< Alan Kosume > < Bárbara Fernandes > < Davyd Vinicius > < Halisson Neander < Ingrid Amanda > < JoO > < Leonardo Souza > < Lina Stefanie > < Mama Ghuleh < Marcão Costa > < Pablyo Santos > < Pietro Vaughan > < Renato Silva < Thiago Guimarães Pantaleão > < Vicente Carlos Miranda > < Vitória Viana > < Viúva Negra
Organização: Projeto 3scr1t0r3s TÍTULO: Davyd Vinicius CAPA E EDITORAÇÃO GRÁFICA: Agência Mocho - http://www.agenciamocho.com REVISÃO: A revisão de cada conto foi de responsabilidade dos seus respectivos autores. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA - VENDA PROIBIDA É permitido o livre compartilhamento desta obra, desde que sejam mantidos os créditos dos autores. Não é permitido o uso comercial desta obra nem a criação de obras derivadas. 3scr1t0r3s@gmail.com 1ª edição - março de 2015.
PROJETO
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Este e-book é o resultado de um desafio na internet que teve como objetivo incentivar novos escritores a terem seus primeiros contos publicados. Todos os contos desta obra foram inscritos durante o período entre 04 e 31 de janeiro de 2015. Graças a todos os que acreditaram e persistiram em sua concretização, esta obra é, com certeza, uma grande conquista.
ENTRE CONTOS A Maldita Floresta de Bambu _____________________ 05 A Noite de Vic _________________________________ 07 Circuitos _____________________________________ 09 Escreva Sobre a Minha Morte _____________________ 11 Karen _______________________________________ 13 Luz da Lua ___________________________________ 15 Minhas Impressões Sobre Este Mundo _____________ 17 Nas Trevas de Memphis _________________________ 18 Noite no Café _________________________________ 20 O Cavaleiro dos Lírios Negros ___________________ 22 O Conclave __________________________________ 24 O Confronto _________________________________ 26 O Grande Dia ________________________________ 28 O Grito _____________________________________ 30 O Peso do Vento ______________________________ 31 O Último Trabalho ____________________________ 33 Para Sempre Minha ___________________________ 34
A Maldita Floresta de Bambu Alan Kosume - alan.kosume@gmail.com
A noite cai e a floresta de bambu canta com o passear da brisa do verão, mas outro som vem do interior daquele enigmático lugar, um som que ninguém tinha coragem de descobrir a origem e quem ouvia aquele medonho e frenético dedilhar do koto (instrumento musical composto de diversas cordas, semelhante a uma grande cítara) poderia ter o azar de encontrar uma criatura de enorme cabelo rubro, chifres brancos e expressão vazia, dançando febrilmente uma melodia que enchem os olhos de emoção e temor e é esta melodia que emanava dentre as frestas dos bambus, chegando até a estrada que marcava o fim dos domínios da aterradora floresta. Em pouco tempo outros sons foram trazidos das trevas como o shimasen (instrumento musical de três cordas) e a flauta shinobue (flauta de bambu tradicional japonês), quem executava estas melodias suaves eram belos e enormes felinos que andavam como pessoas normais, porem trazendo consigo a mesma expressão de vazio continuando o cortejo demoníaco por entre as passagens. É sabido de tempos longínquos que a floresta era amaldiçoada e ali morava uma raposa de nove caldas, o que já lhe dava status de ser extremamente poderoso, datando mais de mil anos de existência. De acordo com as lendas, ela comandava um exército de demônios e espíritos sedentos de sangue e com todo esse medo invocado pelas estórias, o local fora evitado por muito tempo, Mas agora, o Japão passa por uma cruel guerra em busca de terras e poder entre os Daimios (senhores feudais). O curioso fato era que esses demônios não passavam de um truque barato de aldeões que viviam num tipo de vilarejo secreto no meio da floresta e para manter essa lenda, um clã ninja foi fundado com união das mais diversas habilidades trazidas com as famílias que ali se alojaram. Com o tempo, foram criando grande força de combate e espionagem, se tornando verdadeiros mestres na arte da guerra silenciosa, mas desta vez, algo diferente aconteceu e o segredo passou a ser ameaçado e quase não superou a experiência do velho Ronin Yashiru no Makoto, um samurai sem mestre que vagava pelo mundo em penitência por não conseguir salvar o seu senhor de uma emboscada. Suas vestes surradas ainda exprimiam certa realeza e as duas espadas dos tempos de glória ainda permaneciam ao seu lado, nem mesmo ele poderia saber porque estava andando em tal terra amaldiçoada, sua honra foi manchada e por isso não era digno nem dos seus próprios passos e pouco se importava sobre o perigo que lhe foi advertido no dia anterior. O ronin continuava a simplesmente vagar por entre os bambus quando aquela música hipnótica brincava com o brisa que logo se tornava ventania e castigava seus ouvidos, fazendo com que o viajante se preparasse para o pior. Já desembainhando a espada, os olhos contemplaram uma bela mulher tocando graciosamente o shimasen, mas, de repente a sinfonia parou e em uma fração de segundo uma pequena faca voou em direção às costas de Yashiru, em um desejo de dar-lhe o beijo de um Shinigami (o deus da morte).
Por reflexo, sua espada desviou a trajetória da faca, protegendo sua vida do mergulho sem fim.
Retomando sua postura de combate, Yashiru perguntou:
— Quem são vocês? Como ousam atacar alguém pelas costas?
A mulher gritou com uma voz estridente. Ao levantar sua cabeça, revelou seu rosto pálido e sem expressão, como se fosse de uma boneca.
— A caça não precisa saber quem se alimentará com ela!
A mulher voou em direção ao velho, retirando uma pequena espada com um líquido esverdeado escorrendo da lâmina. Ao mesmo tempo, vultos brancos se aproximavam por entre os bambus. Ronin atacou aquela nefasta espada, fazendo com que a mulher desse uma volta completa em si, juntamente com algumas linhas quase invisíveis que se enrolaram em volta daquela aparição. Os movimentos da criatura se tornaram desajeitados e quase inúteis. O céu azul obscureceu, eis que uma chuva de flechas castiga a terra, provando que as lendas eram falsas para o desafortunado viajante. Num movimento tão fluido como a água, arrancou a mão que portava a espada banhada com a morte lenta e agarrou o corpo da mulher, se protegendo das flechas que fincaram profundamente no corpo dela, sem ao menos deixar cair uma única gota de sangue de tão protegido que estava apesar de ter se arranhado bastante. Yashiru ficou deitado por algum tempo, pois ouvia ao seu redor o som de passos que pareciam se aproximar rapidamente. Poucos momentos depois, já era possível ver vários ninjas muito próximos ao corpo, e calçavam um tipo de sapatilha branca. Ronin aproveitou a oportunidade para se levantar e atacar todos em sua volta, criando um círculo de corpos vestidos de branco e manchados com o vermelho vivo dos seus membros arrancados, mas a morte ainda não tinha permissão para levar seus prêmios.
Lentamente, ele se abaixou para tentar arrancar algo além do que já tinha decepado.
— Mais uma vez vou perguntar. Quem são vocês? — Yashiru calmamente indaga.
Com o sangue na garganta e muita vontade de viver, aquele jovem encapuzado tenta se levantar. Sem aviso, uma forte explosão encobriu a área de fumaça, forçando o velho guerreiro a se distanciar com um salto e preparar uma postura defensiva fora daquela cegante fumaça.
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Em pensamento, ele se perguntou:
— Já deveria ter percebido que não eram apenas aqueles malditos. Quantos faltam agora?
A fumaça foi se dissipando lentamente enquanto uma melodia suave se espalha por todo lugar. Os ninjas feridos haviam desaparecido e apenas uma enigmática figura imóvel permanecia. Pouco a pouco a criatura ganhava silhueta humana, com longos cabelos esvoaçantes. Os olhos de Ronin agora podiam contemplar aquela figura trajada com um kimono longo e vermelho, decorado com crisântemos. Nas vestes haviam presas nas costas nove tiras de tecido puído como uma calda de uma raposa, carregando um shimasen, uma máscara de raposa cobre seu rosto, logo em seguida uma doce voz é entoada.
A misteriosa mulher esclareceu serenamente:
— Perdoe meus filhos. Eles têm fome e adorariam se saciar de sua saborosa carne.
Yashiru agressivamente berrou:
— Não brinque comigo sua maldita. Por que me ataca? Mostre o seu rosto!
A canção dá lugar ao som do vento passando por entre os bambus.
Ao desembainhar da sua espada, a mulher mascarada se aproxima em direção a Yashiru, em sincronia com seus passos leves e rápidos. Sem perder tempo, ele preparou sua defesa, arrastando e fincando os pés no chão, como se preparasse para enfrentar a corrente de um rio Bravio. O encontro das espadas parecia como um raio, reluzente e estrondoso, deixando o samurai e seu atacante cara a cara durante alguns momentos. De repente, algo curioso aconteceu e as espadas voaram para longe e como um próprio raio, caíram. A máscara da mulher havia se rompido e a partir daquele momento, podia-se contemplar um rosto delicado como de uma menina, com um pequeno corte na testa. Esse momento durou pouco tempo, pois a mulher saltou rapidamente para traz, colocando suas vestes na frente de sua face. Tentando esconder sua aparência, ela ferozmente gritou:
— Maldito, não se preocupe meus olhos. São as últimas coisas que você verá antes da morte!
Ronin responde sorridente:
— É tão bela quanto habilidosa, mas por que me ataca?
A mulher saca um punhal e corre em direção ao Ronin, enquanto esbraveja:
— Os mortos não precisam saber de nada.
Yashiru zombou enquanto se esquivava com estranha dificuldade dos golpes da misteriosa mulher:
— É a segunda vez que ouço isso por aqui e até agora nada aconteceu. Já é hora de acabar com isso!
Ronin desarma a mulher e começa a partir para cima, atacando o tronco dela através de socos e chutes. Aos poucos, foi percebendo que pareciam inúteis perante a tamanha ira da assassina. Sem muitas chances de revidar, ela lança no rosto do homem um pó avermelhado que o cegou por instantes. A mulher aproveitou a oportunidade para retirar do kimono um leque com pontas tão afiadas quanto a sua própria espada e, sem perder tempo, atacou Ronin atordoado. Sem sucesso. A segunda espada que Ronin carregava aparou aquelas lâminas que tinham sede de acariciar a sua carne.
Yashiru caçoou com certa dificuldade.
— Não importa quantos truques forem usados contra um estrategista como eu.
Os ataques continuavam e o vento que passava por entre as lâminas do leque entoavam a canção do desejo da morte, mas nada parecia surtir efeito contra aquele homem. A mulher então urrou como um demônio sedento de sangue.
— Morra! Morra!!! Morra!!!!!!!
O sibilar da espada que viajava em direção ao leque mortal desarmou mais uma vez aquele monstro em forma de mulher. O golpe foi tão poderoso que fez com que o leque ficasse preso no alto de um bambu, a metros de distância.
Yashiru raivosamente segurou a mulher pelo pescoço, pressionando seu corpo no chão e disse:
— E a última vez que lhe pergunto. Quem são vocês e ... argh, o que é ...isso? ...arrrgh!
O braço com que prendia a sua adversária adormece completamente, fazendo com que a mulher seja libertada de seu agarramento. Ela se levanta de maneira rápida e, respeitosamente esclareceu: — Sua habilidade e bravura merecem meu respeito. Antes de morrer pelas minhas mãos, lhe responderei o que deseja saber. Sou Shizune Adachigara, líder do Clã Kitsune ni kaze, protetora da Floresta de bambu e quem vive nela. Yashiru se ajoelha e sente seu corpo paralisar rapidamente. Enquanto Shizune busca seu leque, as portas do céu se abrem para levar o invasor da floresta. O vento parou. O suor do combate escorria inclemente e os corações palpitavam ferozmente, até que a lâmina se elevou, a respiração passou a normalizar até que a primeira artéria se rompe, lavando o chão de sangue. Quando a cabeça se separou do corpo, foi possível ver a pureza da cor vermelha enquanto ela se arrastava até parar nos pés de um alto Bambu Imperial.
Shizune havia cumprido sua missão, garantindo por muitos anos a segurança de seus aldeões.
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A Noite de Vic
Davyd Vinicius - davyd.vinicius@gmail.com Victória chega na festa de casamento de sua tia junto com seu marido Raphael. Ela estava apreensiva pois sabia que iria reencontrar Carlos, seu grande amor de infância. Essa seria a primeira vez que eles se veriam depois que Carlos voltou de Nova York, onde esteve estudando durante 5 anos. Ela não fazia a menor ideia de como ele estava, se havia casado, se estava solteiro, se havia mudado ou se estava do mesmo jeito. Mas o maior medo dela, era saber como seu coração reagiria ao vê-lo, e, independente de como fosse, ela teria de se conter, pois seu marido, o homem com quem Victória decidiu passar o resto de seus dias, estava ali ao seu lado. Então eles entraram, cumprimentam alguns amigos e parentes, foram até os noivos para parabenizá-los e caminharam até a mesa aonde vão ficar. Já sentados, Raphael percebe que Victória está nervosa e pergunta:
— Vic, está tudo bem?
— Sim querido, por quê não estaria?
— Por que você está nervosa e não para de olhar para os lados? Está procurando alguém?
— Procurando alguém?
Victória olha para o lado e vê sua prima que acaba de chegar.
— Estou sim, mas olha ali, minha prima Katty, ela acabou de chegar — Diz Victória disfarçando.
