Rússia: 20 anos sem comunismo

Page 1

ÉPOCA foi à Rússia ver como o país mudou após o fim da União Soviética. A transição para um regime democrático e uma economia de mercado ainda está longe do fim JOSÉ FUCS, MOSCOU

VIBRAÇÃO Garotas dançam na Praça Vermelha após uma festa de formatura escolar. No antigo Q.G. do império soviético, a atmosfera sombria do passado foi substituída pelo clima de festa (Foto: Korotayev Artyom/ITAR-TASS Photo/Corbis) Na Praça Vermelha, na região central de Moscou, os tempos do comunismo parecem um ponto distante na história. Vinte anos depois do fim da União Soviética, em dezembro de 1991, o capitalismo se infiltrou por todos os flancos. Na entrada principal, um grupo de camelôs, outrora vistos como expressão do “individualismo burguês” e proibidos pelo regime, vende livremente lembranças aos turistas. Em frente ao Kremlin, epicentro do poder soviético e hoje residência oficial do presidente russo, fica o Gum, um


sofisticado shopping center instalado num prédio de 1890 restaurado recentemente. Antes uma loja de departamentos estatal que vivia com prateleiras vazias e filas imensas, o Gum agora atrai uma clientela sofisticada e abriga grifes internacionais, como Louis Vuitton, Burberry, Armani e Kenzo, além de um supermercado recheado de produtos importados e cafés requintados. Em volta da praça, as largas avenidas construídas por Josef Stálin, ditador soviético que comandou o país de 1922 a 1953, já não são suficientes para abrigar a frota de Bentleys, BMWs e Mercedes. O clima predominante na praça é de descontração. Em lugar da atmosfera sombria do passado, uma profusão de estilos contrastantes revela uma Rússia vibrante e cosmopolita. Dois sacerdotes da Igreja Ortodoxa Russa, dominante no país e perseguida na era soviética, caminham lenta e despreocupadamente entre adolescentes de calças jeans com os fones de seus iPods plugados no ouvido. Em outro canto, uma estudante de cinema tira fotografias com sua máquina digital de última geração. Uma senhora de guardachuva desfila com seu tênis Nike, em meio à fina garoa de outono.

O ambiente na Praça Vermelha é um símbolo das profundas transformações por que passou a Rússia, a principal herdeira do espólio soviético, nas últimas duas décadas. Ficou para trás o país onde a ideologia ocupava um papel central, sob a supervisão vigilante do Partido Comunista e da KGB, o temido serviço secreto da velha URSS. Em seu lugar, surgiu uma nova Rússia, onde os indivíduos têm maior liberdade para escolher o próprio destino e até deixar livremente o país, antes rigidamente controlado. Hoje, não existem mais as famosas babuchkas, senhoras que montavam guarda em cada andar dos hotéis internacionais para bisbilhotar a vida dos turistas estrangeiros. O medo de falar mal dos dirigentes políticos com os vizinhos, temendo denúncias e perseguições, também se dissipou. E uma nova geração, nascida na Rússia pós-soviética, que só ouviu falar do comunismo pelo que contam seus pais e avós, começa a conquistar seu espaço. “O fim da União Soviética não é um evento apenas político. As mudanças também aconteceram na economia e na vida social”, disse a ÉPOCA o sociólogo Alexander Oslon, de 59 anos, presidente da Fundação de Opinião Pública (FOM), um dos mais respeitados institutos de pesquisa do país. “Foram três mudanças de uma só vez. Juntas, elas representaram uma verdadeira revolução.” Essa revolução está longe de acabar. A Rússia atual ainda carrega muitos esqueletos de seu passado comunista. Na própria Praça Vermelha, o corpo de Vladimir Lênin, o grande líder da Revolução Bolchevique de 1917, morto em 1924, ainda jaz embalsamado no mausoléu que leva seu sobrenome, em granito cinza, e continua a ser venerado por multidões de turistas e admiradores. O túmulo de Stálin, sempre coberto com mais flores que os demais, continua sob proteção da guarda nacional, ao lado das paredes avermelhadas do Kremlin e de outras personalidades do regime comunista enterradas no local. No metrô de Moscou, com suas 182 estações e seus 301 quilômetros de trilhos, uma das grandes obras dos tempos do comunismo, também sobrevivem alguns retratos de Lênin aqui e ali. Na nova Rússia, esse culto aos líderes do passado é apenas o lado mais visível da herança soviética. Ela também está presente nas práticas políticas dos líderes do presente, no controle da mídia e na intolerância com os críticos. Está impregnada no cotidiano e no espírito da população, em suas crenças e em seus valores. Longe dos grandes centros urbanos, nas pequenas cidades do interior, a população ainda não teve


acesso amplo às benesses do capitalismo. Boa parte da nomenklatura, que controlava a máquina administrativa soviética, continua no poder. “Vinte anos não são suficientes para superar 2 mil anos de história, 1.000 anos de cristandade e a tradição do Estado”, diz o economista Igor Iurgens, presidente do Instituto de Desenvolvimento Contemporâneo (Insor), um centro de pensamento ligado ao presidente russo, Dmitri Medvedev (pronuncia-se Medvêdev). Apesar de ter perdido muito de sua influência global, o destino da Rússia é crucial para o futuro do planeta. Ela é o maior país do mundo, com uma área que é quase o dobro da brasileira; tem o maior arsenal nuclear mundial e o maior número de armas de destruição em massa; possui uma fronteira de 4.200 quilômetros com a China; é a 11ª maior economia e o maior produtor de petróleo mundial; detém a segunda maior reserva de água, atrás apenas do Brasil; e tem uma população islâmica inquieta e significativa. O futuro do mundo depende, em boa medida, do que acontecerá com a Rússia nos próximos anos e nas próximas décadas. “Temos um papel importante a desempenhar, não apenas regional, mas globalmente”, diz Iurgens. “Temos de encontrar um papel compatível com nosso potencial, explorar nossas virtudes, ser uma ligação entre a Europa e a Ásia.” O problema é que a Rússia hoje parece andar para trás – e não para a frente. É como se o atual governo russo tivesse resgatado a velha máxima de Lênin – um passo para trás, dois para a frente – sem que ninguém saiba ao certo se essa marcha à ré vai parar em algum momento. A nova Rússia que emergiu nos últimos 20 anos tem pouco a ver com o éden liberal e democrático imaginado pelos ideólogos da guinada capitalista do país, no início da década de 1990, capitaneada pelo então presidente, Bóris Ieltsin, com apoio do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI). “Do caos dos primeiros anos da revolução, surgiu um jardim. Não é um jardim ocidental, nem um jardim brasileiro. É um jardim que surgiu das matrizes soviética e pré-soviética”, diz Oslon, do instituto FOM. “Os reformistas olham o que existe hoje com grande surpresa. É como aquele jardineiro que compra algumas mudas no exterior, planta-as aqui, acreditando que elas vão crescer da mesma forma que lá fora. Quando vê no que elas se transformaram, se dá conta de que não tem nada a ver com o que ele imaginava.” Na arena política, em muitos aspectos, é difícil notar a diferença da nova Rússia em relação à antiga União Soviética. Oficialmente, o regime de partido único acabou. Ao contrário da China, que abriu sua economia e manteve o controle político do Partido Comunista sobre a sociedade, a Rússia é, em tese, um país pluripartidário. Mas, na prática, é como se nada tivesse mudado. O partido Rússia Unida, do ex-presidente e atual primeiro-ministro Vladimir Putin, um ex-oficial da KGB que se tornou o grande líder do país na era póssoviética, e do presidente Dmitri Medvedev, domina de forma hegemônica a vida política do país.


O NOVO E O VELHO No alto, vista de prédios modernos no novo centro financeiro de Moscou. Abaixo, multidão em torno do mausóleu de Lênin, em 1991, ano que marcou o fim do império soviético. Vinte anos depois, apesar das mudanças, o passado ainda está presente na vida russa (Foto: Mitya Aleshnkovskiy/ÉPOCA e Alain Nogues/Sygma/Corbis) O totalitarismo soviético cedeu lugar a um regime autoritário comandado por Putin, legitimado pela frágil democracia russa. Putin é acusado de perseguir os críticos e os desafetos e de beneficiar os camaradas com privilégios ilimitados e negócios polpudos, muitas vezes ilegais. A célebre frase do escritor George Orwell em seu livro A revolução dos bichos – “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros” – ganhou um novo significado na Rússia pós-comunista. “A lei neste país é a seguinte: se você é amigo do Putin, pode fazer o que quiser”, diz Bóris Nemtsov, ex-vice-primeiro-ministro da Rússia na gestão de Ieltsin e um dos principais líderes da oposição. “Se é inimigo, vai para a cadeia.” Em 26 de setembro, Putin, de 59 anos, foi novamente escolhido como candidato do Rússia Unida para disputar a Presidência da República nas eleições de março de 2012. Seu nome foi proposto na convenção do partido pelo próprio Medvedev, de 46 anos, o atual presidente. Medvedev deverá se tornar o primeiroministro do novo governo, invertendo de posição com Putin. Com o aumento do mandato presidencial de quatro para seis anos em 2008, Putin poderá permanecer no poder mais 12 anos, caso seja eleito agora e reeleito em 2018. Somados aos oito anos que ele já ficou na Presidência, entre 2000 e 2008, poderão ser 20 anos no poder. Só Stálin, no auge do totalitarismo soviético, ficou mais que isso no comando do país. “Putin está tentando unir o emblema da Rússia imperial, o hino da União Soviética e a bandeira da Rússia democrática, mas essas coisas não combinam”, diz Grigori Iavlinski, candidato duas vezes derrotado à Presidência e líder do Partido Democrático Unido Russo (Iabloko). Mesmo autoritário, Putin é o político mais popular da Rússia. Sua popularidade alcançou o pico de 78% no final de 2008 e hoje gira em torno de 68%, segundo o Levada Center, um instituto de pesquisas independente. Beneficiado pela alta do petróleo, ele conseguiu equilibrar as finanças do Estado e estabilizar a inflação e o câmbio. Reajustou fartamente os benefícios dos aposentados e pensionistas, corroídos pela hiperinflação na gestão Ieltsin. Putin também voltou a ampliar a presença do Estado na economia. Nacionalizou a Gazprom, o gigante russo do setor de gás, e boa parte da indústria de petróleo. A renda média da população cresceu quatro vezes em dólar em dez anos, de acordo com dados do Banco Mundial. Ao enfrentar os rebeldes nacionalistas da Tchetchênia, reforçou sua imagem de durão, apesar da estatura


