BRICOLINGUAGEM - Fascículo 3

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BRICOLINGUAGEM P RO C E S S O D E M U S I C A L I Z AÇ ÃO


Editores Mônica Baltazar Diniz Signori Eld Johonny Texto Julio Cesar Ribeiro Daniel Perico Graciano Andrei Krasnoschecoff Revisão Daniel Perico Graciano Lívia Beatriz Damasceno Capa e Diagramação Eld Johonny

RIBEIRO, Julio César Bricolinguagem - Processo de Musicalização / Julio César Ribeiro, Daniel Perico Graciano, Andrêi Krasnochecoff.

São Carlos - PNAIC UFSCar, 2016. ISBN 978-85-921588-3-5 1. Alfabetização 3. Educação 4. Literatura Infanto Juvenil


BRICOLINGUAGEM P RO C E S S O D E M U S I C A L I Z AÇ ÃO

1ª edição



PROCESSO DE MUSICALIZAÇÃO:

A POMBA, A BOMBA E A BOCA SEM DENTE Julio César Ribeiro

Daniel Perico Graciano Andrêi Krasnoschecoff

A propósito da encadernação desse material, gostaríamos de comunicar aos nossos interlocutores duas questões fundamentais, as quais nos nortearam, durante o processo de escrita. A primeira consiste em que esse material abordará as nossas impressões enquanto pessoas intituladas responsáveis – enfatizo o intitulada uma vez que, uma atividade realizada em equipe, no nosso entender, tem a colaboração direta ou indireta de todos os participantes, sendo nós, os “autores”, nesse sentido, apenas aqueles que registraram as marcas numa folha de papel, num pentagrama e que, dentro de nossas limitações, executaram a música (nota ao leitor: entenda executar à sua maneira, atribua ao verbo o valor que achar pertinente!). A segunda observação diz respeito à vulgarização da ciência da linguagem, sobremaneira à semiótica e às relações inter-semióticas. Queremos, portanto, abordar alguns conceitos-chave, abstendo-nos dos jargões proibitivos, daqueles que se restringem aos muros da academia, e explicar a semiótica, suas imbricações sociais de modo a não causar estranhamento por parte de nossos interlocutores, uma vez que se trata de processos os quais produzimos e interpretamos ativamente sem a necessidade de arcabouço teórico subjacente, os quais serão úteis apenas no que tange a sistematização e à didatização dos conteúdos, áreas as quais transcendem o propósito desse trabalho.

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O nosso interesse, portanto, reside numa breve apresentação ao professoralfabetizador, estudantes de pedagogia/licenciaturas e aos demais interessados acerca de outras possibilidades de leituras da canção, inicialmente, como qualquer outra que ouvimos em rádios e programas de televisão. Notemos as similaridades: trata-se de uma melodia animada por uma voz humana, acompanhada de instrumentos harmônicos (nesse caso, o violão), um instrumento de percussão. Sua estrutura também se assemelha com músicas outras: há uma introdução, versos, um pré-refrão, um refrão e certas repetições. Nada criado a partir de epistemes inovadoras derivadas de projetos revolucionários de musicalização. Pelo contrário: baseamo-nos em nossos instintos, em nossas reflexões as quais geraram inspiração. A música, tal qual outro qualquer bem artístico, quando inserido em uma sala de aula, fornece subsídios para a confecção de outras atividades. Um pre-texto: texto que gerará contos, fábulas, desenhos, outras músicas e, potencialmente, edificantes discussões. Basta aflorarmos a nossa imaginação e nossas potências transformadora entram em cena, trazendo consigo resultados inesperados. Mais que isso, sabemos de recentes reformulações em parâmetros curriculares os quais preveem o ensino da música como disciplina obrigatória durante os anos iniciais. Não é nosso propósito apartar a música das outras áreas do conhecimento, afinal, interdisciplinaridade é um de nossos conceitosmestre; porém, por que não ensinar música ela mesma às crianças? Sim, causa estranhamento, faz barulho (nada mais que esperado!), desarruma as carteiras, traz sorrisos, traz espontaneidade, trás formas de inclusão (um convite ao mais tímido, uma paródia feita em conjunto acerca de um tema do cotidiano). Apreciar, reler e criar, diz-nos pesquisadores.