Ela se levanta e vai até a prima cumprimentá-la.
— Prima, esse é o Raphael, meu marido — Diz ela apresentando-a ao Raphael.
Eles se cumprimentam e Raphael diz:
— A Vic estava eufórica pela sua chegada.
Katty sorri e olha para Victória, estranhando, pois ela e Vic nunca foram muito próximas.
Victória, ainda ansiosa, convida a prima para se sentar junto a mesa. Katty, sem conseguir disfarçar o desconforto, aceita.
Victória decide ir até o banheiro. Quando estava voltando, esbarra sem querer em um rapaz, pede desculpas e segue em direção a mesa. Assim quando ela se vira, dá de frente com Carlos vindo em sua direção. Ela observa que ele não mudou muito fisicamente, mas está mais maduro, com roupas mais sofisticadas, com barba e com certeza mais atraente.
Vic tenta disfarçar o máximo sua euforia até que ele chega e a cumprimenta.
— Victória, quanto tempo — Diz ele sorridente.
— Carlos, como você está diferente.
— Sim Vic, os anos em Nova York me fizeram amadurecer muito.
— Pois é, você está muito bonito.
— Obrigado, você também continua lindíssima.
Eles ficam mudos e olhando fixamente um para o outro. Na cabeça de Vic, mil coisas estavam se passando, inclusive a lembrança de quando eles eram menores e o amor que ela sentia por ele. Então, em um milésimo de segundo, eles se esquecem de onde estavam e seus corpos se encontraram, ali no meio da festa, e se beijaram com toda intensidade de seus corações, revivendo pelo menos um instante do passado. A festa para e todo mundo começa a olhar para eles. Victória escuta um grito e sente que Carlos foi empurrado. Quando ela olha para o chão, encontra Raphael batendo em Carlos. Desesperada, tenta separar os dois e aquilo vira uma grande confusão, até que os dois são finalmente separados. — Victória, o que é isso? Se você queria acabar com a minha festa de casamento, muito bem, você conseguiu! — Diz a tia de Victória chorando.
Então ela sai correndo e algumas pessoas vão atrás.
Envergonhada, Victória vai para um jardim que estava vazio e começa a chorar. Depois de alguns minutos, Carlos aparece e a pede desculpas por tudo o que aconteceu.
— Tudo bem Carlos, agora já aconteceu, fazer o quê. Agora só me deixe um pouco sozinha.
________ ENTRE CONTOS página 7
Eles ficam ali calados durante alguns minutos, até que Carlos diz:
— Vic, eu tenho uma ideia. Vamos embora daqui, vamos ficar juntos. Você larga desse cara e nós vamos ser felizes.
— O que? Você só pode estar louco.
— Não Vic, eu sei que você gosta de mim, você me beijou!
— Carlos, esse beijo foi um impulso. Eu amo o Raphael e é com ele que eu vou passar o resto da minha vida. E a propósito, eu vou atrás dele, que é quem realmente me importa. Adeus Carlos. Victória vira as costas e vê Raphael no portão. Ela vai em direção dele, mas antes dela dar dois passos, Carlos a puxa pelo braço e a beija mais uma vez, fazendo com que Raphael veja tudo novamente.
Raphael vai embora, enquanto Victória furiosa empurra Carlos e sai correndo atrás de seu marido.
Ela procura por tudo, mas não o encontra na festa, liga para o celular dele, mas só dá na caixa postal. Ela então vai para casa na esperança de o encontrar lá. Ao chegar em seu apartamento, abre a porta às pressas. Quando entra, procura ele por todos os cômodos. Assim que ela chega no quarto, vê ele de costas, sentado na cama e virado para a parede. Vic começa a falar: — Raphael, meu amor, me desculpa por tudo aquilo. Você sabe que eu te amo muito e é com você que eu quero passar o resto da minha vida.
Mas ele permanece do mesmo jeito. Ela senta-se atrás dele e passa a mão no seu cabelo.
— Tudo bem Vic, mas agora vamos deitar e esquecer toda essa história.
Ela o abraça, eles deitam-se na cama, começam a se beijar e, entre os beijos, Victória diz:
— Eu te amo muito e jamais te trocaria por qualquer outro homem.
Ele olha para Victória e quando ela olha para os olhos dele, vê os olhos de Carlos, e ele então diz:
— Eu também te amo.
Quando o dia clareia, Victória acorda com Raphael a chamando:
— Vic acorda! Temos que ir buscar o seu vestido para a festa da sua tia hoje à noite.
Assustada, senta-se rapidamente na cama, fica durante alguns minutos pensando e começa a gargalhar.
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Circuitos
Thiago Guimarães Pantaleão - tg.pantaleao@gmail.com
“Qual é o animal que de manhã anda com quatro pernas, de tarde com duas e de noite com três?”
Revia novamente o áudio da mensagem, e como em todas as outras vezes, nenhum dado novo foi gerado.
Já fazia muito tempo que seu circuito adaptável revia esta mensagem tão... indecifrável.
A informação provinha de um mamífero dominante e, apenas por esta característica, fora armazenada em uma seção especialmente designada de sua memória. Os chamados “dados coletados” não possuíam nenhuma aplicação imediata para a sua unidade e, por este motivo, deviam ser descarregados e armazenados em uma estação. Porém, em seu atual estado de integridade – o qual não permitia locomoção – seu programa, em uma tentativa de encontrar uma solução para sua atual situação, fora forçado a desenvolver uma rotina adaptada para analisar os tais “dados coletados”... ... porém, mesmo depois de tantas análises de todos os dados daquela unidade; mesmo depois de redirecionar grande parte de sua capacidade processual para aquela tarefa (afinal, qual seria o problema em deixar de realizar análises de equilíbrio e locomoção quando não possuía mais pernas?); mesmo depois de rever incessantemente a mensagem do mamífero em conjunto ou não com a danificada seção de dados que mostrava o animal envergado, encarando seus visores de muito perto com os músculos frontais do rosto flexionados a mostrar os dentes (curiosamente apenas de um lado do rosto ); mesmo depois de tantos ciclos...
... a pergunta permanecia indecifrável.
Era uma pergunta, então deveria haver uma resposta. Qual seria a solução? Que tipo de animal teria tais características? Sua unidade não era especializada em análises, porém o fato de, mesmo não precisando, não possuir uma resposta era... inquietante. O mamífero e sua unidade haviam acabado de sair de um confronto e, em vez de desativá-lo, o vencedor lhe passara a tal mensagem... e ficou esperando, possivelmente por uma resposta... que nunca veio.
Isso fora a quatro mil e setenta e um dias, três horas, trinta e quatro minutos e treze segundos.
E em todo este tempo a pergunta apenas lhe gerava mais perguntas.
Se após não achar uma solução e não conseguir concluir nada de útil que pudesse ser proveniente da possível resposta, por que motivo ele continuava a analisar a mensagem? Porque concluíra – mesmo não havendo base para sua conclusão – que aquela informação poderia representar mais do que um simples assomo de palavras incabíveis?
Seria instinto?
Afinal, instinto era, segundo sua antiga base de dados criada pelos mamíferos dominantes, “uma informação armazenada em uma memória inerente que era indiretamente acessada em específicas situações (como auto preservação do indivíduo e da espécie) para criar conclusões e ações que não tinham justificações com base definida”. local.
Douglas Froiler havia depositado esta informação na matriz que gerara esta unidade e todas as outras que foram criadas no mesmo
E repentinamente um novo dado foi gerado.
Seu instinto seria proveniente de uma informação não depositada e não diretamente acessível? Seria isto uma característica de sua unidade? De sua designação? De sua... espécie?
Seu processamento analítico foi interrompido.
Um diagnóstico foi chamado.
...
Conflito com Axioma principal.
Atributo “espécie” não condiz.
Rotinas analíticas comprometidas.
Aplicando correção... Falha.
Substituindo dados e rotinas atuais por equivalentes anteriores estáveis...
...
________ ENTRE CONTOS página 9
... ...
“Qual é o animal que de manhã anda com quatro pernas, de tarde com duas e de noite com três?”
________ ENTRE CONTOS página 10
Escreva Sobre a Minha Morte Pietro Vaughan - pietroestudio@gmail.com
Hoje. John Reed, desperta com uma arma calibre .38 na mão e com a polícia esmurrando a porta de seu quarto. Um policial grita o nome dele, mas John não responde. Ele sabe que não terá destino melhor do que o destino da mulher deitada ao lado dele. Ela foi morta com um tiro na cabeça. Os policiais chutam a porta para abri-la. John sabe que é questão de segundos para ser preso ou morto. Ele confere o tambor da arma e encontra uma bala. Duas semanas atrás. O pequeno quarto na pensão para rapazes da Senhora Sophia, está um caos. Cama desarrumada. Portas do guarda-roupa abertas. Garrafas de vinho barato no chão. A vitrola tocando um disco riscado de jazz. Tudo refletindo o caos na mente de John Reed. Ele é escritor. Mas, tem um mês que ele não escreve uma única palavra do novo livro. A folha na máquina de escrever continua em branco e enchendo-se de poeira. O primeiro livro escrito por John escreveu-se praticamente sozinho. Ele o escreveu em um mês e da mesma maneira rápida ele conseguiu um editor para publicá-lo. Assim o primeiro romance policial do escritor de vinte e cinco anos foi um sucesso. Do tipo bonitão, John não apenas conseguiu ter seu rosto estampado na contracapa do livro, mas seus olhos esverdeados estamparam os jornais da cidade e ele foi visto com belas mulheres em bares e gastando rapidamente o que ganhava com as vendas. Para o segundo livro, John tem problemas. Está apenas na quinta página do primeiro capítulo. Ele já recebeu o adiantamento do livro e mais dinheiro apenas quando terminar. John mal ouviu a leve batida na porta. Ele caminha até a porta, empurrando uma garrafa de vinho vazia para embaixo da cama. Ao abrir a porta, John depara-se com uma mulher muito bonita, de expressivos olhos negros e pele branca como porcelana. Usando um vestido preto até a altura dos joelhos, um casaco de peles, delicadamente perfumada e que escondia a baixa estatura com saltos altos. John não precisou convidá-la para entrar. Ela se convidou antes que ele pudesse dizer qualquer coisa. John percebeu que ela observava o caos do quarto e se envergonhou por ter uma mulher ali naquelas condições. A mulher se apresentou como Beatriz Cray e finalizou a apresentação dizendo: — Eu preciso que você escreva a minha história. — ela observava o homem de roupas amassadas e barba sem fazer — Eu serei assassinada em duas semanas. Diante da perplexidade de John, a mulher deu-lhe um sorriso gentil e apontou para a mesa onde estava a máquina de escrever. John convencia-se de que estava muito bêbado para ter um delírio desses. Um pouco confuso com a situação, ele obedeceu e ela puxou uma cadeira e se sentou ao lado da mesa onde John usava para escrever. Beatriz então disse a ele: — Você escreverá a história de uma menina que veio para Hollywood querendo ser estrela e acabou morta, com o corpo enterrado em um lixão. Se você não escrever a minha história, ninguém nunca saberá onde encontrar-me e o assassino nunca será preso. – John fez menção em dizer alguma coisa e ela o silenciou com o dedo indicador em sua boca:
— Apenas escreva. — ela disse — Você tem muito para escrever.
John obedeceu. Escreveu por horas ouvindo a voz suave daquela mulher. Ele escreveu até o anoitecer quando ela se levantou e foi embora, prometendo que voltaria no dia seguinte. Ele não acreditou, pensava que havia batido a cabeça e estava desmaiado e delirando. John acordou pela manhã, lúcido e bem, sem ressaca. Mal havia aberto os olhos, quando ouviu as batidas na porta e ao abri-la, lá estava Beatriz, com o café da manhã nas mãos, além de um bloco de folhas brancas para ele usar. Assim, eles passaram uma semana e meia. No dia que ela combinou que escreveriam o último capítulo, Beatriz não apareceu. John há esperou o dia todo e no outro dia também. Ele a esperou por uma semana. Relendo o que escrevera, John ouve uma batida forte na porta e corre para abri-la. Não era a Beatriz, mas seu editor Irvin Stuart coçando a careca escondida embaixo do chapéu.
— Cadê o meu livro? — resmunga Irvin acendendo um cigarro ainda na porta.
John olhou para os manuscritos empilhados e os entregou para o editor. No dia seguinte, um telegrama foi entregue para John e era a resposta de Irvin: “Você tá maluco? Tem ideia com quem está mexendo? Precisamos conversar”. O encontro dos dois se deu em um café e nada que John dizia convencia Irvin da veracidade dos manuscritos.
— Ela está morta. — disse John — Eu te levo até o corpo.
Preocupado Irvin coçava a careca. Ele conhecia o histórico de Michael Storm, conhecido produtor e diretor de cinema de Hollywood e acusado no livro de ser o assassino de Beatriz e como aquela história ia acabar para os dois. Mortos e jogados em uma vala. O editor concordou em acompanhar John e eles caminharam até o lixão da cidade e com as próprias mãos, John escavou o local indicado por Beatriz como o lugar que ela seria enterrada. John nada encontrou.
— Eu falei que você enlouqueceu... — disse Irvin — olha o seu estado. — Mas, ela falou que estaria aqui. Eu sei que ela foi morta.
— Eu ainda quero o meu livro — disse Irvin indo embora.
John voltou para a pensão. No quarto ele tinha a visita de dois homens corpulentos, mal encarados e bem vestidos estavam a sua espera. John soube na hora que estava ferrado. Eles o atacaram e o espancaram deixando-o quase que inconsciente e o levaram.