baixa – 1,70 metro – para os padrões russos. Putin lida mal com a questão. Ele costuma usar sapatos de salto plataforma, cobertos por calças exageradamente longas. Quando vai à TV, nunca é mostrado ao lado de alguém mais alto. Seus opositores dizem que ele só indicou Medvedev para lhe suceder em 2008, porque Medvedev, com 1,58 metro, era mais baixo que ele. Chamado pelos blogueiros russos de “nanopresidente”, Medvedev costuma usar saltos de até 6 centímetros para aumentar sua estatura. À medida que sua popularidade subia, Putin foi fechando o cerco à oposição. Hoje, ela praticamente inexiste no país. Os velhos comunistas e social-democratas são tolerados por Putin por não representarem uma real ameaça a seu governo. O registro de novos partidos dificilmente é aprovado. Só os políticos e os partidos que apoiam o governo recebem sinal verde para participar das disputas eleitorais. Quando Putin estava na Presidência, uma ampla reforma eleitoral proposta por ele dificultou o acesso dos pequenos partidos à Duma (a Câmara dos Deputados russa). Putin também acabou com a eleição direta dos governadores das 83 unidades federativas da Rússia. Agora, eles são indicados pelo presidente, e seus nomes têm de ser aprovados pelos Legislativos regionais. Isso levou à submissão das lideranças locais ao poder do Kremlin. As fraudes eleitorais também são comuns. Muitas vezes as cédulas em branco são preenchidas posteriormente para beneficiar um candidato oficial. “A Rússia é um típico país autoritário. Não tem eleições transparentes, competição política, um Parlamento de verdade, independência da Justiça. O que temos é uma imitação barata de democracia e um sistema de partido único e de pequenos partidos para os quais ninguém liga”, diz Nemtsov. No final de 2010, ele tentou registrar o Partido da Liberdade Popular, do qual foi um dos fundadores, para concorrer às eleições. Em maio deste ano, o registro do partido, centrado na defesa do liberalismo e da democracia, foi negado, sob a alegação de que havia discrepâncias nos documentos apresentados e assinaturas falsas de eleitores listados como membros do partido. Em agosto, Nemtsov foi preso duas vezes em São Petersburgo ao participar de manifestações. O governo cultiva uma relação promíscua com a oligarquia que se formou no país a partir das privatizações, em meados dos anos 1990. Em troca de negócios bilionários, consegue manter os oligarcas do seu lado. Quem ousa seguir um caminho independente se dá mal. Foi o que aconteceu com Mikhail Khodorkovski, que era o homem mais rico da Rússia e o 16o do mundo. Ex-vice-ministro das Minas e Energia, ele controlava a Iukos, uma das maiores empresas de petróleo do país, privatizada em 1996. No início dos anos 2000, no primeiro mandato de Putin, Khodorkovski vinha aumentando o tom de suas críticas ao governo. Em fevereiro de 2003, durante um encontro com Putin transmitido pela TV, discutiu com o presidente, questionando-o sobre a interferência do Estado nos negócios privados e a corrupção do governo. Em seguida, Putin determinou uma reavaliação da situação fiscal da Iukos, acusada de ter uma pendência de US$ 27 bilhões com o Fisco russo. Ao mesmo tempo, os ativos da empresa foram congelados pelo governo, e ela ficou sem recursos para saldar sua dívida. Em 2006, a Justiça decretou sua falência. A maior parte dos ativos foi comprada a preços reduzidos por estatais de petróleo. Khodorkovski foi preso em outubro de 2003, acusado de fraude e evasão fiscal, e condenado em 2005 a oito anos de prisão. Em fevereiro de 2007, quando ganharia o direito de obter liberdade condicional, ele sofreu novas acusações de fraude e lavagem de dinheiro. Em 27 de dezembro de 2010, depois de diversas violações processuais questionadas por seus advogados, Khodorkovski foi condenado a um total de 14 anos, esticando sua libertação de 2011 para 2017. Hoje, aos 48 anos, ele cumpre sua pena na Colônia Corretiva no 7, na pequena cidade de Segeja, no noroeste da Rússia. Sua correspondência e suas visitas são limitadíssimas. Nesse cenário, em que a elite econômica se alia aos homens do poder, temendo represálias semelhantes às lançadas contra Khodorkovski, a corrupção alcança no cotidiano das empresas e dos cidadãos níveis assombrosos. Ninguém parece ter vergonha de assumir em público que recebe propinas. Enquanto no Brasil um policial corrupto em geral evita exibir sinais exteriores de riqueza, na Rússia acontece o contrário. Há pouco tempo, questionado em público se recebia suborno em seu trabalho, um oficial da polícia respondeu sem constrangimento: “E você acha que é possível viver com 50 mil rublos (R$ 3 mil)por mês?”. Nas escolas, os pais não pagam propinas “apenas” para conseguir uma vaga para seus filhos nas melhores unidades ou mais perto de casa. É comum também subornarem professores e diretores para garantir a aprovação dos filhos. Alguns subornam até motorista de ambulância para poder furar os congestionamentos e chegar mais rápido ao aeroporto. É comum empresários de sucesso serem acossados por funcionários públicos interessados em engrossar o patrimônio. Isso inclui agentes fiscais, policiais, promotores, juízes, bombeiros e agentes de vigilância sanitária. Muitos trabalham em parceria com organizações criminosas. Quem não dá sua “contribuição” está sujeito a sofrer todo tipo de perseguição e pode até perder a empresa na Justiça. Não raro, os empresários têm de ceder uma participação acionária para se ver livres das pressões.



A investigação de casos de corrupção e de falcatruas pela imprensa é uma atividade de altíssimo risco. De acordo com o relatório mais recente do Comitê de Proteção a Jornalistas, a Rússia é o país mais perigoso da Europa para os jornalistas e o nono mais perigoso do mundo (leia no quadro ao lado). A contagem do número de jornalistas assassinados desde a redemocratização chega a 200. Em 2010, pela primeira vez desde 1999, não foi registrado nenhum assassinato de jornalista na Rússia. Ainda assim, há pouco tempo, o jornal Novaia Gazeta, de linha independente, teve de colocar portas blindadas em seu prédio, depois de sofrer várias ameaças de atentado. Seis de seus jornalistas já foram mortos, entre eles Anna Polikovskaia, assassinada em 2006, quando escrevia uma série de artigos sobre a corrupção envolvendo líderes militares russos na Tchetchênia.“É claro que as pessoas podem sentir medo, mas nesse caso deveriam mudar de profissão e de jornal”, diz Vitali Iarochevski, vice-diretor e editor de Política do Novaia Gazeta. Embora não exista censura oficial, as pressões de bastidor e a autocensura se institucionalizaram. Ao longo de seus dois mandatos, Putin investiu contra os três principais canais de TV do país, que concentram quase toda a audiência e recebem 60% do bolo publicitário russo, estimado em US$ 10 bilhões por ano. Hoje, dois canais são controlados diretamente pelo governo, e o outro pela Gazprom, a estatal de gás. Os telejornais se limitam a veicular informações favoráveis às autoridades. Os críticos e opositores são banidos do noticiário. “O governo controla completamente a TV”, diz o jornalista Vladimir Pozner, um ex-comunista que era um dos principais porta-vozes do regime e hoje comanda um programa de entrevistas no Canal 1, 100% estatal. “Os diretores dos três maiores canais vão ao Kremlin toda semana e recebem instruções sobre o que o governo deseja ver, sobre como as coisas devem ser apresentadas no noticiário.” No interior, com frequência, os pequenos veículos independentes tornam-se alvo da ação de criminosos ligados a autoridades regionais. A maioria dos assassinatos de jornalistas russos envolve profissionais que investigavam negociatas feitas por empresas estatais e pelo governo fora dos grandes centros. Raramente os crimes são investigados. Até hoje, porém, não se tem notícia de um jornalista que tenha sido morto a mando direto do governo federal. “A coisa não vem de cima, vem do clima geral”, diz Anton Nossik, um dos blogueiros mais populares da Rússia (leia a entrevista)”. A internet, que alcança 53 milhões de russos, ou 45% da população adulta, e recebe 17% da verba publicitária, até agora tem se mantido como uma espécie de território livre. Na web, vozes independentes podem dar seus recados sem ser molestadas pelas autoridades. Veículos, como o Novaia Gazeta, que preservam sua independência costumam sofrer dificuldades financeiras porque os anunciantes não querem se indispor com o governo. Segundo Iarochevski, o Novaia Gazeta vende cerca de 270 mil exemplares e sobrevive graças às contribuições mensais do oligarca Alexander Lebedev, que detém 39% das ações do jornal e controla também os britânicos The Independent e o Evening Standard. O ex-líder soviético Mikhail Gorbatchev, que iniciou as reformas políticas e econômicas dos anos 1980, detém outros 10%, e o editor-chefe Dmitri Muratov, representando a redação, 51%. De acordo com o jornalista Pozner, a liberdade de imprensa na Rússia é inversamente proporcional à audiência do veículo. “O número de pessoas que leem jornais e revistas é muito pequeno, se comparado com os que veem televisão”, afirma. “Por isso, o que importa para o governo são os grandes canais de TV.” Pozner diz que o autoritarismo político está ligado à “tremenda mudança que houve no país”. “Mas as pessoas não mudaram. Estão tentando administrar a Rússia como a União Soviética. Isso não funciona”, afirma. Ele conta que, certa vez, ao entrevistar o ex-presidente Ieltsin, disse-lhe: “Você é um democrata”. Ieltsin respondeu, segundo Pozner: “É claro que não. Sei o país onde nasci e cresci. Sei a que partido pertenci toda a minha vida. Como posso ser um democrata? Talvez, se trabalhar um bom tempo com democratas, eu aprenda”. E Pozner completa: “Ele nunca aprendeu”. É por isso, na visão de Pozner, que as mudanças só virão no longo prazo. “As coisas só vão mudar aqui quando a geração que nasceu depois de tudo isto chegar ao poder e assumir a liderança do país.” Para Oslon, do instituto de pesquisa FOM, o futuro da Rússia depende, basicamente, do tipo de mentalidade que predominará na sociedade. Segundo ele, há três grandes grupos sociais na Rússia, que não se entendem. O primeiro, quase metade da população adulta, depende do Estado para sobreviver – são aposentados, pensionistas, inválidos. O segundo, um terço da população adulta, reúne os que estão aptos a cuidar de si mesmos, mas levam uma vida provinciana, acomodados em suas rotinas. De manhã, vão trabalhar; ao meio-dia, almoçam; à noite, voltam para a casa e vão a um bar; aos sábados, vão à sauna. O terceiro grupo, 15% da população adulta, é o motor da sociedade. Inclui o pessoal mais ambicioso, que quer comprar uma casa na Espanha e sabe que tem de trabalhar para isso, mesmo que tenha de conviver com a corrupção. “Se o terceiro grupo for dominante, a Rússia vai se desenvolver bem. Se o primeiro ou o segundo grupo ganharem, haverá estagnação”, diz Oslon. A volta de Putin à Presidência certamente não traz um bom presságio.



(Fo to: David Brauchli/AFP, Dima Tanin/AFP, Dmitryi Donskoy/AFP, Sergey Guneev/AFP, Sergei Karpukhin/Reuters, Tatyana Makeyeva/AFP e Vyatkin Vladimir/AFP)


Anton Nossik: “A vida é barata na Rússia” O blogueiro russo diz que a corrupção da polícia impede o governo de conter e investigar o assassinato de jornalistas no país JOSÉ FUCS, MOSCOU

Jornalista Anton Nossik, de 44 anos, é um dos blogueiros mais influentes e populares da Rússia. (Foto: divulgação) O jornalista Anton Nossik, de 44 anos, é um dos blogueiros mais influentes e populares da Rússia. Seu blog tem uma audiência de 660 mil leitores únicos por mês. E sua página no Twitter alcança 40 mil assinantes, entre eles o presidente russo, Dmitri Medvedev. Nossik é também um dos principais empreendedores de internet do país. Desde meados dos anos 1990, ele participou de alguns dos negócios virtuais mais bem sucedidos da Rússia. Até sua atuação social se faz por meio da web. A Pomogi.org, dedicada a atender crianças doentes e famílias pobres, é totalmente baseada na internet. Segundo Nossik, a entidade já arrecadou US$ 3 milhões online e não usa um só centavo das doações para viabilizar a própria operação, financiada por ele mesmo e pelos seus demais fundadores. Logo depois da redemocratização do país, há 20 anos, Nossik, um judeu russo que segue os preceitos religiosos e circula com o tradicional solidéu na cabeça, emigrou para Israel, com receio de que a Rússia voltasse a se fechar para emigração, como nos tempos da União Soviética. Viveu em Israel durante sete anos e só voltou quando ficou claro para ele que o direito de ir e vir não estava ameaçado na nova Rússia que emergiu das ruínas soviéticas. Nesta entrevista, concedida a ÉPOCA no hall do Nevsky Palace Hotel, em São Petersburgo, Nossik fala sobre a força da internet, os assassinatos de jornalistas, os limites da democracia e a situação dos judeus no país. “A vida na Rússia é barata”, diz. “O governo é impotente para investigar qualquer coisa, porque a polícia é composta por um bando de corruptos.” ÉPOCA - Até que ponto as pessoas são livre hoje na Rússia para falar o que pensam? Anton Nossik -Na internet, a liberdade é absoluta. Mas, na televisão, você não vai ouvir uma única palavra que não seja censurada. Não há transmissão direta na televisão de nada relacionado à política. A única transmissão direta que há na TV é na área esportiva. No caso de jornais e revistas, se a circulação for pequena, tipo 30 mil ou 40 mil cópias, ninguém se importa. ÉPOCA - A internet, então, representa um grande papel na Rússia, talvez até maior do que em alguns países desenvolvidos... Nossik -É o único canal livre de comunicação. A questão é que você não deve superestimar a demanda pela mídia livre na Rússia. Ela é limitada. Nós ficamos 70 anos sem qualquer forma de liberdade de imprensa aqui – e ninguém morreu por isso. Se você perguntar para as pessoas mais instruídas se elas querem liberdade de imprensa, a resposta será sim. Agora, se fizer a mesma pergunta para as pessoas na rua, especialmente longe das grandes cidades, a resposta será algo como: “Do que você está falando?”.