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Por fim, apresentaremos, junto a esse material, a partitura registrada junto ao ECAD (contendo as nossas “firulas imaginativas”) e também uma versão simplificada, executável por qualquer um que tenha mínima afinidade com um instrumento musical, livre das tensões e dos caprichos dos “arranjadores”. O nosso objetivo é que cada classe, à sua maneira, explore a música, recrie-a, reinvente-a. Que cada aluno, assim como nós, no seio do PNAIC-UFSCar, dê os seus palpites e que eles sejam a cabo discutidos, problematizados, questionados, registrados, constituindo novas formas daquilo que nós apenas iniciamos e sobre o qual não vemos finitude. O nosso próprio registro é apenas o registro de um momento, de um estado da música, que sempre se recria.

A letra, a música, a melodia, a canção Existe um elo entre a melodia e a letra que não se restringe somente a um modo diferente de expressar os versos que compõem a canção. Vamos pensar da seguinte maneira: quando dizemos uma palavra, por exemplo, o som que sai do nosso aparelho fonador (pulmões, traqueia, “garganta”, boca, língua e dentes) não tem ligações “naturais” com seu conceito (com a imagem do mundo que aquilo representa). Associamos um som a um significado por uma questão cultural, convencional e arbitrária: enquanto em português dizemos “menina” para designar uma criança do gênero feminino, os franceses dizem “fille”, os italianos dizem “ragazza” etc. Não nos perguntamos, de maneira geral, o porquê dessas associações imotivadas, afinal, nascemos inseridos em uma tradição linguística e nos daria muito trabalho reinventar a língua – além disso, precisaríamos convencer toda a massa falante de que a nossa “nova língua” seria melhor do que a atual. Ora, se o propósito da língua é a comunicação e se ela dá conta de fazer entender e fazer-se ser entendido, por que uma língua haveria,

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então de ser melhor ou mais completa do que as outras? Por outro lado, seria uma grande ilusão acharmos que não promovemos mudanças na língua: elas acontecem. “Com que frequência?”, perguntaria Dr. Malcolm Crowie (O sexto sentido, 1999). Podemos responder seguramente: “o tempo todo!”. Acontece, portanto, que não as percebemos, afinal, estamos sempre diante de um estado sincrônico de língua – o que não nos faz ter de acompanhar um “Diário Oficial de Mudanças de Língua”. Para que elas ocorram, faz-se necessário que se crie uma tradição, que haja assimilação pela massa falante e a resistência ao tempo (afinal, não se passa de vossa mercê para ocê de um dia para o outro) de uma hora para a outra, não se diz ocê em qualquer circunstância e o nosso objetivo, enquanto linguistas, distancia-se de prescrever o funcionamento da língua. Que ambição! Como toda ciência, visamos descrever o seu funcionamento no seio social. O que temos, são massas amorfas (sons e conceitos) que se unem para a formação de um signo! Podemos encontrar um correlato com a linguagem verbal nas notas de uma melodia. Quem nos garante que a linguagem musical não é, em alguma medida, arbitrária? Ora, se em qualquer canto do mundo, convencionalmente, a nota Lá, por exemplo, emitirá a mesma frequência (442Hz). Mas isso pode ser modificado. Trago uma experiência própria ocorrida durante uma gravação com uma banda de forró cujo A (o Lá) do acordeom estava afinado em 450Hz– e assim foi padronizado. Decerto o ouvinte nem se deu conta disso. O caráter convencional da linguagem musical evidencia-se, por exemplo, em bandas que, com o propósito de tornar a harmonia mais agressiva, abaixa o tom de algumas cordas do instrumento, produzindo um efeito de sentido único, vide bandas de heavy metal como Slipknot, em cujas gravações a afinação dos instrumentos harmônicos é diminuída em até 4 tons, produzindo, tal qual no uso da linguagem verbal, diferentes efeitos de sentido. Assim como em se tratando de linguística,

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esses deslocamentos podem ou não alterar o sistema virtualizado – a depender do fator tempo e da incorporação pela massa social. No caso das bandas de rock, cujas produções baseiam-se na intertextualidade própria do gênero, esse fator é, em alguma medida, mais recorrente – mas não encontraremos um sertanejo, por exemplo, executados com afinações tão alternativas assim. O que ocorre, nesses casos pontuais do sertanejo, é um leve deslocamento tonal das notas em prol a facilitação de (a) o trabalho do animador/cantor; (b) os shapes, ou desenhos de acordes, a ser utilizados pelos músicos. Imaginemos uma situação na qual o vocalista queira cantar Wish you where here (Pink Floyd) em F# utilizando a afinação padrão do violão (E-A-D-G-B-E): esse deslocamento não alteraria a música ela mesma, mas o som de todos os acordes abertos – que se valem de corda solta – originalmente executada em G. Em situações como tal, convencionalmente diminui-se em ½ tom a afinação do violão. Uma pergunta: essa dificuldade seria encontrada pelo tecladista da banda? A resposta é sim e não: ele teria de se valer de outras notas para adequar-se à proposta, mas o som ele mesmo não seria afetado, ou seja, não encontraria interferências. Vamos distinguir os sons do “sentido”, elementos inseparáveis, com o intuito de evidenciar a relação indissociável entre eles. A esse conjunto de sons chamaremos de expressão e ao sentido que esse conjunto evoca denominaremos conteúdo. No que diz respeito à expressão, a linha melódica se apoia em uma série de acordes que direcionam o tom, a continuidade dessa melodia funciona como um retrato do conteúdo expresso na letra, uma extensão. Vamos ver como isso se dá? Tomando como exemplo os primeiros versos da letra, o elo entre melodia e letra funciona da seguinte forma: As primeira sílabas:

