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QUERIDOS AMIGOS NO SENHOR
O Caminho do Coração é o itinerário espiritual proposto pela Rede Mundial de Oração do Papa. É o fundamento da nossa missão, uma missão de compaixão pelo mundo. Inscreve-se no processo iniciado pelo Papa Francisco com a Exortação Apostólica Evangelii gaudium, «A Alegria do Evangelho»
Constitui o resultado de um longo processo impulsionado pelo P Adolfo Nicolás, então Superior Geral da Companhia de Jesus No início elaborou-se um esquema, designado então de marco referencial, com uma equipa internacional liderada pelo P Claudio Barriga SJ Este itinerário foi apresentado ao Papa Francisco num documento intitulado
Um caminho com Jesus em disponibilidade apostólica (agosto de 2014) Apresentava-se uma nova forma de compreender a missão do Apostolado da Oração, numa dinâmica de disponibilidade apostólica
O Santo Padre aprovou-o em dezembro de 2014
O Caminho do Coração é essencial para a recriação desta Obra Pontifícia como Rede Mundial de Oração do Papa Constitui um aprofundamento, para os nossos dias, da tradição espiritual do Apostolado da Oração, e articula, de uma forma original, elementos essenciais deste tesouro espiritual com a dinâmica do Coração de Jesus É a chave de interpretação da nossa missão Por isso apresentamos em 2017 um comentário a este itinerário espiritual, designado agora «Dinâmica interna do passo», para ajudar as equipas nacionais da Rede Mundial de Oração do Papa a entrar na dinâmica interior do Caminho do Coração e a aprofundá-lo
Com o desejo de desenvolver o processo de recriação, sentimos a necessidade de ampliar os conteúdos escritos. Assim, iniciamos em 2017 um trabalho de elaboração e organização dos materiais que constituem hoje os 11 livros de O Caminho do Coração. Este trabalho realizou-se com uma equipa internacional liderada por Bettina Raed, diretora regional da Rede Mundial de Oração do Papa na Argentina e Uruguai. Assim, a partir da pátria do Papa Francisco, e com o apoio de diversos companheiros, quer jesuítas quer leigos, foi articulado este trabalho. Agradeço de modo particular a Bettina por toda a sua disponibilidade e pelo seu trabalho de elaboração e coordenação.
Agradeço também a TeleVid, das Congregações Marianas da Colômbia, pelo seu apoio na conversão deste material num suporte acessível ao nível digital e visual. www.caminodelcorazon.church (em castelhano).
Espero que estes conteúdos ajudem a propor a missão de compaixão pelo mundo com criatividade (em retiros espirituais, sessões de formação, os encontros das Primeiras Sextas-feiras, etc.).
É o fundamento da nossa missão, o nosso modo específico de entrar na dinâmica do Coração de Jesus.
P. Frederic Fornos SJ
Diretor internacional da Rede Mundial de Oração do Papa – inclui o Movimento Eucarístico Juvenil Cidade do Vaticano, 3 de dezembro de 2019, Dia de São Francisco Xavier e dos 175 anos do Apostolado da Oração
Esquema para orientar o passo
Palavra-chave: ENTREGAR-SE
Objetivo: Abrir-se a uma vida eucarística, ser para os outros
Atitudes-chave: Seguir a Jesus sob o sinal da Cruz
O que se pretende alcançar - Fruto: Perseverança e determinação no combate espiritual
Dinâmica interna do passo: De mim ao oferecimento da minha vida, à disponibilidade apostólica para a missão de Jesus; unir a minha vida a Cristo, segundo a minha capacidade de amor
Marco referencial
Unir a vida a Cristo levar-nos-á a dar a vida pelos outros, tal como Ele fez Far-nos-á descobrir que, apesar da nossa pobreza e limitação, a nossa vida é útil a outros Sabermo-nos amados, escolhidos e habitados por Ele dignifica-nos, enche-nos de gratidão e torna-nos capazes de responder a tanto bem recebido, oferecendo a própria vida, disponíveis para participar na sua missão Oferecemo-la, lutando contra o egoísmo e a comodidade que tantas vezes frustram o desejo de Deus em nós O Senhor convida-nos a dar-lhe o nosso generoso sim, como fez Maria de Nazaré Não quer salvar-nos nem transformar o mundo sem nós Ainda que nos pareça insignificante, oferecer-lhe a nossa disponibilidade torna-se útil a outros, porque o Pai associa esse oferecimento à vida e ao Coração do seu Filho, que se oferece por nós na cruz
Unidos a Jesus, tornar-nos-emos mais próximos do sofrimento do mundo e tentaremos reagir como Ele reagia. Manifestamos ao Pai esta disponibilidade, mediante uma oração diária de oferecimento. Suplicamos com humildade ao Espírito que não sejamos obstáculo para a sua ação. Inspiramo-nos e alimentamo-nos, de modo especial, da celebração da Eucaristia, onde reconhecemos a oblação perfeita de Cristo ao Pai, modelo da nossa vida oferecida
Dinâmica interna do passo
Dar resposta a esse amor que deseja atrair-nos para ele, assimilando toda a altura, largura e profundidade desse amor na Eucaristia, levar-nos-á a oferecermo-nos a nós mesmos.
Ação de graças – Eucaristia
Este amor que transparece a partir deste coração «doce e humilde» (Mt 11, 29) de Jesus só se pode entender seguindo o itinerário da sua vida até ao fim. Este «derramamento de amor que nenhuma palavra pode explicar sem o adoçar» é
aclamado pela Igreja com pudor, «descrevendo a chegada do Amor e comemorando (na Eucaristia) a morte e a ressurreição de Cristo» (P Robert Scholtus)
«Isto é o meu corpo Isto é o meu sangue» Tudo se encontra aqui
A Eucaristia revela-nos o amor que vai «até ao fim», um amor que não tem medida, que é força de ressurreição Jesus Cristo deseja levar-nos por este caminho «Assim como o Pai que me enviou vive e Eu vivo pelo Pai, também quem de verdade me come viverá por mim» (Jo 6, 57) Na comunhão do seu corpo e sangue, Cristo deseja estar profundamente unido a nós. Comunica-nos o seu Espírito Santo. Como escreve Santo Efrém, o Sírio: «Chamou ao pão seu corpo vivo, encheu-o de si mesmo e do seu Espírito (...). E quem o come com fé, come o Fogo e o Espírito (...). Tomai e comei-o todos e comei com o mesmo o Espírito Santo. É verdadeiramente o meu corpo e aquele que o come viverá eternamente». Pelo dom do seu corpo e do seu sangue, Cristo faz crescer em nós o dom do seu Espírito, que já recebemos durante o Batismo e que se nos oferece como «selo» no sacramento da Confirmação Segundo João Paulo II, com a Eucaristia assimilamos, de certo modo, o «segredo» da ressurreição, uma ressurreição que começa hoje mesmo no coração do mundo
Por que razão Jesus nos quer conceder este dom imenso de Ele próprio se nos comunicar, de nos comunicar o seu Espírito? Porque deseja que nos tornemos como Ele Dá-nos a sua capacidade de amar, de oferecer as nossas vidas, com Ele, pelo reino de Deus, um novo mundo que já está em gestação
É por isso que a Rede Mundial de Oração do Papa – o Apostolado da Oração – nos convida, desde há mais de cento e setenta e cinco anos, a disponibilizarmo-nos em cada manhã para a missão de Cristo (EE 91-100). Mediante uma oração de oferecimento, dizemos a Jesus: «Aqui estou! Podes contar comigo!». Oferecer-me, cada manhã, para o serviço de Cristo significa acolher, cheios de gratidão, o dom gratuito do amor de Deus, significa responder a esse amor colocando a minha vida ao serviço do Reino, e fazê-lo apesar das minhas incoerências, limites e fragilidades Mediante tal oferecimento, entro numa existência eucarística, numa vida entregue ao serviço do Senhor e dos outros, ao serviço da Igreja no mundo Este oferecimento faz-me participar ativamente no propósito de amor de Deus pela humanidade
Jesus viveu a sua vida como uma oferenda eucarística A sua última refeição resumiu toda a sua vida oferecida e entregue por amor Este caminho não o conduziu a um beco sem saída, mas à ressurreição e à vida em abundância E esta vida de felicidade eterna desejaria Ele dá-la a cada um de nós Por isso, Ele quer arrastar-nos na sua «dança de amor», mesmo que esta tenha de passar pela Cruz
O combate espiritual Contudo, entrar no mesmo itinerário de Jesus, amar como Ele nos amou, até ao ponto de «dar a vida pelos seus amigos», pode conduzir a um combate espiritual: «Não peço que os tires do mundo, mas que os guardes do mal» (Jo 17, 15) É inclusivamente um critério de fidelidade a Jesus, pois «o servo não é maior do que o seu senhor, nem o enviado é maior do que aquele que o enviou» (Jo 13, 16) Todos nós o experimentamos Há em nós conivência com o mal, com a mentira, com tudo o que significa rejeição da vida, mas Cristo não nos deixa sós: Ele enviou o Espírito Santo, o Espírito de verdade que procede do Pai, que desmascara o inimigo e nos ajuda a escolher a vida
Responder ao chamamento pessoal que Jesus me faz, pôr-me à sua disposição, juntamente com outros, ao serviço da missão da Igreja no mundo de hoje com todos os seus desafios, pode parecer emocionante. Muitas vezes, imaginamo-nos, como os apóstolos, unidos ao Coração de Jesus, a percorrer com Ele os caminhos da Galileia, os verdes prados pintados com mil flores ou as margens do lago, anunciando o Evangelho , mas esquecemo-nos da cruz Somos como os discípulos, como Pedro, para quem Jesus é o Messias que virá aplanar o caminho e abater as montanhas, de um golpe, sem esforço da nossa parte, como se tivéssemos uma varinha mágica, como se pudéssemos evitar o sofrimento e a própria cruz pelo simples facto de estarmos junto de Jesus «Ninguém entra, sem sofrer, no reino do amor» Não é que o sofrimento seja necessário, mas, no nosso mundo, aprender a amar requer que aprendamos a desprender-nos de nós mesmos e a oferecer a nossa vida E isso conduz-nos, com frequência – para não dizer sempre –, a um caminho de purificação renovado e a um descentramento de nós mesmos, em favor dos outros caminho esse que passa pelo sofrimento, por vezes até pela cruz e pela morte «Anunciei-vos estas coisas para que, em mim, tenhais a paz. No mundo, tereis tribulações; mas, tende confiança: Eu já venci o mundo!», diz Jesus no Evangelho segundo São João (Jo 16, 33).