ÉPOCA - Mesmo na internet, onde há mais liberdade, é seguro alguém dizer o que pensa? Nossik -Até o momento, ninguém foi assassinado, preso ou ameaçado. Ainda não há notícias de perseguição de jornalistas online. Houve muitos jornalistas da imprensa escrita mortos no país, mas as histórias nas quais eles estavam envolvidos eram relacionadas principalmente a questões regionais, ligadas a conflitos de propriedade. Em muitas regiões da Rússia, as autoridades e as organizações criminais trabalham juntas. Em muitas regiões, os governantes têm um passado criminal que é conhecido por todos. Qualquer um que exponha seus esquemas para tomar conta de empresas controladas pelo Estado está arriscando sua vida. ÉPOCA - O presidente Dmitri Medvedev é conhecido como um internauta ativo e tem até o seu próprio blog... Nossik -Ele lê os blogs, reage às coisas que lê, mas isso não muda a tendência geral observada no país. Qualquer que seja o pensamento de Medvedev, a realidade é diferente. Ele diz: “Vamos lutar contra a corrupção”, e nós afundamos mais e mais no ranking mundial dos países com menor nível de corrupção. Um dia, pela manhã, o presidente Medvedev se encontrou com o diretor do departamento prisional da Rússia e disse que as condições dos prisioneiros na Rússia eram medievais. No mesmo dia, no fim da tarde, ficamos sabendo que Sergey Magnitsky, um advogado e auditor que estava trabalhando num caso de evasão fiscal, foi torturado até a morte numa prisão de Moscou, onde ele estava sob a falsa acusação de cooperar com a corrupção. ÉPOCA - Na antiga União Soviética, muitas pessoas tinham medo de falar o que pensavam. Agora, apesar do que o senhor diz, não parece ser muito diferente... Nossik -Agora, a situação é oposta. Na era soviética, quanto mais baixo você falasse mais barata era a sua vida. Hoje, na Rússia, como disse o (empresário) Rupert Murdoch, quanto mais dinheiro você ganha, maior vulnerável você fica à ação dos criminosos. Foi isso que o motivou a encerrar as operações da News Corp na Rússia, vendendo seus ativos no país. Ele sentiu pressão política e se deu conta de que eles viriam atrás de seus ativos se ele não os vendesse antes. ÉPOCA - Só no jornal Novaya Gazeta seis jornalistas foram mortos nos últimos anos. Isso não é um sinal de que a liberdade de expressão na Rússia hoje é tão limitada quanto nos tempos da União Soviética? Nossik –É preciso levar em conta que nenhum deles foi morto por ordem do (primeiro-ministro Vladimir) Putin, do Kremlin ou de qualquer outra autoridade do alto escalão, como acontecia na era soviética. Foi sempre por causa de um conflito com autoridades ou criminosos locais ou com os militares ou com o serviço secreto. Não foi algo que veio de cima. Veio do clima geral do país. A vida ainda é barata na Rússia. Mesmo a Anna Politkovskaya, que era famosa nacionalmente, não foi morta por uma conspiração de pessoas ligadas ao Kremlin. ÉPOCA – De qualquer forma, não há uma política clara do governo para investigar esses crimes. Por quê? Nossik -O governo é impotente para investigar qualquer coisa, porque a polícia é composta por um bando de corruptos. A única coisa que eles sabem fazer bem é extorquir empresários, oferecendo proteção em troca de uma participação acionária. Em março deste ano, o (presidente) Medvedev promoveu a separação entre o Gabinete da Promotoria-Geral e o Comitê de Investigação da Rússia. Logo depois, o primeiro lugar que comitê investigou foi a própria promotoria. A primeira coisa que eles revelaram foi que os promotores de toda a região de Moscou estavam recebendo salários de uma rede clandestina de cassinos. Quem levava a maior parte era o promotor-chefe da região de Moscou. E é claro que, no mesmo dia, o inquérito foi fechado pelo gabinete do promotor-geral da Rússia. Isso permitiu que esse sujeito deixasse o país – ele agora está morando a salvo na Ucrânia, com seu irmão, um criminoso que controla minas de carvão, cassinos e outros negócios ilegais. Ele foi condenado à revelia em todas as instâncias, mas até hoje a Rússia não pediu para a Interpol ir atrás dele. Por quê? Porque você não pode fazer esse pedido sem a assinatura do promotorgeral. E o atual promotor-geral da Rússia, Yuri Chaika, tem um filho, Artem, que era o principal intermediário entre a promotoria de Moscou e os cassinos. Resultado: nós temos hoje 472 russos na lista de procurados da Interpol – e ele (o ex-promotor-chefe da região de Moscou) não é um deles. ÉPOCA - No Brasil e em outros países, o primeiro-ministro Putin é visto como o responsável pelo atual controle da mídia, por ter limitado a liberdade de imprensa e restringido a democracia russa. O que o senhor pensa disso? Nossik -Isso está absolutamente certo. O Putin cancelou perto de 80% do processo eleitoral quando estava na presidência (entre 2000 e 2008). Antes, dos 450 parlamentares da Duma federal, 225 eram eleitos por listas partidárias e 225 (50%) por candidatos independentes, que não precisavam ter vínculo partidário. O Putin cancelou isso. Depois, ele também mudou a forma de eleição do Senado. Antes, metade do Senado era composta por governadores eleitos em eleições diretas. Agora, todos os governadores são nomeados pelo governo federal. E agora a nova manobra é nomear os prefeitos também. ÉPOCA - O governo parece ser muito sensível – ou insensível – às críticas, não?


Nossik - Eles ficam nervosos quando vêem que os seus críticos estão conseguindo um apoio amplo. Quando isso não acontece, eles não se importam. Mas quando o (blogueiro) Alexei Navalny consegue levantar em um mês sete milhões de rublos, dos três milhões que estava pedindo, eles começam a sentir que alguma coisa está mudando e balançando, e começam a temer a própria sombra. O caso de (Mikhail) Prokhorov, que aconteceu em meados de setembro, é um exemplo brilhante. Ele é um oligarca que foi chamado ao Kremlin meses atrás e foi abençoado a criar um partido de direita para dar suporte ao governo, a partir de um partido antigo, o União das Forças de Direita, que havia recebido apenas 4% dos votos nas últimas eleições e ficou de fora da Duma por não ter atingido o mínimo de 5% dos votos. De repente, um movimento criado pelo (blogueiro) Alexei Navalny na internet – “vote para qualquer partido menos para o Rússia Unida (o partido de Putin e Medvedev) – começou a ganhar força. Segundo as pesquisas, havia a possibilidade de que um quarto dos 53 milhões de internautas adultos da Rússia votariam para Prokhorov, que estava se tornando cada vez mais independente do Kremlin. Isso lhe daria 25% do parlamento e tiraria a maioria constitucional do Rússia Unida – e eles não poderiam permitir isso. ÉPOCA – O que o governo fez? Nossik –O Prokhorov foi destituído do comando, a partir de um movimento orquestrado pelo Kremlin. O partido passou a ser dominado pelo pessoal que roubou o dinheiro dele. O Prokhorov investiu 800 milhões de rublos (US$ 260 milhões) naquele partido. Com sua saída, eles não vão precisar mais gastar esse dinheiro nas eleições (parlamentares, marcadas para 4 de dezembro). Quem vai votar neles agora? Eles podem passar a mão no dinheiro em troca de um contrato qualquer para prestar serviços de analise para o partido. Na época, fiz um comentário sobre o assunto no meu blog e a primeira reação dos meus leitores foi: “Eles prometeram devolver o dinheiro ao Prokhorov”. Mas, logo depois, o novo líder do partido disse: “Bem, precisamos checar se esse dinheiro veio mesmo do Prokhorov. Talvez esse dinheiro não fosse dele.” Em seguida, eles disseram que boa parte do dinheiro já havia sido usada para pagar os salários dos militantes do partido. O curioso é que, no dia seguinte, houve uma manifestação de 90 militantes querendo saber onde estava o salário deles. É um circo. ÉPOCA - Os russos não têm realmente muita escolha na hora da eleição... Nossik – Não, absolutamente nenhuma. Para participar da disputa um partido tem que ser aprovado pelo Kremlin. Se não, ele simplesmente não consegue participar. ÉPOCA – O senhor acredita em mudanças no sistema? Nossik –Como o Navalny diz, a mudança desse sistema não será resultado de um processo evolutivo. Só haverá a possibilidade de realizar eleições livres quando esse sistema for derrubado. A questão é que nem tudo de mal que acontece no governo do primeiro ministro Putin é falha dele. Esse país tem tradições específicas. Teve governantes como Ivan, o Terrível, e Pedro, o Grande, que construiu a maravilhosa cidade de São Petersburgo do jeito que (Joseph) Stálin (o ditador que governou o país entre 1922 e 1953) construiu a indústria soviética: na base da força. Então, eu não acredito que amanhã, se a gente trocar esse Putin por outro Putin, as coisas vão melhorar. Você tem um sistema de governo que controla quase tudo e irá corromper qualquer um, mesmo alguém insuspeito, como Alexei Navalny. Entre ele e o nível mais baixo do governo, ainda haverá vinte níveis de burocratas corruptos. É assim que o sistema funciona. Em 1997, o vice-prefeito de São Petersburgo, Michael Manevich, foi assassinado, porque ele não queria dar propriedades do Estado para os criminosos. O Putin o adorava e mesmo assim até hoje não sabemos quem o matou. Seu sucessor, obviamente, lhes deu as propriedades de graça. E eles se tornaram bilionários. ÉPOCA - Considerando tudo isso, qual é a sua conclusão quando você compara a situação atual com o ambiente da antiga União Soviética? Nossik -A conclusão é muito simples. A diferença é direta e objetiva. Hoje, qualquer um que esteja vivendo na Rússia, está aqui por livre escolha. Na União Soviética, as pessoas não podiam sair do país. Hoje, não posso dizer que o Putin está me forçando a viver aqui. Se eu detestar o que vejo aqui, a vida aqui, eu posso levantar e ir embora. ÉPOCA - Pelas últimas pesquisas, parece que muita gente está fazendo isso e muitas outras pessoas estão querendo fazer a mesma coisa... Nossik -Não muitas, mas algumas pessoas estão. Eu acredito que muitos dos que partiram deveriam ter ficado para o benefício do país, mas infelizmente não foi assim. Toda a elite russa manda seus filhos para fora, incluindo o Putin. Suas duas filhas vivem no exterior. ÉPOCA - Considerando que você é judeu e que vivia aqui na época da União Soviética, como você vê a situação dos judeus hoje na Rússia? Nossik -Não há essa coisa de “a situação dos judeus na Rússia”, porque ninguém está nem aí para quem é judeu e para quem não é. Isso não tem qualquer influência no processo de emprego, em promoções. Há um grupo grande de ministros e primeiros-ministros que eram judeus e são judeus. O Putin nomeou Mikhail Fradkov como primeiro ministro. Ele ficou no cargo de 2004 a 2007. E, quando ele foi removido, tornou-se o comandante do serviço de contra inteligência russo. Então, se houver algum espião russo operando hoje no Brasil, ele está sendo pago por um judeu, o Mikhail Ben Haim Fradkov. Hoje, a palavra judeu perdeu o


significado que costumava ter na Rússia. Não é mais uma religião, nem uma língua, nem mesmo uma linha no seu passaporte, que foi abolida cinco anos atrás.

Breve história do comunismo O extermínio de inocentes, o culto à personalidade, a perseguição aos inimigos do regime e um sistema econômico cruel e absurdo – eis o legado comunista JOSÉ FUCS O regime comunista na Rússia, o núcleo da extinta União Soviética, durou 74 anos e marcou a fundo a história do século XX. Ele começou com a Revolução de Outubro de 1917, sob o comando de Vladimir Illitch Ulianov, ou Lênin, o maior líder dos bolcheviques, como eram chamados os comunistas russos na época. Terminou de forma patética com a renúncia de Mikhail Gorbatchev, o último líder da União Soviética, por meio de um discurso na televisão, em 25 de dezembro de 1991. Os bolcheviques se consideravam os “legítimos representantes” da classe operária russa e proclamavam atuar como seu braço revolucionário. Inspiravam-se nas ideias do filósofo alemão Karl Marx (1818-1883), que pregava a união dos operários do mundo para criar uma nova sociedade, sem Estado e sem classes, com base na propriedade coletiva dos meios de produção. Incorporaram também as ideias de Lênin, que defendia a criação de um “partido de vanguarda” (o comunista), para, depois de tomar o poder, liderar a revolução proletária e governar o país em nome dos trabalhadores, num “estágio de transição” entre capitalismo e comunismo. Os revolucionários tomaram o poder por meio de uma revolta armada que derrubou o governo provisório instalado após a queda, em março de 1917, do czar Nicolau II, o último imperador da Rússia. Para se consolidar no comando, enfrentaram uma sangrenta guerra civil que durou até dezembro de 1922 e deu origem à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). O país, formado inicialmente por Rússia, Ucrânia, Bielorrússia, Geórgia, Armênia e Azerbaijão, chegou a reunir 15 repúblicas, antes de se desintegrar. Para não deixar rastros do passado, os bolcheviques executaram o czar Nicolau II, sua mulher, seu filho, suas quatro filhas, o médico da família imperial, um servo pessoal, a camareira da imperatriz e o cozinheiro da família, na cidade de Iekaterinburgo, no sudoeste da Rússia, em 18 de julho de 1918. Logo depois, eles decretaram “a propriedade privada da terra abolida para sempre” e determinaram que toda a terra dos aristocratas deveria ser transferida aos comitês de camponeses sem nenhuma compensação. Determinaram também que os operários assumissem o controle das fábricas. Um ambiente de insegurança e terror se instaurou na sociedade. Por acreditar que a religião era, nas palavras de Marx, o “ópio do povo”, pregavam o ateísmo. Diversos templos foram destruídos. As propriedades religiosas, confiscadas.


