SENTIDO DO OBSCENO, QUERO DIZER… BARTHES NÃO É OBSCENO…

JR: NEM NO THOMAS L’OBSCUR…

LCB: Não… nunca… jamais. Nesse ponto, eu acho que ele 7. O livro Maurice Blanchot, organizado por Lucia Castello Branco, Márcio Venício Barbosa e Sérgio Antonio Silva, é resultado das leituras realizadas por esse grupo.

se parece com Blanchot, porque Blanchot também não é. Eu adoro o Blanchot pensador, filósofo, teórico da literatura, mas o Blanchot do récit nem sempre eu o acho tão despojado, digamos assim, quanto Barthes. E olha que nós lemos muito, nós ficamos sete anos lendo Blanchot naquele grupo7. Barthes é despojado e, nesse sentido, ele é mais EM  TESE

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LCB: Nem no Celui qui ne m’accompagnait pas, nem em La folie

du jour, que também é um livro bacana, entende? Há alguma coisa do grande romance, por mais que seja um récit, por mais que ele tenha “emagrecido” isso ao ponto do récit, entendeu? Ele cede um pouco a essa tentação. Barthes não cede.

JR: NESSE PONTO, EU VOU RETOMAR UMA PALAVRA QUE VOCÊ DISSE NO COMEÇO DESTA CONVERSA E QUE ME INQUIETOU UM POUCO. A PALAVRA É “NOBREZA”. BLANCHOT TEM UMA CERTA NOBREZA, UM OUTRO TIPO DE NOBREZA… UMA NOBREZA DO ARTIFICIO…

LCB: … Um artifício muito bem colocado. JR: E BARTHES, NESSE PONTO QUE VOCÊ MARCA COMO UM DESPOJAMENTO, TEM UMA CERTA POBREZA… NÃO É À TOA QUE ELE ERA LIVRO DE CABECEIRA DA LLANSOL…

LCB: Isso… Pobreza… No sentido do despojamento…

E todo mundo que conheceu Barthes, seguiu seus seminários, fala que o que mais comovia nas suas aulas, na

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presença dele, eram duas coisas: o quanto ele era discreto e a delicadeza. Dizem que Barthes era de uma delicadeza impressionante. Quando ele se dirigia ao outro… Quando ele escutava… Isso é muito legal, não é? Pensar que um cara consegue falar para uma pequena multidão nesse ponto. O que não era, absolutamente, o caso de Lacan (risos). Lacan não tem nada de delicado (risos). Ele é engraçado… doido… Mas delicado, não. E Barthes conseguiu manter aquilo tudo no ponto do sujeito discreto e da delicadeza. Isso é muito interessante, não é, João? Eu sempre falo com os alunos, quando vão dar alguma aula e ficam tímidos, você já deve ter ouvido isso, que este é o sentido de uma aula expositiva: quem se expõe é o professor. Se há uma coisa que acontece com o professor, ali, quando ele vai tomando certa intimidade com uma turma, é uma exposição. E ele, Barthes, nunca resvala na exposição… Ele tem uma elegância… E uma delicadeza… Isso é impressionante! E eu acho que o texto dele é isso. Você pega lá o Incidentes, por exemplo. Todo mundo, depois de Roland Barthes par Roland Barthes, esperando que, finalmente, nesse livro de memórias de Barthes, ele contaria tudo. E conta, mas daquele jeito. Não resvala nada. Todo mundo sabe o que ele ia fazer no Marrocos, com quem ele ia encontrar… Mas não resvala. Blanchot também tem isso, mas à custa de um certo mistério que ele cria no próprio texto e também em torno da sua figura. Barthes é sem mistério.

JR: NESSA AURA DE MISTÉRIO QUE ENVOLVE A FIGURA DE BLANCHOT, É COMO SE ELE TIVESSE QUE FAZER MUITO ESFORÇO PARA ISSO… PARA NÃO SE EXPOR.

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LCB: Exatamente. Barthes parece que já tinha esse ponto um

pouco opaco…

JR: QUANDO VOCÊ LEMBRA DE A PREPARAÇÃO DO ROMANCE, DESSA PASSAGEM DO POEMA PARA O ROMANCE, DO IMPEDIMENTO MORAL QUE AÍ RESIDE… IMPEDIMENTO ÉTICO, COMO VOCÊ COLOCA…

LCB: … Se a gente falasse em linguagem llansoliana, diría-

mos da narratividade à textualidade… Não tem como haver essa passagem… Não tem.

JR: É. POR ISSO, AGORA, UMA PERGUNTA SOBRE A LUCIA, EM PONTO DE BIOGRAFEMA. HÁ A SEGUINTE QUESTÃO PARA ROLAND BARTHES: “COMO VIVER JUNTO?”. QUESTÃO LEVANTADA POR ELE E MUITO ATUAL, TENDO EM VISTA O MUNDO QUE NÓS CONSTRUÍMOS…

LCB: Você já leu esse seminário? JR: NÃO LI TODO…

LCB: Eu tenho. Nunca consegui lê-lo inteiro… Engraçado…

Esse seminário me interessa tanto… Ele fala das beguinas! Eu sempre vou nele, mas não consigo acompanhá-lo… Talvez por ele ser muito histórico, muito cheio de dados sobre as experiências de comunidade…

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JR: TALVEZ, PELO FATO DE BARTHES DEMORAR NO PONTO DO FRAGMENTO, DA POESIA, A QUESTÃO “COMO VIVER JUNTO?” SE TORNA MUITO INTERESSANTE…

JR: EU ACHO MESMO QUE ESTE ESPAÇO, PRINCIPALMENTE COM ESTA SALA EM QUE ESTAMOS, CHAMADA (PAUSA)LER, QUE ABRIGARÁ SEMINÁRIOS…

LCB: Demais!

LCB: Esta sala que é dentro e fora da casa…

JR: E ESSA QUESTÃO SE COLOCA AQUI PORQUE VOCÊ COORDENA, JUNTO COMO OUTROS ESCRITORES E PSICANALISTAS, UM ESPAÇO, A CAS’A’SCREVER, OU SEJA, UMA CASA. PORTANTO, TEMOS AÍ VOCÊ E MAIS OUTROS.

JR: ISSO. E TAMBÉM, AGORA, COM O SEU TRABALHO DE ABRIGO, JUNTO À CABRA8 E AO ICORN9, A ESCRITORES EXILADOS… EU ACHO MESMO QUE HÁ UM PONTO, AÍ, ÉTICO, QUE TEM A VER COM A LITERATURA E TAMBÉM COM A PSICANÁLISE, QUE É DE UMA ABERTURA PARA O ENCONTRO. NÃO DÁ PARA FALAR, POR EXEMPLO, QUE A CAS’A’SCREVER É SOMENTE UM CONSULTÓRIO OU SOMENTE UMA ESCOLA…

LCB: E mesmo os outros da casa, não são somente aqueles

que trabalham ali dentro. Você, por exemplo, é um outro da casa. Você não trabalha ali dentro, mas trabalha. Vem aqui, participa de grupos de estudo…

9. Sobre o ICORN, International Cities of Refuge Network, segue o link: http://icorn.org/.

LCB: … E, no entanto, poder ser um pouco disso tudo. JR: COMO UMA CASA É UM POUCO DISSO TUDO.

JR: EXATAMENTE.

LCB: Mas você não mantém a casa… Não ganha dinheiro

LCB: Quando a gente viu o site do Instituto 1710, dirigido

na casa… Nada disso. Mas desde a fundação desta casa, você esteve presente. Pintou parede… (risos). Várias coisas que fizemos aqui, você estava presente… Quer dizer, você faz parte da casa. Você frequenta a casa… Do mesmo jeito que a Lia [Krucken]… Ela estava em Amsterdã e foi ser apresentada ao pessoal do ICORN… “E você, quem é?”… E ela falou assim: “Eu faço parte da Cas’a’screver”. Porque ela faz tanta coisa na cas’a… Você também! Ela fez o site da cas’a, ela fez cartaz da cas’a… Entendeu?

pelo Benjamín Mayer Foulkes, o que mais me interessou foi a chamada que diz assim: uma casa de escrita, psicanálise e cultura não acadêmica. Isso de cultura não acadêmica é bom demais, não é? É cultura não acadêmica nesse sentido do Barthes, entendeu? Uma cultura não acadêmica que não virou academia, mas cursos livres com diploma, reconhecidos pelo governo como faculdade! Aquilo lá é uma faculdade que Benjamín criou, você sabia? Eu não sei bem como é o caminho para isso, mas a Ângela [Castello Branco] e o Giuliano [Tierno], lá em São Paulo, nessa casa que eles abriram, a

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8. Sobre a CABRA, Casas Brasileiras de Refúgio, segue o link: https:// cabrarede.wordpress.com/.

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10. Sobre o Instituto 17, segue o link: http://17edu.org//


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11. Sobre a Casa Tombada, segue o link: http://www.acasatombada. com/.

Casa Tombada11, já receberam uma autorização de uma universidade que tem um nome muito bacana, Universidade das Conchas, para poderem dar o curso que quiserem, naquela casa, e esses cursos são cursos reconhecidos por essa universidade, entendeu? Então, eu fico pensando assim: “Por que não? Por que a gente não pode fundar, aqui, alguma coisa que possa ser, daqui a alguns anos, meio Collège de France?” Nós todos não somos pessoas estudiosas, dedicadas, carregamos piano… não é? Então, por que não? Sábado, nós fizemos o lançamento do livro do Paulo de Andrade e a Sônia Queiroz venho aqui e está querendo dar uma palestra… Daisy Turrer veio e está querendo dar um seminário aqui… Ione de Medeiros disse que quer conhecer a cas’a e colocá-la no VAC [Verão Arte Contemporânea] e eu acho muito legal, porque uma coisa é a universidade e outra é a intervenção na cidade. Porque tem isto também: a casa como uma intervenção na cidade. O que eu acho sensacional. Isso não prejudica os consultórios, porque eles estão lá do outro lado da casa, então esse trabalho continua. Nós vamos conseguir trazer, para a universidade, com a ajuda da Sylvie [Debs], dois refugiados que vão para o Fórum das Letras de Ouro Preto e depois para a Faculdade de Letras da UFMG para um encontro, de um dia, sobre os temas: a escrita, o exílio, a casa. Sylvie me disse que eles ficariam um pouco perdidos em Ouro Preto, porque vão EM  TESE

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ficar quatro dias lá… Eles falarão em suas mesas, mas não falam português… Então, não conseguirão ver quase nada… Ela me disse, então: “Você não quer trazê-los para passear um dia aqui em Belo Horizonte e para eles conhecerem a Cas’a’screver?” Então, nós vamos fazer um dia com a Safaa Fathy e o Girma Fantaye aqui, na Cas’a’screver. Outro plano era trazer o Benjamín [Mayer Foulkes], mas hoje ele me disse que não conseguirá vir a Belo Horizonte, então nós vamos fazer esse encontro na Casa Tombada, em São Paulo. Outro plano, para continuar os seminários que estão acontecendo aqui – eu espero que vocês também continuem – é convidar alguém para abrir esses seminários, para falar a partir do tema “Eu leio assim este texto” e já sei até sobre qual livro será. Adivinha quem é? Eduardo Vidal. JR: E QUAL LIVRO SERÁ?