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as-pa-la-vras-me-ni-na-tem-ca-ra-de-pa-pel Apresentam uma distância do centro tonal (o tom!) baseada na variação mais curta possível para a construção de uma frase melódica:

ré - do - ré - ré - do -ré - ré - fa - sol - fa - ré - do – ré

Essa curta distância representa o estado das coisas no plano do conteúdo, ou seja, as palavras têm cara de papel aqui e agora.Já no segundo verso, temos uma variação um pouco diferente Ré - do - ré - ré - do - ré - ré - do - ré - do - ré - do - si - sol – la

Mãos de tintaéssatintaé quem pintaospassarosnocéu A diferença está principalmente na nota lá, pois ela se distancia, está 9 notas acima da nota sol que precede, o que mostra que o céu está longe, lá no alto, assim como a nota, enquanto todo o resto está aqui, compartilhando conosco o espaço. Por incrível que pareça não adotamos conscientemente esse critério, esse tipo de recurso surge “instintivamente” no processo de composição e esses padrões se repetem ao longo de toda a canção. Nunca ouvi uma canção que não funcione dessa maneira. E pasme: isso vale até para as músicas instrumentais!

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Mas e o canto lírico? Também. Os gregorianos? São lindos e essa conceito também se aplica a eles. Então quer dizer que, para escrever uma canção, devo conhecer o que é plano de expressão, plano de conteúdo, teoria da enunciação enunciação. A resposta, novamente, seria sim e não. Aqueles que trabalham com música têm esses conceitos bem desenvolvidos embora nem saibam, de maneira geral, da existência deles. Agem de maneira convencional e, assim como nós, ao aprendermos uma língua, não nos perguntamos “por que as coisas são assim?”. Que tal se, agora, repetíssemos o exercício com Parabéns a você. Vamos, será divertido! Juntamos todos os aniversariantes do mês, cantamos em homenagem a eles e depois fazemos o exercício. PA-RA-BENS-A-VO-CE NE-SSA-DA-TA-QUE-RI-DA MUI-TAS-FE-LI-CI-DA-DES MUI-TOS-ANOS-DE-VI-DA

Os arranjos da canção A primeira coisa que você deve estar se perguntando é “depois dessa teoria estranha, o que eu tenho a ver com os arranjos? “Eles já estão prontos, caspitta!”. Um pouco mais de tolerância e compartilhe conosco parte dessa experiência. Os arranjos começaram a ganhar forma a partir de um cantarolar de um colega de estágio, um grande poeta – o Poeta em Queda1. Como poeta, o garoto sabe muito bem usar as palavras em prol de produção de sentidos. E não tardou para 1 https://poetaemqueda.com/

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que um verso cantado por ele fizesse-nos admitir um tom (D, Ré maior, ao qual chegamos quando “traduzimos” para o violão aquilo que Pedro, despreocupado, cantarolou). As tessituras vocais verificadas na melodia –espaços entre uma nota e outra apresentadas no decorrer da música – foram tornando convenientes (mas não necessárias!) transformações na estrutura harmônica, que passava a ganhar algumas tensões complementares, assemelhando-se, cada vez mais, ao gênero genuinamente brasileiro (aqui, falamos com ressalvas) chamado Bossa Nova. Em pouco tempo, talvez uma manhã, estávamos com a base (violão e voz) completamente definidas. Era, no entanto, preciso explorarmos mais os recursos verbais que a música trazia. Assim, nos versos “menina, a palavra é valente / traz no trabalho a força e a luta do povo da gente” optamos por simular uma viola caipira com o propósito de aludir os substantivos trabalho, força, luta e o sintagma “povo da gente” à força de trabalho caipira, presente no cancioneiro sertanejo até a sua cooptação pela indústria cultural (as tais Caravanas de Cornélio Pires) já na década de 1930 (CALDAS, 1977), articulação mediada pela indústria cultural que promoveu o apagamento do sertanejo arguto, que lutava por seus direitos, em detrimento de um sertanejo apaixonado que, interdiscursivamente, chorava aos quatro cantos a ruptura de um enlace afetivo e o abandono por parte da mulher amada. Mais que isso, pensamos na polifonia: a voz do sertanejo na bossa nova Era como se um caipira invadisse um requintado (e socialmente valorizado) espetáculo de bossa-nova e desse o seu recado, falasse sobre a luta do campesinato! A isso chamamos “efeito de sentido”.A propósito, o movimento bossa-nova é incorporado por elites intelectuais desde os idos da década de 1950, construindo, em alguma medida, oposição ao sertanejo (tomemos como sertanejo tudo aquilo que não era produzido no seio civilizatório chamado Rio de Janeiro), tornando-se, atualmente, arte de diferenciação, consumida por um povo que não consome tudo o que a dita elite intelectual consome (por restrições de ordem financeira) e rejeita tudo o que as