CU LTO À PERSONALIDADE 1. Parada militar na Praça Vermelha, em Moscou, em 1947, diante de cartazes de Lênin e Stálin 2. As imagens de Karl Marx, Friedrich Engels, Lênin e Stálin presidem ao encontro no salão que depois seria usado nos Julgamentos de Moscou, contra adversários do regime comunista 3. Desfile de ginastas na Praça Vermelha, diante da efígie de Lênin, na comemoração do aniversário da revolução em 1976 (Foto: Fotos: N. Sitnikov/Hulton Archive/Getty Images, Marc Garanger/Corbis e Bettmann/Corbis) As primeiras medidas dos revolucionários derrubaram a produção no país. Para estimular a economia, o novo regime decidiu pôr em ação em 1921 a Nova Política Econômica, ou NEP. Idealizada pelo próprio Lênin, ela restabelecia algumas práticas capitalistas. Permitiu a existência de pequenos negócios privados e suspendeu confiscos de produtos agrícolas e matérias-primas, embora o Estado mantivesse o controle de bancos, grandes indústrias e do comércio exterior. Segundo Lênin, a NEP representava apenas um recuo tático – um “passo atrás”, para dar “dois à frente” depois. Com a morte de Lênin, em 1924, por razões até hoje não esclarecidas, Josef Stálin, então secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética e do Comitê Central, assumiu a liderança dos bolcheviques e


abandonou a NEP em 1928. Stálin venceu a disputa pelo comando dos bolcheviques com Leon Trótski, fundador e o primeiro líder militar dos revolucionários, assassinado em seu exílio no México, em 1940. Stálin permaneceu no poder até sua morte, em 1953. Foi o mais longo de todos os governos soviéticos. Ele renacionalizou quase toda a economia e implementou uma política de rápida industrialização do país. Stálin foi um tirano cruel e sanguinário. Exterminou milhões de camponeses russos para forçar a coletivização da agricultura. Centralizou o comando da economia e adotou os primeiros planos quinquenais, que se tornariam uma marca da URSS. Ele montou um aparato de segurança sem precedentes para vigiar os cidadãos e identificar possíveis atos “contrarrevolucionários”, liderado pela NKVD (futura KGB), a polícia secreta soviética. Perseguiu de forma implacável seus opositores. Em 1937 e 1938, realizou um “grande expurgo” para eliminar ex-opositores do regime, potenciais rivais no partido e outros inimigos. Numa série de julgamentos de fachada, conhecidos como Julgamentos de Moscou, ele acusou também os velhos bolcheviques que ainda estavam vivos, inclusive Trótski. Justificava-os por meio de confissões forçadas, tortura e ameaça às famílias. Calcula-se que, ao todo, cerca de 700 mil pessoas, a maior parte cidadãos comuns, foram executadas nesse período. Milhões foram confinados em gulags, os campos de trabalhos forçados na Sibéria. Ao mesmo tempo, Stálin s promoveu o culto a sua personalidade. Diversas vilas e cidades receberam seu nome. Aceitava títulos grandiloquentes, como Pai das Nações, Gênio Brilhante da Humanidade, Grande Arquiteto do Comunismo e Jardineiro da Felicidade Humana. Ele ajudou a reescrever a história para lhe atribuir um papel mais relevante na Revolução de 1917. Durante a Segunda Guerra Mundial, Stálin se uniu aos aliados depois que o ditador nazista Adolf Hitler traiu o pacto de não agressão firmado com ele em 1939. A guerra foi decisiva para a derrota de Hitler e abriu o caminho para que a URSS passasse a controlar a metade oriental da Alemanha e o Leste Europeu, emergindo como grande potência mundial. No auge, o império soviético comandava 40 países no mundo. Com a morte de Stálin, o clamor por reformas na URSS aumentou e seus crimes vieram à tona. Sob a liderança de Nikita Kruschev, que assumiu o comando do Partido em 1958, as execuções em massa foram reveladas e milhares de dissidentes libertados. Mas Kruschev endureceu o jogo no front externo, com a instalação de mísseis em Cuba voltados para os Estados Unidos e o recrudescimento da Guerra Fria com os americanos. Kruschev acabou caindo em desgraça e deixou o posto em 1964. Quando morreu, em 1971, não mereceu sequer um lugar junto ao mausoléu de Lênin, na Praça Vermelha, em Moscou, onde está enterrada a maior parte dos líderes soviéticos, inclusive Stálin. Com a queda de Kruschev, a linha dura voltou ao Kremlin com Leonid Brejnev. Ele fez pesados investimentos em armamentos e apoiou regimes de esquerda em todo o planeta. Foi só com a ascensão de Gorbatchev em 1985 que finalmente as negociações para a redução de armamentos de longo alcance entre EUA e União Soviética ganharam força. Durante sua gestão, os países satélites da Rússia no Leste Europeu começaram a se desgarrar. Em 1990, com a queda do Muro de Berlim, o principal símbolo da Guerra Fria, o império soviético se desintegrou. No campo interno, Gorbatchev implementou também a perestroika (abertura política) e a glasnost (abertura econômica), traçando o caminho para o fim do comunismo e da URSS.


-


(Foto: George Steinmetz/Corbis)

O Brasil como inspiração O metalúrgico Alexei Etmanov, um dos líderes do novo sindicalismo russo, quer fundar um partido semelhante ao PT REDAÇÃO ÉPOCA

MENTOR Etmanov com o ex-presidente Lula, num encontro em Guarulhos, São Paulo. A foto está na página de abertura do site do sindicato liderado pelo russo (Foto: divulgação) Ele representa para o movimento sindical da Rússia hoje o que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva representou para o Brasil no final dos anos 1970, quando liderou as greves de metalúrgicos no ABC paulista. O metalúrgico Alexei Etmanov, de 38 anos, presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Automobilística (MPRA), ganhou os holofotes como comandante da mais longa greve da Rússia póssoviética. A paralisação, realizada em 2007 na fábrica da Ford em São Petersburgo, onde ele trabalhava como soldador, durou quase um mês. O acordo celebrado com a empresa representou um reajuste salarial de 30% e um ganho real de 2,5% ao ano acima da inflação. “A Ford tem o melhor acordo coletivo da Rússia”, afirmou Etmanov a ÉPOCA na sede do MPRA, nos fundos de um conjunto de prédios antigos, em São Petersburgo. O novo sindicalismo russo é um fenômeno recente. A maioria dos sindicatos cultiva uma relação de submissão ao governo e evita confrontos com as empresas – uma herança do regime soviético, quando as greves eram consideradas crime contra o Estado. Hoje, até existe uma relativa liberdade de organização sindical. Mas a legislação ainda impõe diversas restrições às greves. “Em termos legais, é praticamente impossível declarar uma greve. Mas nós fizemos”, diz Etmanov, considerado um “semiextremista” pelo primeiro-ministro, Vladimir Putin. Por sua atuação, ele sofreu dois atentados, em novembro de 2008, mas escapou ileso de ambos. Depois


disso, começou a andar armado e acompanhado de seguranças. Apesar do crescimento dos últimos anos, a representatividade dos sindicatos independentes, como o MPRA, ainda é baixa. A Confederação do Trabalho Russa (VKT), a que o MPRA é filiado, reúne cerca de 1,3 milhão de trabalhadores. É o equivalente a 2% dos 72 milhões de trabalhadores da Rússia. “Até pouco tempo atrás, os velhos sindicatos organizavam uma viagem no verão e davam uma vodca de presente para cada trabalhador – e era isso”, afirma Etmanov. “Começamos a formar uma nova cultura sindical na Rússia, ensinando aos trabalhadores o que é democracia no trabalho, organizar um sindicato de verdade, defender seus direitos.” Etmanov diz que se inspirou no movimento sindical brasileiro, que considera um exemplo de sucesso na organização dos trabalhadores. Ele veio ao Brasil pela primeira vez em 2005 e voltou em várias ocasiões. Em abril, durante sua última viagem ao país, Etmanov encontrou-se com Lula, no 8º Congresso da Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM). Tirou uma fotografia com ele, que mantém na página inicial do site do MPRA. Em sua sala, há uma bandeira do Brasil na parede. Em 2010, inspirado pelo PT, Etmanov fundou um partido, a Frente Trabalhista Unida Russa (ROTF). Como não obteve registro na Justiça, o novo partido ainda funciona de maneira informal, mas deverá apresentar candidatos próprios nas eleições parlamentares marcadas para 4 de dezembro. Os candidatos farão parte da lista do partido Rússia Justa, de orientação social-democrata. O próprio Etmanov será candidato à Duma (a Câmara dos Deputados russa), com a proposta de defender a liberalização das greves e a ampliação dos direitos sociais. “Pegamos o PT como exemplo e começamos a organizar um partido de baixo para cima, mas é praticamente impossível, porque eles rejeitam nosso pedido o tempo todo”, diz.

Os russos agora querem luxo Com o fim da opressão social e a abertura da economia, a Rússia assiste agora ao desabrochar das individualidades e à libertação do ímpeto consumista JOSÉ FUCS, MOSCOU

LO


UCOS POR MARCAS Um consumidor no shopping AFI Mall, próximo do centro empresarial de Moscou. Os russos adoram consumir as grifes internacionais (Foto: Mitya Aleshnkovskiy/ÉPOCA) A estudante Maria Tarasevitch, de 19 anos, diz que gosta mesmo é do velho e bom rock and roll. Sentada numa mureta do metrô na Praça Puchkin em Moscou, ela conta que suas bandas favoritas são Nirvana e Placebo. Maria afirma que está namorando o baixista de um grupo de rock russo e costuma bater ponto nas raves de Moscou e da vizinhança. O “point” da turma é um “vodka bar” remanescente da era soviética, que reúne uma fauna exótica e alguns velhos camaradas saudosos do passado glorioso da mãe-pátria.

(Fo to: Mitya Aleshnkovskiy/ÉPOCA) Com uma mecha lilás nos cabelos avermelhados, um aplique de tranças em estilo rastafári e cinco piercings no rosto, Maria diz que deu uma guinada radical em sua vida. Abandonou uma promissora carreira de bailarina mirim profissional para estudar canto. Seu objetivo agora é juntar-se a uma banda e colocar o pé na estrada. “Cansei. Queria mudar, fazer algo diferente”, afirma. De acordo com Maria, quem paga a escola, cuja anuidade é de US$ 5.700 (R$ 10.200), são seus pais – um professor do Conservatório de Moscou e


uma jornalista do Izvestia, um dos principais jornais do país. Ela vive com os pais, mas diz que, se pudesse, moraria sozinha. Só não se muda por causa dos preços proibitivos dos imóveis na cidade – o aluguel de um pequeno apartamento de dois quartos na região central de Moscou custa cerca de R$ 12 mil.

(F oto: Mitya Aleshnkovskiy/ÉPOCA) Nascida logo depois da queda do comunismo, Maria seria um personagem improvável nos tempos austeros da União Soviética. Naquela época, ser (ou querer ser) diferente era uma atitude que ia de encontro à uniformidade incentivada pelo regime. Muitas vezes, quem tinha um comportamento que fugia do padrão acabava internado num hospital psiquiátrico. Até as roupas da população, desenhadas pelos estilistas do Estado, com cores e cortes sóbrios, deixavam pouca margem para a criatividade. O rock era visto como uma expressão do “imperialismo” e sofria restrições. Na Rússia pós-soviética, os indivíduos têm mais liberdade para expressar seus gostos e estilos pessoais. Adolescentes inquietos como Maria podem escolher os próprios caminhos. “Hoje, na Rússia, você pode ser o que quiser”, diz ela. “Se não quiser fazer nada, você pode. E, se quiser fazer alguma coisa, estudar,