Entrada segundo a perspetiva bíblica
Até onde estamos dispostos a viver a vida em pleno? Qual é a medida dos nossos compromissos? Alguma vez pensaste se há algo neste mundo em troca do qual estejas disponível a entregar a tua vida?
Talvez nunca nos encontremos numa situação em que tenhamos de entregar a vida para salvar algo ou alguém, mas certamente já nos encontramos em situações de ter de renunciar a alguma coisa que desejamos ou que consideramos valiosa para salvaguardar outro valor E não é arriscado pensar que renúncias repetidas ao longo do tempo podem acabar por nos fazer sentir que estamos a trocar a vida por aquilo a que nos estamos a entregar A verdade é que o amor que sentimos por alguma coisa ou por alguém é o que move as nossas fibras íntimas para podermos concretizar a entrega e a renúncia O amor mobiliza-nos e, por amor, somos capazes de grandes sacrifícios
O que parece paradoxal é que essa mesma renúncia ou entrega – embora, no fundo, signifique desprendermo-nos ou deixar qualquer coisa, uma morte em certo sentido
nos faz sentir vivos, chegando mesmo a ter uma vida renovada e mais plena do que se tivéssemos guardado para nós aquilo que entregamos. Ao que parece, despojar-nos ou morrer para alguma coisa... dá-nos vida, faz nascer algo de novo. Esta experiência, em suma, vai configurando em nós uma vida «eucarística», uma vida entregue, uma vida capaz de dar vida entregando-se, renunciando, morrendo para alguma coisa
Percorrendo as páginas da Bíblia, encontraremos numerosas vidas que germinaram a partir de uma renúncia, de um despojo, de um morrer para qualquer coisa «Em verdade vos digo que esta viúva pobre deitou no tesouro mais do que todos os outros; porque todos deitaram do que lhes sobrava, mas ela, da sua penúria, deitou tudo quanto possuía, todo o seu sustento» (Mc 12, 43-44)
A vinda de Deus ao mundo, a reconciliação e a possibilidade de Ele se fazer homem deu-se graças à entrega de uma mulher, de Maria. Ela, no seu «dar-se», no seu «sim» que nos granjeou a salvação, deixou tudo, abandonou nas mãos do Pai toda a sua vida, todos os seus projetos, sem outra certeza que não fosse a sua esperança colocada no autor do convite. «Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1, 38).
Os Evangelhos narram-nos os encontros de Jesus com os primeiros discípulos, o chamamento que lhes dirige e o modo como eles, «deixando tudo, o seguiram», nascendo para uma nova existência, para uma nova situação nas suas
vidas. «Trazidas as barcas para terra, deixando tudo, seguiram-no» (Lc 5,11). «Eles, tendo deixado na barca seu pai Zebedeu com os jornaleiros, seguiram-no» (Mc 1, 20)
A experiência da entrega é sempre um despojamento, um deixar morrer, que supõe entrar num processo de dor que não nos será poupado Ninguém que tenha arriscado tudo, que tenha dado o melhor de si, poderá dizer que o fez sem dor ou sem sofrimento O sofrimento, mesmo que não seja procurado, é como que o efeito não desejado da entrega A vida de Maria, José e Jesus não foi pobre em dissabores José não só tomou a seu cargo o Menino e sua Mãe, renunciando aos seus projetos e assumindo um mistério que não conseguia chegar a entender, mas, com generosidade e entrega, assumiu dificuldades e contradições que não lhe foram inferiores Perante os perigos que ameaçavam a vida do Menino, «Ele, levantando-se de noite, tomou o Menino e sua Mãe e retirou-se para o Egito. Lá esteve até à morte de Herodes» (Mt 2, 14-15).
Os Evangelhos relatam-nos o último momento comunitário de Jesus com os seus discípulos, no qual toda a entrega e toda a renúncia cobram o seu sentido último, onde tudo o que o Senhor viveu atinge o seu ponto culminante «Ele, que amara os seus que estavam no mundo, levou o seu amor por eles até ao extremo. (...) Levantou-se da mesa, tirou o manto, tomou uma toalha e atou-a à cintura. Depois deitou água na bacia e começou a lavar os pés aos discípulos e a enxugá-los com a toalha que atara à cintura» (Jo 13, 1 4-6) «Enquanto comiam, tomou um pão e, depois de pronunciar a bênção, partiu-o e entregou-o aos discípulos dizendo: "Tomai: isto é o meu corpo". Depois, tomou o cálice, deu graças e entregou-lho. Todos beberam dele. E Ele disse-lhes: "Isto é o meu sangue da aliança, que vai ser derramado por todos"» (Mc 14, 22-24)
Estes dois relatos são apenas duas faces da mesma moeda: neles, Jesus dá-se a si mesmo, fica entre nós para ser alimento que dá vida, pão que se parte e se partilha. A Eucaristia é entrega e serviço. Jesus viveu-o e exprimiu-o desse modo, com gestos, com palavras e com toda a sua vida. É assim que nos devemos entregar e partilhar com os nossos irmãos, se quisermos fazer parte da Eucaristia com Jesus Cristo. Como? Com o estilo de Jesus, colocando-nos ao serviço, estando aos pés das necessidades dos nossos irmãos, ajudando-os nas suas dificuldades Jesus é a maior entrega de amor, é o cume de todos os sacrifícios e de todas as renúncias, em quem todos nós somos convidados a dar-nos, a partilhar a sua entrega, a ser filhos com o Filho, participando na sua missão Assim como partilhamos a sua vida e o acompanhamos no seu caminhar, somos convidados também ao momento chave da identificação com o Mestre, o momento da cruz, da entrega, de acolher o sofrimento não desejado, não querido e não procurado
À maneira de Jesus, somos convidados a configurar-nos também com Ele nesta parte da sua vida na terra, perseverando nas nossas lutas, de olhos postos n’Ele, que nos abriu o caminho da entrega que dá vida Nessa certeza de que Ele caminha para a Paixão, de que Ele ganhou para nós a vida para sempre, podemos escolher acompanhá-lo no caminho com as nossas dificuldades e com os nossos sofrimentos, para que, unidos à sua Paixão, o Pai os ressuscite e os torne fecundos Deixa que Cristo conquiste o teu coração, Ele que por ti caminha para a Paixão; fica com Ele e entrega a tua vida para que Ele a pregue no seu madeiro
● «Esta pobre viúva deu mais que todos os outros… pois ela deitou, do seu necessário, tudo o que tinha para viver» (Mc 12:43-44)
● «Depois, tomou um pão, deu graças, partiu-o e deu-lho, dizendo: "Isto é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de mim"»(Lc 22:19)
● «Eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1:38)
● «Rogo-vos, pois, irmãos, pela misericórdia de Deus, que ofereçais os vossos corpos como hóstia viva, santa, agradável a Deus: este é o vosso culto espiritual» (Rm 12:1)
●«Eis que venho, para fazer, ó Deus, a tua vontade» (Hb 10:7-13)
«Tomai, Senhor, e recebei toda a minha liberdade, a minha memória, o meu entendimento e toda a minha vontade, todo o meu ter e o meu possuir; Vós mo destes, a Vós, Senhor, o restituo; tudo é vosso, disponde a toda a vossa vontade; dai-me o vosso amor e graça, que esta me basta» (EE 234)
Entrada segundo a perspetiva da fé
O símbolo da Cruz
A Cruz é o símbolo que nos identifica como cristãos Como qualquer símbolo, tem por função transmitir significados complexos e abstratos – como sentimentos, valores e atitudes – cuja densidade é difícil de resumir na linguagem quotidiana Constituem a ligação entre o visível e o invisível, o concreto e o abstrato.