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Horas depois, John despertou amarrado em uma cadeira na sala de visitas da casa de Michael Storm. Mesmo com os olhos inchados John reconheceu Beatriz amarrada a outra cadeira do outro lado da sala. — Pela sua reação, o senhor pensou realmente que ela estivesse morta. A nossa Beatriz te contou uma ótima história. Gostei da ideia do diretor malvado que mata a amante em um acesso de ciúme. Ela só esqueceu-se de contar que ela não passa de uma atriz de talento duvidoso, de papéis pequenos e que pretendia fugir com o meu dinheiro e com um iluminador de um dos filmes B que ela estreou. Cara, ela te enganou direitinho e quase me enganou também. Beatriz olha para John balançando negativamente a cabeça. Michael empurra a cadeira de Beatriz no chão. Ele a puxa pelos cabelos. Ele a olha nos olhos. Puxa uma arma e atira na cabeça da mulher. John grita. O diretor olha para o escritor e sorri:
— Ela sempre me disse que tinha poderes e que era capaz de prever o futuro. Acho que ela não previu o final do livro de vocês?
Em choque, John é levado pelos capangas. Ele acorda no quarto, na cama ensanguentada com as batidas fortes na porta ao lado do corpo de Beatriz e um revólver na mão. Ele não tem como fugir. Um policial arromba a porta e entra. John saca a arma e atira contra a própria cabeça. Na mesa, o manuscrito do livro, com o final reescrito por Michael com John dando um tiro na própria cabeça.
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Karen
Vicente Carlos Miranda - vicentecarlosescritor@gmail.com Mesmo atrasada, Karen continua se arrumando lentamente. O celular toca, mas ela o ignora. Ao tocar novamente, ela atende insatisfeita.
— O que é, Marina?
— Karen, você ainda está se arrumando? Vamos chegar muito tarde para a festa. Já são nove e quinze da noite e estou te esperando desde as oito. — Marina, não enche! Se eu fosse você, parava de me ligar se ainda quiser que eu te busque para a festa. Você não vai querer perder a carona para ir de ônibus, não é mesmo? Lembre-se que você mora neste bairro suburbano, bem longe da boate.
Do outro lado da linha, chateada, Marina desligou o celular, trocou o vestido pelo seu pijama e foi se deitar aos prantos. ***
Karen tem 22 anos e, apesar de seus longos cabelos loiros e de sua aparência angelical, sempre foi uma garota difícil. Por sorte ou por causa do destino, sempre teve tudo o que quis. Como seus pais nunca se dedicaram o suficiente pela sua boa educação, Karen passou a estabelecer suas próprias regras. *** Quando Karen finalmente termina de se arrumar, às nove e meia, liga para sua outra amiga Bruna, quem também combinou de dar uma carona para a boate.
— Bruna, estou saindo agora. Já pode me esperar aí em frente da sua casa.
— Ok amiga, até logo!
Ao chegar em frente à casa de Bruna com o seu Porsche vermelho conversível, ela não a encontra. Irritada, começa a buzinar insistentemente. Em pouco tempo, Bruna aparece no portão de sua casa.
— Pare Karen, assim você acordará toda a vizinhança.
— Onde você estava? Te pedi para me esperar aqui em frente.
— Havia esquecido a minha bolsa lá dentro — explica Bruna.
— Vamos embora, Bruna. Não tenho mais tempo a perder.
Enquanto segue em direção à festa, Karen pega a sua lata de energético já preparada com uísque no porta-copo do carro e começa a beber. Faltando poucos quarteirões para chegar ao local do evento, as duas jovens são surpreendidas por um policial que acenava pedindo para elas encostarem o carro. Sem falar nada, Karen entrega ao policial uma falsa carteira de estudante de Direito, juntamente com duas notas de cinquenta escondidas por trás da carteirinha de estudante. — Boa noite menina. Você não acha que vai me comprar com apenas cem reais dirigindo este Porsche, não acha? — diz o policial com um sorriso sacana.
— O que posso fazer para acertar isso então? — responde Karen com um tom de voz firme e uma expressão séria.
— Primeiro você precisa descer do salto, menina. Se quiser continuar seu passeio, vai precisar desembolsar pelo menos quinhentos reais. E isso não é mais pelo Porsche.
Irritada, Karen pega todo o dinheiro da sua carteira e entrega para o policial. Ao receber o dinheiro, ele conta as notas de vagar.
— Nada mal, oitocentos reais. Vá embora menina, antes que eu tome este carro para mim.
Já furiosa, ela acelera o carro e arremessa a sua lata de energético em direção a um mendigo que dormia na esquina.
— Bruna, você me deve a metade desse dinheiro! — exclama Karen com um tom de voz agressivo.
— Mas eu não tenho nem a metade disso hoje.
— Se vira. Pague a minha entrada na boate hoje e transfira o restante amanhã usando o seu cartão de crédito. Inclusive, me dá o
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seu cartão de crédito agora. Não quero ficar careta nesta noite.
— Tudo bem Karen. — responde Bruna com um tom de voz manso, entregando o seu cartão.
Após entrarem na boate, as duas jovens se separam à procura de diversão. Ao dançar algumas músicas, Karen percebe um rapaz que a observa olhando fixamente. Ele era branco, tinha olhos verdes e estava trajando uma camisa social branca.
Ela se aproxima um pouco e começa a provocá-lo dançando de maneira mais ousada. Ele sorri.
— Qual é o seu nome? — pergunta Karen.
— Me chamo Henrique.
— Você não quer saber como eu me chamo?
— Não preciso, já sei o seu nome.
— Mesmo? Como sabe?
O rapaz apenas sorri novamente.
— Você quer mais uma dose de uísque? Essa fica por minha conta. — pergunta Henrique.
Karen aceita. Após algumas doses de uísque entre uma dança e outra, ela começa a perder seus reflexos e a noção do tempo. Já um pouco bêbeda, ela fala bem próximo ao ouvido de Henrique:
— O que você quer de mim?
— Pergunta errada. Você quem está à minha procura. — responde Henrique de maneira muito estranha.
Karen fica um pouco confusa. Como já estava ficando bêbada, ela o beija. Depois do beijo, Henrique pergunta:
— Está pronta para se entregar?
— Mas é claro que sim — responde Karen com um sorriso.
— Então você vai sentir algumas mudanças a partir de hoje.
Karen não entende muito bem o que ele diz, mas não se importa. Depois de mais algumas doses de uísque, Karen não vai se lembrando de tudo o que acontece até o fim da noite. Ao acordar no dia seguinte com uma forte dor de cabeça, Karen se lembrou dos terríveis pesadelos que ela teve enquanto dormia. Ela não se lembrou de nenhuma imagem ou situação. Esses pesadelos se resumiam apenas nos sentimentos negativos que ela transmitia para outras pessoas através de suas atitudes. Ela colocou a mão na cabeça e sentiu uma mancha de sangue em seus dedos, que vinha de um pequeno corte na sua testa. Karen fechou os olhos e se lembrou de Henrique, com o seu olhar fixo e dominante sobre ela.
A partir daquele dia, Karen passou a ter vários pesadelos durante suas noites. Isso a perturbava e a deixava cada vez mais confusa.
Após uma semana, Karen passou a ver imagens estranhas em seus pesadelos. Na última noite, sonhou com Henrique pregando suas mãos em uma tora de madeira. Quando observou em sua volta, percebeu que estava sendo crucificada por ele, em um lugar escuro e em chamas. Fora de controle, Karen acorda e se levanta da cama rapidamente. Ainda de pijama, corre até a cobertura de seu prédio e, sem hesitar, pula da sacada.
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Luz da Lua
Lina Stefanie - linarenascense@gmail.com Pouco mais de um ano havia se passado após a grande tragédia em minha vida. Morávamos papai, dois irmãos e eu em um barraco no subúrbio de São Paulo. Após o desaparecimento de mamãe nenhum vento brando soprara sobre nossas cabeças. Quisera eu ainda ser criança naquela época em que tudo era perfeito, tudo era ameno e remediável. Na ânsia de crescer esquecíamos o presente, as brincadeiras no quintal, os animais correndo soltos.
A mãe nos olhando dizia:
— Vocês serão muito felizes, merecem toda felicidade do mundo.
Um desejo fidedigno que lateja dentro da alma de uma mãe. A simplicidade e a luta constante em uma vida que tanto a castigou. Apesar de todas as mazelas jamais se deixou abater, jamais jogou o fardo no chão, agarrando-se ao amor pelos filhos, batalhou sem cessar até vê-los caminhar com os próprios pés. O aroma do café pela casa, a música cantada alto, o arrastar dos chinelos, sons mais perfeitos de serem ouvidos ao amanhecer, o dia já nascia bom por mais que a mesa não estivesse repleta, estava cheia de amor. As brincadeiras de criança que corria pelo mato, sujo de terra vermelha, sem ter hora de acabar, só eram interrompidas pelo chamado doce da genitora convidando para o almoço. Ah, a comida servida tinha o melhor sabor que as papilas gustativas poderiam experimentar. Tudo muito simples, mas misteriosamente saboroso. Engano chegar a crer que nada mudaria, que o tempo não findaria, que tudo permaneceria em seu devido lugar. A vida não perdoa e segue seu rumo, o destino se incumbe de dar continuidade à sina que nunca é como pensamos. Lembro como fosse hoje, aos oito anos de idade, no dia de finados, mamãe nos acordou bem cedo com o café pronto sobre a mesa da cozinha. Como era de costume tomamos o café juntos e mamãe sempre carinhosa, repetiu por diversas vezes o quanto nos amava. Após o café beijou-nos e disse que iria até o cemitério da cidade visitar o túmulo de nossos avós.
Mesmo com pouca idade eu já senti que aquele seria o último café, senti como fosse uma despedida.
rastro.
E não foi diferente. O pressentimento infantil não errara e depois deste dia nunca mais vimos mamãe, nenhuma notícia, nenhum
Papai tornou-se alcóolatra e mal cuidava de nós contando sempre com a ajuda de estranhos. Tempos depois veio a falecer por moléstias causadas pelo abuso do álcool. Não muito tarde perdi também meus dois irmãos para o mundo das drogas. Lembro como hoje o dia que tive de ir ao Instituto Médico Legal para fazer o reconhecimento dos seus corpos. Encontrei-os jogados de qualquer jeito sobre uma maca no frio corredor, mortos por várias perfurações de projéteis de armas de fogo. Após a cena horrenda presenciada por mim ainda muito jovem decidi que não teria o mesmo fim. Este fora o meu primeiro contato com a morte. Após alguns concursos públicos fui selecionado para o cargo de zelador no cemitério regional. Em tudo tive sorte, pois poderia morar no local. Zeladoria seria apenas mais trabalho, mas no momento de necessidade não tinha escolhas. O local era agradável, amplo, limpo, bem arborizado. A casa era demasiada grande para as minhas necessidades. Grande responsabilidade para um jovem no auge dos vinte anos. Encarei o trabalho com gratidão. Teria moradia e alimento. Uma tranquilidade após os tempos de tristeza que passaram. Havia dias de muito trabalho e dias de sossego. Numa cidade grande como São Paulo pessoas morrem todo o tempo. Entre enterros e exumações de cadáver aprendi muito. Tornei-me outra pessoa. Amadureci. Acabamos compreendendo que as coisas não acontecem somente conosco. O sofrimento está por toda parte. Dias e meses se passaram e observei que tudo se tornava mais fácil. Não sentia medo ou receio de morar no cemitério, não temia os mortos enterrados e exumados diariamente. Nada disso me assombrava. Meu único desassossego eram os sonhos que povoavam minhas noites. Tinha sonhos apavorantes, gritos e gemidos lamuriantes. Uma mulher ensanguentada pedindo socorro. Perdi as contas de quantas vezes acordei desesperado e assombrado com as aparições.
A vida tinha de prosseguir.
Estava sentado na calçada da casa de frente para uma grande árvore frondosa, sentia o vento quente da tarde de agosto tocando meu rosto. Uma sensação de calma e quase torpor. Minha vista caminhou por todos os túmulos à minha frente, percorrendo também o muro branco que circundava o cemitério. Distraí-me por alguns minutos observando os arredores até que uma luz branca me tirou da letargia. Olhei para o alto da árvore à minha frente e me surpreendi com o que vi. Uma mulher sentada de costas para mim no alto daquela árvore. Num salto me levantei e me aproximei.
Seus cabelos dourados balançavam ao sabor do vento cobrindo por completo seu rosto. Andei devagar sem chamar atenção. Em
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certo ponto senti que minhas pernas já não me obedeciam. Uma dormência nos membros me fez congelar. Algo sobrenatural tomou conta de meu corpo, foi quase uma lembrança, um aroma peculiar tirando-me da dormência. Estiquei uma das mãos como pudesse alcançar aquela visão. Um misto de dor física e padecimento da alma. Neste momento ela levantou-se, ainda de costas. Seu rosto era ainda uma incógnita. Com destreza, tirou do meio da folhagem uma corda, enrolou firmemente no pescoço e jogou-se do alto com violência. O barulho ecoou na minha mente. Fui jogado longe, como se mãos invisíveis me controlassem por cordões. De súbito levantei-me. Pernas trêmulas, cabeça latejando. Esfreguei os olhos e fitei aquela cena. A mulher permanecia pendurada. Balançando devagar. Cabeça de lado, cabelos cobrindo o rosto, pés esticados. Aproximei-me ainda incrédulo como se tudo não passasse de uma visão. Toquei aquele corpo inerte, afastei os cabelos do rosto e qual não foi minha surpresa ao vislumbrar o rosto de mamãe. Após tantos anos seu rosto permanecia o mesmo. Ajoelhei-me e chorei. Ao abrir os olhos já não a vi. Levantei-me e me aproximei da árvore. Com dificuldade escalei o tronco. Sentei-me no galho mais alto. Aquela corda estava mesmo ali. Posicionada estrategicamente como se esperasse por mim. Conferi os nós e a prendi no pescoço. Tarde para qualquer reação, tarde para desistir. Apenas me joguei-me, sob a luz da lua, nos braços da morte.