trabalhar, você também pode.” Esse clima aberto à expressão da individualidade transformou a face do país. A vida ficou mais leve. As tribos se multiplicaram. Há uma energia criativa no ar. Em Moscou e em São Petersburgo, as maiores cidades do país, é comum encontrar artistas fazendo performances nas ruas, como em Londres, Paris ou Nova York. As bandas de garagem, como a do namorado de Maria, surgiram em profusão. As mulheres revelam suas formas com descontração. O short e a camiseta de alcinha, com decotes ousados, tornaram-se comuns. Muitos gays, antes perseguidos pelo regime, saíram do armário. A vida noturna da era soviética, limitada a bares e restaurantes bem-comportados de propriedade do Estado, ganhou uma inédita vibração. Hoje, Moscou tem uma noite efervescente. Os bordéis cinco estrelas, que fizeram a fama da Rússia após a abertura econômica, ainda continuam a atrair oligarcas excêntricos, aspirantes a oligarcas e turistas solitários em viagem de negócios. Mas, agora, os clubes e discotecas de padrão internacional se espalharam por todos os cantos. Com entrada a US$ 30 (R$ 54) e uma rígida política de seleção de clientes, o Solyanka Club, na região central de Moscou, é um dos endereços preferidos pelos moderninhos, jovens abonados e profissionais em ascensão, que fervem na pista ao som de música tecno e hip-hop. A balada começa a esquentar de madrugada e só acaba de manhã. Não muito longe dali, o Gogol, um bar e restaurante localizado nos fundos de um prédio antigo, atrai um público grunge, com shows de bandas de rock locais e bebidas e pratos básicos a preços acessíveis. A descompressão social, aliada à abertura da economia, liberou o ímpeto consumista da população, reprimido durante os tempos do comunismo. De repente, os russos tiveram acesso a todo tipo de bem de consumo – de carrinhos e carrões a queijos e vinhos, de computadores a sandálias havaianas. No princípio, muitas novidades eram desconhecidas na Rússia. A publicidade cumpriu o papel educativo de apresentá-las ao consumidor. “Nos anos 1990, a publicidade foi o principal professor da população e ensinou coisas simples como a cultura de escovar os dentes, lavar os cabelos com xampu, usar produtos femininos de beleza ou serviços financeiros”, diz o sociólogo Alexander Oslon, da Fundação de Opinião Pública (FOM). Na década de 1990, com o caos que se seguiu à abertura econômica, a promessa de uma vida melhor acabou não se realizando para a maioria da população. Em média, o poder de compra caiu 40%, em termos reais, nos primeiros oito anos de abertura, segundo dados do Banco Mundial. A vida ficou complicada. Um sentimento de frustração se espalhou pela sociedade e gerou dúvidas sobre a capacidade do capitalismo de garantir uma vida digna para todos. No início da década passada, com a explosão dos preços do petróleo, o cenário mudou. A economia voltou a crescer. A inflação caiu para patamares civilizados. O dólar parou de subir. O governo equacionou suas contas e aumentou as pensões dos aposentados. Em termos reais, o poder de compra aumentou quatro vezes desde o ano 2000, para US$ 19.190 (R$ 34.540) per capita, quase o dobro do brasileiro. Como no Brasil, a classe média passou a concentrar a maioria da população. Hoje, segundo um estudo realizado pelo Troika Dialog, um dos principais s bancos de investimento da Rússia, 33% da população tem uma renda per capita em dólar, ajustada ao poder de compra, de US$ 500 (R$ 900) a US$ 1.000 (R$ 1.800) por mês. Outros 22% têm renda acima de US$ 1.000 por mês. No total, isso representa 78 milhões de pessoas, o equivalente a 55% da população do país. Ao mesmo tempo, o número de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza, com menos de US$ 3 por dia, caiu de 30% do total, nos anos 1990, para 13,1% hoje. A renda disponível para o consumo na Rússia alcança, em média, 70% da renda total, ante 40% nos países desenvolvidos. Como o custo de energia é baixo e a maioria da população tem casa própria, herdada do Estado após a abertura econômica, sobra mais dinheiro para gastar em outras coisas. Com um cenário tão favorável, o consumo na Rússia transformou-se num fenômeno de massa – e boa parte da população foi às compras com determinação, sem se preocupar muito em poupar para o futuro. Esse comportamento é resultado também de uma cultura imediatista, forjada após as perdas dramáticas da década de 1990. Muita gente prefere gastar dinheiro, em vez de aplicá-lo no banco. Segundo Mikhail Krasnoperov, analista do setor de varejo do Troika Dialog, as vendas totais de produtos de consumo na Rússia (alimentos e não alimentos) aumentaram quase cinco vezes em dólar entre 2002 e 2008, de US$ 120 bilhões para US$ 560 bilhões. As vendas de veículos novos triplicaram. O consumo de cerveja passou de 20 litros para 80 litros per capita por ano. O mesmo aconteceu com os sucos e os derivados de leite. No setor de beleza e higiene pessoal, um estudo feito pela Synovate Comcom, um instituto de pesquisa de mercado, mostra que as mulheres russas gastam, em média, 12% de sua renda em produtos de higiene e beleza, o dobro que na Europa e nos Estados Unidos. As russas, mesmo as de renda mais baixa, preferem comprar marcas sofisticadas de perfumes, como Channel, Lancôme ou Christian Dior, ainda que isso signifique compras de menores quantidades. A predileção dos consumidores pelas grandes marcas internacionais é uma tendência observada também em outros setores. De acordo com Krasnoperov, trata-se de uma atitude que tem raízes na era soviética, quando a maioria dos produtos não tinha marca, e o consumidor muitas vezes só tinha uma opção de compra de cada produto. “Havia um único tipo de suco, um único tipo de salsicha”, diz.


Os russos também estão viajando como nunca. O turismo interno explodiu, e as viagens de férias não ficam mais restritas às dachas – casas de campo que são uma instituição na Rússia e onde todos parecem passar o verão. As viagens ao exterior também cresceram, em particular entre os mais jovens. Segundo uma pesquisa realizada em 150 cidades da Rússia pelo Troika Dialog, mais de dois terços dos jovens com idade entre 25 e 45 anos e acesso à internet já viajaram para fora do país. Os destinos mais populares são a Europa, a Turquia e o Egito, além das ex-repúblicas soviéticas. O sonho de muitos russos é comprar uma casa no litoral da Espanha ou da Itália, bem longe dos gélidos invernos russos. E não é um sonho reservado apenas à oligarquia do país, que vem comprando mansões em endereços sofisticados, como a Côte d’Azur ou Beverly Hills. Ele também é acessível à classe média. Basta ter casa própria em Moscou. Graças aos altos preços dos imóveis na cidade, muitos proprietários preferem alugá-los e viver fora do país. Com o dinheiro, dá para alugar um bom apartamento em qualquer grande cidade da Europa e dos Estados Unidos e ainda sobram uns trocados para viver no ócio. “Para nós, não seria nenhum problema se o Mediterrâneo chegasse até Moscou”, afirma, em tom de brincadeira, Vladimir Tkatchev, presidente da Leo Burnett, uma das maiores agências de publicidade internacionais da Rússia.

Capitalismo à moda russa A nova Rússia que emergiu das cinzas soviéticas nada tem a ver com os sonhos dos liberais – e lembra muito alguns países da América Latina JOSÉ FUCS, MOSCOU E SÃO PETERSBURGO

O CAPITAL CHEGOU Os luminosos na Praça Puchkin, em Moscou, revelam que as empresasmultinacionais hoje estão no cotidiano russo – mas o Estado ainda domina a economia (Foto: Mitya Aleshnkovskiy/ÉPOCA)


Eram 19h32 de 25 de dezembro de 1991 quando a bandeira soviética com a foice e o martelo foi arriada, e a bandeira vermelha, azul e branca da Rússia tomou seu lugar no alto do Kremlin. Havia poucas testemunhas. Não houve queima de fogos nem solenidade oficial. Apenas as badaladas dos sinos da torre Spasskaia, ao lado de uma entrada da Praça Vermelha. Eufóricos mesmo ficaram os liberais espalhados pelo mundo. Depois de 74 anos de comunismo, a livre-iniciativa finalmente triunfaria na Rússia, a mãepátria do internacionalismo proletário. Milhares de estatais seriam privatizadas, e o país se tornaria uma nova meca do capitalismo global. Vinte anos depois, porém, a nova Rússia que surgiu das ruínas soviéticas tem pouco ou nada a ver com aquela idealizada pelos liberais. Hoje, o Estado ainda controla boa parte da economia russa. Sua participação no Produto Interno Bruto (PIB) alcança 40%. De acordo com a Fundação Heritage, dos Estados Unidos, a Rússia ocupa o 143º lugar no ranking de liberdade econômica, entre 179 países – o Brasil está em 113º. Na década passada, quando Vladimir Putin era presidente, a volta da intervenção estatal representou um retrocesso nas reformas liberais adotadas após o fim do comunismo. “Putin fez de tudo para ter o controle burocrático da economia”, disse a ÉPOCA o líder oposicionista Bóris Nemtsov. “Ele é parecido com o Hugo Chávez, (presidente)da Venezuela, só que é mais esperto.” Durante a crise global de 2008, com a economia encolhendo 7,9%, Putin ampliou os gastos públicos e implementou medidas de proteção à indústria local. Estimulou a compra de participações estatais em empresas privadas e elegeu “campeãs nacionais” para receber apoio oficial, com base em critérios pouco transparentes. Também incentivou a expansão das estatais para áreas não relacionadas a suas atividades. A Gazprom, o gigante do gás, controla um banco e até um canal de televisão. Os grandes bancos federais, como Sberbank ou VTB, reforçaram sua presença no mercado e, hoje, controlam 65% dos ativos. Vários bancos estrangeiros, como Santander, HSBC e Barclays, saíram do varejo. O sueco Swedbank deve seguir o mesmo caminho. “As instituições controladas pelo Estado estão tirando os bancos privados do mercado”, diz Igor Lojevski, presidente do Deutsche Bank na Rússia. O aumento da intervenção estatal abriu espaço para que se desenvolvesse uma relação incestuosa entre o governo e a oligarquia – um grupo que fez fortuna da noite para o dia, no início dos anos 1990, comprando as empresas soviéticas em leilões de privatização dominados por suspeitas de fraude. Os oligarcas podem tudo (ou quase tudo) – desde que apoiem o governo. A Rússia é, segundo a revista Forbes, o país com o maior número de bilionários da Europa: 101. Só perde para Estados Unidos e China. Juntos, os bilionários russos têm um patrimônio que alcança quase US$ 500 bilhões (R$ 900 bilhões), o equivalente a 33% do PIB. Apesar da presença maciça do Estado e de sua relação nebulosa com os oligarcas, a Rússia conseguiu se consolidar como economia de mercado. “Mesmo as empresas estatais hoje não operam mais num ambiente planificado”, disse a ÉPOCA o economista Arkadi Dvorkovitch, principal assessor econômico do presidente Dmitri Medvedev. Um dos principais sinais dessa mudança é o desenvolvimento do mercado de capitais. Há cerca de 400 empresas com ações listadas em Bolsa, cujo valor de mercado alcança 70% do PIB, ou US$ 1 trilhão, valor semelhante ao brasileiro. “Simplesmente não havia mercado financeiro na Rússia há 20 anos”, diz Roman Goriunov, presidente da RTS, a principal Bolsa de derivativos do país. “Na era soviética, a figura do especulador, essencial ao desenvolvimento do mercado, era mencionada duas vezes no código criminal.”


Maxim Odnobliudov, 38 ANOS Ao lado de dois outros ex-alunos do físico Jores Alterov, vencedor do Prêmio Nobel em 2000, Odnobliudov (à esq. na foto) fundou em 2004 a Optogan, empresa que desenvolveu sua tecnologia própria para fabricar lâmpadas de LED. As pesquisas começaram na Finlândia, pois a Rússia não dispunha de todos os equipamentos necessários, e duraram quatro anos. Depois, a Optogan abriu uma nova frente na Alemanha e uma fábrica em São Petersburgo, hoje a maior fabricante de LEDs do Leste Europeu. A qualidade do ensino técnico desde os tempos soviéticos tem ajudado a transformar a Rússia num polo de tecnologia e inovação (Foto: Maxim Oldnoblyudov) No próprio governo Putin – que fez reviver a força do Estado –, houve na Rússia um verdadeiro “milagre econômico”. O caos que se seguiu à abertura da economia foi controlado. A inflação, que chegou a 2.520% em 1992 e se manteve elevada até o fim dos anos 1990, está hoje abaixo de 8%. O dólar também está estável, na faixa de 30 rublos. Com o controle da inflação e do câmbio, a economia voltou a crescer, turbinada pelo petróleo e pelo gás. Graças aos impostos arrecadados com a exportação de ambos, o governou equacionou o enorme deficit no orçamento – que levara à moratória na dívida externa e ao atraso no pagamento dos aposentados. Hoje, a dívida pública da Rússia equivale a 9,8% do PIB, uma das menores do mundo. As reservas internacionais estão em quase US$ 520 bilhões, 50% acima do Brasil. “Foi uma grande conquista a gente se recuperar de um declínio tão grande”, diz Dvorkovitch. A conquista da estabilidade também atraiu o capital externo, principalmente da Europa. “Até o fim da União Soviética, praticamente não havia investimento estrangeiro na Rússia”, diz o cientista político alemão Frank Schauff, presidente da Associação Europeia de Negócios (AEN) em Moscou. “Nos últimos dez anos, isso mudou.” A Nestlé tem uma dúzia de fábricas na Rússia, com 10 mil empregados. A Metro, rede de varejo alemã, tem dezenas de lojas no país. As grandes indústrias automobilísticas também instalaram várias fábricas. A Lada, conhecido símbolo do atraso nos tempos soviéticos, está renascendo com investimentos da Renault (leia mais). Nos anos Putin, o desemprego caiu. Entre 2000 e 2008, a renda média quadruplicou em dólar. O consumo deu um salto. Putin reajustou generosamente as aposentadorias. Também promoveu uma redução no Imposto de Renda de pessoas físicas, estabelecendo uma alíquota única de 13%. Além de diminuir a informalidade, a medida impulsionou a arrecadação federal. Uma nova geração, aficionada da tecnologia, consome avidamente as últimas novidades eletrônicas. Em Moscou, a sensação é que a Rússia é o país com mais iPads, iPhones e Kindles per capita do planeta. “Não é a Rússia dos anos 1990”, diz Schauff. “O bem-estar melhorou muito no governo Putin.” O empreendedorismo, embora não tenha decolado como na China ou no Brasil, passou a fazer parte do dia a dia. Há 1,7 milhão de micros, pequenas e médias empresas em atividade na Rússia. Elas respondem por 20% do PIB e empregam 17 milhões de pessoas, ou 25% da mão de obra. Proibidos nos tempos soviéticos,