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ideologias hegemônicas rejeitam (o sertanejo, o pobre, o caipira), como nos asserta Caldas (1977). Entretanto, temos, na constituição da identidade musical brasileira – embora esse conceito seja atualmente contestado por Hall (2005), para quem a identidade é fragmentada e transitória – ambos os gêneros musicais, sendo o primeiro mais bem aceito pelas massas – incluindo as classes médias – do que a segunda. É fato que não nos referimos ao mesmo sertanejo, que teve, em seu percurso evolutivo, significativa transformações, chegando à contemporaneidade trajando fantasias “universitário” assemelhando-se, à composição estética, como algo entre música nordestina e música pop. O improviso melódico realizado logo na introdução com a inserção de um xilofone sintetizado por um aplicativo remeteu-nos, de maneira interdiscursiva, à infância – isso é de ordem sociocognitiva: a nossa sociedade associa por meio da intertextualidade o som agudo do xilofone a músicas infantis, fórmula replicada por produtores musicais e aceita no seio social. Explico o porquê da intertextualidade: canções de ninar, móbiles, ursinhos infantis e demais produtos dirigidos ao público infantil – sobremaneira àqueles entre 0 e 7 anos – valem-se do timbre do xilofone como instrumento melódico, que, em alguma medida, induz o relaxamento – ao contrário de uma guitarra elétrica, por exemplo. Essa discussão completa estaria no âmbito da física (os sons) e , como disse, do processo sociocognitivo de interpretação, fugindo, portanto, de nosso propósito atual. Os solos de violão com cordas de nylon realizados durante a música tiveram como propósito requintar o arranjo e, mais que isso, influenciar sobre a dinâmica da música – notemos que ela começa silenciosa, tem sua dinâmica expandida com a inserção de outros instrumentos (voz, contrabaixo e bateria) e, com o solo de violão nylon ao final, retoma a sua característica mansa, serena. Como efeito de sentido, podemos pensar na poesia vocalizada como mensagem principal e nos outros instrumentos como elementos subjacentes à poesia animada.

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Todo esse processo, escrito em mal traçadas linhas, ocorreu de maneira muito rápida e de maneira muito diferente do convencional. As inspirações partiam nos horários mais impróprios (almoços, discussões acerca de outros trabalhos, em tardes de domingo). Foi comum trocarmos mensagem de áudio em redes sociais, e-mails com “versões” feitas em casa – a maioria descartável, claro – acerca das possibilidades. O que nos uniu foi a paixão pelo ideal e a paixão antiga pela música. Embora a música seja um trabalho como qualquer outro, não nos abdicamos de outras atividades durante esse processo – atividades dentre as quais envolvia música e linguística, um casamento surpreendente, daqueles que poucos apostariam no sucesso.

DIY – Do it yourself Na iminência da ideia do surgimento de um kit dirigido às crianças das redes públicas cujos professores alfabetizadores responsáveis participassem do PNAIC-UFSCar, tivemos a ideia de produzir uma canção e daí suas implicações: Como? Com qual dinheiro? Com quais músicos? Com quais recursos? Não nos desanimamos, não nos abatemos. No seio dos recursos humanos do PNAIC, havia membros com histórico de participações em bandas de diferentes gêneros musicais. Andrêi, baterista, que trabalha oficialmente na elaboração de materiais visuais, participara, como baterista, de algumas bandas de rock no cenário de São Carlos; Daniel, estagiário, que traz em seu currículos prêmios na categoria de poesia em festivais, aventurou-se durante muito tempo como cantor em bares no estado de Minas Gerais, além de participar de bandas de rock; Julio, à época estagiário do PNAIC, participou por mais de 10 anos como músico freelance em “bandas de baile”, duplas sertanejas e bandas de rock. Problema resolvido: os nossos próprios talentos (meia dúzia, contando familiares, dizem que temos) foram explorados – com todo prazer, segundo eles – em prol da