LCB: Um livro que Paloma Vidal acabou de traduzir chamado

O livro dos divãs, da Tamara Kamenszain, uma escritora argentina. Um livro só de poemas sobre as experiências dela de psicanálise… Dos divãs… As várias análises que ela já fez. Eu já li um livro dela chamado O eco de minha mãe que fala da mãe doente com Alzheimer… E agora ela fez esse Livro dos divãs… Eu queria que Vidal topasse falar sobre esse livro, porque a gente tem pensado muito nisto: o que seria a narrativa acerca da clínica sem ser feita por um analista, mas por outra pessoa,

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no caso, um poeta. Não é legal? Eu acho que isso tem a ver com Barthes, pois ele tinha algo de um deslocamento, porque essa, eu acho, é a palavra mais legal para pensar Barthes. Algum crítico dele, acho que é a Leyla Perrone mesmo, vai dizer que ele ensina a gente a lição do abjurar. Quando você pensa que ele está aqui ele já passou para outro lugar. Não sei se eu chamaria isso de abjurar, porque o abjurar tem algo de um certo desprezo pelo o que já se fez e eu não acho que é isso. Eu chamaria de deslocamento. Primeiro, porque há um movimento do sujeito que escreve e, para ele se deslocar para a sala de aula, por exemplo, já é outro movimento. Depois, você se deslocar de novo para a escrita é outro movimento. Uma coisa é a universidade, outra coisa é o Collège de France, não é? São deslocamentos. Deslocamentos que, por exemplo, Blanchot, talvez, por sua própria condição física, ele era muito doente, não conseguiu muito fazer. Blanchot não conseguiria, eu acho, fazer esses deslocamentos.

a fazê-los, quando é reconhecida como escritora, pois ela não se nega a esse lugar, e vai, faz discursos, depois faz os colóquios, participa dos colóquios, pensa nos colóquios, escolhe como as coisas iam ser feitas… Isso tem a ver com um certo estar no mundo. E talvez com isso que você fala da comunidade. Se for impossível fazer a comunidade, o desejo de comunidade, de algum jeito, está aí. Mesmo que ela seja impossível, isso não nos impede de desejá-la. A comunidade é sempre a comunidade por vir.

JR: A LLANSOL TAMBÉM FEZ, NÃO É?

JR: … DE UMA COMUNIDADE QUE NÃO É PAUTADA NAS SEMELHANÇAS…

LCB: A Llansol também fez. Ela saiu de Portugal, foi para

Bélgica, viveu vinte anos lá, aprendeu outra língua, fundou uma escola, essa escola também se deslocou para outro lugar, depois ela volta para Portugal. Digamos que, com toda reclusão da Llansol, ela conseguiu fazer esses deslocamentos. E, depois, ela fez muitos no final da vida. Ela não só começa

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JR: E O MAIS INTERESSANTE É COMO ESSA CONVERSA FOI TOMANDO O RUMO PARA O LUGAR DO PROFESSOR E EU ACHEI ISSO MUITO BOM. VOCÊ DISSE, LEMBRANDO DO PETER PAL-PELBART, QUE A FUNÇÃO DO PROFESSOR É FAZER O ALUNO SE RECONCILIAR COM SUA PRÓPRIA SOLIDÃO, E ESSE É O MOVIMENTO DE UMA COMUNIDADE…

LCB: … Esse é o movimento de uma psicanálise…

LCB: … Nas simbioses… JR: … HÁ TAMBÉM AÍ UM DESLOCAMENTO DO PRÓPRIO DISCURSO ACADÊMICO… POR ISSO, TALVEZ, VOCÊ CITE ESSAS DIFICULDADES DOS DESLOCAMENTOS DO PROFESSOR PARA O ESCRITOR E VICE-VERSA…

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LCB: … Tudo isso dá muito trabalho… Dá muito trabalho

construir isso. Eu entrei para a Faculdade de Letras, brigando com a Universidade, com mandato de segurança etc. Nunca achei que não valeu a pena ter feito isso. Eu podia ter pensado: “Poxa, eu briguei por esse lugar e o que estou fazendo aqui?” Mas, não. Sempre achei que, quando eu pudesse me aposentar, eu me aposentaria no dia seguinte e não ia querer saber de dar aula. Eu posso até me aposentar rápido, mas sempre vou querer saber de dar aula. Então, isso já é uma coisa impressionante para quem chorava quando ia dar aula, não é? Para quem achava que aquilo ali não podia ser o seu destino… E muito do que eu conquistei foi exatamente a universidade que me deu. Por isso que eu fico muito indignada quando eu ouço coisas do tipo: “A universidade, porque a universidade, porque a universidade!” Mesmo nessa rigidez que é a academia, ou talvez pela rigidez mesmo que é a academia, ela possibilita os seus deslocamentos. A universidade pública, João. Eu não acredito em nenhuma outra mais. Não acho que possa haver nenhuma outra. Hoje em dia, eu vejo uma certa resistência em se tornar universitário. Há o discurso universitário da psicanálise… Há essa visão de que se você se tornou universitário, você se tornou claro, sem poesia… E, pela minha experiência de trinta anos na universidade, sempre achei que ela, cada vez mais eu acho isso, é muito menos o universal e mais o universo. A universidade pública. Tem EM  TESE

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de tudo dentro da universidade. E, se tem uma coisa que a universidade sabe reconhecer, com toda a dificuldade, são as pessoas geniais (risos). Porque tem gente muito genial dentro da universidade. Senão, ela não existiria, entendeu? Seriam só os medíocres, o saber acadêmico, aquela espécie de bestialização e normatização. Mas não tem só isso. Tem isso também, porque ela é tão diferente que é diferente de si mesma. Mas tem as figuras muito geniais, até no sentido mais de loucas, que a universidade, com todo o seu esquema normatizante, não consegue barrar que entrem em um concurso. Por que será? Então, mesmo Barthes não sendo um universitário, no sentido de uma formação, eu não acho que ele desprezaria a universidade. Tem alguma coisa que a universidade te dá, João, que só ela consegue te dar. Isso é muito doido também… E o que eu acho mais admirável é que Barthes, não sendo um universitário de formação, tem isso. Esse rigor, essa precisão, essa pesquisa… Aquele negócio do caderno, João, que ele ia dar aula… Todo lindo… O manuscrito dele… Porque ele era também um artista plástico, vamos dizer… Sabe essa coisa do caderno do professor? Hoje eu faço isso com o maior apreço… Para qualquer curso que eu vou dar e acho importante… Eu faço um caderno… Vou bordando… Mas é preciso chegar nesse nível de sutileza para sacar o que é isso.

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JR: E PARA SACAR TAMBÉM UMA COISA QUE EU ACHO DIFÍCIL: ESSE PONTO IRRECONCILIÁVEL QUE É A UNIVERSIDADE. QUANDO VOCÊ FALA DA UNIVERSIDADE COMO O UNIVERSO, EU ENTENDO QUE HÁ ALGO AÍ EM EXPANSÃO, JÁ QUE O UNIVERSO ESTÁ EM EXPANSÃO, MAS, NESSE MOVIMENTO, TAMBÉM HÁ UM ENRIJECIMENTO… ENRIJECIMENTO E ABERTURA… ESSAS DUAS COISAS QUE NÃO SE RECONCILIAM, TEORICAMENTE, MAS VIVEM EM TENSÃO.

LCB: Por exemplo: se a gente conseguir, de fato, fazer com

que a primeira casa de escritor refugiado, no Brasil, ligada a essa ONG que é o ICORN, que tem dez anos, quarenta e tantas casas espalhadas pelo mundo, todas casas-refúgio, em cidades refúgio… Se a gente conseguir que a cidade-refúgio, no Brasil, não seja exatamente a cidade-refúgio, mas a universidade-refúgio… Isso não é de um avanço impressionante para a universidade? Porque, se isso der certo aqui em Belo Horizonte, na UFMG, isso vai virar modelo para o Brasil. Então, no Brasil, que é muito grande, não serão, exatamente, as prefeituras as cidades-refúgio, mas as universidades. Tive uma reunião com a Graciela [diretora da Faculdade de letras da UFMG], e estava lá a Tereza Virgínia, coordenadora do CENEX. Tereza, por causa da coordenação do CENEX e porque o seu bairro foi invadido por refugiados sírios (o mesmo bairro em que um padre alojou, dentro da sua casa, quarenta refugiados), descobriu, frequentando esse grupo, que há ali professores, médicos… Sabe o que ela vai fazer? Vai abrir um edital para EM  TESE

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esse pessoal poder dar aula de árabe no CENEX, da Letras. Nesse dia, eu fiquei emocionada com isso. Descobri que há uma portaria da UFMG para receber alunos refugiados e, portanto, ela é uma das universidades, no Brasil, que dá abrigo a esses alunos. Junto com esse discurso de que a universidade virou uma coisa careta… De que todos nós temos que ficar prestando conta para a CAPES… ao CNPQ… Quando vem esse discurso, junto com ele também vem isto: “Então é melhor privatizar…” Porque isso tudo é a universidade pública. Então vamos pensar de outro jeito… Vamos acabar com as bolsas, se ninguém quer prestar conta de nada… E, na hora em que isso acontecer, acabou a universidade. Você tem essa experiência de dar aula na rede privada e sabe o que é isso… Pergunta à Janaina [Rocha de Paula] que dá aula há anos em faculdade particular… Ela está dando aula, agora, na Letras, e está rindo daqui até aqui… Ela falou, ontem, que saiu da aula tão emocionada que falou assim: “Já sei. Eu vou casar com a Letras. Não vou querer mais casar com ninguém, eu quero é casar com a Letras. Essa que vai ser a minha vida” (risos). Ela está assim… dando aula, numa alegria! Eu acho que ela está vendo a diferença, pois ela já dá aula há anos. Ela começou como professora primária, deu aula em escola particular, em cursos de formação de psicanálise…

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JR: EU ACHO MESMO QUE O ÚNICO LUGAR, NO CAMPO DA EDUCAÇÃO, EM QUE SE PODE MUDAR ALGUMA COISA É AQUI, NA ESCOLA PÚBLICA.