os empreendedores hoje representam 8% da população ativa, ou 6 milhões de pessoas. O empresário Maxim Nogotkov, de 34 anos, começou seu negócio do nada quando o comunismo caiu, em 1991. Na época, explodiu a demanda por eletrônicos, importados, também proibidos pelo antigo regime. Nogotkov, aos 14 anos, estava na escola e viu aí uma oportunidade de ganhar dinheiro. Sua ideia era comprar no atacado aparelhos de telefone com identificação de chamada, então uma raridade, para revendê-los por meio dos classificados. Como seus pais não o apoiavam, Nogotkov diz que levou a iniciativa adiante com dinheiro emprestado. Ele conta que, em um mês, vendeu os aparelhos que comprara e pagou o empréstimo. “As pessoas estavam sedentas por novidades e havia filas para eletrônicos”, afirmou a ÉPOCA. Desde então, o negócio de Nogotkov não parou de crescer. Logo ele passou a vender telefones sem fio, calculadoras ou walkmans no Mitinski, o mercado negro de eletrônicos em Moscou. Em 1995, formalizou seu empreendimento. Sua grande tacada aconteceu em 2002, quando abriu lojas de celulares. Deu certo – e Nogotkov tornou-se um dos empresários mais bem-sucedidos da Rússia pós-soviética. Hoje, é dono da maior rede independente de venda de celulares da Rússia, a Svyaznoy. Com um faturamento de US$ 1,9 bilhão (R$ 3,4 bilhões) em 2010 e cerca de 2.600 lojas, a rede domina 24% do mercado local e tem mais 70 lojas em Belarus. Em 2010, Nogotkov foi eleito Empreendedor do Ano pela consultoria Ernst & Young. Em 2012, sua empresa deverá abrir o capital na Bolsa de Londres. Seu projeto mais ambicioso é o Svyaznoy Bank, aberto no início de 2010. O objetivo é usar as lojas de celular, que já oferecem serviços bancários, para distribuir outros produtos financeiros. Com uma elite científica que já produziu 27 prêmios Nobel, a maioria nas áreas de física e química, a Rússia empreendedora está se tornando um polo de inovações. “Somos muito bons na área técnica, porque tínhamos um dos melhores sistemas de educação do mundo”, diz o físico Andrei Volkov, reitor da Escola de Administração de Moscou (Skolkovo). De acordo com o Global Entrepreneurship Monitor (GEM), estudo que avalia o espírito empreendedor em 60 países, 36% dos novos empreendedores russos afirmam ter lançado produtos inovadores, mais que o dobro do Brasil. Um exemplo é a Optogan, de São Petersburgo, fundada em 2004 por três ex-alunos do físico russo Jores Alterov, Nobel de Física em 2000. A empresa desenvolveu sua própria técnica para fabricar lâmpadas de LED, a mais moderna e eficiente tecnologia de iluminação. De acordo com o físico Maxim Odnobliudov, de 38 anos, presidente da Optogan, foram necessários quatro anos de pesquisa. A empresa foi criada na Finlândia, para poder usar equipamentos então inexistentes na Rússia. O capital inicial, de € 400 mil (R$ 960 mil), veio da agência de tecnologia finlandesa e de investidores privados. Depois, a Optogan abriu uma nova frente na Alemanha, com o apoio da União Europeia. Em 2008, foi atrás, em fontes públicas e privadas, do capital necessário para construir sua fábrica em São Petersburgo.

Maxim Nogotkov, 34 ANOS Em 1991, quando o comunismo caiu, Nogotkov tinha 14 anos e ainda estava na escola. Enxergou uma


oportunidade na venda de eletrônicos importados – antes proibidos – por meio de anúncios classificados. Sem o apoio dos pais, teve de tomar dinheiro emprestado para abrir seu negócio. Depois, vendeu telefones sem fio e calculadoras no mercado negro de Moscou até que, em 1995, formalizou sua empresa, a Svyaznoy. Em 2002, entrou no ramo de celulares. Hoje, tem 2.600 lojas na Rússia, 70 em outros países, fatura US$ 1,9 bilhão por ano e oferece até serviços bancários (Foto: Maxim Oldnoblyudov) Hoje, a Optogan é a maior fabricante de lâmpadas de LED do Leste Europeu, com capacidade de produção de 360 milhões de unidades por ano. De acordo com Odnobliudov, a empresa detém 60 patentes internacionais e nacionais. Sua fábrica, inaugurada em novembro de 2010, foi visitada por Medvedev e pelo secretário de Energia dos Estados Unidos, Steven Chu. “Na Rússia, o que falta são pessoas capazes de transformar a tecnologia em produtos atraentes para os clientes”, diz Odnobliudov. Embora tenham se tornado mais comuns na Rússia, empreendedores como Odnobliudov ou Nogotkov ainda são exceções, em comparação com outros países. De acordo com o GEM, apenas 2,8% da população com idade entre 18 e 64 anos tem negócio próprio – no Brasil, são 15,3%. Entre aqueles que não são donos da própria empresa, só 2,6% pensam em se tornar empreendedores – aqui, são 26,5% (leia os quadros abaixo). Outro indicador relevante: na Rússia, a cada 1.000 habitantes há seis empresas. No Brasil, há 32; na União Europeia, 45; no Japão, 49,6; e nos EUA, 74,2. Há, por fim, uma forte concentração geográfica dos empreendedores. Só em Moscou, onde vivem 8,2% da população, estão 25% deles. “Apesar de termos casos espetaculares, não nos tornamos um país empreendedor”, diz Alexander Ivlev, sócio diretor da Ernst & Young na Rússia. “Se você olhar para o mercado desenvolvido, 78% dos empregos são gerados por pequenas e médias empresas. Na Rússia, isso não acontece.” O ambiente de negócios não ajuda. A corrupção é generalizada. Os empreendedores costumam ficar na mão dos burocratas do governo, que controlam as licenças para o funcionamento das empresas. Quem não dá sua “contribuição” está sujeito a sofrer perseguições, a levar multas e a ser extorquido por grupos criminosos. O crédito, apesar de ter evoluído, ainda é restrito. Os impostos e os juros, que atingem 25% ao ano, drenam recursos. “É muito difícil trabalhar dentro da lei”, diz Olga Verkhovskaia, responsável pelo centro de empreendedorismo da Universidade Federal de São Petersburgo e coordenadora do GEM na Rússia. Mesmo com iniciativas do governo para apoiar a inovação – como a criação da estatal de fomento Rusnano, que apostou na Optogan –, faltam investidores dispostos a bancar novos negócios. “Ainda vai levar algum tempo para o capital de risco se desenvolver no país”, diz Mikhail Mamuta, presidente do Centro de Microfinanças da Rússia (CMR). Há também um fator cultural. Na Rússia, o empreendedorismo é pouco valorizado pela sociedade. “Quando comecei meu negócio, tinha vergonha de dizer o que fazia”, diz Nogotkov. “A propaganda soviética dizia que a gente deveria ser engenheiro ou cientista. As profissões ligadas a negócios não eram nada populares.” Para a maioria dos russos, aceitar riscos é um “comportamento de louco”. A essa resistência ao risco alia-se o medo do fracasso. “Na Rússia, se você perder seu negócio, as pessoas o olham e dizem: você é um fracassado”, afirma Ivlev, da Ernst & Young. “No Vale do Silício, isso não acontece.” A atitude negativa dos russos em relação ao sucesso nos negócios, em geral ligado a maracutaias, tem a ver com a forma como se deu o acúmulo de capital no fim do comunismo. Além da oligarquia que enriqueceu com a compra de estatais, líderes do antigo regime usaram suas funções para obter vantagens na transição para a economia de mercado. Segundo um estudo da Academia Russa de Ciências, cerca de 60% dos milionários da Rússia e 75% da elite política pertenciam à nomenklatura, e 38% dos empresários tinham posições de destaque na área econômica do Partido Comunista. “Quem era próximo do partido e do Komsomol (a liga de jovens comunistas)se aproveitou para amealhar patrimônio”, diz Volkov, da Skolkovo. Ex-alpinista que já escalou o Everest e fazia pesquisas com física nuclear na era soviética, Volkov afirma que essa realidade está mudando com a chegada da nova geração ao comando das empresas. Segundo ele, 90% dos gestores da velha geração já morreram ou se aposentaram. Atualmente, a idade média está por volta de 45 anos. É gente que tinha 20 anos quando o comunismo caiu e não trabalhou no velho regime. “Agora, temos uma geração sem herança do estilo soviético”, diz Volkov. “Ela terá uma atitude diferente em relação ao empreendedorismo.” Essa geração empreendedora – gente capaz de montar empresas como a Svyaznoy ou a Optogan – será fundamental para diversificar a economia, tornando a Rússia menos dependente do petróleo e do gás. “Nosso principal desafio é transformar uma economia baseada em commodities numa economia mais centrada na inovação e no desenvolvimento tecnológico”, diz Dvorkovitch, o assessor de Medvedev. Outro desafio russo é demográfico, questão que o próprio Putin considera a “mais aguda da Rússia contemporânea”. A população está envelhecendo e diminuindo, em vez de aumentar. O número de jovens que entram no mercado de trabalho não é suficiente para repor os trabalhadores que saem. Só nos últimos 20 anos, a Rússia perdeu 5,1 milhões de habitantes. A população caiu de 148 milhões, em 1990, para 142,9 milhões, em 2010. Se a situação persistir, haverá 111 milhões de russos em 2050. Para tentar atacar o


problema, a Duma (a Câmara dos Deputados russa) relaxou a lei de imigração. Calcula-se que a Rússia precisará de, no mínimo, 1 milhão de imigrantes por ano. Outra iniciativa é trazer de volta os milhares de cérebros que deixaram o país desde a queda da URSS. O governo está tentando criar estímulos para atraílos, mas poucos responderam até agora. Empreendedores ainda são exceções, se compararmos a Rússia com o Brasil ou a China Com a “Putinomia” (Putinomics, em inglês), a política econômica de Putin, a Rússia parecia ter encontrado um caminho próprio. Depois de cair em 2009, o PIB voltou a crescer 4% em 2010 e, para este ano, a previsão é uma alta no mesmo patamar, apesar da turbulência europeia. Mas esse resultado não pode mascarar as deficiências expostas pela crise de 2008. A queda do petróleo deixou claro como o país está exposto ao vendaval externo. O governo adiou reformas necessárias no setor público, principalmente nas estatais. Em vez de investir na infraestrutura, estagnada desde os anos 1970, ou na recuperação da saúde e da educação, o governo usou os recursos gerados pelo petróleo e pelo gás para financiar estatais deficitárias. “A alta do petróleo deu espaço para respirarmos, mas a estabilidade e o desejo de ter uma vida boa acabaram adiando as reformas”, diz o economista Igor Iurgens, presidente do Instituto de Desenvolvimento Contemporâneo (Insor), ligado ao presidente Medvedev. A redução da burocracia e o combate à corrupção fazem parte do plano de modernização anunciado por Medvedev em Davos, na Suíça, em janeiro. Apesar do diagnóstico correto, muito pouco foi feito de concreto. A privatização voltou à pauta. O governo – o mesmo que aumentou a presença do Estado na economia na década passada – anunciou um ambicioso programa de desestatização, que deverá render US$ 40 bilhões até 2014. A ideia não é o Estado se desfazer do controle das empresas, mas vender participações minoritárias. “Não adianta dizer que a participação estatal na economia vai diminuir, porque isso não significa nada do ponto de vista estrutural”, diz Lojevski, do Deutsche Bank. O governo também anunciou investimentos de US$ 640 bilhões nos próximos dez anos na indústria militar. De acordo com Iurgens, do Insor, o futuro da Rússia dependerá do caminho que o país trilhar. “Ou seguiremos a estrada da transparência, da abertura econômica e da integração – ou a da autodeterminação, da autoconcentração e das restrições à liberdade de informação”, afirma. “Se seguirmos o segundo caminho, haverá estagnação. Se escolhermos o primeiro, em dez ou 15 anos poderemos chegar lá.” Para isso acontecer, o governo terá de mostrar que as reformas não ficarão apenas no discurso. Criar um ambiente amigável para os negócios será fundamental. Se não conseguir desenvolver o empreendedorismo, a tendência é o país ficar na mão do governo e dos oligarcas – e empreendedores de sucesso como Odnobliudov e Nogotkov continuarem a ser uma exceção.