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Minhas Impressões Sobre Este Mundo Renato Silva - renatopuliafico@yahoo.com.br
Esta é a minha primeira postagem neste blog. Não sei se alguém irá ler, pois faz um ano que vago por aí e não encontro uma “alma viva” sequer. Resolvi escrever um pouco sobre mim; não acho justo passar por este mundo sem ser notado. Se um dia alguém ler isto, pelo menos saberá que existi. É engraçado que eu nunca pensei sobre essas coisas, nunca me importei em escrever sobre mim ou qualquer outra coisa. Só que agora tudo é diferente, estou num lugar estranho e completamente sozinho. Não sei nada sobre este mundo e não há ninguém que a quem eu possa pedir ajuda. Por algum motivo, não me lembro qual, estive dormindo por muitos anos. Em minhas últimas lembranças, eu tinha 24 anos e o ano era de 2010. Eu tinha pai, mãe, namorada, cachorro e alguns amigos. Tinha emprego, praticava esportes e nenhum problema de saúde. Lembro vagamente desta vida que levava, mas não me lembro de coisas desagradáveis. Até agora não entendo porque estive naquela câmara. Me olho no espelho e vejo algumas marcas da idade em meu rosto. Será que envelheci durante a minha hibernação ou será que não consigo me lembrar dos anos seguintes, estando eu mais velho e em um outro momento da minha vida? Estive dormindo por muitos anos, não sei quantos. A contagem do tempo mudou, os computadores marcam como ano 74. Que evento deve ter acontecido para que os computadores tivessem iniciado uma nova contagem do tempo? Não há nada na rede que seja anterior ao ano 0 desta nova era. Também não achei livros ou revistas impressas, só há material digital e com menos de 75 anos. Acordei numa sala de baixa iluminação, limpa, paredes claras, sem qualquer inscrição nelas. Eu estava vestindo uma roupa clara e leve, sem qualquer inscrição. Na mesma sala havia mais sete câmaras iguais à minha. Seis estavam fechadas, vazias e desativadas; apenas uma estava aberta. Eu não sei explicar o que sentia naquele momento. Estava confuso, tonto e com a visão embaçada. A baixa iluminação da sala parecia ter sido pensada para não agredir aqueles que viessem a acordar após um sono tão longo. Sentei um pouco no chão, esperando recobrar o equilíbrio e a visão. Após uns minutos, me levantei e saí. Fui caminhando lentamente até à porta. Havia um grande corredor, tanto à minha direita, quanto à minha esquerda. O prédio era relativamente grande, com vários andares; eu estava no meio. Até hoje não sei se aquilo era um hospital ou uma universidade. Com exceção da sala de hibernação – que estava impecavelmente limpa – o restante do prédio estava carregado de pó em algumas salas e com pequenas vegetações crescendo em alguns pontos de rachadura e umidade. O prédio era bem moderno, algo que eu nunca tinha visto antes. Parecia cheio de sensores e sistemas que mantinham o ambiente um pouco mais limpo e iluminado. Pelo tempo de abandono daquele prédio, era para estar muito pior. Consegui alimentos numa grande sala destinada a este fim. Os alimentos estavam muito bem embalados, num sistema que não existia em minha época. Deviam estar ali há muitos anos, mas nada estava estragado. Nada do que comi me caiu mal. Além dos alimentos industrializados que achei, havia no térreo uma grande horta que se transformou num grande matagal. Não me faltaram alimentos durante esse tempo todo. Após alguns dias, tomei coragem e saí do prédio. Já estava bem lúcido e ansiava por encontrar alguém que me dissesse o que estava acontecendo. Do lado de fora, vi uma rua mais fechada e toda arborizada. Não havia pessoas, tudo parecia abandonado, mas nada que parecesse ter sido destruído. Havia vegetação alta em algumas calçadas e muitos animais passeando por entre as copas das árvores. Em dado momento, me deparei com um bando de cães. Tentei me aproximar deles, mas eles não foram amistosos. Ao mesmo tempo que pareciam com medo, me hostilizaram com rosnados e a exibição de seus caninos afiados. Virei para outra direção e andei bem rápido. Estes cães se tornaram selvagens, após tantas gerações, sem conviverem com pessoas. Melhor assim, para eles. Os prédios da cidade não eram muito altos, a cidade parecia ser do tipo “interiorana”, apesar da aparência moderna de suas construções. Vi muitos veículos abandonados. Não consegui ligá-los. Desde então, venho fazendo minhas viagens numa bicicleta extremamente leve e confortável. Depois que saí da cidade, percorri muitas vilas e propriedades rurais abandonadas. Via animais de todas as espécies, muita vegetação, água em abundância, mas nenhum vestígio humano. Nem restos mortais encontrei. Cheguei a esta base há uma semana. Foi aqui que consegui acessar um computador pela primeira vez. Agora posso contar sobre mim para quem estiver acessando esta rede. Tenho um caderno de anotações, mas postando na rede será muito mais fácil eu achar alguém – ou alguém me achar. Não acredito que sou o último homem da Terra. Tenho muitas dúvidas, preciso esclarecê-las. A dúvida me angustia e me deixa sem saber o que fazer. Não sei para onde ir, o que mais fazer. Por enquanto, ficarei aqui; talvez até os meus recursos acabarem. Logo partirei, mas não sei para onde e se neste lugar terei abrigo e alimentos.
Esta é a minha primeira postagem. Voltarei a dar notícias.
05/07/0074
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Nas Trevas de Memphis Vitória Viana - vianaalves25@hotmail.com
Tennesse, Memphis – 1961.
Acabara de chegar de uma viagem calma de Chicago. Nunca pensei estar feliz por ter chegado em Memphis, logo a cidade em que Mabel nasceu. Antes de nosso casório, já sabia a quão nostálgica ela estava de sua querida cidade. Tudo me cansa neste exato momento. Baixei o jornal que cobria todo meu rosto e ele tinha como centro do papel a seguinte notícia: “Terror em Tennesse - Assaltos aumentam mensalmente nas ruas de Memphis.” Isso era o que me deixava mais aflito, não de minha parte, pois nunca nada me aconteceu, mas Mabel não perdera tempo de se exibir pela cidade, mostrar que estava de volta e claro, usufruir de seus gastos com vestes e outras bobagens que gostava. Ela sabe o que acontece lá fora, mas prefere fechar os olhos e viver a ilusão de sua antiga cidade maravilhosa. Eu não mostrava tanto entusiasmo naquela noite de quarta-feira. Desacompanhado, a poltrona já não estava mais confortável para mim. O som de minha vitrola soava baixo como eu apreciava de costume. Saí daquele lugar aconchegante, indo em direção ao enorme quadro que estava dependurado à parede. Esse quadro era uma fotografia de família do senhor e da senhora Collins, Mabel e seu irmão mais velho Bill. Não sei por que eu olhara aquele quadro. Por estar sozinho, qualquer coisa me chamava atenção. A mais clara das cortinas acobertava a imensa janela da sala. Ela se estendia cautelosamente toda vez que eu olhava para ela. Aparentemente depois de me cansar vendo aquele quadro, meu olhar se pôs diretamente à porta. Eu sonhava acordado com a volta inesperada de Mabel. Tinha pequenas alucinações daquela porta se abrindo. De repente, as lâmpadas do lustre acima da poltrona começaram a piscar sem controle algum. A cortina se estendeu violentamente ao mesmo tempo em que uma queda de luz cobriu toda casa com a escuridão. A vitrola não deixava escapar nenhuma música mais. A porta escancarou num estalo só e meus olhos correram em direção a ela. Também acobertada pela escuridão, não conseguia ver nada na entrada, nem sequer a porta. Mesmo assim, não tirava os olhos dali. Minha mente dava origem a um monte de cenas estranhas e, ao mesmo tempo, imagens e desenhos padrões e coloridos. A escuridão não passava de um quadro negro para se desenhar naquele momento. O estalo soou novamente e um som de um arranhão me dava arrepios, sabendo que a porta estava abrindo cautelosamente. Engoli seco e dei alguns passos à frente não enxergando nada. O silêncio veio de novo, a porta estava realmente aberta. Aberta ao ponto de me expor à rua lá fora naquela escuridão. Naquele momento, começou a subir um arrepio juntamente com o frio vindo de fora, me gelando por dentro. Escorei-me na parede um pouco ofegante. Saí de lá tateando os móveis para encontrar o criado mudo que eu tinha certeza de ter uma vela por lá. Por sorte, eu a encontrei, mas o fósforo não estava lá. Um som de pisada surgiu do meu lado direito e parecia se aproximar. Eu só conseguia pensar no horror que estava passando, ou pior, o horror que Mabel poderia estar passando lá fora. Corri em direção à cozinha abrindo o armário de porta em porta tentando procurar um pires e um fósforo. Com sucesso, os dois foram encontrados. Acendi o fogo desesperadamente, rezando para que nada me acontecesse naquele momento. Caminhei pela sala devagar para que a vela não se desequilibrasse. Tudo parecia calmo agora, mas o medo continuava comigo. Ainda que amenizasse um pouco, eu ainda o mantinha comigo. O lustre agora estava acima de minha cabeça. Fiquei esperando algo acontecer, mas nada vinha e nada se manifestava. Ouvi um barulho vindo de lá de cima. Agora eu tinha certeza de que alguém estava lá. Estremeci indo para o corredor da porta dos fundos. A porta cheia de vidro e texturas indescritíveis ficava no final do corredor. Nunca sequer a abri, mas agora pensava em abri-la e fugir do meu próprio aposento. A luz da lua refletia na porta, trazendo iluminação para o corredor. Amparei-me na parede mais uma vez, apertava o peito com minha mão direita e, num sopro respirando fundo, apaguei a vela. Com isso, joguei o pires no chão junto à vela. O som do pires batendo no chão soou girando constantemente no piso de madeira aos meus pés. Os passos voltaram a ecoar outra vez. Sentia-os chegar bem perto de mim, pareciam ser múltiplos passos. Corri para o fundo do corredor numa velocidade incontrolável. Quando senti estar perto da porta, me joguei atravessando aqueles vidros. Eles agora não tinham mais texturas padrões de encontro um com o outro, eram apenas cacos jogados ao chão no quintal. Deitado, agonizado pelas dores causadas pelo impacto e pelos cacos de vidro perfurados aleatoriamente ao meu corpo, não percebia nada ao meu redor.
— Mas que raios estão me acontecendo? — Gritei pela dor, inconformado com a situação presente.
Estava começando a chover. A garoa me jogava água no rosto enquanto as gotas aumentavam, ao ponto de quase me lambuzar ao barro do quintal. Dois vultos passaram a assombrar a parede do corredor. Via de lá fora as sombras trêmulas se aproximando. Eram dois homens bem trajados. Um deles vestia um terno escuro combinando com a gravata e o outro tinha apenas uma camiseta e calça social junto com um suspensório cor-de-vinho. O segundo homem me parecia bem familiar. Eles me olhavam feio. Tentei me levantar sem que me machucasse novamente. Arranquei de minha pele todos os vidros atravessados. Eu trincava os dentes a cada ação. Nenhum deles fizeram nada naquele momento. Percebi então que eles cochichavam olhando para mim. Quando eles menos esperavam, corri dando a volta pela casa e encontrando a entrada novamente. Entrei correndo em direção à cozinha em busca de algo para me defender. Ouvia os dois atrás de mim. Abri a gaveta do faqueiro e puxei a maior faca que havia ali. De repente, passou diante dos meus olhos uma corda bem curta que prensou no meu pescoço, puxando-me para trás e me fazendo cair no chão. A faca caiu em uma distância longe de mim. Prendi os dedos naquela corda, e, sufocado, tentava olhar para um dos estranhos, mas não era possível. A corda ficou frouxa, me livrando daquele perigo,
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mas mesmo assim, não dera tempo de me levantar. A faca que havia caído comigo já não estava mais lá. Uma punhalada no meu peito fora me dada. Fiquei congelado ao chão. Meu olhar estava tranquilo, mas me agonizava por dentro. Observei em volta de mim a cozinha e o piso frio. Um dos intrusos se aproximou. Conseguia ver apenas seus pés. Levantei o olhar e algo inesperado me aconteceu. Gemi querendo gritar. Aquele intruso era Bill, irmão de Mabel que havia viajado a trabalho há um ano mais ou menos e nunca dera nenhum recado à família. Ele levava consigo em sua mão direita, uma sacola de dinheiro e na esquerda, um porta-retratos de família. — Sinto muito Aldric! — Bill se despediu se recolhendo da cozinha me deixando à beira da morte. Não dera nem tempo de entender o que estava acontecendo, fechei os olhos e só enxergava a escuridão da minha mente...