LCB: Porque no resto você vai só repetir o padrão da aura

mediocritas, como diria o Sebastião Nunes, da classe média, de uma certa aristocracia, dependendo da escola. Então, eu fico maravilhada de pensar que um cara como Barthes, que não é rigorosamente um universitário, mas que é rigorosamente um pesquisador, consiga ter se tornado o professor e o escritor que ele é. E o leitor, não é, João? Mais ainda do que crítico, o leitor que ele é. Penso que, se o que reúne isso tudo do Barthes, não é esse significante que ele abandonou, porque ele precisava abandonar, para mostrar que a literatura não está só na literatura, ela está naquilo que a Shoshana [Felman] chama de “coisa literária”, que extrapola a literatura e muito, mas ao qual ele retorna, justo no momento em que ele vai dar aula no Collège de France… Era importante ele erigir à dignidade da coisa esse objeto, que é a literatura. Por isso, eu acho maravilhoso pensar na Aula como um livro inaugural… Ou talvez final.

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O LUGAR DE ROLAND BARTHES: ENTREVISTA COM ÂNGELA SENRA, ENEIDA MARIA DE SOUZA E VERA CASA NOVA

Ângela Senra Eneida Maria de Souza Vera Casa Nova Entrevista por: José Antônio Orlando* 1. Fonte: Roland Barthes, Flammarion, 1990.

FRAGMENTOS DE UMA FOTOBIOGRAFIA1

Os escritos e os ensinamentos de Roland Barthes (19151980) percorrem um dos caminhos mais originais da crítica e da teoria da cultura contemporâneas. Em sua trajetória biográfica e teórica, A câmara clara (La chambre claire, 1980), o último livro que publicou em vida, representa, de uma só vez, um momento de síntese e de ruptura – no que se refere às principais questões e conceitos desenvolvidos pelo autor em busca de uma teoria sobre a linguagem específica dos signos não-verbais. Considerado por muitos como o mais autobiográfico de todos os livros que Barthes publicou – e, talvez, também o mais filosófico – A câmara clara apresenta um discurso fragmentado, francamente subjetivo e não linear, a meio-fio entre o ensaio e o romance. Relato afetivo, pontuado

* http://semioticas1.blogspot.com.br José Antônio Orlando é jornalista, professor universitário, bacharel em Comunicação Social pela UFJF, mestre pela Faculdade de Letras da UFMG e autor do blog Semióticas.

de metalinguagem sobre a pesquisa e o método, mas longe de estabelecer uma metodologia reconfortante, esse livro, talvez mais do que todos os outros publicados, merece por certo o adjetivo “inquietante”. As questões e conceitos elaborados por Barthes fundamentam esta seleção de imagens biográficas sobre sua trajetória.

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FIGURA 1 Álbum de Família Roland Barthes aos 8 anos, em 1923, no colo de sua mãe, Henriette Barthes, fotografados em frente à casa da família em CherbourgOcteville, região Norte da França.

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FIGURA 2 Liceu Montaigne Roland Barthes aos 15 anos, em 1930, quando era estudante do Liceu Montaigne, em Paris. É no liceu que Barthes descobre o gosto pelos dicionários e pela etimologia.

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FIGURA 3 Sanatório de Saint-Hilaire-du-Touvet Roland Barthes aos 27 anos, em 1942, quando esteve internado no sanatório estudantil de Saint-Hilairedu-Touvet para tratamento de tuberculose. Na revista Existences, editada pelos alunos e professores do sanatório, Barthes publica seus primeiros textos.

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FIGURA 4 Alexandria, Egito Roland Barthes em 1950, aos 35 anos, durante a temporada em que trabalhou como professor em Alexandria, no Egito, onde também concluiu as pesquisas e rascunhos do que seria seu primeiro livro publicado, O grau zero da escritura (Le degré zéro de l’écriture, 1953).

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FIGURA 5 Barthes por Cartier-Bresson Roland Barthes fotografado por Henri Cartier-Bresson em sua casa, em Paris, em 1963 – ano em que publica um de seus livros que geraram grandes polêmicas, Sobre Racine (Sur Racine).

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FIGURA 6 Barthes no Marrocos Roland Barthes fotografado no Marrocos, em 1969, quando passou uma temporada naquele país como professor da Faculdade de Letras de Rabat. As anotações de Barthes sobre a temporada no Marrocos dariam origem ao livro Incidentes (Incidents, 1987).

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FIGURA 7 Na China com Kristeva Roland Barthes com Julia Kristeva durante a viagem de uma delegação francesa à China, em 1974. Da delegação, além de Barthes e Kristeva, também participaram Philippe Sollers, Marcelin Pleynet e François Wahl. As anotações de Barthes sobre a viagem foram publicadas no livro Cadernos da viagem à China (Carnets du voyage en Chine, 2009).

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FIGURA 8 Aula no Collège de France Roland Barthes em 7 de janeiro de 1977, durante sua aula inaugural da cátedra de Semiologia Literária no Collège de France, posteriormente publicada no livro Aula (Leçon, 1978).

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FIGURA 9 A última fotografia Roland Barthes em sua última fotografia, em 25 de fevereiro de 1980. Barthes enviou os originais para a publicação de A câmara clara e seguiu a caminho do apartamento de Philippe Serre, na rua Blancs-Manteaux, no Marais, em Paris, onde participaria de um almoço junto com outros intelectuais e o futuro presidente da França, François Miterrand. Depois do almoço, quando retornava para sua casa, Barthes foi atropelado ao atravessar a rua des Écoles. Foi hospitalizado, mas morreria de complicações decorrentes do acidente, exatamente um mês depois, em 26 de março. Estava com 64 anos.

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O LUGAR DE ROLAND BARTHES: ENTREVISTA COM ÂNGELA SENRA, ENEIDA MARIA DE SOUZA E VERA CASA NOVA

Mais de três décadas depois de sua morte, as homenagens ao centenário de nascimento de Roland Barthes confirmam sua importância inquestionável como um dos principais pensadores de nossa época e um dos nomes mais influentes de sua geração. Barthes – o professor com “p” maiúsculo que postulou uma “ciência dos signos” – sempre erudito, sedutor, instigante e inquietante, surge nas mais de seis mil páginas de sua “Obra Completa” como um autor de difícil classificação e um “sujeito impuro”, na sua própria autodefinição. Na falta de um rótulo melhor, ele ainda é, quase sempre, chamado de “crítico” – mas talvez mereça ser nomeado, de forma mais gloriosa, como um grande “escritor”: um escritor disfarçado de pensador. O escritor Roland Barthes não busca a diferença entre verdade e aparência. Muito pelo contrário. Para ele, tudo no mundo é aparência, tudo é linguagem e superfície: tudo é texto, inclusive o não-verbal, o pictórico, os afetos, passíveis de interpretações plurais e complementares – como ele próprio argumentou, desde a década de 1950, em suas abordagens de intérprete original da cultura de massas, das instituições literárias, das ideologias e dos mais diversos sistemas de signos codificados na vida cotidiana.

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“Se é verdade que, por longo tempo, quis inscrever meu trabalho no campo da ciência literária, lexicológica ou sociológica” – diz Barthes em sua magistral aula inaugural em 1977, no Collège de France – “devo reconhecer que produzi tão somente ensaios, gênero incerto onde a escritura rivaliza com a análise”. A teoria, sutil e original, que emerge dos ensaios de Barthes, com a permanência de sua presença e de sua influência na atualidade, é destacada nesta entrevista com três das professoras que têm importância fundamental como precursoras dos estudos sobre ele na UFMG: Ângela Senra, Eneida Maria de Souza e Vera Casa Nova. * José Antônio Orlando: Escritor, professor, pensador, ensaísta, crítico da literatura, da linguagem, da moda, da mídia, da arte, teórico da semiótica, da semiologia, da cultura? Existencialista, marxista, estruturalista, moderno, pós-moderno? Como podemos definir, hoje, o papel e o lugar de Roland Barthes? Ângela Senra: Fui aluna de Barthes na Escola Prática dos Altos Estudos, em Paris. Assisti aos seminários “Dez anos de Semiologia. Estudos sobre a política e a sociedade, de Bertold Brecht” (1971/1972). Descobrimos, com Barthes, um Brecht no processo permanente de invenção: ele reinventa citações, chega ao inter-texto. Aos deslocamentos. Uma tarde, antes de

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começar a leitura feita por Brecht de um discurso nazista de Hess, Barthes nos conta, por exemplo, que, no campo marxista, o discurso de Brecht, nunca é um discurso de pregador. Roland Barthes é o intelectual, o professor – “desconfiado”. Aquele que questiona os mecanismos do poder, subverte as diferentes linguagens. Barthes é o intelectual subversivo, o professor formador de outros intelectuais (situando os imaginários da relação didática). É o homem sóbrio, elegante. Cortês. Polidez nas palavras, nos gestos. Voz baixa. Tranquilidade na fala. Continuei, continuo lendo Barthes. Minha leitura é a leitura do gozo, das imaginações e das fricções – Barthes ensaísta. Fragmentos de um discurso amoroso – ideograma de faltas e de falhas. Barthes romancista?

há definições para Barthes. Com certeza ele não gostaria de ser de alguma forma rotulado, pois com todas essa funções que você enumerou, ele só poderia ser esse sujeito plural a que me referi anteriormente. Cito ele mesmo: “Eu sou eu mesmo meu próprio símbolo. Eu sou a história que me acontece: uma roda livre na linguagem... Je n’ai rien à quoi me comparer... inumeráveis são as narrativas do mundo...” Sua função foi e será, para quem aprendeu a semiologia barthesiana, a desconstrução dos saberes e seus textos.