Os burgueses do campo Uma parcela de pequenos produtores sobreviveu e prosperou na transição da agricultura coletiva para a privada REDAÇÃO ÉPOCA Na era soviética, o sistema de agricultura na Rússia era coletivo e estatal. Com o fim do comunismo, o então presidente Bóris Ieltsin, na década de 1990, liberou a propriedade privada de terras e ofereceu lotes gratuitos aos trabalhadores rurais para eles poderem iniciar seu próprio empreendimento. Na ocasião, o casal Ludmila e Alexander Kornev, ambos hoje com 49 anos, trabalhava como supervisor de um kolkhoz (uma fazenda coletiva), na região centro-oeste da Rússia. Formados em agronomia na Universidade Federal de Agricultura da Rússia (MTAA), eles levavam uma vida relativamente confortável. Moravam num sobrado “com água quente e aquecimento” e recebiam um salário mensal do Estado. “Não era ruim na fazenda coletiva ”, diz Ludmila. “Mas a gente não era dono do nosso destino.” Quando o governo Ieltsin mudou a legislação, eles toparam o desafio e deixaram o kolkhoz para se candidatar a um lote gratuito. Em 1994, receberam uma área de 4 hectares, a 60 quilômetros de Moscou. Com algumas economias, ergueram uma cabana simples, com apenas uma cama, e se mudaram para lá para tentar a sorte. Em 1995, conseguiram construir um silo com US$ 5 mil que ganharam num concurso da Comissão Al GoreTchernomirdin para projetos ambientais, por um estudo sobre o uso de esterco. Em meio ao colapso do setor rural na Rússia (de 14% do PIB russo em 1991, a agricultura não passou dos 4% em 2010) e sem facilidades de crédito, trabalharam duríssimo. Nos últimos 17 anos, tiraram apenas 20 dias de férias. “No começo, a gente não dormia pensando que não conseguiria”, diz Ludmila. “Arriscamos nossa vida por isso.” Enquanto outros agricultores venderam suas terras para grandes grupos econômicos que atuam no ramo do agronegócio, os Kornev resistiram, sobreviveram e prosperaram. Hoje, constituem o que os marxistas chamariam de “pequenos burgueses rurais”. Sua fazenda tem 25 vacas, 40 bezerros, touros, porcos, frangos, perus, patos e gansos. Ela produz ovos, leite, batata e outras culturas. Emprega dois casais permanentemente e mais seis trabalhadores temporários do Uzbequistão para ajudar na colheita de batata. O casal arrendou mais 50 hectares de terra para usar como pasto para o gado. No total, de acordo com Ludmila, a fazenda vende tudo o que produz. O faturamento anual alcança 1 milhão de rublos (R$ 60 mil). Tirando as despesas, ela afirma que metade é lucro. Com o relativo sucesso que alcançaram, Ludmila e Alexander transformaram a antiga cabana num belo sobrado de alvenaria, com três quartos, dois banheiros, sótão, todas as comodidades da vida moderna e uma perua Lada na garagem. Puderam também criar os três filhos, hoje com 27, 20 e 11 anos, com dignidade. Um é formado em veterinária, o outro estuda agronomia na mesma escola dos pais, e o caçula ainda mora com eles. A principal preocupação é que eles não têm o título de propriedade definitivo da terra, apenas o direito de exploração, algo que, segundo Ludmila, é hereditário. Ela diz que, para conseguir o título de propriedade, as autoridades “exigem suborno”. “Talvez eles estejam esperando a gente morrer”, afirma. “Mas eles não viverão para nos ver devolver esta terra.” Agora, Ludmila quer aproveitar a situação financeira melhor para cuidar da área externa da casa da fazenda. “Eu tinha o sonho de que seria tudo organizado e haveria flores no jardim”, diz. “Em dez anos, será assim. Não será pior que as fazendas dos americanos.”


SU CESSO O casal Kornev em frente ao sobrado erguido com os lucros de sua pequena propriedade rural. Antes, eles eram supervisores de uma fazenda estatal (Foto: Mitya Aleshnkovskiy/ÉPOCA)


Força alternativa Com o controle da mídia e o desencanto com a política convencional, cresce a busca por novas formas de organização social na Rússia JOSÉ FUCS

Um a das mais ativas e populares ONGs do país, o Balde Azul tem como objetivo lutar contra um dos principais símbolos de poder existentes na Rússia pós-soviética (Foto: divulgação) Nos últimos anos, em razão do forte controle da mídia, principalmente a televisão, e da dificuldade de atuar politicamente por meio dos canais convencionais, vem crescendo a busca por formas alternativas de organização na Rússia. Mesmo com o rígido controle das manifestações de rua, o número de organizações não-governamentais (ONGs), que representam os mais diferentes grupos de interesse da sociedade, se multiplicou. De organizações de defesa do meio ambiente e dos direitos humanos a entidades de combate à corrupção e ao tráfico e uso de drogas, há de tudo. Calcula-se que 10% da população adulta, cerca de 12 milhões de pessoas, participem de alguma forma dessas organizações, que têm ampliado sua influência. A ONG Balde Azul é uma das mais ativas e populares do país. Seu objetivo é lutar contra um dos principais (e mais odiados) símbolos de poder existentes na Rússia pós-soviética – a migalka, uma luz de emergência azulada, em forma de balde, com uma sirene, semelhante às usadas pelos carros de polícia e ambulâncias. Ela garante prioridade de circulação aos carros oficiais e funciona como um salvo conduto para eles fazerem o que quiserem no trânsito, como andar pela contramão em alta velocidade, desrespeitar o sinal vermelho e até subir nas calçadas, sem ser parados pela polícia. Pelo código de trânsito da Rússia, o uso da luz azul deveria ser restrito aos serviços de emergência. Mas seu uso por autoridades, que teria se iniciado nos tempos de Yeltsin, acabou se consolidando. Hoje, de acordo com as estatísticas oficiais, existem 964 carros autorizados em todo o país a usar a luz azul, incluindo autoridades do alto escalão do governo, juízes e parlamentares. Mas extra-oficialmente fala-se na existência de 1,2 mil veículos privilegiados – ou até mais. Muitos funcionários do terceiro e do quarto escalão também já foram vistos usando o dispositivo e até quem não é do governo, por meio do pagamento de uma propina estimada em cerca de US$ 50 mil, pode conquistar o benefício. Há inúmeros casos de


carros com a luz azul ligada que foram filmados a caminho de shopping centers e academias. A ONG, criada em 2010, já organizou diversas carreatas e atos públicos s em que os participantes usavam um balde azul na cabeça ou na capota do carro em referência ao dispositivo. Mas as primeiras manifestações contra a luz azul começaram em 2006, após a condenação de um motorista a quatro anos de prisão, sob a acusação de ter provocado a morte de um governador por não ter saído de seu caminho rapidamente. Até agora, porém, o governo não deu sinais de que vai reavaliar o uso da luz azul no país. “Nós queremos acabar com o feudalismo nas ruas”, diz Sergey Kanaev, diretor-geral da Federação dos Proprietários de Carros, que participa do movimento. “A lei tem de ser igual para todos.” Outra entidade que ganhou os holofotes nos últimos anos foi a Khimki Forest. A ONG está envolvida na luta contra a construção de uma nova estrada ligando Moscou a São Petersburgo pelo meio de uma floresta de carvalho de 200 anos, localizada na periferia da capital russa. Criada em 2007 e liderada pela engenheira Ievgenia Chirikova, de 34 anos, que foi morar na região em busca de melhor qualidade de vida quando estava grávida de sua segunda filha, a ONG conseguiu uma inusitada audiência com Medvedev no início de 2010. Mas nem o apoio do presidente, que pediu uma reavaliação do projeto, foi suficiente para impedir a construção da estrada, que deve entrar em operação no final de 2013. Em dezembro do ano passado, uma comissão do governo encarregada de avaliar o assunto concluiu que os aspectos econômico, legal e de urgência para o projeto se sobrepunham a todos os outros. Em 2008, o editor-chefe de um jornal de oposição da região da floresta, Mikhail Beketov, que publicou reportagens envolvendo o recebimento de propinas pelas autoridades da região relacionadas ao projeto, sofreu um ataque brutal. No ataque, teve alguns dos dedos das mãos cortados e ficou impedido de andar, com uma perna amputada e metade do corpo paralisado. Um ativista da ONG também foi brutalmente atacado e hoje, segundo Chirikova, não consegue falar, nem se mover direito. “O governo chegou a mandar até uma assistente social na minha casa, alegando que tinha recebido uma denúncia de que eu não cuidava direito das minhas filhas e dizendo que iria tirá-las de mim”, afirma Chirikova. “Só não levaram minhas filhas, porque eu coloquei um vídeo sobre isso na internet e muita gente ligou para esse funcionário pedindo para ele não levar as crianças.”

Arkady Dvorkovich: “O maior desafio é diversificar a economia” O principal assessor econômico do Kremlin, cuja missão é transformar em realidade o plano de modernização da economia russa, diz que o país não pode depender só de commodities como petróleo e gás para crescer JOSÉ FUCS

Economista Arkady Dvorkovich, de 39 anos, é o principal assessor econômico do presidente Dmitry Medvedev (Foto: divulgação) O principal assessor econômico do Kremlin, cuja missão é transformar em realidade o plano de modernização da economia russa, diz que o país não pode depender só de commodities como petróleo e


gás para crescer O economista Arkady Dvorkovich, de 39 anos, é o principal assessor econômico do presidente Dmitry Medvedev, uma posição que já ocupava no último ano da gestão de Vladimir Putin, em 2008. Mestre de xadrez e ex-presidente da Federação de Xadrez da Rússia, Dvorkovich é uma das faces mais liberais do atual grupo dirigente do país. Nos últimos anos, ele teve a missão de levar adiante o plano de modernização da economia, cujo principal objetivo é tornar a Rússia menos dependente de commodities como petróleo e gás, que hoje chegam a representar 70% das exportações. Agora, com a perspectiva de Medvedev se tornar o primeiro-ministro e de Putin voltar à presidência no início de 2012, Dvorkovich deverá deixar o Kremlin e espera juntar-se a seu chefe atual no novo gabinete parlamentar. Instalado em uma sala ampla e austera, que pertenceu a Leonid Brezhnev, o líder soviético de 1964 a 1982, ele falou com exclusividade a ÉPOCA sobre o que a Rússia está fazendo para diversificar sua produção e o impacto das mudanças dos últimos vinte anos no país. “Hoje, o principal desafio é transformar uma economia baseada em commodities em uma economia mais centrada na inovação e no desenvolvimento tecnológico, com maior participação do setor de serviços no PIB (Produto Interno Bruto)”, diz Dvorkovich. “Embora as estatísticas ainda não mostrem isso, a estrutura da economia já está mudando. Não tão rápido quanto gostaríamos, mas já está mudando.” Quem é Principal assessor econômico do presidente Dmitri Medvedev e seu representante no grupo dos oito países mais industrializados (G8) O que fez De 2004 a 2008, dirigiu o Departamento de Especialistas da Presidência da República. Entre 2001 a 2004, foi vice-ministro do Comércio e do Desenvolvimento Econômico. Foi presidente da Federação de Xadrez da Rússia Formação Graduou-se em economia pela Universidade Federal de Moscou em 1994. Concluiu o curso de pósgraduação na Escola de Economia Russa, em 1996, e na Universidade Duke, nos EUA, em 1997. ÉPOCA – Nos últimos vinte anos, quais foram as principais conquistas da Rússia na área econômica? Arkady Dvorkovich – De um ponto de vista sistêmico, a transformação de uma economia planificada em uma economia de mercado foi a grande mudança nestes 20 anos. Ainda há uma participação significativa das empresas estatais na economia. Mas mesmo as estatais não operam em um ambiente de economia planificada. Elas estão tentando seguir os sinais do mercado. Alcançamos também um grau significativo de abertura econômica. Ainda temos uma economia menos aberta que o sudeste asiático e alguns países europeus mais liberais. Mas, em termos de taxas alfandegárias e outros obstáculos para o comércio e o investimento, temos um grau de proteção relativamente baixo. Com isso, nós nos beneficiamos de uma maior competição, que favorece as nossas empresas, o nosso povo, e ajuda a melhorar a qualidade e a produtividade. Isso é algo muito importante para nós. ÉPOCA – De que forma essa mudança afetou a economia real do país? Devorkovich – Nos anos 1990, a economia representava só 40% do que tínhamos no final dos anos 1980. Houve um colapso total. Foi como se o país tivesse enfrentado uma guerra. Só passamos por uma situação parecida em 1921, depois da Guerra Civil (após a tomada de poder pelos bolcheviques). Mas, nos últimos dez anos, conseguimos superar essa situação. Foi uma grande conquista a gente se recuperar de um declínio tão grande. Em termos financeiros, a nossa dívida pública também melhorou de forma significativa. Depois da crise de 1998, ela superou os 100% do PIB. Hoje, temos uma das menores dívidas públicas do mundo, na faixa de 10% do PIB. Então, do ponto de vista econômico-financeiro, também alcançamos um grande sucesso. Outra coisa: é importante entender que, nos anos 1980, uma parte substancial da economia estava ligada à indústria militar. Hoje, ela é muito mais voltada para o consumo privado. Uma grande parte da economia ainda depende das commodities, como petróleo e gás (70% das exportações). Mas houve uma enorme mudança, que mexeu na estrutura econômica do país. Nos últimos dez anos, ainda criamos uma legislação moderna, competitiva em relação ao resto do mundo. Ainda está longe de ser perfeita, mas o grande problema hoje não é a ausência de leis. É fiscalizar a sua aplicação. ÉPOCA – Em sua opinião, quais são os principais desafios da Rússia para o futuro? Devorkovich – O principal desafio é transformar uma economia baseada em commodities em uma economia mais centrada na inovação e no desenvolvimento tecnológico, com maior participação do setor de serviços no PIB. O segundo grande desafio é lidar com a questão demográfica, estabilizar a população que vive na Rússia. Tivemos progressos neste aspecto nos últimos cinco anos. A taxa de mortalidade caiu e a de natalidade subiu. Mas a população total ainda está caindo e não subindo. O terceiro maior desafio é lutar contra a corrupção, que é muito grande. Temos de aproveitar a legislação existente para reduzir a