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causa que, pouco a pouco, foi-os conquistando, conduzindo, em alguma proporção, à uma relação apaixonada, na qual não se media tempo nem hora para ensaios e discussões acerca do projeto. Ideias como tal podem ser levadas aos ambientes escolares. Com um pouco de atenção, docentes podem explorar o potencial particular dos indivíduos que compõem as salas de aula, articulando tais potenciais em prol de um bem maior – uma peça de teatro, uma animação, uma música etc. Ademais, como já sabemos por meio de outras pesquisas, a arte pode colaborar para atenuar sentimentos de timidez e minimização diante os demais, além de ser uma grande aliada no temeroso processo de inclusão de alunos portadores de necessidades especiais em escolas públicas. Confeccionar uma música tem as suas dificuldades. Então por que não começar por um nível de complexidade mais simples, explorando, por exemplo, paródias de músicas comerciais, das quais backing-tracks (músicas “sem a voz”) podem ser obtidas facilmente em sites como YouTube? A propósito de requintar o trabalho – com o apoio de um educador musical --, pode-se pensar acerca dos instrumentos acústicos, como o violão, e até mesmo em aplicativos gratuitos disponíveis para smartphones e tablets. Muitas vezes fomos convidados para compor as trilhas sonoras das entrevistas realizadas pelo PNAIC-UFSCar e, nessas ocasiões, valíamonos do aplicativo Garage Band, altamente intuitivo e, ao mesmo tempo, sofisticado. Como muito já se discutiu, a música traz consigo uma potencialidade inclusiva muito grande. E, ao pensarmos em inclusão, podemo-nos afastar do paradigma deficiência, e pensarmos no aluno mais tímido, no “menos criativo”, no mais quietinho, no que tem dificuldade em incluir-se ao grupo de maneira geral.

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Meu aluno só quer saber de funk! O que faço? Está aí uma indagação recorrente e valemo-nos do funk a título de exemplo justamente por ser o gênero musical mais apontado em termos depreciativos! O funk, gênero musical genuinamente estadunidense, teve, nos últimos decênios, sua versão brasileira, emergida no estado carioca e rapidamente incorporada pela indústria cultural. Dos Bailes da Pesada, ao Proibidão: em termos de discursos, podemos pensar na binarização da sociedade, na heteronorma, na reificação da mulher e também em questões de ordem social de outras naturezas, como as acentuadas diferenças sociais presentes em nosso contexto e a luta de classes. Entretanto há de se pensar que, por muitas vezes, essa é a única experiência com música que a criança possui em seu seio familiar (e quem somos nós para julgar isso? Em se tratando de arte, dispamo-nos de qualquer orientação preconceituosa, sobremaneira dos critérios bom e ruim). Então por que não solicitar que as crianças transcriem suas próprias versões de funk, sertanejo, seja lá qual for o gênero, sobremaneira aqueles que detêm menor prestígio social. Além da transcriação, é possível que sejam levantadas discussões acerca das temáticas trazidas pelas músicas, que se troquem experiências, que se discuta questões naturalizadas socialmente. A criança não pode ser subestimada em sentido algum! Outros gêneros musicais têm igualmente muito a oferecer, no entanto, é preciso começar de algum lugar – e por que não do lugar já conhecido, do lugar-comum, abrindo portas para a oferta paulatina do novo? Experimente! Ninguém é obrigado a gostar de gênero musical algum, não cabe ao professor subtrair o direito do aluno escolher, dentre possibilidades, aquilo que mais lhe agrada, tampouco profetizar aquilo que, convencionalmente, é intitulado como bom – seja boa música, boa literatura, boa arquitetura etc. Conhecer, apreciar, reler, conhecer o novo: este pode ser um caminho!

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Referências CALDAS, Waldenyr. Acorde na Aurora: música sertaneja e indústria cultural. São Paulo, Ed. Nacional, 1977. COELHO, Teixeira. O Que é Indústria Cultural. 16ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996. FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11a ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. PNAIC. A arte no Ciclo de Alfabetização. Caderno 6. Brasília: MEC/SEB, 2015. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. 27a ed. São Paulo: Cultrix, 2006. TATIT, Luiz. Semiótica da Canção: Melodia e Letra. 3ª ed. São Paulo: Escuta, 2007.

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