Eneida Maria de Souza: É por demais notória a importância de Roland Barthes para a crítica literária e cultural. Sua atuação em vários campos do saber, indo da crítica literária às artes plásticas, não cessa de ser reatualizada pelos novos estudiosos nas academias e em pesquisas desvinculadas dos saberes institucionalizados. Com a publicação de textos inéditos, como diários e aulas ministradas no Collège de France, tem-se a leitura renovada de seu legado. É preciso separar as diversas fases do intelectual e saber como lidar com as transformações elaboradas por ele na crítica.

Ângela Senra: Voltando aos seminários de 1971-1972, Barthes fala que a obra de Brecht elabora uma prática do abalo – uma arte crítica que fissura a crosta das linguagens; uma arte épica que descontinua os tecidos das palavras, distancia a representação sem anulá-la. Barthes propõe, então, que, em se tratando de Brecht, diga-se Sismologia e não Semiologia. Eu me pergunto qual é o lugar desse “sismólogo” no meu mundo. O estudo da literatura francesa desde criança foi fundamental para minha leitura da obra de Barthes. Sua postura crítica, seu olhar sobre diferentes textos, as linguagens diversas, os diferentes traços e sinais foram decisivos para minha formação. O texto do saber me interessa

Vera Casa Nova: Plural por excelência. Esse o papel de Roland Barthes, ontem, hoje e sempre, sem modismos teóricos. Não EM  TESE

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QUANDO E QUAIS FORAM SUAS EXPERIÊNCIAS COM A DESCOBERTA DAS IDEIAS PLURAIS E DAS GALÁXIAS DE SIGNIFICANTES QUE A OBRA DE BARTHES REPRESENTA?

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sempre. Nunca sem sabor. Assumi, com algum preço, meu texto de afeto (também). Eneida Maria de Souza: Desde os anos 1960 a obra estruturalista do crítico foi lida e analisada na Faculdade de Letras da UFMG, seja por intermédio de Maria Luiza Ramos, professora de Teoria da Literatura e grande incentivadora de leituras estrangeiras, seja por iniciativa própria, quando Marília Cardoso e eu iniciamos a pesquisa da análise estruturalista, com a ajuda dos ensaios sobre a narrativa de Barthes e de outros, como Todorov e Kristeva. A leitura se realizava sempre em língua francesa, pois as traduções vieram gradativamente e contávamos com o conhecimento da língua para entendermos melhor os textos. Hoje a prática da tradução entre nós facilitou muito. Com a Análise estrutural da narrativa conseguimos penetrar no mundo complicado e muitas vezes fascinante de novas abordagens e da complexidade das teorias sobre o estruturalismo. As portas foram abertas e com isso o interesse por novas descobertas persiste até hoje.

AS PRIMEIRAS EDIÇÕES DOS LIVROS DE BARTHES NO BRASIL DATAM DE 1970 – COM A PUBLICAÇÃO DE CRÍTICA E VERDADE PELA PERSPECTIVA, DE FATO UMA COLETÂNEA DE ENSAIOS QUE BARTHES REUNIU EM DOIS LIVROS, ESSAIS CRITIQUES (1964) E CRITIQUE ET VERITÉ (1966) – E DE 1971, COM ELEMENTOS DE SEMIOLOGIA, PUBLICADO PELA CULTRIX, QUASE DUAS DÉCADAS DEPOIS DO PRIMEIRO LIVRO DE BARTHES, LE DEGRÉ ZÉRO DE L’ECRITURE, PUBLICADO NA FRANÇA EM 1953. A RECEPÇÃO DE BARTHES FOI TARDIA NO BRASIL?

Ângela Senra: Sim, foi tardia. Na minha opinião, na década de 1960 e mesmo nos primeiros anos de 1970, Barthes ainda “não cabia” no Brasil. O ambiente intelectual era bastante conservador. O golpe militar de 1964 intensificou a linha pétrea de pensamento. Havia alguns intelectuais “à esquerda” mas, eles também, eram dogmáticos. Barthes foi chegando devagar, com outros pensadores que participaram da efervescência cultural francesa de 1968, 1970... Foucault, Deleuze, Guattari, Lacan, Derrida, Blanchot: esses intelectuais deram importante contribuição para a cultura brasileira moderna.

Vera Casa Nova: Minhas experiências se iniciam com um curso ministrado pela professora Dirce Cortes Riedel, em 1968, no Rio de Janeiro, na antiga UEG (hoje UERJ). A partir daí meu olhar sobre o objeto artístico, desde a literatura até a música, a cultura, as mídias, enfim tudo onde Barthes se introduziu, me fizeram e ainda fazem me inquietar. Ele me ensina, a cada vez que o leio, a ser um sujeito incerto.

Eneida Maria de Souza: Foi tardia em termos de tradução, mas muitos de nós já líamos seus textos, comprados na Livraria Leonardo da Vinci, no Rio de Janeiro, principalmente quando para lá fui cursar o Mestrado na PUC. Na realidade, este curso me fez ler menos Barthes, pelo interesse em Lévi-Strauss e na antropologia, mas a retomada de sua obra foi feita quando vou para Paris para o Doutorado, em 1978. A partir daí o contato com sua obra foi mais intenso, com as publicações de A câmara

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clara, de artigos escritos no Nouvel observateur e na sua atenção mais centrada nas disciplinas afins da literatura, como o cinema e a fotografia. Assisti a várias aulas no Collège de France ministradas por ele, as quais me fizeram conviver com sua maneira magistral de proferir conferências. No segundo tempo do curso havia sempre um convidado a falar, entre eles Gilles Deleuze, Octave Manonni, entre outros. Era um espetáculo, assistido pelos estudantes franceses e estrangeiros, entre eles quem passava por Paris por tempo curto.

bastante restrita). Entre 2000 e 2008, participando de bancas de mestrado e doutorado, encontrei excelentes trabalhos com influência barthesiana. Textos acadêmicos de saber e de sabor, ensaios de crítica criativa que acrescentaram reflexões sérias e informações importantes para meus estudos.

Ângela Senra: Posso falar com relação ao Brasil, no campo da crítica e da pesquisa acadêmicas (mesmo assim, de forma

Eneida Maria de Souza: Hoje seu legado é mais do que comprovado. Os estudos de memorialismo, autobiografia, autoficção e, principalmente, de ensaio receberam um impulso muito grande com a reviravolta realizada a partir da década de 1970, com o livro O prazer do texto, um convite à leitura prazerosa e ausente de prisões conceituais, permitindo à crítica se desvincular do seu aspecto fechado e acadêmico. Não resta dúvida, porém, que um de seus textos mais discutidos e polêmicos, publicado em 1968, “A morte do autor”, tenha sido motivo de muitos equívocos interpretativos. Por essa razão, até hoje é necessário ponderar sobre os efeitos benéficos do ensaio, ao lado dos maléficos. “A morte do autor” seria melhor interpretado como sendo a reação à crítica de ordem biográfica que até então se fazia, da pior qualidade. O afastamento do sujeito autor da obra indicava a sua transformação em personagem, o que Barthes irá realizar quando escreve sua autoficção: Roland Barthes por Roland Barthes. Embora não aceite mais a prerrogativa de matar o autor, este ressurge também sob a forma de ficção, não de carne e osso. O conceito de biografema atua ainda mais na perspectiva de não ser possível

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Vera Casa Nova: Não, nem tanto. Certos professores na universidade, no mundo acadêmico, liam as novidades vindas da Europa, sobretudo da França, na época, fervilhante de ideias. A recepção no Rio de Janeiro, ao menos, não foi tardia. O problema mesmo era a ditadura militar, que aqui, como em Portugal, não aplaudiam as ideias de Barthes. Até hoje não é qualquer um que concebe as ideias de Barthes. A recepção, então, é difícil. Por isso a importância da obra de Leyla PerroneMoisés, que muito nos esclareceu e esclarece até hoje sobre a obra de seu amigo e professor Roland Barthes. PODEMOS DIZER QUE A DIVULGAÇÃO DA OBRA DE BARTHES NO BRASIL E EM OUTROS PAÍSES TEM SIDO PRODUTIVA PARA O CAMPO DA CRÍTICA, DA PESQUISA ACADÊMICA E DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA?

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se atingir a totalidade e sim a prática do fragmento, seja de biografias, de cenas ou de desejos. Vera Casa Nova: Acredito que sim. Aqui no Brasil, na maior parte da América Latina e nos Estados Unidos. Sobretudo a partir de alguns professores e pensadores, vejo as palavras da crítica e dos objetos artísticos como vestígios importantes do pensamento barthesiano. QUAIS SERIAM AS PRINCIPAIS CONTRIBUIÇÕES DE BARTHES DIANTE DA VANGUARDA CRÍTICA DE NOSSO TEMPO?

Ângela Senra: Barthes, mutante, marca a vanguarda do nosso tempo. Mantem, em cada passo da sua trajetória, uma postura coerente nos seus deslocamentos, no seu processus. A cada nova posição crítica acrescenta a(s) anterior(es). Barthes é um homem do seu tempo. Ético. Cortês. Um homem da pólis. Politicamente à esquerda (“desconfiado”). Eneida Maria de Souza: Na década de 1980, a influência de Barthes pode ser considerada sob duas vertentes: a primeira, em relação à abertura ensaística e à proliferação de estudos sobre outras áreas do saber, como a fotografia, as artes plásticas e a psicanálise, disciplina por ele assumida por influência da teoria lacaniana. O avanço neste sentido foi de muito ganho para a crítica; a segunda, diz respeito ao excesso de experimentações de seus adeptos, culminado no culto de uma linguagem por demais fragmentada e na EM  TESE

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écriture. A exposição exacerbada e piegas do sujeito muitas vezes resultava na crença de ser a crítica a manifestação natural de sentimentos até então reprimidos. Ainda bem que esta onda passou. Os resquícios desta écriture são hoje muito bem elaborados. Vera Casa Nova: Do meu ponto de vista, seriam contribuições a partir dessa pluralidade, da inter e da transdisciplinaridade (o nome é péssimo, acho que Barthes não o empregaria). Mas a vanguarda crítica se volta para uma crítica escritural. Para mim, Marcos Siscar, Ângela Senra, Paula Glenadel, Lucia Castelo Branco, Eneida Maria de Souza, entre outros, têm nas veias um pouco de sangue barthesiano. Acredito que não são mais porque a academia ainda guarda um discurso que os impede. Esse desejo de uma outra escritura que a crítica tem apresentado já é a contribuição maior de Barthes. POR QUE BARTHES PERMANECE TÃO ATUAL E TÃO IMPORTANTE PARA COMPREENDER AS QUESTÕES NÃO SÓ DA LITERATURA, MAS TAMBÉM DA ARTE CONTEMPORÂNEA E DA COMUNICAÇÃO DE MASSA?