O que simboliza a cruz, hoje, para nós? O que simbolizava a cruz para Jesus e para os primeiros cristãos?
A primeira resposta que nos ocorre é que a cruz simboliza a nossa participação na Paixão e Morte de Jesus Ora bem, se isto é verdade, aprofundemos em que consistiu a Paixão e Morte de Jesus
A Santíssima Trindade, como manifestação exterior, pode entender-se como ágape, como doação e comunicação de si, como «ser-para» Essa participação no «ser-para» de Jesus está refletida no seu serviço à dor do mundo, que consistiu no seu firme empenho na transformação absoluta da realidade, amando o irmão marginalizado, sofredor ou humanamente desfeito Começou com a Encarnação, não com uma Encarnação abstrata, mas concreta e tangível, nas periferias do poder, entre pobres e marginalizados
A dor do mundo é a dor de Deus no mundo. O copo de água dado ao sedento não poderia alcançar Cristo (Mt 25, 35-45), se primeiro não o tivesse alcançado a sede. Cristo Jesus sofre com aquele que sofre.
No seu ser-para, Jesus viveu de maneira contrária ao antirreino deste mundo, incomodando os poderosos e colocando-se ao serviço dos débeis e dos necessitados; é nas suas atitudes de vida que Jesus vai forjando a sua sentença No seu ser-para ao serviço da dor do mundo, submeteu-se ao poder terreno nas suas três facetas mais relevantes: o poder político, na pessoa de Pilatos, o poder da comunidade de pertença, na pessoa de Herodes, e o poder religioso, na pessoa de Caifás
Ao contemplar as cenas da Paixão e da Cruz, vemos que estão dominadas pelo signo da entrega: por parte de Judas, que «entrega» Jesus ao Sinédrio; do Sinédrio, que o entrega a Pilatos; de Pilatos, que o entrega à multidão, àqueles que, anonimamente, mas em nome dos poderes do mundo, o entregam à morte; por último, o próprio Deus entrega Cristo à sua sorte.
A fé constituiu o modo de existir de Jesus, que sempre se decidiu em favor de Deus Pai e do outro; crê na sua missão libertadora e espera, espera contra toda a esperança
Detenhamo-nos a contemplar a Paixão e a Cruz Carregar a cruz O nosso símbolo de participação na Paixão e na Cruz de Jesus Costumamos ligar a ideia de carregar a cruz ao esforço, à dor física e ao sofrimento corporal, mas o que realmente importa na morte de cruz não é a dor que comporta, mas sim o caráter ignominioso, vergonhoso, humilhante e indigno de tal morte, utilizada somente para escravos, para terroristas e para os piores malfeitores Na sua kénosis, abaixamento, Jesus não só deu a sua vida por nós homens, mas fê-lo com uma morte vergonhosa e humilhante
Perdemos de vista o aspeto infamante da cruz, concentrando-nos na dor física. Armadilha da nossa torpe humanidade. Enquanto a dor física nos deixa centrados em nós mesmos, a humilhação e a vergonha far-nos-iam entrar em relação com os outros, e aí sim, participaríamos do «ser-para» de Jesus no serviço à dor do mundo.
A Cruz não é uma questão de índole individual, mas um modo de nos vincularmos com a realidade, um modo de ser em comunidade A Cruz não é uma forma de ascetismo, mas uma forma de vida e de ser perante o mundo e perante os homens, no âmbito das relações dos homens entre si e não apenas consigo mesmos
Toda a vida de Jesus foi um dar-se, um ser-para-os-outros; foi uma tentativa e uma realização da superação de todos os conflitos na sua existência Em nome do reino de Deus, Jesus viveu o seu ser-para-os-outros até ao fim, a própria experiência de morte (ausência de Deus) se tornou sensível na cruz, quase até ao limite da desesperança Ele, porém, confiou e acreditou até ao fim que, apesar de tudo, Deus aceitaria o seu sacrifício e entrega salvífica para bem da humanidade inteira
A Cruz, no cristão, é participação na Paixão do Senhor, mas numa paixão marcada pela humilhação, pela ignomínia, pelo ser-para-o-outro e pela confiança absoluta no amor infinito de Deus Pai.
A Cruz é símbolo do serviço, humilde e simples, à dor de Deus no mundo, como o foi para Jesus
Entrada segundo a perspetiva espiritual
Oferecer a vida com o Filho
O centro e o coração do carisma da Rede Mundial de Oração do Papa é a disponibilidade apostólica para a missão de compaixão de Jesus pelo mundo É a atitude do coração de oferenda total da minha vida com tudo o que sou e tenho, unindo-me a Cristo para a sua missão pelo reino de Deus. É a disponibilidade plena, sem reservas, com o desejo profundo de me unir a Jesus Cristo, ao seu Coração, para que Ele disponha em favor do seu Reino. Esta disponibilidade acompanha todo o meu dia, impregnando-o completamente. É assim que a oração de oferecimento é a oração pela qual nos oferecemos ao Pai, nos tornamos disponíveis para a sua missão de compaixão Nesta oração, ficam unidas a mística e a ação, o Coração de Jesus e a missão Nela dizemos ao Pai «aqui estou» com todo o meu ser, com toda a minha vida, com o desejo de me unir à autoentrega do Filho ao Pai, para sermos filhos, com Ele, na missão de compaixão
Não significa apenas oferecer os nossos trabalhos do dia, mas todo o nosso ser, a disposição interior para sermos apóstolos na missão de compaixão pelo mundo Mas qual é essa missão, na Rede de Oração do Papa? Qual é o lugar de encarnação dessa missão, nesta época, para aqueles que participam nesta Rede de Oração? Não é outro senão os desafios da humanidade e da missão da Igreja expressos pelas intenções de oração do Papa: doze chaves para a nossa missão É esse o lugar concreto onde encarna a missão, aonde o Senhor nos convida. Orar e mobilizar as nossas vidas em favor de necessidades concretas de homens e mulheres deste mundo. Assim, na oração de oferecimento dizemos ao Senhor que somos e estamos completamente disponíveis para Ele, para esta missão que nos confiou e que se concretiza para nós, sendo lugar de encarnação nas intenções de oração do Papa.