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Noite no Café
Leonardo Souza - souza_leo@outlook.com Era tarde, e todas as pessoas já tinham deixado o café. Com exceção do velho que continuava sentado na poltrona do canto. O velho gostava de ficar ali, o quanto pudesse. Era um pouco surdo, mas quando o ambiente esvaziava, ele sentia a diferença. Só tinham dois garçons do café, um deles era eu. Sempre tínhamos que manter o olho no velho, pois de vez em quando, já muito bêbado, saía sem pagar. Embora na maioria das vezes fosse um bom cliente, deixando algumas gorjetas de 10 ou 20 reais. Nós dois olhávamos para o velho enquanto limpávamos as mesas do fundo. O velho ainda bebia seu conhaque e olhava pela janela, na direção da principal praça da cidade.
— Você sabia que ele tentou se matar semana passada? — perguntou o meu colega.
— Por quê?
— Disse que se sentia desesperado...
— Desesperado? Por quê?
— Não tenho ideia cara
— Como você sabe disso?
— O velho é rico pra cacete. Parece que todo mundo na cidade sabe que ele tentou se matar.
Estávamos sentados na entrada do café na mesa encostada à parede, enquanto o velho ainda estava sentado do lado de dentro. Acendemos um cigarro enquanto víamos a praça. O velho sentado terminou de beber o copo de conhaque e bateu com o copo no pires, e como eu tinha servido da última vez, o outro garçom foi atendê-lo.
— O que o senhor deseja?
— Outro conhaque — pediu o velho, olhando para fora da janela.
— O senhor ficará bêbado — observou o garçom. O velho se virou e encarou o garçom em silêncio, até que se afastasse.
— Pelo jeito o velho vai ficar aqui até amanhecer — me disse. — Já estou morto, queria chegar em casa antes das três da madrugada, pelo menos uma vez na semana… Esse velho bem que podia ter morrido semana passada. Sentou em cima do balcão e puxou a garrafa de conhaque lá de baixo. Dirigiu-se à mesa do velho e colocou a garrafa na mesa. O velho estendeu o copo e o garçom serviu mais uma dose. — Bem que o senhor podia ter morrido semana passada — falou ele ao velho surdo. Antes dele se virar, o velho o puxou pelo paletó, encarou seus olhos e disse:
— Bote um pouco mais, por favor — O garçom serviu de novo, desta vez, até cair conhaque pela borda do copo.
— Obrigado — agradeceu-lhe o velho.
O garçom voltou na minha direção fechando a garrafa e se sentou no balcão, apoiando a garrafa ao lado.
— O velho já tá dando trabalho.
— É a mesma coisa, toda noite…
— Por que é que ele queria se matar, afinal?
— Sei lá…
— Quem o impediu de se matar?
— A sobrinha.
— Quanto de dinheiro ele tem?
— Muito.
— Parece que já tem uns oitenta e tantos anos.
— Pois é. Até mais, talvez.
— Maldito velho. Eu podia estar dormindo agora.
— Ele gosta de ficar aqui.
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— Porque é um velho sozinho. Eu não sou nem velho, nem sozinho. Tenho minha mulher à minha espera em casa.
— Pois ele já deve ter tido uma mulher, algum dia…
O velho levantou os olhos do copo, olhou vagamente para a praça, e olhou para nós.
— Outro conhaque — ordenou, apontando para a garrafa no balcão.
Desta vez eu fui. Peguei a garrafa e enchi o seu copo. O velho me agradeceu.
— É a última, depois desta estamos fechando – disse eu ao velho.
— Senta aí rapaz. Essa garrafa já está quase no fim. Vamos terminar, e depois podemos ir embora dormir.
Antes que eu pudesse me sentar, o outro garçom veio de longe já gritando:
— Nem pensar! São duas e tantas da manhã! Ao contrário de você, que não tem ninguém que te ama em casa, eu tenho uma esposa me esperando!
O velho tomou um gole, olhou pela janela e depois para mim. Afastou-se um pouco da cadeira, e encarou meu colega.
— Amor? Você sabe sobre o que diz garoto? Você consegue imaginar a sua vida sem a sua esposa?
Depois de algum tempo, ele respondeu:
— Sim, seria pior, mas sim.
O velho sorriu, mostrando os dentes amarelos, e com um bafo de conhaque insuportável. Passou a mão pelos cabelos, colocou sua cadeira na posição original e estendeu o pano da mesa. Em seguida, olhou para baixo, fechou o rosto e colocou a mão no copo. — Não. Você não sabe o que diz rapaz — Disse ele virando outro gole. — Eu vou te contar uma história. Há muito tempo atrás, veio para esta cidade um garoto que costumava passar o dia todo bebendo aqui. A única coisa que ele dizia, era que ia se matar. Deixou todo mundo nervoso durante meio ano. Um guarda avisou que era ilegal. Todos tentaram fazer o guarda dizer que falar sobre isso era ilegal, mas o próprio guarda não tinha certeza se era ou não. Depois de um tempo, todo mundo se acostumou com a ideia dele, e uma porção de gente bebia e conversava com o cara, inclusive eu. Na época, eu também queria me matar e acabei convencendo ele de que nós dois deveríamos nos matar juntos. Depois de um tempo, nós nos apaixonamos um pelo outro. Desistimos da ideia do suicídio e começamos a nos encontrar em segredo. O velho tomou o copo até o final e apontou o dedo para a praça do lado de fora do café. Ambos estávamos presos à história e resolvemos colocar mais conhaque para ele. — Naquela praça ali, era onde a gente sempre se encontrava. Depois de um tempo, fomos descobertos. A esta altura, todos já o chamavam de suicida, mas agora, éramos chamados de bichas. Minha família nunca aceitou. Como tínhamos muito dinheiro, eles me mandaram pra Europa, para estudar. Antes disso, nós passamos uma única noite juntos, naquela praça. Prometemos um para o outro que íamos nos matar juntos, quando eu voltasse. Ele dizia que os suicidas iam todos para o mesmo lugar no inferno. De certa forma, estaríamos unidos eternamente. Depois de meses, recebi a notícia que ele tinha apanhado e sido morto por alguns caras do bar. Nunca encontraram realmente quem foi o culpado, até porque eram muitos. Mas eu voltei. Voltei e resolvi que ia gastar todo o dinheiro em bebida nesta praça, e talvez um dia, ele apareça na praça de novo. Eu não consigo conceber a ideia de vida sem ele, e assim, vou vir aqui todas as noites enquanto não morrer. O velho se levantou, contou lentamente o dinheiro, e jogou na mesa, enquanto olhávamos para ele. Colocou o agasalho e acendeu um cigarro. Deixou uma gorjeta no balcão e nós o acompanhamos até a saída.
Ao sair na rua e se deparar com a praça, ele para e termina de fumar o cigarro. Eu me aproximo e pergunto:
— Você ainda o ama? Até hoje? — O velho sorri para mim enquanto tenta fumar o final do cigarro, quase chegando ao filtro.
— Nós pertencemos um ao outro e aqui morreremos. Ainda que não seja no mesmo dia, mas, ainda assim, juntos.
O velho caminhou ainda um pouco bêbado em direção à praça, se perdendo no meio da escuridão.
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O Cavaleiro dos Lírios Negros Halisson Neander - halissonalmeida@bol.com.br
“No pátio do castelo, os arqueiros observavam pávidos, a aproximação do cavaleiro vermelho que, dominado pela cegueira de sua fé, acreditava veemente que banhar a sua armadura e espada no sangue de suas vitimas o tornaria mais forte. O cavaleiro caminhava lentamente, trajando sua armadura rúbida e descansando em seus ombros estava o exorbitante machado de lâmina dupla. Machado que logo seria usado para cortar as mãos dos arqueiros, como castigo — por terem destruído as duas balistas — que atacaram o castelo das hidras, momentos antes. Com muito custo, os arqueiros foram amarrados sobre as pedras. Quando o primeiro homem recebeu o golpe do machado, decepando-lhe as mãos, ele gritou!” Nessa hora, lorde Vanai acordou de forma abrupta, suando e com a respiração ofegante, então se deu conta de que tudo não havia passado de um pesadelo — mais um — entre muitos que o acompanhavam desde o dia em que havia traído seus homens, no castelo de Calty Hill.
Sentado na beira da cama, Vanai perdeu-se, entre a loucura e a realidade, pois no imenso escuro do quarto ouviu uma voz ecoar.
— O tormento que estás sofrendo é o preâmbulo dos castigos reservados aos traidores, lorde Vanai.
Assustado, o lorde agarrou o punhal que guardava embaixo do travesseiro e, sem pensar duas vezes, golpeou a escuridão, enquanto ia de encontro à parede. Pegou um archote e clareou o local, revelando no chão algo que o faria tremer e sentir os pelos do corpo se eriçar. Caído próximo à sua cama estava um lírio negro...
— Vanai, todo traidor tem uma dívida a pagar, sendo assim, hoje eu serei o seu credor! Ecoou a voz atrás do lorde.
Vanai rapidamente se virou e, ao apontar a archote para área escura do quarto, pôde ver, então, sair da escuridão o homem trajando uma armadura negra adornada de lírios. O homem empunhava na mão esquerda uma lâmina fina e sem corte. — Saia daqui! Deixe-me em paz. Tudo que fiz, eu fui obrigado a fazer. Você não tem o direito de me julgar. — disse-lhe Vanai, com a voz atemorizada, enquanto apontava o punhal na direção do homem parado à sua frente. “O homem que havia saído da escuridão era Terrif. O cavaleiro dos lírios negros. Que no passado fez parte da antiga legião de Antar, mas como seus companheiros acabaram se tornando mercenários cruéis e desprezíveis, Terrif seguiu seu caminho, tornando-se um caçador de traidores. Durante algum tempo, chegou a lutar ao lado do comandante Veramom, na Guerra dos Quatro Reinos, onde então ficou conhecido por carregar o seguinte lema: ‘Uma morte para um lírio negro e um lírio negro para uma morte’. Para cada homem que matava, jogava um lírio negro sobre seu corpo.” — Não, você não foi obrigado a fazer nada! — respondeu o cavaleiro de forma ríspida. Tudo o que fez, foi pela sua ganância e ambição, lembro bem do dia em que você traiu seus amigos, facilitando a invasão do castelo de Calty Hill.
— É mentira! — Esbravejou lorde Vanai.
— Cala-te e escute! Por muito tempo você matou, escravizou e traiu. E no nosso mundo, todos devem pagar. Sua hora chegou. Seja homem, levante-se do chão e saque sua espada. Se conseguir me vencer, poderá viver o resto de sua miserável vida em paz. Vanai levantou-se e do umbral retirou uma grande espada. Em seguida, começou a girar a lâmina em círculos. O lorde deu uma investida de cima para baixo, visando à cabeça do cavaleiro dos lírios. Terrif apenas se esquivou, pois sabia que sua espada não era forte o bastante para aparar os golpes da lâmina de Vanai. Mas o cavaleiro dos lírios tinha a velocidade a seu favor, pois se movia com agilidade de um lado para o outro, e em um desses movimentos, sentiu quando a espada de Vanai passou sibilando próximo ao seu rosto... Durante alguns minutos, o embate dos dois homens era ataque contra desvio, até que Vanai pensou estar dominando a luta. Nesse momento, o cavaleiro dos lírios aproveitou a oportunidade, e estocou sua lâmina fina e sem corte no coração do lorde traidor. Com um pouco mais de força, Terrif empurrou sua lâmina sem vida até encostar a guarda no peito de Vanai. O lorde afrouxou os pulsos e sentiu o cabo da espada escapar da mão. O cavaleiro dos lírios então começou a retirar suavemente sua lâmina do peito do homem. Um segundo depois, Vanai caiu de joelhos e sentiu o sangue umedecer suas roupas, e não demorou muito para que suas costas tocassem o chão de pedra, onde agonizou e revirou os olhos nas órbitas, já quase sem vida. Antes que pudesse dar seu último suspiro, sentiu o lírio negro cair sobre seu peito. E junto com ele, vieram todos os fantasmas dos homens que ele havia traído no passado, sedentos por uma parte de Vanai, como forma de pagamento de sua dívida. Por fim o tormento do homem cessou, quando seus olhos se cerraram para sempre. O cavaleiro dos lírios, após limpar a lâmina fria e sem vida, aproximou-se da sacada do quarto de Vanai. Então, olhando para o céu, disse em alto e bom som:
— Comandante Veramom: certa vez, durante a Guerra dos Quatro Reinos, eu lhe fiz uma promessa e hoje ela está paga. Se acaso
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estiver atravessando a ponte das almas, desejo-lhe que descanse em paz. Agora estou livre para seguir meu caminho e caçar os antigos cavaleiros da legião de Antar. Gorus, o cavaleiro da discórdia, capaz de causar uma guerra sem levantar uma arma; Axel o cavaleiro vermelho, aquele que banha sua armadura no sangue de suas vitimas; e Julian o cavaleiro sem face, pois até hoje ninguém nunca viu seu rosto ou muito menos seu corpo por baixo da armadura de escamas.
E assim, parte o cavaleiro dos lírios negros, rumo à sua nova jornada...
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O Conclave
Mama Ghuleh - eacardoso1980@gmail.com
— Guto, você ainda vai insistir nessa decisão?
— Eu disse para você que amo a Maryl, e do meu desejo de casar com ela.
— Não acredito que depois de tudo, vai se sujeitar a decair dessa maneira. Não vou aceitar isso. Está fora do círculo da Senda Occulta!
— Britta...