Ângela Senra: O mundo crítico de Barthes – a pluralidade das linguagens, os jogos intertextuais, os espaços ideogramáticos, os rumores das línguas (glossolálias?), os deslocamentos do espaço (“onde começa a escritura? Onde começa a pintura?”) – são molduras para a arte

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contemporânea e para a comunicação de massa. Para o balé, as instalações, a pintura, a fotografia... Quanto à comunicação de massa, uma questão bastante grave se coloca para mim. Acho muito complexo, impossível mesmo, ler os jornais impressos e a televisão com as lentes bicolores do politicamente correto. Eneida Maria de Souza: Com as devidas ressalvas, Barthes é hoje um dos intelectuais mais respeitados no mundo. A crítica à sua obra, feita pelos pensadores avessos à textualidade e à abordagem semiológica, deveria observar que ele foi um dos principais analistas da cultura de massa, com o livro Mitologias, da década de 1950. Não se deve, contudo, privilegiar este ou outro autor em detrimento de outros, mas de abraçar cada vez mais outros, o que enriquece nossa compreensão das teorias. A sobrevivência deste ou de outro autor deverá passar pelo crivo dos pontos frágeis e dos fortes, das associações entre o que se pensa hoje e como estas ideias ainda poderão ser recicladas. Matar ou ressuscitar autores não são atitudes do historiador de cultura. A sobrevivência das teorias independe dos conceitos de início ou de fim das ideias. Permanece quem ainda é contemporâneo e, por esta razão, se insere e se afasta do presente. E Barthes se enquadra neste feitio.

Plural”, realizado em junho na Casa das Rosas, em São Paulo, vi isso claramente. Quem lê Barthes ama-o e essa afetividade, como ele queria que fosse nossa maior potência, deixa-nos impregnados e, ao citar suas ideias e textos, os atualizamos. Mais uma vez volto a falar sobre esse olhar marcado pela Semiologia: o olhar que persegue os sentidos (e os não-sentidos), em qualquer arte, e sobretudo o olhar crítico sobre a comunicação de massa. PARA AQUELES QUE QUEREM CONHECER ROLAND BARTHES, QUAIS LEITURAS SÃO FUNDAMENTAIS? E PARA OS LEITORES QUE JÁ CONHECEM A TRAJETÓRIA DE BARTHES, QUAIS AS SUAS SUGESTÕES DE LEITURA ENTRE OS LANÇAMENTOS RECENTES?

Vera Casa Nova: Barthes continua atual e importante. No evento em comemoração ao centenário, “Roland Barthes

Ângela Senra: Para quem quer conhecer Barthes: O grão da voz; Entrevistas: 1962-1980; Crítica e verdade; O grau zero da escritura; O prazer do texto; Roland Barthes por Roland Barthes; Aula; Fragmentos de um discurso amoroso; Mitologias; O império dos signos; Incidentes; Roland Barthes por Leyla Perrone-Moisés. Para quem já conhece Barthes: A câmara clara e Diário de luto; Inéditos, volume I, teoria; Como viver junto; Sollers escritor; Viver com Barthes (organizado por Vera Casa Nova e Paula Glenadel); Blanchot: l’amitié; Alain Robbe–Grillet: por que amo Barthes; Natalie Ginzburg: as pequenas virtudes; Beatriz Sarlo: viajens (virtual); Sebastião Salgado: gênesis; e Claudia Andujar: marcados (fotografias de índios Yanomami acompanhadas de ensaio de Stella Senra).

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Eneida Maria de Souza: Os livros da década de 1970, todos, e os recentes, que são póstumos. Roland Barthes por Roland Barthes é leitura de cabeceira. Considero Diário do luto um livro imprescindível para quem trabalha com autobiografia; Aula, de importância crucial para quem é professor e crítico; Como viver junto e A preparação do romance (I e II), para quem não desiste de conviver com o inacabado e o fragmentário, por se tratar de publicação sobre os últimos cursos ministrados no Collège de France. Vera Casa Nova: Uma fonte importante de pesquisa é o site http://roland-barthes.org que mostra a atualidade de Barthes. Quem lê Barthes vai atualizando seus textos. Além do mais, quem lê Barthes ama Barthes ou odeia Barthes. Gosto dessa não unanimidade, que coloca em jogo a afetividade, como ele queria que fosse. Ao citar seus textos residualmente já estamos atualizando-o. Para quem ainda não conhece Barthes, minhas sugestões são as leituras de Mitologias, Fragmentos de um discurso amoroso e A câmara clara. Para os que já conhecem Barthes, vale a releitura e uma consulta ao site.

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DICKENS, CHARLES. TEMPOS DIFÍCEIS. SÃO PAULO: BOITEMPO EDITORIAL, 2014.

Paula Sperb*

Foram quarenta anos sem circulação de uma nova edição no Brasil. Após quatro décadas, Tempos difíceis (2014), do escritor inglês Charles Dickens (1812-1970), foi finalmente publicado pela editora Boitempo para os leitores brasileiros. O momento para a leitura da obra é oportuno: crises econômicas, tanto no território nacional, como no resto do mundo, tornam a narrativa sobre o colapso social do capitalismo ainda mais atual. Permanecer em sintonia com o sentimento de mal-estar da classe trabalhadora é um dos méritos da obra escrita em 1854, considerada um clássico. A nova edição é traduzida por José Baltazar Pereira Júnior e tem ilustrações originais da edição de 1970. As ilustrações de Harry French

* paulasperb@gmail.com Doutoranda em Letras (UCS/UniRitter), mestre em Letras, Cultura e Regionalidade (UCS).

são uma espécie de vestígio que nos levam à Inglaterra vitoriana. As imagens servem como um constante aviso de que a narrativa se passa no período que sucede a Revolução Industrial e não nos dias de hoje. Como afirma Matos,1 Dickens é um autor que pinta um retrato de seu tempo e da sociedade inglesa, assim como também é um porta-voz das denúncias sociais. Em Tempos difíceis não poderia ser diferente. O escritor assume sua vocação de retratar as injustiças e faz uma crítica ao sistema capitalista de exploração da mão de obra trabalhadora. Entretanto, a crítica de Dickens não é panfletária e aparece

1. MATOS. Tempos difíceis na Inglaterra.


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no enredo através da oposição entre empregados e patrões, iluministas e positivistas.

2. DICKENS. Tempos difíceis, p. 30.

3. DICKENS. Tempos difíceis, p. 147.

Não é por acaso que os trabalhadores das indústrias da fictícia cidade de Coketown são chamados apenas de “mãos”. Porém, esse rótulo não é uma iniciativa dos empregados, mas dos industriais. Ao longo da narrativa, é comum que o termo surja nos diálogos do personagem Sr. Bounderby, banqueiro e dono de diversas fábricas. Bounderby demonstra orgulho de seu passado pobre sempre que tem oportunidade. “Eu não tinha um par de sapatos para os meus pés. Quanto às meias, eu não as conhecia nem de nome. Ficava o dia numa vala e a noite num chiqueiro. Assim passei meu décimo aniversário. Não que a vala fosse novidade para mim, porque nasci em uma”.2 A verdade sobre o passado de Bouderby, aliás, surge apenas na segunda metade do livro.

Percebe-se, quando Bounderby fala em “crianças trabalhadoras”, o retrato da época feito por Dickens continua pertinente. Apesar dos avanços históricos na coibição do trabalho infantil, não é raro que casos sejam denunciados pelos órgãos de fiscalização, mesmo atualmente. A vigência da crítica social aprece também com a preocupação com o meio ambiente. Em Coketown, as fábricas poluem o ar, sujam a cidade e prejudicam a saúde daqueles que lá vivem. O senhor vê a nossa fumaça. Ela é o nosso ganha-pão. É a coisa mais saudável do mundo em todos os aspectos e, em especial, para os pulmões. Se o senhor é um dos que quer acabar com ela, discordo do senhor. Não vamos gastar os fundos das nossas caldeiras mais rápido do que fizemos agora, mesmo com todo o falso moralismo da Grã Bretanha e da Irlanda.4

A personalidade de Bounderby é paradoxal, característica que demonstra o talento de Dickens para criar personagens. Ao mesmo tempo em que Bounderby ostenta seu passado supostamente miserável, ele trata com desprezo a classe trabalhadora. Para Bounderby, os empregados querem apenas conforto. “Não há uma só Mão nesta cidade, senhor, homem, mulher ou criança, que não tenha um objetivo na vida. Esse objetivo é comer sopa de tartaruga e sopa fina com colher de ouro. Ora, eles jamais comerão – nem um único deles”.3

A presença da fumaça é uma descrição frequente sobre a paisagem da cidade de Coketown. É uma espécie de vestígio das péssimas condições de trabalho dentro das fábricas. A cidade, com suas “serpentes de fumaça”,5 é importante para o desenrolar do romance. Segundo Matos,6 Dickens criou a fictícia Coketown para “dar voz a sua indignação frente ao que vira em Manchester”. Além disso, “os homens, assim como a paisagem e os edifícios, são moldados pela atividade que dá vida à cidade: a indústria”.7

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4. DICKENS. Tempos difíceis, p. 147.

5. DICKENS. Tempos difíceis, p. 37. 6. MATOS. Tempos difíceis na Inglaterra, p. 39.

7. MATOS. Tempos difíceis na Inglaterra, p. 39.


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8. DICKENS. Tempos difíceis, p. 37.