Assim, somos colaboradores da missão de Cristo Fazemo-nos Eucaristia com Jesus Cristo, em união com Ele e disponíveis para a sua missão Ele faz de nós pão partido para os irmãos, mediante a nossa disponibilidade e a sua ação O Senhor convida-nos a esta disponibilidade total para fazer da nossa vida uma Eucaristia com Ele Viver eucaristicamente é viver disponíveis para Cristo, para a sua missão, com tudo aquilo que somos e temos, para colaborar com Ele na sua missão de compaixão em favor dos nossos irmãos
A minha vida, uma Eucaristia permanente
Ao dizer Eucaristia, estamos a evocar dois gestos de Jesus nas vésperas do momento mais sombrio da sua vida terrena: a sua ceia, quer dizer, a ceia do Senhor e a fração do pão
Dois gestos que se inscrevem no maior gesto de entrega jamais feito: a entrega de Jesus Cristo, voluntariamente aceite, por amor a todos os homens e mulheres de todos os tempos, sem condições Por isso, quando nos reunimos na Eucaristia, fazemo-lo para celebrar a ceia do Senhor e para partir e partilhar o pão: a missa é isto
Embora hoje custe a compreender, pela dinâmica social e pelo desenvolvimento próprio da história, a Eucaristia não é uma ação de culto, mas sim a fonte de transformação das relações humanas. É uma mesa partilhada por amigos; missa quer dizer «despedida», e Eucaristia significa «ação de graças». A mesa partilhada da Ceia do Senhor foi organizada por Ele, uma mesa na qual Jesus, o Senhor, partilha com os seus servos, o Mestre sentado e partilhando a mesa com os seus discípulos. Era um facto nada corrente nos tempos de Jesus, em que os escravos e servos não partilhavam a mesa com o seu Senhor Além disso, para os seus discípulos foi um ato de esperança, pois uma ceia partilhada é uma celebração, uma despedida no meio de um momento sombrio e um ato de esperança, uma celebração
Os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas dizem-nos duas coisas que Jesus fez nessa ceia Partiu o pão e repartiu-o, partiu o pão e partilhou-o com os seus amigos Este gesto tem o sentido de partilhar a necessidade O pão é alimento e, ao parti-lo e reparti-lo, partilhamos as necessidades uns dos outros Parte-se o alimento e partilha-se aquilo que nos é necessário Depois Jesus passou o cálice, o que tem o sentido de comunicar alegria: o vinho é alegria e todos partilham do mesmo cálice que Jesus dá e pelo qual comunica a sua alegria
Em seguida disse-lhes que, de cada vez que fizerem estes mesmos gestos, Ele estará presente, com eles, connosco. Com efeito, as palavras «isto é o meu corpo» dizem-lhes aquilo que, na cultura semita a que Jesus e os seus amigos pertenciam, tem o sentido de: «esta é a minha pessoa»; por isso a minha pessoa estará sempre convosco Quando lhes diz «este é o meu sangue», isso significa para eles «esta é a minha vida entregue» Assim, Jesus diz aos seus discípulos e diz-nos a nós, de cada vez, neste memorial: «Na minha ceia, ao partir e repartir o pão, partilhamos a necessidade, ao beber todos do mesmo cálice de vinho, é comunicada a minha alegria; por isso, de cada vez que fizerdes isto, sabei que a minha pessoa estaráconvosco Eu estarei convosco em pessoa e toda a minha vida entregue estará presente onde quer que estes gestos se fizerem»
Entrada segundo as palavras do Papa
«A fé significa também acreditar n’Ele, acreditar que nos ama verdadeiramente, que está vivo, que é capaz de intervir misteriosamente, que não nos abandona, que tira bem do mal com o seu poder e a sua criatividade infinita. Significa acreditar que Ele caminha vitorioso na história "e, com Ele, estarão os chamados, os escolhidos, os fiéis" (Ap 17, 14) Acreditamos no Evangelho que diz que o reino de Deus já está presente no mundo e vai-se desenvolvendo, aqui e além, de várias maneiras: como a pequena semente que pode chegar a transformar-se numa grande árvore (cf Mt 13, 31-32), como o punhado de fermento que leveda uma grande massa (cf Mt 13, 33) e como a boa semente que cresce no meio do joio (cf Mt 13, 24-30) e sempre nos pode surpreender positivamente: ei-la que aparece, vem outra vez, luta para florescer de novo A ressurreição de Cristo produz por toda a parte rebentos deste mundo novo; e, ainda que os cortem, voltam a despontar, porque a ressurreição do Senhor já penetrou a trama oculta desta história; porque Jesus não ressuscitou em vão Não fiquemos à margem deste caminho da esperança viva!
Como nem sempre vemos estes rebentos, precisamos de uma certeza interior, ou seja, da convicção de que Deus pode atuar em qualquer circunstância, mesmo no meio de aparentes fracassos, porque "trazemos este tesouro em vasos de barro" (2 Cor 4, 7). Esta certeza é o que se chama "sentido de mistério", que consiste em saber, com certeza, que a pessoa que se oferece e entrega a Deus por amor, seguramente será fecunda (cf Jo 15, 5) Muitas vezes, esta fecundidade é invisível, incontrolável, não pode ser contabilizada A pessoa sabe com certeza que a sua vida dará frutos, mas sem pretender conhecer como, onde ou quando; está segura de que não se perde nenhuma das suas obras feitas com amor, não se perde nenhuma das suas preocupações sinceras com os outros, não se perde nenhum ato de amor a Deus, não se perde nenhuma das suas generosas fadigas, não se perde nenhuma dolorosa paciência Tudo isto circula pelo mundo como uma força de vida Às vezes, invade-nos a sensação de não termos obtido resultado algum com os nossos esforços, mas a missão não é um negócio nem um projeto empresarial, nem mesmo uma organização humanitária, não é um espetáculo para que se possa contar quantas pessoas assistiram devido à nossa propaganda. É algo de muito mais profundo, que escapa a toda e qualquer medida. Talvez o Senhor se sirva da nossa entrega para derramar bênçãos noutro lugar do mundo, aonde nunca iremos. O Espírito Santo trabalha como quer, quando quer e onde quer; e nós gastamo-nos com grande dedicação mas sem pretender ver resultados espetaculares. Sabemos apenas que o dom de nós mesmos é necessário No meio da nossa entrega criativa e generosa, aprendamos a descansar na ternura dos braços do Pai
Sigamos em frente, empenhemo-nos totalmente, mas deixemos que seja Ele a tornar fecundos, como melhor lhe parecer, os nossos esforços
Para manter vivo o ardor missionário, é necessária uma decidida confiança no Espírito Santo, porque Ele "vem em auxílio da nossa fraqueza" (Rm 8, 26) Mas esta confiança generosa tem de ser alimentada e, para isso, precisamos de o invocar constantemente Ele pode curar-nos de tudo o que nos faz esmorecer no compromisso missionário É verdade que esta confiança no invisível pode causar-nos alguma vertigem: é como mergulhar num mar onde não sabemos o que vamos encontrar Eu mesmo o experimentei tantas vezes Mas não há maior liberdade do que a de se deixar conduzir pelo Espírito, renunciando a calcular e controlar tudo e permitindo que Ele nos ilumine, guie, dirija e impulsione para onde Ele quiser O Espírito Santo bem sabe o que faz falta em cada época e em cada momento. A isto chama-se ser misteriosamente fecundos!»
(Papa Francisco, Evangelii gaudium, 278-280).
Combate, Vigilância e Discernimento
«A vida cristã é uma luta permanente Requer-se força e coragem para resistir às tentações do demónio e anunciar o Evangelho Esta luta é magnífica, porque nos permite cantar vitória todas as vezes que o Senhor triunfa na nossa vida
A luta e a vigilância Não se trata apenas de uma luta contra o mundo e a mentalidade mundana, que nos engana, atordoa e torna medíocres, sem empenho e sem alegria. Nem se reduz a uma luta contra a própria fragilidade e as próprias inclinações (cada um tem a sua: para a preguiça, a luxúria, a inveja, os ciúmes, etc.). Mas é também uma luta constante contra o demónio, que é o príncipe do mal. O próprio Jesus celebra as nossas vitórias. Alegrava-se quando os seus discípulos conseguiam fazer avançar o anúncio do Evangelho, superando a oposição do Maligno, e exultava: "Eu via Satanás cair do céu como um relâmpago" (Lc 10, 18)
Algo mais do que um mito Não admitiremos a existência do demónio, se nos obstinarmos a olhar a vida apenas com critérios empíricos e sem uma perspetiva sobrenatural A convicção de que este poder maligno está no meio de nós é precisamente aquilo que nos permite compreender por que, às vezes, o mal tem uma força destruidora tão grande É verdade que os autores bíblicos tinham uma bagagem concetual limitada para expressar algumas realidades e que, no tempo de Jesus, podia-se confundir, por exemplo, uma epilepsia com a possessão do demónio Mas isto não deve levar-nos a simplificar demasiado a realidade, afirmando que todos
os casos narrados nos Evangelhos eram doenças psíquicas e que, em última análise, o demónio não existe ou não intervém A sua presença consta nas primeiras páginas da Sagrada Escritura, que termina com a vitória de Deus sobre o demónio De facto, quando Jesus nos deixou a oração do Pai-Nosso, quis que a concluíssemos pedindo ao Pai que nos livrasse do Maligno A expressão usada não se refere ao mal em abstrato; a sua tradução mais precisa é " o Maligno" Indica um ser pessoal que nos atormenta Jesus ensinou-nos a pedir cada dia esta libertação para que o seu poder não nos domine
Então, não pensemos que é um mito, uma representação, um símbolo, uma figura ou uma ideia Este engano leva-nos a diminuir a vigilância, a descuidarmo-nos e a ficar mais expostos O demónio não precisa de nos possuir Envenena-nos com o ódio, a tristeza, a inveja, os vícios. E assim, enquanto abrandamos a vigilância, ele aproveita para destruir a nossa vida, as nossas famílias e as nossas comunidades, porque, "como um leão a rugir, anda a rondar-vos, procurando a quem devorar" (1 Pd 5, 8).