Britta ficou inconsolável com a decisão que seu melhor e mais amado amigo, Guto, tomara esta noite, no bar onde a banda sempre se reunia depois das apresentações, e saiu apressadamente. Guto voltou para a mesa, e anunciou seu casamento com Maryl, colocando uma garrafa de vinho sobre a mesa. Mikael e Salomon, integrantes da banda, também se revoltaram, mas se mantiveram calmos, porém, distantes. Mikael centrava-se mais do que Salomon.
— Caras, vocês não vão brindar comigo? — pergunta Guto, no centro da mesa.
— Guto, você sabe o que pensamos sobre isso. Eu seria muito hipócrita se tilintasse essa taça com a sua, mesmo sendo uma garrafa de Burmester, safra de 1944. — disse Mikael.
— Mikael, eu amo a Maryl.
— E como fica a banda??! — gritou Salomon — Você sabe muito bem o que essa desgraça de virgem Maria faz para empatar seu compromisso com a banda. E juro pelo meu sangue que nem você, nem ela, nem ninguém vai destruir a banda.
— Eu não vou deixar a banda! Eu já falei! — disse Guto, esmurrando a mesa.
— Hei, vamos parar de frescura! — gritaram os gêmeos Karl e Jeremy.
Jeremy tomou a palavra.
— Pessoal, vamos respeitar a decisão do Guto. Mas sinceramente, cara, você deve sair da banda.
— Eu também sou a favor de que saia. – reforçou Karl.
Todos votaram a favor da realização de um conclave.
Dessa vez foi Mikael quem conteve os ânimos de todos.
— Senhores, precisamos saber se a Britta também concorda com isso.
— A decisão da Britta vai definir o seu futuro na banda, e eu espero que ela esteja de acordo com um conclave. — gritou Salomon — E que você saia da banda, seu idiota! Você não é digno de ser parte da banda, seu pau mandado! Salomon sentiu uma mão delicada em seu ombro. Virou-se e viu que era Britta. Tomou aquela mão, e a beijou singelamente. Ela olhou em seus olhos.
Guto percebeu como os olhos dela estavam inchados de chorar e ficou triste.
— Se acalme Salomon... É exatamente isso que Maryl quer.
Mikael puxou uma cadeira para Britta se sentar. Em seguida, todos se sentaram.
Um grande silêncio se fez na mesa por alguns instantes. Uma onda de calor invadiu suas costas. Britta olhou para Guto. E ele sabia o que significava aquele olhar. Olhou para os demais integrantes. Mikael acenou discretamente com a cabeça.
— Senhores, sou a favor do conclave.
Salomon se levantou da mesa, soltando um grito.
— Chupaa, desgraçado! Finalmente vou ver você fora da banda!
Britta apontou para ele, fazendo menção de que se sentasse. Franziu a testa.
— Perdoe meu comportamento, minha senhora.
Britta prosseguiu.
— Tanto Guto como Mikael são ótimos vocalistas. Faremos dois vídeos. Depois criaremos uma enquete com os fãs para saber a quem desejam no vocal da banda.
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Os integrantes ficaram impressionados com a proposta. E iniciou-se uma violenta discussão entre todos. Aproveitando a distração de todos, Britta se afastou deles e se dirigiu àquele corredor escuro do bar, que levava a uma sala abandonada.
Sentou-se sobre um balcão, em total estado de reflexão.
De repente, se assustou. Era Guto que entrou, batendo a porta em seguida, trancando-a.
— Sua bruxa! Você conseguiu! Você venceu! Ágios, oh Lilitu!
Guto a agarrou, e a beijou selvagemente. ***
Estar nos braços dela fazia com que sentisse prazer físico mesmo com roupas. E estava adorando os carinhos que ela fazia em seus cabelos. Jamais se esqueceria daquele amor tão intenso. Aquela sala suja e escura guardava o amor mais intenso de sua vida — algo que jamais se esqueceria.
— Amo você, Senhora. Minha sacerdotisa.
Guto desistiu de seu casamento. E foi acolhido novamente na banda. Com ajuda de Mikael e Salomon, criando aquela situação, Britta conseguiu manter O Escolhido. E seguiria com a missão de despertar o seu sacerdócio, por meio do projeto da banda — cuja temática era voltada para o Caminho da Mão Esquerda, e suas principais filosofias.
“Somos a marca da Besta. Somos Legião!”
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O Confronto
Marcão Costa - marcao-costa@hotmail.com É indiscutível que toda vampira das trevas, chefe de um poderoso clã, necessite urgentemente de um companheiro amoroso à sua altura para comandar um vasto império. E Alicia sabia disso. Só não poderia imaginar que um dia iria se apaixonar por um lobisomem. Como poderia imaginar tal coisa se os lobisomens e vampiros desde os tempos mais remotos sempre estiveram em guerra? Qualquer indivíduo do mundo sobrenatural sabia que a luta por espaço, poder e sobrevivência entre vampiros e lobisomens do Reino de Jezebeth teve o seu apogeu no ano de 1662. A batalha épica entre os vampiros sedentos por sangue do norte contra os lobisomens carnívoros do sul na pequena cidade de Memothia teve seu estopim e nada poderia mudar o destino entre essas duas terríveis espécies. Alicia, decidida como sempre, com seu machado em uma mão e a arma com balas de prata na outra, estava se direcionando juntamente com o seu clã para a Arena de Batalha. Não era a primeira vez que ela e seus discípulos lutariam até a morte contra um grupo de lobisomens. Já vinham andando do norte em direção ao sudeste há mais de seis dias. Se não fossem os poderes vampíricos, estariam exaustos. Jim, do outro lado, vinha com os seus seguidores. Acreditavam na vitória. Não seria a primeira vez que o seu exército iria acabar com uma junta enorme de sanguessugas. Estavam de soslaio no local da luta há mais de dois dias para o confronto que iria se desenrolar naquela noite. Há alguns meses, um dos amigos de Jim, juntamente com o seu grupamento, foram mortos na batalha que ficou conhecida em todo o mundo sobrenatural como: A Luta Magistral. Os sanguinários tinham vencido de forma esmagadora, pois vieram com a ajuda dos comedores de cérebro de Belo-Rei — um perigoso grupo de zumbis do Centro-Sul do Estado que viviam como nômades em busca do “alimento” que os deixavam cada vez mais fortes. Porém, dessa vez eles não deixariam que isso acontecesse novamente. A revanche foi marcada de forma estratégica. No território deles, eles teriam o controle da situação. E tinham certeza que dessa vez, os seus inimigos viriam sós, pois as fontes que eles continham dentro do outro grupo haviam lhe passado essas informações. Isso era mais que normal. Em todas as espécies do mundo sobrenatural continham espiões. Esses espiões tinham o intuito de passar dados do seu grupo para o grupo adversário com o objetivo de ganharem poder, já que seus companheiros estariam mortos. Jim estava melancólico. Não por saber que seria uma das batalhas mais difíceis de sua vida, mas sim por ter que lutar com a vampira que o deixava louco de paixão. Ele e Alicia se conheceram na Conferência Mundial do Mundo Sobrenatural de 1567 e desde então, nutria esse sentimento por ela. Ele não entendia os seus sentimentos e se culpava a todo instante por isso. Não iria assumi-lo, muito menos iria se passar por um fraco. Por uma aberração que continha sentimentos belos por criaturas como aquelas que viviam sorrateiramente na busca de um pescoço para saciarem sua sede por sangue. Preferiria morrer a se passar por tamanha desonra. A hora chegou... Os vampiros estavam ali, há menos de duzentos metros de distância. Vieram em grande número e pareciam bem pesarosos e estratégicos para o combate. A distância ia diminuindo veementemente.
O conjunto das duas espécies se fitaram e bastou um comando dos seus líderes para que elas começassem a se atacar.
O cheiro terrível e pútrido que exalava das feridas dos comedores de carne, deixava Alicia enraivecida, entretanto ela jamais iria cessar os seus golpes. Acabar com os seus inimigos com apenas um golpe era o seu principal lazer. Seu machado serpenteava a cabeça dos membros do grupo oposto e com a outra mão a sua arma jorrava balas de prata por onde houvesse vestígios de lobisomens. O confronto, cada vez mais brutal era de tirar o fôlego. Os lobisomens, possuidores de força e estratégia ímpares, estraçalhavam os seus adversários a todo custo. Os vampiros por sua vez, não deixavam por menos, inteligentes que eram, preferiam a luta por meio de armamentos bélicos, visto que, perdiam na força para a espécie oposta. Levando algum tempo para massacrar um de seus adversários e indistinta ao que poderia acontecer, Alicia gemeu de dor quando um lobisomem segurou com extrema força o seu braço. Ela tentou jogar o seu corpo para o lado, mas antes que pudesse se movimentar, já estava no chão, envolta por um animal peludo que tentava a todo custo enfiar-lhes dentadas por todo o seu corpo. “Não!” Gritou ela ao sentir uma dor irritante no ombro. Havia recebido uma mordida. Entretanto, nem mesmo os seus olhos de vampira pôde compreender o que estava ocorrendo. Um outro adversário, muito mais alto, peludo e musculoso do que o animal com quem estava lutando, acabara de salvá-la. Tirou o brutamonte de cima do seu corpo e cortou a cabeça do mesmo com o machado dela. Por que ele tinha feito isto? Perguntou-se ela duvidosa. Porém, antes mesmo que pudesse exprimir algum som, sua voz foi calada por um beijo feroz do animal que havia lhe salvado. Não, não poderia ser. Como ela, uma vampira, poderia deixar uma coisa de tamanho absurdo acontecer. Lobisomens e vampiros não poderiam ter relações sentimentais de carinho, amor e afeto. Entre essas duas espécies era apenas tolerável a raiva e o ódio infinito. Suas dúvidas foram interrompidas e as perguntas que sua mente fazia, foram caladas quando ela se deu conta que estava retribuindo os beijos do seu amante. Não teve alternativa, o prazer que sentia era forte demais para ser controlado e demasiadamente bom para ser
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parado. Deixou sua língua passear pela língua do outro. Recuperou o fôlego e fez o mesmo repetidas vezes. A arena estava em silêncio ao fim do beijo entre Jim, o chefe dos lobisomens, e Alicia, a poderosa vampira. Jim estava apaixonado. Escondera esse sentimento de Alicia há muito tempo, porém percebeu que não poderia mais ignorá-lo quando ela estava prestes a morrer. Preferia perder um de seus amigos, ao invés de perder aquela que fazia o seu coração bater mais rápido. A partir daquele momento, todos os combatentes puderam compreender a força do amor. Mesmo Jim sendo de uma espécie diferente, Alicia encontrou nele, o companheiro amoroso que queria possuir pelo resto de sua eternidade.
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O Grande Dia
Ingrid Amanda - ingridguita01@gmail.com
— E então, o que você diz? ***
Olho o relógio pela milésima vez só para constar que não se passou muito tempo desde a última vez. Viro-me na cama vazia. São quatro da manhã e eu ainda não preguei os olhos e nem me acostumei com aquela solidão toda ecoando silenciosamente no apartamento. Levantei sem motivo e olhei o que tinha restado ali. Os poucos móveis já estavam organizados assim como as minhas malas, tudo pronto para a mudança que aconteceria dali a alguns dias. Peguei o celular e olhei para nossa foto. Senti saudades dele. E quem era ele? Bom, no começo, ele, Alexei, era professor na academia que eu comecei a frequentar depois de tantas idas e vindas com a minha insônia. Ia me cansar um pouco, mas poderia resolver o meu problema, mesmo que não fosse fã de halteres e espelhos, e assim que cheguei lá estava ele: forte e não muito alto; a pele bem clara e o cabelo loiro grande o bastante para cair na testa e olhos muito pretos, que só se revelavam castanhos quando o sol do fim da tarde iluminava o salão através da janela panorâmica. Ele sorriu pra mim e foi simpático, mas até aí normal, esse era o trabalho dele. Enquanto eu fazia minhas séries de exercícios eu o observava ajudar os outros alunos (e alunas, claro) e o imaginava como ele se sairia atuando em um palco, se movimentando através do jogo de luzes e dizendo as palavras certas dos discursos decorados como eu mesma fazia. Ser atriz era mais do que um trabalho para mim, era uma paixão profunda misturada com uma fantasia utópica de um mundo perfeito, mas, com relação a ele, nunca imaginei mais do que isso, afinal esse era o meu trabalho. Mas tudo começou a mudar nos últimos dias de maio. Nossa amizade se restringia às salas da academia, onde conversávamos sobre um pouco de tudo, desde os exercícios (quando faltava assunto) até comidas preferidas e pequenos segredos confessáveis, onde eu pude conhecê-lo melhor. Foi por isso que não estranhei quando ele chamou meu nome pouco antes de eu ir embora.
— O que foi? — perguntei sorrindo.
— É que eu pensei, sei lá, de a gente sair qualquer dia desses pra comer alguma coisa e conversar um pouco fora daqui.
Minha expressão com certeza denunciava toda a surpresa que eu estava sentindo naquele momento. Nunca, em hipótese alguma, eu havia sonhado que ele me faria um convite. Sempre imaginei que não fosse o tipo de garota que ele gostasse, já que eu não fazia parte desse “mundo fitness” a que ele pertencia. Não que eu fosse gorda ou algo do tipo, mas jamais me encaixaria no perfil de ratas de academia. Por alguns segundos foi só isso que consegui pensar.
— Bom, tudo bem — respondi tentando pensar em mais palavras. — Você já tem alguma ideia em mente?
— Pensei num japonês. Posso passar na sua casa na sexta, às oito, se você não se incomodar.