9. Cf.: MATOS. Tempos difíceis na Inglaterra.

Era uma cidade de tijolos vermelhos, ou de tijolos que seriam vermelhos caso as cinzas e a fumaça permitissem (…). Era uma cidade de máquinas e chaminés altas, pelas quais se arrastavam perenes e intermináveis serpentes de fumaça que nunca se desenrolavam de todo. Havia um canal negro e um rio que corria púrpura por causa de uma tintura malcheirosa, e grandes pilhas de edifícios cheios de janelas, onde se ouviam ruídos e tremores o dia inteiro, e onde o pistão das máquinas a vapor trabalhava monótono, para cima e para baixo, como a cabeça de um elefante em estado de loucura melancólica. Havia ruas largas, todas muito semelhantes umas às outras, onde moravam pessoas também semelhantes umas às outras, que saíam e entravam nos mesmos horários, produzindo os mesmos sons nas mesmas calçadas, para fazer o mesmo trabalho, e para quem cada dia era o mesmo de ontem e de amanhã, e cada ano o equivalente do próximo e do anterior.8

Como podemos ver, o espaço da cidade representa mais que um ambiente. A cidade é uma forma simbólica de expressar as relações sociais e econômicas que aparecem na obra. Por existir características muito peculiares na cidade fictícia de Coketown – que, como Matos afirma,9 é inspirada na cidade inglesa de Manchester – compreendemos o conjunto de relações específicas construídas neste espaço como uma forma de regionalidade expressa na literatura. Entendemos que a regionalidade, portanto,

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não supõe necessariamente que o mundo narrado se localize numa determinada região geograficamente reconhecível, mas ficticiamente constituída. O que a categoria da regionalidade supõe é muito mais um compromisso entre referência geográfica e geografia fictícia. Embora fictício, o espaço regional criado literariamente remete, como portador de símbolos, a um mundo histórico-social e a uma região geograficamente existente. A regionalidade seria, portanto, resultante da determinação como região ou província, de um espaço, ao mesmo tempo vivido e subjetivo.10

Como afirma Chiappini,11 a regionalidade é resultado de um espaço vivido e subjetivo. O espaço da cidade de Coketown é justamente o que aglutina as características cuja soma resultará em uma regionalidade muito singular ao livro Tempos Difíceis. Logo, podemos afirmar que as características de regionalidade da obra de Dickens estão permeadas pela cultura do trabalho e da repetição da rotina. Esse cenário de “mesmice” e pretensa racionalidade é perfeitamente representado pela propagação de ideias puramente matemáticas e objetivas através do personagem Sr. Gradgrind. O personagem é diretor de uma escola onde os alunos são treinados para deixarem de lado qualquer ideia criativa ou pensamento imaginativo.

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10. CHIAPPINI. Regionalismo(s) e regionalidade(s), p. 26. 11. Cf.: CHIAPPINI. Regionalismo(s) e regionalidade(s).


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12. PUGLIA. Charles Dickens: um escrito no centro do capitalismo, p. 12.

13. DICKENS. Tempos difíceis, p. 15.

As doutrinas de Gradgrind simbolizam justamente o paradigma científico predominante na Inglaterra vitoriana. Para Puglia,12 essas doutrinas são “utilitaristas” e de certa forma também explicam o capitalismo. O acadêmico afirma que as doutrinas do capitalismo também são “os próprios alicerces que estruturavam sua condição de existência como sistema”. Para o pesquisador, na obra de Dickens existem indícios dessa “configuração histórica” e que o utilitarismo “visava submeter todas as instituições aos testes de uma utilidade racional”. Sr. Thomas Gradgrind. Um homem de realidades. Um homem de fatos e cálculos. Um homem que trabalha de acordo com o princípio de que dois mais dois são quatro, e nada mais, e não pode ser persuadido a permitir nada mais. (…) Com uma regra e uma balança, e a tabuada sempre no bolso, senhor, pronto para pesar e medir qualquer parcela da natureza humana, e dizer o resultado exato. É uma mera questão de números, um caso de simples aritmética.13

Tanta rigidez só foi rompida com a chegada da jovem Sissy Jupe, criada em uma família de artistas de circo. Nada pode ser mais oposto ao positivismo do que a arte circense: imprevisível, criativa e divertida. Sissy é aluna da escola de Gradgrind e passa a viver com a família, como filha adotiva. Ao ser acolhida precisa moldar-se aos parâmetros EM  TESE

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estritamente racionais da família de Gradgrind, escondendo seus pensamentos fantasiosos e omitindo sua emotividade. A mesma “educação” recebida tardiamente por Sissy foi aplicada à filha mais velha de Gradgrinde, Louisa. Loo, como é chamada a garota, aceita casar-se com o Sr. Bounderby, muitos anos mais velho do que ela, em uma decisão puramente racional. O casamento entre o industrial mais rico da cidade e a jovem intelectualizada não poderia dar certo. A partir do relacionamento dos dois, uma série de conflitos surgem. Os sentimentos de Louisa, que sempre foram abafados em nome da objetividade, agora afloram e a fazem sofrer. Seu pai, que nunca teve sua convicção na racionalidade abalada, coloca em dúvida suas certezas sobre como educar as crianças. Mas, o que acontece após o fracasso do casamento “ideal” pode frustrar o leitor que espera que Dickens apresente as soluções para os problemas apresentados. Dickens não faz de Louisa uma personagem que quebra os paradigmas da época. Tampouco Sr. Gradgrind defende o divórcio da filha. Apesar do arrependimento, do pai e de Louisa, sobre o casamento com Bounderby, nada de concreto pode ser feito a não ser “dar tempo ao tempo”. Assim como Dickens não é panfletário e não tenta mostrar a solução para a miséria dos trabalhadores, optando apenas

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por escancará-la, o autor também não dá o final ao feliz à jovem amargurada por um casamento baseado em interesses. Acreditamos que, assim como a criação de personagens paradoxais, a falta de uma “solução mágica” também é um mérito de Charles Dickens em Tempos difíceis. Apenas a inquietude pode suscitar uma reflexão mais aprofundada ou mudança na forma de agir e pensar do leitor – seja ele vitoriano ou pós-moderno. REFERÊNCIAS CHIAPPINI, Ligia. Regionalismo(s) e regionalidade(s): trajetória de uma pesquisadora brasileira no diálogo com pesquisadores europeus e convite a novas aventuras. In: ARENDT, João Claudio; NEUMANN, Gerson Roberto. Regionalismus Regionalismos. Educs: Caxias do Sul, 2013. DICKENS, Charles. Tempos difíceis. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014. MATOS, Érika Paula de. Tempos difíceis na Inglaterra: forma literária e representação social em Hard Times de Charles Dickens. 2007. Dissertação (mestrado). USP, São Paulo. PUGLIA, Daniel. Charles Dickens: um escritor no centro do capitalismo. 2006. Dissertação (mestrado). USP, São Paulo.

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CARTAS DA JANELA

Manlio M. Speranzini*

* Doutorado em Letras (FFLCH/USP), Mestrado em Estética e História da Arte (EHA/USP), Arquiteto de formação (FAU/USP), e artista gráfico de profissão. Realizou duas exposições individuais: Vestígios – memórias do acaso, UFF, Niterói (1999) e À revelia da luz, UNICID, São Paulo (2001). manlio@ig.com.br

Ano: 2007/2015 Dedicatória: Para M. (de Márcia) Não há mais o que esclarecer a não ser apontar os caminhos e, se o resultado final não guarda qualquer lucidez, é porque, de outro modo, não seria coerente com aquilo de que se trata: a insensatez. O trampolim e a areia movediça da pesquisa foi Como viver junto, de Roland Barthes – livro que não é livro, mas Infratexto – um estado de discurso que precede o texto (Éric Marty). O ensaio aqui assume o NãoMétodo explicado por Barthes como, entre outras coisas, um tratado excêntrico de possibilidades, um titubear entre

blocos de saber. Obra dentro da obra, de Como viver junto pula-se para La séquestrée de Poitiers, de André Gide: no dia 22 de maio de 1901 uma carta anônima denuncia: uma moça presa num quarto há 25 anos pela família. A polícia invade o local e resgata a vítima encontrada deitada nua sobre um colchão de palha. 52 anos, de magreza pavorosa e cabeleira compacta, grossa, não fala coisa com coisa. O ar é fétido. O Juiz de Instrução envia a sequestrada ao Hospital. Ainda o Não-Método: partir de uma fantasia, desejos, imagens que rondam, que se buscam em nós e só se cristalizam através de uma palavra – significante maior que induz da fantasia à sua exploração. Sua exploração por diferentes bocados de saber

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= a pesquisa. “A fantasia se explora, assim, como uma mina a céu aberto”, escreve Barthes em suas anotações de aula. Viver junto: num mesmo lugar e no mesmo tempo que... = contemporaneidade. Eu no tempo dela, ela no meu tempo: com-partilha-o-momento. Ah, ma pauvre Mélanie! (Seu nome verdadeiro era Blanche, mas Gide escolheu para ela o que lhe era o oposto: Mélanie, variante de ‘Melana’, nome que deriva do termo grego melanos: escuro). Um destino pode ter cor? Fantasia: cenário, um misto de imagens, uma paisagem, um olhar e um corpus literário. A História de Mélanie que, no curso de Barthes, é o conflito, a contradição e a desordem. O lugar-problema: o quarto – estrutura reduzida à cama. Os objetos sinalizadores de territorialidade são os dejetos. Objetos = Dejetos. Se a clausura é o espaço de segurança onde o privado é a demarcação de um território a ser preservado, no caso de La séquestrée de Poitiers o quarto é o lugar a ser evitado: mal-estar, mau cheiro, loucura, clausura e perguntas sem resposta. O que separa o cuidado, o afeto e o desapego do desinteresse e da maldade? Como justificar tamanho castigo? Cadeado nas janelas, frestas obstruídas da persiana. “Mélanie não fala coisa com coisa”, repete a família. Filia (propositivo, do grego, philos – amigo, querido) x Fobia (medo). Deserto: clausura expansiva. Não existem obstáculos a serem vencidos, toda a paisagem é um único obstáculo: monótono, indiferenciável, infinito. Barthes reconhece aí a figura do cobertor que Mélanie usa

para se cobrir e se esconder. Lugar da catatonia. Flores são um elemento surpreendente pelo seu valor simbólico. Ele lembra que Mélanie, ao ser recolhida ao hospital, se alegrava ao receber flores e sabia o nome delas: “[...] quando a coisa é ‘óbvia’, é então que se deve atentar para ela. O ‘óbvio’ comporta muitas perguntas sem respostas”, afirma Barthes e define: ‘Flores’ – o que está além ou aquém da fruta útil e só pode existir numa economia do luxo; símbolo ativo do ‘para nada’, coisa inútil; coisa rara; a flor como oferenda religiosa; objeto integrado nas práticas simbólicas – o buquê. Coisa colorida, a flor, figuração civilizada da pulsão: delicada, frágil e perecível. O quarto de Mélanie: uma História da sujeira. O sentido do excremento no quarto de Mélanie: um espaço a ser evitado. O espaço: o quarto: 5,40m x 3,40m; a janela: 1,60m por 0,98m; o soalho corroído; um buraco por onde passam ratos. O mobiliário e os objetos: uma cômoda sem gavetas, duas estantes de madeira branca, quatro garrafas vazias, três frascos de conserva, um jogo de loto, duas porcas, uma estatueta da Virgem, uma cama de ferro, lençóis, cobertas, trapos velhos e sujos, a armação de um sofá, seis cadeiras de palha, uma cama de madeira, um colchão podre de palha, um lençol dobrado em quatro, um travesseiro velho, um cobertor imundo, um quadrado de linóleo, uma pequena caixa de livros velhos. As paredes foram em outros tempos cobertas por um papel azul-acinzentado com quadrados marrom e azul escuro. Inscrições nas paredes. Ainda