Despertos e confiantes
A Palavra de Deus convida-nos, explicitamente, a resistir "contra as maquinações do diabo" (Ef 6, 11) e a "apagar todas as setas incendiadas do maligno" (Ef 6, 16) Não se trata de palavras poéticas, porque o nosso caminho para a santidade é também uma luta constante Quem não quiser reconhecê-lo, ver-se-á exposto ao fracasso ou à mediocridade Para a luta, temos as armas poderosas que o Senhor nos dá: a fé que se expressa na oração, a meditação da Palavra de Deus, a celebração da Missa, a adoração eucarística, a Reconciliação sacramental, as obras de caridade, a vida comunitária, o compromisso missionário Se nos descuidarmos, facilmente nos seduzirão as falsas promessas do mal Ora, como dizia o Santo Cura Brochero, " que importa que Lúcifer prometa libertar-vos e até vos atire para o meio de todos os seus bens, se são bens enganadores, se são bens envenenados?"
Neste caminho, o progresso no bem, o amadurecimento espiritual e o crescimento do amor são o melhor contrapeso ao mal. Ninguém resiste, se escolhe arrastar-se em ponto-morto, se se contenta com pouco, se deixa de sonhar com a oferta de maior dedicação ao Senhor; e, menos ainda, se cai num sentido de derrota, porque " quem começa sem confiança, perdeu de antemão metade da batalha e enterra os seus talentos ( ) O triunfo cristão é sempre uma cruz, mas cruz que é, simultaneamente, estandarte de vitória, que se empunha com ternura batalhadora contra as investidas do mal"
A corrupção espiritual O caminho da santidade é uma fonte de paz e alegria que o
Espírito nos dá, mas, ao mesmo tempo, exige que estejamos com "as lâmpadas acesas" (cf Lc 12, 35) e permaneçamos vigilantes: "afastai-vos de toda a espécie de mal" (1 Ts 5, 22); "vigiai" (Mt 24, 42; cf Mc 13, 35); não adormeçamos (cf 1 Ts 5, 6) Pois quem não se dá conta de cometer faltas graves contra a Lei de Deus, pode deixar-se cair numa espécie de entorpecimento ou sonolência Como não encontra nada de grave a censurar-se, não adverte aquela tibieza que, pouco a pouco, se vai apoderando da sua vida espiritual e acaba por ficar corroído e corrompido
A corrupção espiritual é pior que a queda de um pecador, porque trata-se de uma cegueira cómoda e autossuficiente, em que tudo acaba por parecer lícito: o engano, a calúnia, o egoísmo e muitas formas subtis de autorreferencialidade, já que "também Satanás se disfarça em anjo de luz" (2 Cor 11, 14) Assim acabou os seus dias Salomão, enquanto o grande pecador David soube superar a sua miséria. Num trecho evangélico, Jesus alerta-nos contra esta tentação insidiosa que nos faz escorregar até à corrupção: fala de uma pessoa libertada do demónio, a qual, pensando que a sua vida já estivesse limpa, acabaria possuída por outros sete espíritos malignos (cf. Lc 11, 24-26). E outro texto bíblico usa esta imagem impressionante: "O cão volta ao seu vómito" (2 Pd 2, 22; cf Pr 26, 11)
O discernimento.
Como é possível saber se algo vem do Espírito Santo ou se deriva do espírito do mundo e do espírito maligno? A única forma é o discernimento Este não requer apenas uma boa capacidade de raciocinar e sentido comum, é também um dom que é preciso pedir Se o pedirmos com confiança ao Espírito Santo e, ao mesmo tempo, nos esforçarmos por cultivá-lo com a oração, a reflexão, a leitura e o bom conselho, poderemos certamente crescer nesta capacidade espiritual
Uma necessidade imperiosa Hoje em dia, tornou-se particularmente necessária a capacidade de discernimento, porque a vida atual oferece enormes possibilidades de ação e distração, sendo-nos apresentadas pelo mundo como se fossem todas válidas e boas. Todos, mas especialmente os jovens, estão sujeitos a um zapping constante. É possível navegar simultaneamente em dois ou três ecrãs e interagir ao mesmo tempo em diferentes cenários virtuais. Sem a sapiência do discernimento, podemos facilmente transformar-nos em marionetas à mercê das tendências da ocasião
Isto revela-se particularmente importante quando aparece uma novidade na própria vida, sendo necessário então discernir se é o vinho novo que vem de Deus ou uma novidade enganadora do espírito do mundo ou do espírito maligno Noutras ocasiões, sucede o contrário, porque as forças do mal induzem-nos a não mudar, a deixar as coisas como estão, a optar pelo imobilismo e a rigidez e, assim, impedimos que atue
o sopro do Espírito Santo. Somos livres, com a liberdade de Jesus, mas Ele chama-nos a examinar o que há dentro de nós – desejos, angústias, temores, expectativas – e o que acontece fora de nós – os "sinais dos tempos" –, para reconhecer os caminhos da liberdade plena:
"examinai tudo, guardai o que é bom" (1 Ts 5, 21)
Sempre à luz do Senhor O discernimento não é necessário apenas em momentos extraordinários, quando temos de resolver problemas graves ou quando se deve tomar uma decisão crucial; é um instrumento de luta, para seguir melhor o Senhor. É-nos sempre útil, para sermos capazes de reconhecer os tempos de Deus e a sua graça, para não desperdiçarmos as inspirações do Senhor, para não ignorarmos o seu convite a crescer. Frequentemente, isto decide-se nas coisas pequenas, no que parece irrelevante, porque a magnanimidade mostra-se nas coisas simples e diárias. Trata-se de não colocar limites rumo ao máximo, ao melhor e ao mais belo, mas ao mesmo tempo concentrar-se no pequeno, nos compromissos de hoje Por isso, peço a todos os cristãos que não deixem de fazer cada dia, em diálogo com o Senhor que nos ama, um sincero exame de consciência Ao mesmo tempo, o discernimento leva-nos a reconhecer os meios concretos que o Senhor predispõe, no seu misterioso plano de amor, para não ficarmos apenas pelas boas intenções
Um dom sobrenatural É verdade que o discernimento espiritual não exclui as contribuições de sabedorias humanas, existenciais, psicológicas, sociológicas ou morais; mas transcende-as Não bastam sequer as normas sábias da Igreja Lembremo-nos sempre de que o discernimento é uma graça Embora inclua a razão e a prudência, supera-as, porque trata-se de entrever o mistério daquele projeto, único e irrepetível, que Deus tem para cada um e que se realiza no meio dos mais variados contextos e limites. Não está em jogo apenas um bem-estar temporal, nem a satisfação de realizar algo de útil, nem mesmo o desejo de ter a consciência tranquila. Está em jogo o sentido da minha vida diante do Pai que me conhece e ama, aquele sentido verdadeiro para o qual posso orientar a minha existência e que ninguém conhece melhor do que Ele Em suma, o discernimento leva à própria fonte da vida que não morre, isto é, conhecer o Pai, o único Deus verdadeiro, e a quem Ele enviou, Jesus Cristo (cf Jo 17, 3) Não requer capacidades especiais nem está reservado aos mais inteligentes e instruídos; o Pai compraz-se em manifestar-se aos humildes (cf Mt 11, 25)
Embora o Senhor nos fale de muitos e variados modos durante o nosso trabalho, através dos outros e a todo o momento, não é possível prescindir do silêncio da oração prolongada para perceber melhor aquela linguagem, para interpretar o
significado real das inspirações que julgamos ter recebido, para acalmar ansiedades e recompor o conjunto da própria vida à luz de Deus Assim, podemos permitir o nascimento daquela nova síntese que brota da vida iluminada pelo Espírito
Fala, Senhor Pode acontecer, porém, que na própria oração evitemos deixar-nos confrontar com a liberdade do Espírito, que age como quer Não nos esqueçamos de que o discernimento orante exige partir da predisposição para escutar: o Senhor, os outros, a própria realidade que não cessa de nos interpelar de novas maneiras Somente quem está disposto a escutar tem a liberdade de renunciar ao seu ponto de vista parcial e insuficiente, aos seus hábitos, aos seus esquemas Desta forma, está realmente disponível para acolher um chamamento que quebra as suas seguranças, mas leva-o a uma vida melhor, porque não é suficiente que tudo corra bem, que tudo esteja tranquilo. Pode acontecer que Deus nos esteja a oferecer algo mais e, na nossa cómoda distração, não o reconheçamos.