corrupção. Se não, vamos perder competitividade, porque a corrupção tem impacto no retorno dos investimentos. ÉPOCA – Hoje, na Rússia, todo mundo parece concordar com a necessidade de diversificar a economia. Mas como transformar isso em realidade? Dvorkovich – Embora as estatísticas ainda não mostrem isso, essa mudança já está acontecendo. Não tão rápido quanto gostaríamos, mas já está ocorrendo. Nas áreas de petróleo e gás, o potencial de crescimento é de 3%, 5% ou 10% ao ano. Em vários outros setores, as taxas de crescimento são maiores e o potencial de crescimento, também. Obviamente, durante a crise, essa situação se alterou. A indústria caiu, o setor de serviços enfrentou uma estagnação. E a importância do petróleo e do gás na economia subiu um pouco. Mas foi apenas por um ano e meio. Essa mudança ainda não aparece nos números. O efeito do preço do petróleo no PIB é muito grande. Quando o preço dobra, a participação no PIB aumenta. Isso não significa que houve um crescimento efetivo. Do ponto de vista financeiro, sim. Mas, em termos de atividade econômica, de trabalho, não. ÉPOCA – Em comparação com a China, a Índia e o Brasil, a Rússia recebe pouco investimento estrangeiro. Por quê? O que pode ser feito para mudar isso? Dvorkovich – Há duas razões para explicar a atual situação. A primeira é o tamanho do mercado. O mercado da China simplesmente é maior que o nosso. Esse é o fator mais importante na hora de os grandes grupos internacionais tomarem decisões de investimento. A segunda razão tem a ver com a transparência da regulação. Se você achar que a qualquer momento a legislação pode mudar, pensará duas vezes antes de fazer um grande investimento. Então, como não podemos fazer nada em relação ao tamanho do mercado, precisamos compensar isso com a criação de um ambiente mais estável do que temos hoje para os negócios – e isso é possível. Em todos os setores em que adotamos uma nova regulação e lançamos novos projetos para os próximos dez anos, houve um crescimento imediato do interesse de investidores estrangeiros. Muitos investimentos estão sendo anunciados e outros estão começando, como no setor farmacêutico. Todas as grandes companhias farmacêuticas começaram a olhar o mercado russo com atenção quando anunciamos as novas políticas e os novos projetos para o setor. ÉPOCA – No caso da agricultura, que sofreu muito após o fim da União Soviética, o que o governo está fazendo? Dvorkovich – Em 2006, nós anunciamos um novo programa agrícola. Desde então, apoiamos milhares de pequenos empreendimentos rurais. Alguns vão acabar desaparecendo. É um mercado arriscado e o seguro agrícola ainda não funciona bem. O sistema de apoio está apenas se formando. A infra-estrutura de distribuição ainda não está pronta. É uma tarefa de longo prazo, principalmente considerando o tamanho do nosso país. Em algumas regiões está melhor, em outras nem tanto. A tendência, porém, é que mais e mais pessoas voltem para a área rural. Alguns grandes grupos também acreditam que o potencial do agronegócio na Rússia é promissor. Diversos grupos, antes concentrados nos setores industrial e financeiro, entraram no agronegócio e se deram bem. Agora, precisamos encorpar o que já alcançamos, criar uma regulação mais previsível e eficiente e ampliar o apoio ao sistema nos próximos anos. Algumas pessoas acham que, se a gente entrar na OMC (Organização Mundial do Comércio), vamos perder competitividade. Isso não é verdade. Nós negociamos níveis diferentes de abertura e proteção e vamos continuar a apoiar a nossa agricultura da melhor forma possível. Sem excessos, mas de forma eficiente, para formar um setor competitivo. ÉPOCA – Na Rússia, montar um pequeno negócio ainda é muito complicado. Como é possível estimular o empreendedorismo no país? Dvorkovich - Estamos tentando criar um ambiente de investimento mais atraente para as pequenas e médias empresas, mas a burocracia ainda é muito pesada. Como eu já disse, a luta contra a corrupção é o grande desafio, assim como a redução de barreiras administrativas. A única forma de mudar a estrutura da economia de forma radical é apoiar as pequenas e médias empresas. Não necessariamente com dinheiro do orçamento. Mas com a criação de um ambiente competitivo. Também é importante criar incentivos para o governo comprar serviços das empresas de menor porte. ÉPOCA – Uma pesquisa realizada pela Universidade de São Petersburgo revelou que a maioria das pessoas que já têm um negócio próprio na Rússia não gostaria de vê-lo crescer. O que o senhor acha disso? Dvorkovich – É uma fase natural no desenvolvimento do empreendedorismo. Eles têm medo de se transformar em grandes empresas, porque, se crescerem, a atenção sobre eles será maior e talvez tenham de enfrentar mais obstáculos. Infelizmente, essas mudanças não acontecem da noite para o dia. É preciso maior educação da sociedade sobre como essas coisas são feitas. É difícil. ÉPOCA – Na China, onde também houve um longo período em que a livre iniciativa era proibida, o empreendedorismo se desenvolveu bem mais que na Rússia. Será que é algo cultural? Dvorkovich – Isso não significa que os chineses estejam mais preparados para assumir mais riscos que os russos. Os russos estão preparados para assumir riscos inerentes ao empreendedorismo. Mas não querem


enfrentar riscos relacionados ao governo, à polícia. Se você é um pequeno empresário, talvez possa evitar esses riscos. Mas, se você for tiver um negócio maior, certamente irá enfrentar esses riscos. É essa a atitude que as pessoas têm. É esse o tipo de sistema que estamos tentando destruir, reduzindo o papel das agências governamentais nos negócios. ÉPOCA – Por que é tão difícil quebrar esse sistema? Dvorkovich – Nós não tínhamos nenhuma tradição em instituições de mercado. Apesar de termos criado essas instituições, as cabeças das pessoas ainda não mudaram. ÉPOCA - Se o senhor fosse adotar uma única medida agora, para resolver tudo isso, qual seria? Dvorkovich – Eu não acredito nisso. Acho que todas as receitas levam tempo e demandam muito trabalho. Infelizmente, isso ainda vai levar toda uma geração para mudar.

O Lada da Renault Como a montadora russa – um ícone do atraso soviético – está se modernizando com a ajuda dos sócios franceses JOSÉ FUCS, TOGLIATTI

TA NQUE CHEIO Vladimir Putin põe gasolina em modelo da Lada. Quando presidente, reestatizou a empresa. Depois da crise, o governo russo emprestou US$ 1 bilhão para evitar que ela quebrasse (Foto: Alexsey Druginyn/AFP) Um ícone da ineficiência industrial soviética conseguiu sobreviver na economia de mercado. A velha Lada, criada pelo antigo regime nos anos 1960 para produzir o “carro do povo”, está resistindo à concorrência dos


importados e dos modelos das montadoras estrangeiras. Embora tenham virado piada no Brasil no início dos anos 1990, por causa do design antiquado, da tecnologia defasada e dos constantes problemas mecânicos, os carros Lada são um indiscutível sucesso na Rússia. Os quatro modelos novos mais vendidos nos primeiros nove meses de 2011 tinham a marca Lada. Mesmo tendo perdido espaço na década passada, a Lada ainda mantém uma participação de mercado de quase 30% (leia o quadro ao lado). Agora, a Autovaz, fabricante dos modelos Lada, começa a se modernizar graças ao apoio da francesa Renault, que detém 25% do capital da empresa e está negociando a compra de seu controle acionário. “O negócio deverá sair até o final do ano”, disse a ÉPOCA o presidente da Renault na Rússia, Bruno Ancelin. “É só uma questão de preço.” Enquanto as conversas avançam, uma nova geração de Ladas, que terá pouco a ver com os velhos modelos soviéticos, já começa a sair do papel. A empresa anunciou que o Classic (conhecido no Brasil como Laika) será aposentado em 2012. O Samara, em 2013. Em 2012, o Dacia Logan, uma perua familiar rebatizada como Lada Largus na Rússia, deverá ser o primeiro carro da nova linha. A maioria dos processos de fabricação da Lada ainda data da década de 1960, quando o governo soviético fez uma parceria com a Fiat para lançar o primeiro Lada Classic. Mas, desde já, a Renault está envolvida na renovação das linhas de montagem, a partir das plataformas do Logan, já usadas pela empresa na fábrica de Moscou, e recentemente fez um aporte de US$ 360 milhões (R$ 650 milhões) sob a forma de tecnologia e know-how.


O sucesso da Lada se deve principalmente ao preço. O Lada Classic, carro mais barato da Rússia, custa apenas US$ 7 mil (R$ 12.600), praticamente metade do preço do Fiat Mille, o carro mais barato do Brasil. “O Classic continua a fazer sucesso, porque é barato, simples e adequado às condições das ruas, das estradas e ao clima da Rússia, onde a temperatura pode atingir de 30 a 40 graus negativos no inverno”, afirmou a ÉPOCA Igor Komarov, presidente da Autovaz, a fabricante dos Ladas, na sede da empresa, em


Togliatti, a 700 quilômetros de Moscou. É certo que os carros Lada não são um símbolo de status. “Em Moscou, se você tiver um Lada, é visto como um fracassado”, diz o fotógrafo Mitia Alechkovskii, ex-proprietário de um Lada Classic e hoje dono de um Volkswagen Polo. Nas cidades menores e mais distantes, porém, os veículos Lada ainda vendem bem. Em 2011, a Lada deverá vender um total de 700 mil veículos, incluindo a exportação para países da exURSS. Nos últimos anos, o governo russo também deu sua contribuição para alavancar as vendas. Em dezembro de 2008, com a crise global, aumentou a tarifa de importação sobre automóveis novos ou usados. A medida vem sendo renovada desde então, e o governo avisou que, nos próximos anos, aumentará ainda mais as barreiras aos importados. Em março de 2009, o governo resolveu oferecer 50 mil rublos (R$ 3 mil) para proprietários de veículos com mais de dez anos de uso trocarem de carro por um modelo nacional. Isso derrubou o preço do Classic para menos de US$ 5.500 (R$ 9.900). Foram vendidos 136 mil Classics só em 2010, ou 7% das vendas de carros na Rússia. Além disso, a Autovaz, privatizada em meados dos anos 1990 e reestatizada no início dos anos 2000 pelo então presidente, Vladimir Putin, teve de receber do governo um empréstimo de US$ 1 bilhão em 2009 para não quebrar. Segundo Komarov, a empresa acumulou 500 mil carros no pátio, deu férias coletivas de dois meses aos operários e acabou demitindo 30 mil de um total de 105 mil funcionários. “A crise gerou um problema de fluxo de caixa que nos levou a reduzir os custos, para aumentar nossa eficiência e nos tornar mais competitivos”, diz Komarov. Com o gélido inverno russo e o litro de gasolina a R$ 1,50, ninguém fala em carros elétricos ou emissão zero de poluentes no país. Por enquanto, o certo mesmo é que, quando deixarem finalmente de ser produzidas, as velhas carroças soviéticas terão lugar garantido no folclore da indústria automobilística mundial. http://policialbr.com


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.