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que a maioria seja indecifrável, uma delas ainda permite que se leia: “Fazer a beleza, nada de amor e de liberdade, solidão sempre. É necessário viver e morrer no calabouço toda a vida”. Walter Benjamin e a experiência traumática: a incapacidade dos traumatizados em formular um sentido para o ocorrido – a ruptura, a fenda, a desconexão entre o que eram antes, o que são agora e o que serão depois. A incoerência das experiências desmoralizadoras: a Guerra, a Fome, o Desemprego e a Corrupção. O terreno da não-experiência - uma nova barbárie. E a loucura, e o desvario? “Resta o sonho noturno”, consola Benjamin. Viver de olhos fechados. Narrar, para Benjamin, é a faculdade de intercambiar experiências. A fonte da narrativa é a experiência passada de pessoa a pessoa. O narrador então retira da experiência vivida o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada por outros, aquela que ele sabe por ouvir dizer, incorporando as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes e permitindo a pergunta: e depois? Ah, ma pauvre Mélanie! O narrador. O romance, ainda que anuncie a perplexidade de quem vive um sentido da vida não permite que se ultrapasse o limite da palavra ‘Fim’. Mélanie não sabe o que é ‘fim’ nem ‘começo’ – está sempre no meio... Para Benjamin, contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo e tanto mais poderosa é uma narrativa quanto mais ela ainda for capaz de suscitar espanto e reflexão. Ah, ma pauvre Mélanie! Contar de novo. Contar outra vez. A mãe e o irmão de Mélanie são presos.

Mélanie passava a ser assistida pelas freiras e médicos da instituição. Sua fotografia, tirada na cama do hospital logo depois da sua chegada, é reproduzida em diversos jornais ilustrados da época: Mélanie pesava então 25,5 kg, tinha o rosto de uma brancura de cera, o corpo cheio de placas de sujeira, unhas muito compridas e os cabelos formando uma massa compacta de mais de metro. No momento do seu resgate, ela gritava que não a tirassem da sua ‘grutinha’. Depois de um tempo no hospital, limpa e com a cabeça raspada, ela demonstrava algum prazer em estar arrumada e respirar ar puro. Após dois meses de cuidados intensivos ela pesava 35,5 kg. Apesar das melhorias aparentes, ela ainda se mostrava indiferente ao que se passava a sua volta e raramente tomava a iniciativa de falar alguma coisa ou de fazer perguntas, passando a maior parte do tempo emitindo sons incompreensíveis. Descobriram que gostava de flores. Ela começou a se referir aos objetos que lhe apresentavam fazendo uso do diminutivo e acrescentando ‘querido’ ou ‘querida’: meu lapisinho querido... minha rosinha querida... Embora ela se esforçasse em escrever com clareza, tudo o que escrevia terminava em rabiscos sem sentido. Gostava do perfume de flores, da água de colônia que passavam em seu corpo todas as manhãs e de tudo aquilo que apresentasse uma cor clara, que fosse brilhante ou luminoso. Ah, ma pauvre Mélanie! A mãe dá seu depoimento à polícia: “Nunca pensei em sequestrar minha filha, que eu amava tanto”. “Ela sempre teve

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uma saúde muito delicada... Mesmo assim, ela pôde fazer seus estudos. Ela gostava do trabalho e em especial da leitura”. “Ela não era louca, mas tinha comportamentos estranhos. Não queria dormir sob os lençóis, recusava vestir uma combinação...”. “O médico não vinha vê-la porque ela não estava doente”. A mãe morreu na enfermaria da prisão sem ser julgada e negando sempre qualquer responsabilidade pelo sofrimento mental e físico da filha. Momentos antes da chegada do médico que atestaria sua morte, ela teria gritado: “Ah! Ma pauvre Mélanie!”. À pergunta: “como se faz no animal-homem uma ‘memória’ – esse entendimento-de-instante – a quem tem aptidão ao esquecimento?” Nietzsche responde: “na dor”. A justifica para isso, acrescenta: é que “somente o que não cessa de fazer mal permanece na memória” visto que “nunca, nada, se passou sem sangue, martírio, sacrifício, quando o homem achou necessário se fazer uma memória”. A origem para isso encontra-se no instinto que adivinha na dor o mais poderoso meio auxiliar da memória, afirma o filósofo. É fazendo de certas ideias, ideias fixas, inextinguíveis, onipresentes e inesquecíveis, que o ser humano, tomado por esse incômodo, não tem forças para se livrar de tamanha pressão: mais do que buscar uma solução para o seu tormento, esse homem não deixará de pensar um só instante naquilo que o aflige. Nietzsche reconhece no castigo duas instâncias que o colocam ora como sendo duradouro, ora como fluido. É duradouro nele o uso, o ato, o

drama. Já, fluido, é o fim e a expectativa vinculada à sua execução. O conceito de castigo é então uma síntese de sentidos, uma espécie de unidade indefinível que torna impossível dizer a razão correta que justifica a natureza do castigo, e afirma: “Definível é somente aquilo que não tem história”. Des pleurs amers. O artista escrevedor. Vários artistas, afirma Bayer, vêm há um bom tempo se aproximando de conteúdos e procedimentos antes restritos ao campo da escrita para conferir uma qualidade literária a uma arte do espaço. A visualidade da arte contemporânea, continua, já vinha se colocando no “cruzamento da imagem-movimento do cinema, dos princípios construtivos da arquitetura, dos elementos reflexivos da filosofia e ‘narratológicos’ da literatura, num exercício complexo de hibridização dos procedimentos”. Através do trabalho de vários artistas, a autora reconhece fazeres e abordagens que permitiriam entender as lógicas desenvolvidas por eles para inserir a escritura no campo da arte contemporânea, tais como: a cópia, a inclusão, a apropriação, o exercício do ‘escrevedor’ (scripteur), a interpolação, a ação do fabulador, as configurações narrativas e as citações. Sendo o desenvolvimento textual ser um desenvolvimento no tempo, entende Bayer, muitos artistas incorporam elementos da dimensão literária visando produzir uma obra visual que se temporaliza, permitindo então uma maneira particular de reativação do tempo e da memória. E conclui: para esses artistas “uma outra topologia da criação

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se apresenta, onde a narrativa é a feitura da obra, e a obra - a fabricação romanceada do mundo”. Tipografia: a matéria de um corpo novo para Mélanie na forma dos 3 estágios da sua recuperação: Mélanie Fraca (Light), Mélanie (Normal) e Mélanie Forte (Bold). Qu’est-ce qu’on dit? Ouvia-se que Mélanie amara e se entregara. Dizia-se que uma criança fora o fruto de seus amores. Acreditava-se ainda que essa criança lhe fora subtraída. Suspeitava-se ainda que, para puni-la por sua ‘falta’, fora trancada no quarto. Mas como saber? Diziase ainda que se casaria, mas o tempo passava e nada acontecia. Não saiu mais de casa. Comentava-se também que não queria se vestir e andava seminua pela casa... As janelas precisavam ficar fechadas... Não era louca, diziam, pensava direito. Também não era ruim (só com a mãe). Des lettres perdues. Durante algum tempo ela ainda pedia papel e lápis e escrevia cartas que colocava dentro de envelopes e as passava pelas frestas da persiana, contando que a empregada as recolheria e as levaria ao correio. Mas as cartas recolhidas eram entregues à mãe de Mélanie que, mesmo sem abri-las, as rasgava e as jogava fora. Outra vez. Outra vez. As frestas da janela obstruídas. Um padrão a se repetir indefinidamente... O lugar-problema. “Todos os espaços das nossas solidões passadas, os espaços em que sofremos a solidão, desfrutamos a solidão, desejamos a solidão, comprometemos a solidão, são indeléveis em nós”, escreve Bachelard em A poética do espaço. A solidão em mim, sempre. A janela do quarto

de Mélanie é uma janela cega – não abre -, trancada com cadeado e com as frestas obstruídas. Não se ouvem seus gritos. Não se vê seu corpo. As frestas da janela: um espaço de passagem para as cartas que ninguém leu, nem respondeu: “Querida Mélanie...”. Uma ideia de paisagem, uma superfície, as frestas obstruídas da veneziana. Au-delà. “Quero voltar para meu querido fundão Malampia”, repetia Mélanie em momentos de desrazão. Um outro lugar. O precário, segundo Jean Oury, é uma das palavras favoritas de Freud nos seus primeiros escritos. Ele também explica que psicose não é alienação, (todos somos alienados!, no sentido Marxista), mas é uma ‘alienação psicótica’. O alienado, explica, pertenceria a um tipo de transcendência que não é a mesma do sagrado, mas que os dois (a loucura e o sagrado) teriam lugares dentro de qualquer sociedade, principalmente as primitivas. A transcendência – esse outro lugar – corresponderia ao que Freud designava como ‘outro palco’. A loucura introduz um corte na relação do homem com o mundo cotidiano e esse corte dá acesso a outro lugar, definido por Oury como o lugar do pathos: “lugar da poiesis (gr.), lugar de certo tipo de criação permanente, não mais a partir de uma sintaxe toda feita, aceita na sociedade, mas a partir disso que está em jogo na própria produção de um texto. Oury chama então de ‘transferência’ a criação de um ‘lugar do dizer’ e salienta que o dizer do psicótico não pode ser recuperado numa significação ou numa interpretação como na análise

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das neuroses. A esquizofrenia faz com que haja a ruptura do lugar pela própria dissociação e a tarefa do psiquiatra é então trabalhar para ter acesso ao lugar rompido do esquizofrênico. Oh! que c’est beau! Au-delà. O estado intelectual de Mélanie não acompanha sua melhora física e mental. Seu prazer se resume a ver e cheirar flores. Oh ! que c’est beau! Um sentimento de beleza: Camélias brancas. Filme KODAK 100, 36 poses, fotografia analógica, 4 exposições: as frestas da veneziana, as flores, o que dizem que Mélanie dizia no Sanatório e o que falavam dela no tribunal. Ainda que alienada, mantinha um sentido de pudor. Paroles sans valeur. “Todos esses gritos não têm qualquer significado; na boca de minha irmã, essas palavras não têm valor. Ela as pronunciava nos momentos de crise e demência. Na minha frente ela nunca pediu socorro ou reivindicou sua liberdade. Ela parecia se dirigir a um ser imaginário”. Ah, Mélanie, Mélanie... Escreve para mim.