Tal atitude de escuta implica, naturalmente, obediência ao Evangelho como último critério, mas também ao Magistério que o guarda, procurando encontrar no tesouro da Igreja aquilo que pode ser mais fecundo para " o hoje" da salvação Não se trata de aplicar receitas ou repetir o passado, uma vez que as mesmas soluções não são válidas em todas as circunstâncias e o que foi útil num contexto pode não o ser noutro O discernimento dos espíritos liberta-nos da rigidez, que não tem lugar no "hoje" perene do Ressuscitado Somente o Espírito sabe penetrar nas dobras mais recônditas da realidade e ter em conta todas as suas nuances, para que a novidade do Evangelho surja com outra luz
A lógica do dom e da cruz Condição essencial para avançar no discernimento é educar-se para a paciência de Deus e os seus tempos, que nunca são os nossos. Ele não faz descer fogo do céu sobre os incrédulos (cf. Lc 9, 54), nem permite aos zelosos arrancar o joio que cresce juntamente com o trigo (cf. Mt 13, 29). Além disso, requer-se generosidade, porque "a felicidade está mais em dar do que em receber" (At 20, 35). Faz-se discernimento, não para descobrir como podemos tirar mais proveito desta vida, mas para reconhecer como podemos cumprir melhor a missão que nos foi confiada no Batismo, e isto implica estar disposto a fazer renúncias até dar tudo Com efeito, a felicidade é paradoxal, proporcionando-nos as melhores experiências quando aceitamos aquela lógica misteriosa que não é deste mundo, mas "é a nossa lógica", como dizia São Boaventura, referindo-se à cruz Quando uma pessoa assume esta dinâmica, não deixa anestesiar a sua consciência e abre-se generosamente ao discernimento
Quando perscrutamos na presença de Deus os caminhos da vida, não há espaços que fiquem excluídos Em todos os aspetos da existência, podemos continuar a crescer e dar algo mais a Deus, mesmo naqueles em que experimentamos as dificuldades mais fortes Mas é necessário pedir ao Espírito Santo que nos liberte e expulse aquele medo que nos leva a negar-lhe a entrada nalguns aspetos da nossa vida Aquele que pede tudo, também dá tudo, e não quer entrar em nós para mutilar ou enfraquecer, mas para levar à perfeição Isto mostra-nos que o discernimento não é uma autoanálise presumida, uma introspeção egoísta, mas uma verdadeira saída de nós mesmos para o mistério de Deus, que nos ajuda a viver a missão para a qual nos chamou, a bem dos irmãos
Desejo coroar estas reflexões com a figura de Maria, porque Ela viveu como ninguém as bem-aventuranças de Jesus. É Aquela que estremecia de júbilo na presença de Deus, Aquela que conservava tudo no seu coração e se deixou atravessar pela espada. É a mais abençoada dos santos entre os santos, Aquela que nos mostra o caminho da santidade e nos acompanha. E, quando caímos, não aceita deixar-nos por terra e, às vezes, leva-nos nos seus braços sem nos julgar. Conversar com Ela consola-nos, liberta-nos, santifica-nos A Mãe não necessita de muitas palavras, não precisa que nos esforcemos demasiado para lhe explicar o que se passa connosco É suficiente sussurrar uma vez e outra: "Ave, Maria " »
(Gaudete et exsultate, 158-176)
Entrada segundo a perspetiva da oração
Por que motivos darias a vida?
Nas nossas conversas habituais costumamos ouvir dizer «dar a vida por» ou «dar a vida, desde que », quando as pessoas pretendem referir o sacrifício que estão dispostas a fazer por alguma coisa ou por alguém Todavia, subjacentes a tais frases, podem encontrar-se diversos motivos. Um desses motivos poderá ser o egoísmo; outro, porém, poderá ser o reflexo de um amor profundo. Quando utilizamos a expressão «daria a vida», podemos chegar a duas conclusões. A primeira é a de talvez descobrirmos que só seríamos capazes de dar a vida por muito poucos motivos e que, a maior parte das vezes, só o faríamos a troco de um proveito meramente pessoal No entanto, para nossa surpresa, também poderíamos reconhecer até que ponto valorizamos a vida dos outros e estamos dispostos a sacrificar-nos pelos outros
O que sucederia, porém, se, na realidade, aquilo por que darias a vida – por exemplo, o bem-estar numa relação, a paz em determinada situação ou a felicidade dos outros – não dependesse exclusivamente de que tu entregasses a «tua vida», mas, pura e simplesmente, a transformasses? Se a felicidade da outra pessoa dependesse da tua mudança de atitude, estarias disposto a mudar? Se, para alcançar bem-estar e harmonia numa relação, tivesses de procurar novas formas de vinculação, mudarias a tua forma de atuar? Inclusivamente, se a felicidade de uma pessoa dependesse de que fosses tu a «perder», estarias disponível a isso? O que se passaria se tu te desses conta de que consegues alcançar aquilo que desejas mudando a tua maneira de ser e de atuar? Que decisões tomarias?
Dar a vida pelo bem-estar da outra pessoa pode ser muito louvável. Entregar a vida para que o outro viva pode ser um gesto de amor imenso Foi este o maior gesto de amor que a humanidade conheceu Partilhando o pão e o vinho com os seus discípulos, Jesus antecipou a entrega definitiva de amor que Ele próprio selaria com a sua morte na cruz Não existiu nem existirá maior gesto de amor e entrega do que o gesto realizado pelo Filho de Deus
Na Cruz, Jesus revela o seu amor, que chega ao extremo da entrega para que outro viva, independentemente se é bom ou mau, justo ou injusto, pecador ou santo, porque a sua entrega é para todos e para sempre Quando ouvimos Jesus dizer, no Evangelho, que «o discípulo não está acima do mestre, nem o servo acima do senhor», acrescentando que «basta ao discípulo ser como o mestre, e ao servo como o senhor» (Mt 10, 24-25), podemos cair na tentação de julgar que precisamos de fazer um sacrifício idêntico ao de Jesus.
A entrega de Jesus na Cruz foi única e para sempre. No entanto, como discípulos, somos chamados à entrega de nós mesmos por amor A oferenda da nossa vida é uma atitude interior que brota da Eucaristia e que tem o seu cume na Cruz Significa estarmos interiormente disponíveis para que a nossa vida seja alimento para os outros Certas situações não melhoram à nossa volta porque não estamos dispostos ao sacrifício de ceder um pouco e mudar de procedimento A nossa vida torna-se oblação quando a oferecemos a Deus como instrumento de amor e redenção para os outros
Quando tomamos a própria vida como dom de Deus e a queremos entregar como Jesus, convertemo-nos em pessoas eucarísticas Ser discípulo de Jesus tem o selo da entrega e do sacrifício que nasce do amor Estarias disponível a colaborar com Jesus na sua missão para dar a vida? Jesus Cristo disse: «Ninguém tem mais amor do que quem dá a vida pelos seus amigos» (Jo 15, 13).