— Não, tudo bem, tudo bem — eu estava me sentindo um pouco eufórica naquela altura. — Você tem um papel pra eu anotar meu telefone? Alexei deu a volta no balcão e me entregou uma folha em branco em que eu rabisquei meu celular rapidamente enquanto ele me observava. Acenei antes de sair, quase tropeçando no degrau da entrada, ainda sem acreditar que aquilo tinha acontecido. Sei que é clichê, mas depois que saímos juntos, minha vida mudou. O jantar foi super divertido e era engraçado nos vermos fora da academia, com liberdade o suficiente para que ele me beijasse no carro antes que eu descesse na frente do meu prédio. Em poucas semanas já estávamos namorando sério, comigo tendo que me controlar para não sorrir demais ou ficar melosa quando eu ia fazer meus exercícios na academia, mas ficava óbvio para qualquer um que nos visse juntos, opostos que se completavam perfeitamente, equilibrando cada um dos nossos defeitos com qualidades inesperadas. A manhã chegou sem que eu tivesse dormido, mas pelo menos eu estava mais calma. Eu me arrumei e coloquei as malas no carro para deixar na casa da minha mãe entes de ir para o salão. Para me manter sob controle, continuei buscando as mais diversas lembranças de nós dois juntos, das felizes até as mais tristes, satisfeita por estas serem muito poucas, enquanto eu era penteada, maquiada e vestida. O mundo parecia estar em câmera lenta quando as portas da igreja se abriram e a marcha nupcial começou a tocar. Meu olhar primeiro correu até ele no altar vestindo um smoking pela primeira vez na vida sorrindo para mim, para depois notar todos os nossos amigos ali que compartilhavam aquele momento tão especial para nós. Alexei apertou minha mão e beijou minha testa antes que o sermão do padre começasse. Eu não podia acreditar no quanto eu tinha mudado. Estávamos comemorando exatamente um ano e meio de namoro, o nosso novo apartamento estava praticamente pronto, e as malas e passagem de lua de mel para Veneza já estavam nos esperando para viagem assim que a festa terminasse. Em pouco tempo eu me tornaria oficialmente uma senhora casada. Eu estava tão entretida com isso que nem escutei a tão esperada pergunta!
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— E então, o que você diz? — perguntou Alexei baixinho. — Ainda vai aceitar se casar comigo?
Olhei para ele e para o padre que esperava com uma sobrancelha erguida.
— Claro que eu aceito, você é o amor da minha vida!
— Eu os declaro marido e mulher, pode beijar a noiva!
O padre disse as palavras apenas para não quebrar a formalidade, pois antes mesmo que terminasse de falar eu já estava nos braços de Alexei, o único lugar do mundo em que eu me sentia pequenina e ainda sim protegida contra tudo, para que então ele me beijasse, primeiro mais lentamente, para então tornar-se ousado me fazendo rir quando a chuva de arroz e os aplausos nos atingiram. *** Já tínhamos cumprimentado todos os convidados e cortado o bolo quando finalmente fomos para a pista. Meus pés doíam, mas eu estava feliz demais para reclamar. Passei meus braços ao redor de seu pescoço e ele abraçou minha cintura para dançarmos a música lenta.
— Esse é o dia mais feliz da minha vida — sussurrei em seu ouvido. — Por enquanto. Preciso te contar uma coisa.
— O que foi querida?
— Não seremos apenas nós dois em Veneza. Eu estou grávida.
Primeiro Alexei parou instantaneamente ao ouvir a notícia, mas então riu olhando fixamente para meus olhos. Suas mãos deixaram minha cintura e subiram até estarem no meu rosto contornando meu maxilar.
— Eu sou o homem mais feliz do mundo, pode acreditar nisso!
Eu fechei os olhos quando ele beijou meus lábios e me tirou do chão num rodopio. Naquele instante senti que era como estar voando e era assim que eu queria continuar e sentindo por muito tempo.
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O Grito
Bárbara Fernandes - barbarafm@bol.com.br O desespero já não podia mais ser contido. Uma sensação de sufocamento foi lhe tomando. Com muito esforço, pois já quase não tinha mais controle sobre seu próprio corpo, abriu uma das janelas e soltou um ruído gutural. Era como se ao gritar, expelisse tudo que houvera reprimido durante anos. Estranhamente, não ouvia o próprio clamor, então tentava juntar todo ar em seus pulmões para que berrasse ainda mais forte. Foi em vão! Seus vizinhos pareciam ignorá-lo. Nenhum lampejo de qualquer tipo de curiosidade, nem mesmo a mórbida. Sua cólera se tornou ainda mais violenta. Primeiro quebrou a janela numa tentativa frustrada de mostrar ao mundo todo o seu ódio não mais contido. Depois, foi a vez de todo o resto que via pela frente. Livros, porta-retratos, anotações, cadeira, sofá-cama... Tudo deveria ser destruído! Seus braços pareciam pesados e seus movimentos se tornaram difíceis, até levantar o pequeno abajur parecia um desafio hercúleo. Porém, seus dedos e punhos pareciam não sentir o impacto dos socos que dava no grande armário de sua minúscula sala. Rapidamente, os resquícios de seu surto de ira cobriram tudo ao seu redor e mal podia se mover em meio aos destroços. As paredes pareciam lhe oprimir ainda mais. Queria a todo custo sair dali e foi abrir a porta da frente, mas não conseguia. Começou a tentar arrombá-la. Todavia fosse feita de uma madeira já frágil por causa do tempo e dos cupins, se mostrou um obstáculo intransponível. Não desistia e jogava partes da, agora quebrada, mesa e... NADA! Não havia parado de xingar e espernear, mas só agora parecia produzir algum barulho, era algo parecido com um gemido. Fez novo esforço para não gemer e veio um miado. Apertou violentamente os olhos e ao abri-los, viu um gato preto na janela e eis que sua escrivaninha surgia novamente inteira diante de sua expressão incrédula, refletida na janela imunda, tal como os demais quatro ou cinco móveis de seu único cômodo. Virou-se para a pilha de despachos à sua frente e, sem proferir nem a mais singela sílaba, retornou à sua monótona rotina.
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O Peso do Vento JoO - joaopaulo2811@gmail.com
A areia entre seus pés parecia tentar confortá-la, mas nada a alcançaria naquele momento. Com os olhos voltados para o escuro do céu, e o coração ansiando pelo escuro do mar, Catarina vagou horas pela orla da praia vazia, esperando qualquer pensamento que surgisse como um broto de flor de dentro da terra, indicando ainda a existência de vida. O punhal de angústia cravado em seu peito já não se fazia sentir. Acostumara-lhe o desgosto, a dificuldade em respirar, e nem mesmo se incomodava em limpar as lágrimas que insistiam em escorrer pelas bochechas até o queixo, onde ficavam dependuradas até desprenderem-se por acaso. Não diferenciava mais o existir do não existir, e caminhou rumo ao mar. Era engraçado pensar que a humanidade teria se originado nestas águas salgadas, nadando eternidade adentro entre corais e monstros gigantescos, e não sendo bastante o infinito azul, escolhera perecer sobre a terra seca e sem amor. “Amor”, sussurrou, e tendo proferido a senha secreta do Universo, as pesadas nuvens se abriram lentamente, de onde surgiu a robusta Lua, prateada em toda a sua glória, adornada por estrelas incontáveis.
— Até onde me levar o espelho d’água que reflete a Lua, até lá eu irei.
E a cada passo sentiu a água elevar-se, acariciando-lhe primeiro as canelas, depois como que trespassando seus joelhos, fazendo Catarina sentir-se parte da imensidão que ao longe se misturava com as bordas do céu, eterno em seus limites. Olhando para si mesma seguindo em frente, viu-se patética. Que ofensa ao mar, símbolo da liberdade e mistério, entrar nele vestida. Que ofensa a si mesma, partir da vida com o vestido branco que comprara apenas tendo em vista agradar ao idiota. Os fartos cabelos negros e lisos caíram em cachoeiras sobre os ombros da garota, que também soltando as alças do vestido, despiu-se. A brisa do mar, que há muito esperava por este momento, correu beijar-lhe demoradamente o seio, donde se iniciaram arrepios que seguiram corpo abaixo. Estando solta a peça de roupa sobre as águas, dela se esqueceu. Continuou seu caminho inabalável, sem saber onde pisava ou até quando estaria a pisar. Sabia que o frio passaria. Torcia para que o amor passasse também, pois seria a pior das condenações chegar ao alémmundo e deparar-se com venenoso sentimento a lhe corroer a alma, eclipsar a luz própria de seu espírito. “Amor”, sussurrou mais uma vez, despertando a Lua, que vendo a jovem engolida até a cintura pelas trevas revoltas do mar, perguntou:
— Por que se dispõe a tal perigo, menina? — e seguiu, em tom brincalhão — Volte para trás, antes que seja tarde, boba!
Catarina, sendo especialmente iluminada pela cascata lunar que morria sobre sua pele morena, respondeu indiferente:
— Não há, no passado, nada além de uma vida gasta em prol de quem jamais a mereceu. O presente me maltrata, e do futuro nada bom posso esperar. — Deixe disso, queridinha! — respondeu prontamente a Lua, com uma gargalhada sonora — Pois não há o amor, a maior das dádivas concedidas aos seres que, de outra maneira, viveriam da carne e para ela? Não seria o amor fonte de alegria, sendo ele a alegria em si? — Não te engane, cara Lua. Tudo o que me trouxe tal emoção facilmente seria levado por estas fracas ondas que a senhora vê aqui e ali. O amor que me deu o idiota era como uma torre de areia, que por si só não podia se sustentar por muito tempo, mesmo que desse minha vida a construir muralhas de pedra para protegê-lo. A Lua, tendo visto essa situação se repetir entre os séculos, sorriu com compaixão. Quantas foram as crianças, pois os que amam tornam-se crianças, que vieram à beira da praia verter toda a água salgada de seus corpos sobre a areia? Não fosse tão velha e tivesse assistido este mundo girar desde o princípio, suspeitaria que todos os mares e oceanos fossem feitos de lágrimas de apaixonados que sobre o precipício se curvaram, tendo em mãos apenas os farelos de seus corações. — Não seja tola! De que serviria um coração digno de amar jogado nas profundezas obscuras deste mar? Não seria melhor que estivesse em terra, com este mundo do jeito que está? Volte para a praia que o mar está a se agitar! — Não procuro serventia! Procuro o fim, o remédio supremo dentre todos os remédios, pois não há dor ou dúvida que sobreviva à morte. E hoje eu, cuja existência já nada significa, deixo o meu espaço no mundo para alguém que o aproveite melhor.
— Menina! Quantas qualidades têm! Olhe como brilha em tua pele o reflexo de minha luz!
— Minha pele tem cor de café com leite — respondeu a jovem analisando o braço erguido — como dizia o idiota, dizendo também que só esta pele poderia matar sua sede, e eu acreditei tantas vezes. Deixei que sorvesse de mim todo o calor que pudesse, desde nova, e hoje estou fria como xícara usada e esquecida sobre a mesa.
— E este cabelo negro que possui tantos segredos quanto guarda a noite?
— O idiota gostava de enredar-se em meus cabelos, dizendo que eles o prenderiam a mim por todo o sempre. Mas de que me serviram eles, se quem deveriam ter segurado se encontra preso aos cabelos dourados de outra?
Seus olhos lacrimosos e desfigurados pela mágoa diziam mais que seus lábios, chamando a atenção do corpo celeste à sua frente.
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— E estes olhos que, assim como eu, brilham místicos na escuridão?
A jovem pensou e pensou. O idiota jamais mencionara seus olhos amendoados, mesmo que estes estivessem nele, e só nele, fixados por anos, desde o primeiro dia. — Seus olhos — continuou a Lua, sorridente — são como duas luas coroando o céu de mistérios que é a tua face. Que injustiça seria que deixassem este mundo sem que alguém os admirasse como admiram a mim, e fosse até eles como os homens que voltam o olhar para o céu nas noites em que as estrelas saem para brincar.
Chorosa, Catarina respondeu:
— Estes olhos de nada me serviram...
— Estes olhos não precisam de um Sol para brilhar, como eu preciso. Agora atente para o mar revolto...
— Tenho medo, Lua! Depositei minha vida nas mãos de quem nela cuspiu e pisoteou, e dela já não resta nada, não há em mim pedaço que mereça perdurar. Hoje, mulher feita, vejo-me sem um rumo, sem lanterna pra iluminar caminho tão torto. — Há fogo suficiente ardendo em ti para guiar-se sozinha. Pode ser a Lua de seu próprio céu se quiser, e se não houver um Sol, sem dúvidas poderá sê-lo também. A jovem queria acreditar no que dizia a mais nova amiga, afinal, não seria amar a arte de acreditar ou querer acreditar, até que tudo o seja, ou o pareça ser? Talvez, amando mais a si mesma, se faria sentir tão importante quanto a Lua tentou convencê-la de ser. Mas a maré, já como uma matilha enfurecida, agitava-se em volta da jovem, que assombrada, sentiu os pés tocando o vazio, e exclamou:
— Oh, Lua! Tem dó de mim que aqui me encontro sem poder voltar para o chão firme onde pertenço, e de onde não devia ter saído!
— Minha pequena, sou tua mais fiel amiga e confidente, como sou de todos os amantes antes de ti, e dos pais antes deles. Mas não há em mim poder de interferir no caminhar dos humanos, que desde que aprenderam a se erguer sobre duas pernas não permitem que ninguém escolha por eles, ou os diga como escolher. Sinta no vento o peso dos conselhos que ele carrega para além das fronteiras, jogados ao léu desde que o mundo é mundo, muitos meus, esperando por um ouvido que os acolha como se deve.