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DISPOSITIVO CINEMATOGRÁFICO: LA BEAUTÉ DES IMAGES (2011) - 5:39 Cláudia Cárdenas e Rafael Schlichting*

* Cláudia Cárdenas e Rafael Favaretto Schlichting são artistas radicados em Florianópolis e trabalham juntos desde 2002. Eles compõem o Duo Strangloscope e se dedicam a criar filmes que investigam formas visuais e sonoras, como o Time Gap (2014), filmado em Super 8 e editado em digital. Dispositivo cinematográfico estreou na Mostra de Ouro Preto, passou por festivais de Curitiba, Porto Alegre, Berlim, Praga, La Coruña e Belgrado. Cláudia e Rafael também são organizadores da Mostra Internacional de Áudio, Vídeo/Filme e Performance, realizada na capital catarinense. http://www.strangloscope.com

Os artistas visuais exibem o vídeo Dispositivo cinematográfico: la beauté des images, que nos revela um meio de chegar à beleza das imagens por meio de um processo pictórico (fotográfico) delicado e inquietante. A performer Gabriela Queiroz inscreve uma potência corpórea, amorosa, realizada à beira-mar. Extraímos desse vídeo dezoito fotografias para serem distribuídas ao longo da revista, além da capa desta edição, para viverem ainda mais ao lado de Barthes. Roteiro e direção: Cláudia Cárdenas / Direção, fotografia e edição: Rafael Schlichting / Performer: Gabriela Queiroz / Cenógrafo: Mauricio Muniz

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28 – TEXTO (2013) - 3:49

Gustavo Cerqueira Guimarães*

* Doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG (2013), onde desenvolveu a pesquisa A espacialização do sujeito em João Gilberto Noll e Al Berto (em contato também com Barthes). Autor do livro de poesia Língua (Selo Editorial, 2004) e Guerra (inédito). www.gustavocerqueiraguimaraes.com

Este texto foi escrito, em 2008, durante o período de atividade do grupo de leituras de Roland Barthes, que se reunia quinzenalmente na casa da professora Eneida Maria de Souza. Posteriormente, ele foi publicado na tese de doutorado defendida pelo autor como um exercício de leitura-escrita, “fragmento”, dedicado ao Barthes. Em 2012, o texto foi gravado em estúdio, em Florença, sob a direção de Francesca Della Monica, cantora e antropóloga da voz, quando também foi traduzido para o italiano por Lydia Del Devoto e publicado na revista do sindicato nacional dos escritores, Le Reti di Dedalus (Roma, ano VII), na seção “Traducendo mondi”. Aqui, apresenta-se essa gravação ao lado do “Estudo nº 11”, para violão, de Villa-Lobos.

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L. chegou primeiro, C. chegou em seguida, J. e H. chegaram depois. Fumaram. Falaram da motivação de estarem juntos a partir do reconhecimento da existência em comum (“que bom ser contemporâneo seu”): são fragmentados; a vida incita isso. É estranho. J. ficou imaginando como é difícil trabalhar e comentar Textos tão densos, em pedaços. Marcaram um encontro para o dia 31 de janeiro. L. os instigou a ler Sarrasine, de Balzac. * Surgiu, como uma nuvem pairando, a ideia de exterior/ interior. Mas fora de quê?, pergunta J., e prossegue: que história é esta de olhar o infinito?, não seria isso também uma dualidade, um binarismo?, um aqui e lá; um axioma? O lá (infinito) não seria a promessa do paraíso, lá onde eu gozo? Ou postulamos que esse infinito é uma ideia rizomática (metonímica), que o captamos em lufadas de gozo?

* B. sonha com um mundo que fosse isento de sentido (morreu atropelado). * Não se trata de reencontrar um pré-sentido, uma origem do mundo, da vida, dos fatos, anterior ao sentido, mas de imaginar um pós-sentido: é preciso atravessar, como o percurso de um caminho iniciático, todo o sentido, para poder extenuá-lo, isentá-lo. Mas, para isso, qual discurso abolir? E ao revogarmos um discurso não criamos outro pleno de sentido (?). Que outras palavras usar, já que estamos transpassados pelas mesmas? * Textualizaram.

* Parece que todos acordam que a origem e a natureza devem ser culturalizadas. Nenhum natural, em lugar algum, apenas o histórico. B., diz o Texto, recoloca essa cultura no movimento infinito dos discursos, montados um sobre o outro como no jogo de mão. Assim, absolveremos os ditadores? (inquieta-se L.).

p/ Ludmilla Zago, Camila Volker e Henrique Lee, por partilhar a vida, porque aquilo que há para repartir é o próprio fato de existir; o grão da voz – presente.

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DESENROLANDO BARTHES E OUTRAS SEMIOLOGIAS

Renato Negrão*

* Poeta, compositor, artista visual e professor, nascido em Belo Horizonte em 1968. Autor dos livros No calo (1996), Dragões do paraíso (1997), reunidos e republicados em Os dois primeiros e um lote vago (Selo Editorial, 2004) e Vicente viciado (Rótula, 2012). oficinapalavraimagem@gmail.com

“Desenrolado Barthes” é o último poema do livro Vicente viciado (2012), de Renato Negrão. Ele traz dois performers escrevendo uma frase de Barthes, no chão, utilizando rolos de barbante. Essa cena instigante foi propulsora para alinhavarmos outras três tecituras desse livro para conviverem ainda mais com Roland Barthes. O poema seguinte, sem título, convida-nos a refletir sobre um tema muito caro ao pensamento barthesiano, as justaposições dos discursos – “magela une cinema e performance nas ciências aquosas”. “Coreografia”, o terceiro poema (instalação), reúne outras semiologias ao exibir mapas afetivos de textos urbanos e o “pensamento disparado milton santos”, além de outros espaços coreográficos. Fechando a série, o jogador Dadá Maravilha e seus gols são lembrados em “Dadá”, poema que também integra a instalação poética do museu de futebol do Mineirão. Esse texto foi composto a partir de uma entrevista dada pelo ídolo do Atlético Mineiro.

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DESENROLANDO BARTHES

no início era o referente e o verbo e o processo incessante de produção de sentido a isso se deu o nome de semiose cadeia – ou galeria – infinita e incessante do discurso e da cultura labuta poética sobre o sentido de se produzir sentido sobre as coisas dois performers escrevem no chão – utilizando rolos de barbante – uma mesma frase do semiólogo roland barthes a frase escrita é modificada ou subvertida por meio de fluxos de pensamento e/ou ocorrências sonoras – conversas onomatopeias – vivenciadas no local logo duas frases diferentes surgem no espaço expositivo

o que a audiência fará com as linhas que os ligam? haverá tempo para que a audiência leia a frase escrita no chão? a que fim levará o fim da linha? * julieta de souza faz filosofia pelo suporte música astolfo andrade mostra escultura análoga ao teatro epaminondas cerqueira diz cinema com a mão da literatura mestra elza joga capoeira no suporte do desing tiago josé define a curadoria ao manejar parangolé carlos martins sujeita tela e teclado para produzir tipos roberta encontra na moda a forma da instalação em marcos ubaldo arte gourmet e astronomia uma coisa só martina transpõe o bordado para a dança denise transforma romances em ready-mades dayse liga lógica e dadá no mamulengo magela une cinema e performance nas ciências aquosas kátia suzy realiza poesia pela autoajuda jean cardoso faz autoajuda na plataforma da poesia jorge ramos pensando fazer poesia faz história clara arantes faz poesia para afugentar o tédio

as linhas são ligadas a pessoas da audiência e em seguida deslocadas pelo chão da galeria em direção à rua até o término do barbante

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COREOGRAFIA

2. PELE

o espaço coreográfico da palavra e sua aplicabilidade semântica são pensados como estímulo a outras configurações corporais

seus sons, seus átomos suas células seus órgãos internos sua pele sua roupa sua casa sua cidade seu mundo como camadas da sua epiderme

nossos corpos merecem e podem dar respostas mais criativas aos textos urbanos para além de suas palavras de ordem e de consumo gesto como construção transitoriedade como eixo dispersão como método

3. PENSAMENTO DISPARADO MILTON SANTOS

o mundo como um conjunto de possibilidades não apenas um conjunto de realidades e sua convicção de que outros mundos poderiam ser criados a partir dos mesmos materiais 4. DANÇA

1. MAPA AFETIVO DOS TEXTOS URBANOS

deslocar por um percurso urbano cuja cartografia se dê por um viés afetivo estabelecer um relacionamento gestual poético sensualizado com um ou mais textos urbanos que encontrar

crie na cidade – a partir da seleção de palavras encontradas por intermédio do seu desenho da materialidade gráfica dos contornos espaciais dessas palavras e da dimensão poética e sensualizada dos seus significados – outros estímulos corporais abrindo no horizonte novas perspectivas com os textos urbanos

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DADÁ

– futebol é o seguinte chegou ali e tem tranquilidade é só aplicar o sutil o mirabolante a raiz quadrada o labirinto que não tem jeito pro goleiro não é cair e levantar para buscar o caroço lá dentro

– não posso dizer é segredo profissional outro dia criei mais um poema o independência

– que negócio é esse de sutil mirabolante e raiz quadrada – não posso dizer é segredo profissional outro dia criei mais um gol o independência – poesia é o seguinte chegou ali e tem tranquilidade é só aplicar o sutil o mirabolante a raiz quadrada o labirinto que não tem jeito pro leitor não é cair e levantar para buscar o caroço lá dentro – que negócio é esse de sutil mirabolante e raiz quadrada

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V.

21 2 N.

MAIO-AGO. 2015

BARTHES

belo horizonte ISSN: 1982-0739 IMAGENS DESTE NÚMERO Cláudia Cárdenas e Rafael Favaretto Schlichting. www.strangloscope.com

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