Mediante as suas palavras, gestos e modo de proceder, Jesus consolou muitíssimas pessoas. Transmitiu-lhes esperança, ajudou-as a acreditar e a recuperar a fé. Se examinares com atenção e valentia o curso e o ritmo da tua própria vida e te decidires a colaborar para que os outros vivam melhor, dar-te-ás conta do muito que poderás contribuir para a felicidade dos outros
A celebração eucarística não é um espetáculo artístico, mas uma refeição fraterna Um lugar privilegiado para nos encontrarmos com Jesus Para nos sentarmos à sua mesa, precisamos de confessar que temos fome d'Ele Eis uma condição para nos alimentarmos do seu Corpo e Sangue, que nos nutre, e um elemento fundamental da ligação afetiva com Ele
Assim como, na Última Ceia, Jesus tomou o pão nas suas mãos e o repartiu pelos seus discípulos, fazendo o mesmo com o cálice, Ele repete essa mesma ação com cada um de nós. Ao comungar, entramos em comunhão com Jesus, alimentamo-nos com o seu Corpo e Sangue e Ele acolhe-nos a cada um de nós. Nas suas mãos trespassadas pelos cravos da cruz, molda-nos como discípulos eucarísticos. Ele toma a seu cargo, como sua principal responsabilidade, aceitar-nos como seus discípulos, mas, ao mesmo tempo, exige-nos uma disponibilidade total
Segundo o relato da criação do homem, no livro do Génesis, Deus tomou barro nas suas mãos e moldou o homem Em cada Eucaristia, também nós somos tomados por Jesus, no preciso momento em que o tomamos a Ele como alimento Mediante o ato da comunhão, Jesus vai delineando os traços que nos definem como seus discípulos
O ser humano, feito de barro, é composto pela «água» das suas qualidades e talentos e pela «terra» das suas fragilidades e carências Não somos apenas qualidades e virtudes, mas também não somos unicamente defeitos e limitações; ambos os elementos constituem um binómio perfeito, que não se pode separar sem destruir a essência do ser humano
«Trazemos este tesouro em vasos de barro» (2 Cor 4, 7) Não são as nossas qualidades e talentos que instauram o reino de Deus, mas as nossas limitações também não podem impedir que este se realize As nossas debilidades não são desculpa, nem as nossas carências são razão suficiente para que Deus detenha o seu plano A nossa fraqueza nunca será superior ao seu poder A fragilidade humana não é obstáculo, motivo para que Deus interrompa a sua ação salvífica, que Ele pode levar a cabo com a nossa colaboração
Ser discípulos eucarísticos significa deixar que o Espírito Santo grave em nós a imagem de Jesus. Para isso, devemos estar dispostos a desprender-nos dos nossos modos de agir e proceder e assumir o seu estilo de vida. Há momentos na nossa vida em que devemos abrir o coração a Deus e animar-nos a «reiniciar» o estilo de vida que escolhemos Não porque seja mau ou esteja mal feito, mas pela simples razão de que é bom colocarmo-nos nas mãos de Deus, para nos deixarmos refazer Se não nos desprendermos do estilo de vida do homem velho, não poderemos acolher o projeto do Senhor em nós
Convidamos-te a rezar a Oração de Oferecimento da Rede Mundial de Oração do Papa em cada manhã, para te dispores a viver o dia numa atitude eucarística, quer dizer, a predispores-te interiormente para viveres a jornada de estudo, trabalho e afazeres quotidianos, como missão O oferecimento, pela manhã, de tudo o que somos, dispõe-nos a viver ao longo de todo o dia por Ele, com Ele e n’Ele
Proposta de exercícios
Oferecimento
Agora que já percorreste este passo, poderás saborear melhor a Oração de Oferecimento Convidamos-te a que, em cada manhã, rezes esta Oração com o coração, sentindo e detendo-te em cada frase e palavra Saboreia o seu sentido profundo Reza-a sem olhar ao tempo e sem pressas, para que a beleza e a densidade de cada palavra penetre no teu coração, qual gota de água que vai perfurando a pedra
Pai de bondade, eu sei que estás comigo. Aqui estou neste dia Coloca mais uma vez o meu coração junto ao Coração do teu Filho Jesus, que se entrega por mim e que vem a mim na Eucaristia.
Que o teu Espírito Santo me faça seu amigo e apóstolo, disponível para a sua missão.
Coloco nas tuas mãos as minhas alegrias e esperanças, os meus trabalhos e sofrimentos, tudo o que sou e tenho, em comunhão com os irmãos e irmãs desta rede mundial de oração.
Com Maria, ofereço-te o meu dia pela missão da Igreja e pela intenção de oração do Papa para este mês.
Exercício
Propomos-te que participes na celebração da Eucaristia com o desejo de encontrar Cristo Ressuscitado Que a vivas como celebração da Ceia do Senhor, onde partilhamos a necessidade e o alimento e comungamos da sua alegria Que escutes as palavras das leituras como se Ele tas dirigisse a ti e as palavras da oração eucarística como se fosse Ele a proferi-las Que vejas os gestos de consagração do pão e do vinho como se fosse Ele a fazê-los, dando lugar, no teu coração, às suas palavras: «De cada vez que fizerdes estes gestos, sabei que Eu, em pessoa, estarei convosco» Que acolhas a comunhão como se fosse Ele a alimentar-te Que recebas a oração e a bênção final como se Ele te enviasse em missão
Até que ponto vivo segundo o estilo de Jesus ou procuro uma vida confortável, em segurança e isenta de combates? A minha vida é eucarística?
Prática do exame temático
Recordemos… O que é o discernimento espiritual?
É a arte de interpretar em que direção nos conduzem os desejos do coração, sem nos deixarmos seduzir por aquilo que nos leva aonde nunca desejaríamos chegar O discernimento é o termo genérico para a prática de tomada de decisões na minha situação de vida concreta, para procurar e encontrar a vontade de Deus
Recordamos seis coisas acerca do discernimento espiritual
1 - No nosso sentir podem atuar três forças distintas: o nosso eu natural, o bom espírito e o mau espírito
2.- De onde procedem e para onde conduzem as moções (sentimentos, pensamentos) do nosso coração.
3.- Cada uma dessas forças nos move na sua própria direção.
4.- Tanto o bom espírito como o mau espírito atuam no nosso sentir natural.
5.- Deus apoia o bom espírito, que nos move para a liberdade. O mau espírito move-nos para a escravidão
6 - Para escolher, é indispensável aprender a distinguir estas forças e a ter liberdade interior
Por outras palavras, o combate espiritual exige de nós discernimento espiritual, que nos levará a tomar posição neste combate Com efeito, não se trata apenas de sentir estas forças, mas de optar, escolher ou decidir por aquelas que nos movem para a vida
Neste combate, é um erro identificar Deus com o bom espírito Deus apoia o bom espírito, mas não se identifica com ele O bom espírito vem através de tudo aquilo que ouvimos, vemos ou experimentamos na nossa vida, e o Senhor apoia-o Deus apoia o bom espírito para que escolhamos a vida e sejamos livres, mas também, diante do mau espírito, atua agudizando a nossa consciência, o nosso sentimento de culpa, para que reajamos. Não é uma luta entre Deus e o mau espírito. O Criador é sempre diferente e não se confunde com a ação do bom espírito frente à ação do mau espírito. O risco de identificarmos o bom espírito com Deus significa cair numa armadilha, pensando que tudo o que nos acontece de bom vem de Deus (como julgar que tudo o que nos acontece de mau vem do diabo) A sabedoria de Santo Inácio e da tradição espiritual consiste, precisamente, em estabelecer uma distância quando se fala do bom ou do mau espírito O bom espírito pode ser apoiado pelo Espírito do Senhor, mas tal não se dá automaticamente Nesta perspetiva sapiencial, a personificação de tais forças ajuda-nos a situar-nos na vida espiritual, na qual não se trata tanto de fazer coisas boas ou más, mas de não sermos enganados por outros
Para aprofundar. Recursos. Anexo um: «Decisões em momentos difíceis».
Para aprofundar Recursos Anexo dois: «Provados na fidelidade»
Releitura: fazer discernimento
Convidamos-te a seguir uma prática simples para te treinares no discernimento Dar-te-emos um «passo-a-passo» para que, colocando-te à escuta do Espírito do Senhor, possas perscrutar o teu coração e descobrir os teus movimentos interiores E, por fim, decidires-te por aquilo que te abre à vida do Senhor
1 Coloca-te na presença do Senhor; com simplicidade, toma consciência de que Ele te acompanha e está contigo neste momento de oração Entra em contacto com o silêncio do teu coração.
2. Reserva um tempo de ação de graças, percorrendo com o teu coração e com a tua mente tudo aquilo que desejas agradecer ao Senhor; entra no detalhe das coisas que desejas agradecer.
3. Toma o pulso da tua vida, interrogando-te sobre quais os lugares e as situações dos acontecimentos do teu presente e sobre aquilo que mais se destaca Pede ao Senhor que te indique a decisão que deves tomar neste tempo Qual o passo que deves dar e a decisão a tomar Poderá ser um passo grande ou pequeno, laboral, familiar, uma viagem, por exemplo Pede que Ele te mostre quais os caminhos que se abrem para ti
4 Pede luz para compreenderes como essa situação que tens entre mãos teve impacto na tua vida e como continua a ter impacto neste momento Que forças se debatem no teu interior? Em teu entender, que forças te atraem para Deus e quais te afastam d’Ele? Em que forças reconheces – ou não – a paz do Senhor?