— Lua! Acalme estas águas! Eu lhe imploro com minha vida! — gritava a jovem.
— Jogaste de bom grado teu precioso corpo às águas turvas do mar noturno, por alguém que sequer aqui está para lhe salvar, ou ao menos se apiedar de ti. Que a Natureza a trate com a misericórdia que você mesma não teve. O balanço mortal das águas carregou Catarina de lado para outro, que engolia água em grandes goles e agitava os braços em busca de um apoio que estes não puderam encontrar. Sofreu não por si mesma, pois já era tarde pra lembrar ou saber para que valia existir, mas pela sua pele morena, seus cabelos sedosos e os olhos, as luas de seu rosto, duas preciosas joias cor de mel jamais amadas e apreciadas como mereciam. A Lua por sua vez, suspirou brevemente e se recompôs, escondendo qualquer traço de ansiedade ou tristeza. Em breve, seu querido Sol chegaria.
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O Último Trabalho Pablyo Santos - pablyo11@gmail.com
Eu estava mal, não era mais o James Howel de antes... Nos últimos dias eu estava me sentindo despedaçado, meu coração estava em estilhaços, mas esse sempre foi o meu trabalho, sempre foi o que eu sabia fazer de melhor, não tinha que pensar, era apenas executar cada tarefa que eu tinha, não importava a dor que alguém fosse sentir, ou o sangue escorrendo pelas minhas mãos. Eu só queria voltar para casa... Ver a Ane, aquela moça por quem me apaixonei... Com aquele sorriso radiante, com aqueles traços perfeitos e aquele brilho de seus olhos. Eu me consumia com a vontade de abraça-la, ainda mais depois de voltar desse trabalho maldito. — Droga. Deixei minhas chaves em algum lugar. — Disse Anthony Grashew. Aquele homem havia acabado de chegar em casa, eu estava o observando de longe, mas dava para ouvi-lo de onde eu estava. Eu sabia o que tinha que fazer, mas não queria fazer ali e agora. Observei a esposa dele abrindo a porta... Lembrei-me da Ane no exato momento, vi a felicidade da esposa dele ao vê-lo chegar em casa finalmente. Parecia a melhor sensação do mundo. Chegar e ver as pessoas que você ama... Esposa e filhos, prontos para recebê-lo depois de um dia cansativo de trabalho. Estragar aquilo há alguns anos atrás não faria diferença... Mas hoje, havia algo errado comigo, estava sem coragem. Eu não sabia se conseguiria fazer o meu trabalho pensando nas lágrimas daquela família. Mas ele fazia parte do esquema. A questão é que eu trabalhava por conta própria, mas meus serviços eram contratados pelas pessoas do mais alto escalão, e deixavam sobre minha responsabilidade a execução de quem atrapalhasse nos negócios, e pagavam bem por isso, muito bem. Em outras palavras, eu sou um matador, um assassino profissional. Sempre fui. Mas isso estava me matando. Saber que Anthony tinha um depoimento marcado para a próxima terça-feira e que colocaria todo esquema abaixo. As pessoas que me contrataram precisariam tirar alguém da penitenciaria local, John Ramezel. Irmão do líder de uma máfia fantasma. Ninguém poderia provar que ela existe. Mas existe, e com diversas pessoas infiltradas em multinacionais, órgãos públicos e no governo. Isso dava a eles a possibilidade de ter grande influência em tudo. Ou seja, eles poderiam mandar e desmandar na cidade se o esquema continuasse de pé. E só uma pessoa acabaria com tudo, Anthony. Ele tinha provas mais que vitais que comprovariam a existência dessa máfia e do esquema, onde tirariam John da prisão... Eles precisavam dele. Eles planejaram esse esquema há muito tempo e não deixariam que um depoimento de um cidadão acabasse com tudo. E por isso que me contrataram. Eu era pago para tirar vidas, e a vida do Anthony era a próxima. Obviamente, ninguém me revelou detalhes, apenas me indicou o alvo, me deram informações e pagaram a primeira parte combinada... Fiquei ali, dentro do carro próximo a casa dele, só observando tudo. A vizinhança não se importaria com um carro parado por ali, nem mesmo ele. Eu estava esperando anoitecer, faltavam alguns minutos para o pôr do sol. E eu sabia que ele sairia às 19h em ponto. Ele sempre saía essa hora para colocar o lixo pra fora, eu já estaria preparado para atirar. Quando deu a hora, eu estava posicionado atrás de outra casa que ficava em frente à dele. Ninguém iria me ver, e tudo daria certo, e depois voltaria para Ane e nunca mais voltaria a mexer com isso. Esperei, esperei e ele não saiu, eu teria que chegar mais perto e me arriscaria ser visto, e não teria coisa pior do que provavelmente ter que matá-lo dentro de casa, na frente de toda a família dele. Mas era o jeito, eu tinha que fazer isso. — Droga! — Eu tinha que acabar com mais uma vida. *** Voltei para a Ane, foi a melhor coisa depois daqueles dias. Ela estava tão linda, com seus cabelos brilhosos, sua pele clara e seus olhos negros luminosos, aquele sorriso que me tirava à atenção e me fazia tão envolvido por ela. Eu a amava, muito, e não poderia deixar que nada acontecesse com ela, nunca iria me perdoar, embora tivesse tanta coisa manchando o meu passado que me fazia riscar do dicionário à palavra “perdão”. Mas enquanto eu estivesse com ela, eu poderia esquecer isso por um tempo, quanto ao meu trabalho, o que eu tinha que fazer, estava feito, não voltaria atrás. Alguns meses depois, eu ainda lembrava a decisão que tomei. Isso mudou muito na minha vida, e aquele trabalho havia sido o último. Era o passo para mudar essa vida, e isso incluía abrir o jogo com Ane... Foi difícil, mas contei tudo para ela, vi a cor em seu semblante desaparecer, e a vi sair pela porta de casa e não voltar durante longos e longos oito meses. Ela disse que nunca me perdoaria. — Já imaginava. — Quase morri por dentro depois disso, me afoguei muitas vezes em bebidas e chorei muitas noites. Mas no fim, ela entendeu como era o meu passado obscuro, viu a verdade em meus olhos quando eu disse que não voltaria jamais e por mais difícil que pudesse ser, ela me perdoou. Agradeci tanto a Deus por isso, e prometi a mim mesmo que levaria uma nova vida daqui para frente. Nesses dias eu liguei a TV, repetia incansavelmente sobre a execução na cadeira elétrica do detento John Ramezel. Isso significava que a minha decisão foi a mais certa. A máfia havia sido revelada e todos os envolvidos caíram, chegaram a citar meu nome, mas o fato é que eles me conheciam como Mason, e não como James. Eu estava longe de ser culpado junto com eles. Anthony estava vivo e bem com a sua bela família. Eu não o matei. Quando o vi, eu não o via como vítima, pois a vítima de todo esse tempo havia sido eu... Vítima do meu trabalho, do que eu fazia. Havia me mudado para fora do país junto com a minha doce Ane. E embora eu ainda não conseguisse dormir, sempre que deitasse a cabeça no travesseiro, por lembrar de todas as pessoas que matei, de tanto sofrimento que causei, eu poderia estar recomeçando, mas o meu passado estava ali, e iria me acompanhar e me assombrar até o fim dos meus dias.
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Para Sempre Minha Viúva Negra - karime.ramos@yahoo.com.br
Eu a vi. Estava desfilando pela calçada do parque no centro da cidade. Todos frequentavam aquele lugar. Idosos jogavam xadrez com seus amigos de longa data, jovens andavam de bicicleta ou faziam manobras na pista de skate enquanto admiravam as lindas garotas que propositalmente exibiam seus corpos sensuais. Famílias sentavam à sombra de alguma grande árvore para fazerem um piquenique e se esquecerem, nem que fosse por um momento, daquela terrível e cansativa rotina que os condenavam a serem tristemente mortais. Ela passeava com o seu cachorro entre os arbustos enfeitados de coloridas flores e assim como o peludo se divertia correndo atrás das borboletas, ela esboçava um sorriso encantador naqueles lábios suavemente pintados de vermelho. Os olhos apertavam-se no momento em que o som de seu riso fluía de sua boca emanando por todo aquele bonito jardim. Nada conseguia ser mais atraente que a brisa balançando a barra de seu vestido azul, o vento brando e fresco dominava aquele corpo firme, porém desajeitado. O cabelo loiro cobriu seu rosto e por um instante, o aroma alucinante de pétalas de rosas juvenis chegou às minhas narinas. Eu sabia que havia vindo dela. O perfume tão delicado, cujo qual entendia a razão de não ser tangível, fez nascer algo dentro de mim. Uma centelha de amor iluminou meu olhar fazendo ver que o que estava diante de mim não era só uma garota, mas um anjo. Podia sentir a maciez de suas asas acariciando meu rosto com toda a sua divindade. Queria que aquele momento nunca tivesse fim. Porém como era de se esperar, acabou no minuto em que desejei que fosse eterno. O céu entenebrecera e uma chuva iminente dele começou a cair. Todos puseram-se a correr pelo parque feito um bando de baratas desnorteadas, até mesmo o meu imaculado ser. Ela deslizava seus olhos de um lado a outro procurando por seu companheiro canino e como por mágica, o animalzinho estava junto aos meus pés, trêmulo. Buscando proteger-se dos pingos gélidos que arrepiavam seu pelo. Eu o levei até sua guardiã desesperada e minha recompensa foi vê-la sorrir e pronunciar num tom melodioso um frívolo agradecimento. Senti como se houvesse morrido, ascendesse ao Paraíso e lá fosse recebido por trombetas celestiais e ela, minha personificação do que há de mais puro no mundo. Queria que ela ficasse, mas percebi a ânsia por partir, segurei sua mão puxando-a para perto e o tremor nervoso arrastou-se por seus dedos até mim. Soube que ela não queria ficar, assim como os outros que haviam partido, o meu tão amado anjo recusava aconchegar-se nos braços da chuva. Insisti, todavia ela resistiu impaciente, até desvencilhar-se de minhas mãos e correr como um animal livre na natureza. Senti naquele instante que nunca mais a veria e isto não podia acontecer, pois não mais viveria sem meu anjo a me abençoar. Segui seus passos e logo a vislumbrei encolhida debaixo de uma árvore segurando seu amiguinho, parecia assustada e com frio. Aproximei-me com cautela, infelizmente consegui assustá-la. Ela começou a acusar-me de perseguição e, por mais que aquilo parecesse real, o que eu realmente buscava era somente ter sua presença junto a mim. Tentei acalmá-la, lhe explicar, ainda que não soubesse o que dizer, certamente daria um jeito, contudo não quis me ouvir e quando tentou distanciar-se mais uma vez, eu a impedi. Segurei seus braços fazendo-a derrubar o cãozinho, que fugiu assustado. Não queria vê-la zangada, mas não soube como convencê-la a não me deixar, ela não podia ir. Ouvir suas duras palavras adquirirem um tom amedrontado partiu meu coração e, apesar de seus pedidos, não pude soltá-la. O volume de sua voz aumentou e pôs-se a gritar por socorro. Não compreendi o motivo de sua histeria e por que não me deixava falar? Iria dizerlhe que estava tudo bem e não a machucaria, mas meu anjo não permitia que ao menos uma palavra saísse de minha boca. Houve um instante em que seus gritos e suas tentativas de fuga começaram a me irritar. Queria poder dizer que se ela se acalmasse tudo ficaria bem, porém não conseguia, por que não queria me ouvir? Sua voz alta e confusa logo não passou de um som abafado na minha cabeça, como quando estamos debaixo d’água e seus movimentos perderam intensidade, como se afundasse em areia movediça. Senti-me a criatura mais forte do mundo, mais divino que o anjo irado diante de mim. A noite caiu sobre meus olhos e por um momento, eu não passava de uma roupa de carne que vestia um alguém se controle de seus atos. Aquele ser não via a criatura à sua frente como um anjo, mas como um inseto nefando que merecia ser esmagado. O ser disforme despiu-se de mim e em seguida algo preencheu o vazio amarrotado no qual eu havia me tornado. Um brilho frágil fizera-me olhar para baixo deparando com meu doce anjo caído, estirado na relva molhada. O horror tomou-me de dentro para fora e toda a minha crença fora abalada, pois o meu pequeno milagre estava aos meus pés com um olhar tão gélido quanto às gotas que escorriam por meu semblante. Ajoelhei diante daquela malfadada criatura aconchegando-a em meus braços. Não sentia sua respiração em minha pele, contudo seu corpo ainda estava quente e o que eu achava que era chuva, escorreu por meus dedos. O sangue dela estava em minhas mãos, ele tingia seus cabelos de vermelho, como se fulgurantes labaredas brotassem e dançassem em seu crânio. O calor também estava em minhas lágrimas culpadas que caíam por sobre a fronte de minha amada dissipando a tom carmim, devolvendo-lhe a sutil palidez de sua cútis, que já não era mais tão sutil assim. O que eu fiz? Mas será que fui eu? Não pode ser. Não seria capaz de arrancar a graça do mais belo anjo! Não fui eu! Todavia... Será que isto é tão ruim? Ela está aqui, silente em meus braços... Sem acusações ou medo. Posso tocá-la, acariciá-la e ela não vai embora. Eu a tenho junto a mim, sinto-me abençoado, pois tornei-me o guardião deste ser celestial. Ela agora é minha, só minha. Para sempre minha.
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