5 Pede ao Senhor que te mostre as consequências dos caminhos que poderias tomar, como afetaria uma ou outra decisão, num sentido ou no seu contrário. Que consequências teriam para outros, em termos de dores ou de alegrias? Qual seria o bem maior da situação para lá das emoções que hoje sentes e que mais tarde poderás deixar de sentir?
6. O que te fazem sentir os caminhos que poderias tomar? Que emoções despertam? De onde vêm e para onde te impelem essas emoções? Em que caminho estás mais em ligação com a vida, com os irmãos e com o amor que provém do Pai? Em que caminhos se refletem – ou não – em ti as atitudes do Senhor?
7 Toma nota daquilo que fores descobrindo Coloca este assunto nas mãos do Senhor
8. Se te sentes inclinado a tomar decisões nestes momentos, coloca cada decisão nas mãos do Senhor e pede-lhe que te confirme e te diga se é essa a decisão que Ele espera de ti
9 Conclui esta oração agradecendo ao Senhor a sua presença e pedindo-lhe que se faça a sua vontade
Recursos
Anexo um
Decisões em momentos difíceis
É curioso, mas, às vezes, a realidade parece ir contra tudo o que sabemos sobre como tomar decisões boas e saudáveis na vida É verdade, todos concordamos que, para tomar uma decisão boa e saudável, nos devemos aquietar, devemos refletir, confrontar com outros, meditar e rezar Sabemos que, no silêncio do coração onde habita Deus, há uma fonte inesgotável de sabedoria que devemos escutar, porque aí está a verdade Contudo, em certas circunstâncias da nossa vida, não são os momentos de serenidade que nos fazem tomar decisões importantes e profundas, mas as situações-limite, as situações «fortes» que nos fazem estremecer o coração, as situações que sacodem a alma, derrubando até as nossas estruturas ou esquemas de pensamento e compreensão da realidade
Que situações são essas? O fracasso e a morte E embora não sejam a mesma coisa, há fracassos que se vivem como verdadeiras «mortes». Certamente já ouviste relatos sobre pessoas que tomaram decisões muito radicais nas suas vidas depois de terem experimentado um fracasso ou de terem sentido a proximidade da morte. Já ouviste histórias de pessoas que, perante uma situação-limite diante da qual julgavam nada poder fazer, descobriram que a melhor decisão das suas vidas foi fruto desse instante Essas pessoas mudaram por completo a sua visão da vida e, por conseguinte, a sua maneira de viver Será possível que o fracasso e a morte nos ensinem a tomar boas decisões? Precisaremos de tocar o limite do fracasso ou o limiar da morte para compreender o valor da vida?
Nalgumas ocasiões, tomamos decisões ou fazemos escolhas erradas porque não estamos dispostos a mudar interiormente Ficamos parados e impassíveis perante o problema, pensando apenas como levaremos por diante as nossas ideias e pensamentos, sem nos interrogarmos, antes, se haverá outras formas de entender e de enfrentar as situações difíceis Julgamos que a nossa forma de resolver problemas é uma espécie de «bordão» que se aplica a tudo
O fracasso ou a morte levam-nos a explorar novos caminhos de resolução, fazendo saltar os esquemas rígidos de pensamento para nos ligarmos à fonte de sabedoria que nos habita. Quando a vida «aperta» ou quando passamos por momentos difíceis, devemos conectar-nos com a sabedoria interior que reside dentro de nós. Se o fizermos, descobriremos sempre soluções criativas nos momentos difíceis Abre a tua mente e o teu coração ao Senhor que habita em ti!
Anexo dois
Provados na fidelidade
Acontece por vezes as circunstâncias tomarem um rumo inesperado que nos desagrada, desviando-se das nossas expectativas Esta experiência abarca a realidade do mundo que nos rodeia: a guerra, a fome, os refugiados, os migrantes, uma casa comum que sofre e geme pela agressão e pelo descuido tanto de homens como de mulheres. E também os nossos mundos mais próximos, o trabalho, a família e os amigos. As pessoas nem sempre nos satisfazem, nem sempre nos dão aquilo que esperamos. Outras vezes não reconhecem nem valorizam, pura e simplesmente, os esforços que fazemos por elas e pelo seu bem-estar Muitas vezes as circunstâncias obrigam-nos a experimentar o fracasso e a frustração Os projetos caem e não se cumprem Apesar dos nossos esforços, as coisas não saem sempre como esperávamos Podemos então ser invadidos pela zanga, pelo cansaço, pela saturação e o descontentamento Dizem que estes sentimentos são máscaras que a dor adota quando não é aceite como tal Na realidade, essas situações magoam-nos, mas sentimo-nos menos comprometidos declarando o nosso desagrado perante determinada situação do que reconhecendo a mágoa que a mesma nos provoca
Nas situações referidas, acaba por aparecer o mau espírito, dando os seus golpes certeiros para derrubar a vítima Como é que o faz? Com pensamentos de fracasso e impotência: «viste como arruinaste tudo…», «é inútil insistires…», «não serves para isto nem para mais nada», «para de insistir, não vale a pena!», «nunca o conseguirás», «as coisas que dependem de ti fracassam sempre».
Então, como seguir em frente?
A primeira ideia que deveríamos guardar como um tesouro é que o fracasso e a frustração constituem uma parte necessária da vida Quem nos disse que só avançamos na vida por entre acertos e êxitos? Estes são bons, decerto, mas não são exclusivos É preciso sofrer fracassos, equívocos e frustrações, porque também nos configuram e nos ajudam a crescer
Outra ideia que nos poderá ajudar a seguir em frente é que esta situação de fracasso é temporária, não durará para sempre, por mais dolorosa que seja Além disso, não existem apenas fracassos na minha vida, também tem havido e continuará a haver situações bem-sucedidas Reconheceremos então que «outras forças» nos impelem em nós em sentido contrário, sugerindo-nos outras ideias: «isto que estás a viver faz parte da tua vida, não constitui toda a tua vida», «é temporário e passará»,
«aguentarás isto, como já tens aguentado outras coisas», «há aspetos muito bons na tua vida», «tens outras situações em que as coisas estão a correr muito bem», «nada disto que se passa define quem és, mostrando apenas que há um aspeto determinado que deves melhorar, superar ou polir» E assim poderíamos continuar ilustrando os impulsos destes dois grupos de pensamentos suscitados em nós perante as situações referidas A conclusão final é que os devemos sentir e identificar e depois decidir o que fazer com eles Tomar partido Tomar posição no combate Por isso, o fracasso e a deceção não são tão maus como parecem, pois podem converter-se numa fonte de sabedoria interessante Experiências de rutura e desilusão são aquelas que nos fazem deter-nos a pensar, a refletir sobre nós mesmos e sobre os outros, mesmo com o risco de cairmos dentro do nosso ego desiludido
O fracasso convida-nos a duas coisas, pelo menos: primeiro, a reconhecer que aquilo que se passou se deveu, em parte, ao facto de nos termos apoderado da realidade, pretendendo viver segundo a utopia de que somos capazes de controlar aquilo que nos acontece, como se fôssemos super-heróis. É a tendência infantil para exercer o controlo, como se estivéssemos convencidos de que as coisas serão sempre aquilo que imaginamos Segundo, que devemos seguir em frente, e isso custa E que não seremos poupados à dor Para sermos fiéis nesses tempos difíceis, ser-nos-á muito útil uma importante dose de humildade, fazendo-nos reconhecer que não controlamos nada, que não somos super-heróis; pelo contrário, fazemos parte de uma realidade maior juntamente com outros que caminham a par e passo connosco Não somos donos, mas colaboradores, e a realidade não tem por que corresponder aos nossos anseios
Para continuar a caminhar, também nos ajudará muito reconhecer que precisamos de ajuda, que somos frágeis e necessitados Precisamos dos outros e do Senhor, na escola da vida
Por isso é tão importante estar vigilantes nestes tempos de prova, estar atentos para que as forças que nos fecham não nos dominem o coração. A oração suplicante e confiada, no silêncio do coração, ajudar-nos-á a distanciar-nos o suficiente e conferir-nos-á a lucidez suficiente para reconhecermos as decisões que nos abrem à vida, que nos convidam a seguir em frente, a ser fiéis e a continuar sintonizados com o Pai
Em tempos de prova, devemos pedir a graça da perseverança, que não significará sempre resolver os problemas pelas nossas mãos, mas significará muitas vezes continuar a caminhar abertos, confiantes, esperando que o Senhor faça a sua obra com a nossa disponibilidade Em suma, o importante é insistir, recomeçar e seguir em frente, repetindo o ciclo uma e outra vez