Arte em Rede - Irrupções Gráficas da Memória, de Karina das Oliveiras, Pedra Silva e Akuosa Solução

Page 1

1


2


IRRUPÇÕES GRÁFICAS DA MEMÓRIA

3


4


A Petronilha e Sebastião que são nossas sementes do Sertão Central de Quixadá Ao Senhor e A Senhora das Encruzilhadas que vem deixando pistas memoriais pelas Temporalidades Aos Visíveis e Invisíveis que nos dão vontade de continuar a caminhada herdada de quem veio antes. 5


IRRUPÇÕES GRÁFICAS DA MEMÓRIA Autoras: Karina das Oliveiras e Pedra Silva Design gráfica: Akuosa Solução Capa com criação gráfica de Akuosa Solução Roteiro de audiodescrição: Karina das Oliveiras e Pedra Silva Fortaleza, Ceará, Ed. 1. 130 p. 2020. Ebook digital. 6


SUMÁRIO APRESENTAÇÃO, 9

EUFORIAS ANCESTRAIS VIVIDAS PELA CORPA , 12

Movimento 1, 15

Chegança, 15

Os documentos também brotam da carne, 22

Movimento 2, 28

Afinal, o que é a corpa?, 28

Aprendendo com a Casa de Massapê, 33

Movimento 3, 37

Incorporando o Funk, 37

Mapeando Memórias, 46

CARTA - 18 de julho de 1997, 71

REFLORESTAR, 74

Prelúdio: no pingo do sol quente, 75

Paisagens na memória, 76

Quixadá: afloramento rochoso e correspondências para não esquecer, 80

Corpas d’água: rios, caminhos, 86

Sesmaria, moradores, há terra, 94

Uma pedra bem nascida: eugenia, mestiçagem, esquecimento, 108

Cuia, estômago, cura, mel, 120

Folhas e raízes: a vovó fazia assim, 124

7


8


APRESENTAÇÃO

O E-book Irrupções Gráficas da Memória é uma reunião de ensaios das artistas Karina das Oliveiras e Pedra Silva com design gráfico de Akuosa Solução e que se insere nas manutenções das narrativas anticoloniais. O projeto traz como desejo fomentar a livre circulação das informações não hegemônicas no meio digital, de manter a continuidade das nar­ rativas históricas de pessoas racializadas e Lgbtqi+ através da pers­ pectiva ancestral e de acessibilizar materiais digitais artísticos para comu­ nidade com baixa visão e cega. O advento da Internet possibilita difundir histórias, experiências e ima­ gens para grandes públicos simultaneamente. O Ebook se insere nesse contexto com o intuito de fortalecer a inclusão de pessoas cegas e de baixa visão a criações artísticas. Com imagens audiodescritas e design acessível, o Ebook apresenta texturas com as linhas dos cursos dos rios ao fundo das páginas. 9


Por vezes, a historiografia escrita é legitimada por ciências construídas através da matriz eurocêntrica e suas heranças impostas pelo coloniza­ dor. Pensar os campos da memória, da corp-oralidade, da natureza e da arte pelo viés da documentação escrita por corpas desviantes é mais uma estratégia de reorganização e de desatualização da história universal da branquitude. Não somos análogos ao conhecimento dos que se dizem colonizadores, possuímos nossas epistemes ancestrais que se localizam na espiral do espaço-temporal. O projeto reúne ensaios das artistas Pedra Silva que elabora uma dra­ maturgia-performática aproximando educação e arte por meio de quatro Encruzilhadas que costuram na cena arquivos familiares, brotamentos de matérias, ginga, liberdade sexual, temporalidades, baixo ventre, desman­ telo colonial e imaginários ancestrais durante o tempo-espaço espiralar. E por Karina das Oliveiras que constrói uma investigação memorial a partir da oralidade de sua mãe e tece pesquisas históricas na busca das ances­ tralidades nativas no Sertão Central do Ceará. Com o uso de fotografias presente nos álbuns de família e da seleção dos materiais de arquivo pes­ soal, as artistas propõem que o projeto também seja um documento para o futuro. Afirmando-se como espaço de fonte histórica e registro proces­ sual de suas caminhadas e pesquisas.

10


Propomos este material não hegemônico para artistas interessados em práticas anticoloniais, para os cursos de licenciatura em artes e para todes que se interessam e se sintam chamadas para a partilha da memória an­ cestral. Acreditamos na descentralização dos saberes ampliando diálog­ os com as artes contemporâneas, a escrita crítica historiográfica e as per­ formidades corp-orais, cênicas, visuais-sonoras e memoriais. Partindo do pressuposto que as narrativas anticoloniais se manifestam na recon­ strução dos imaginários artísticos, políticos e sociais a partir das corpas racializades e LGBTQI+ os ensaios aqui presentes fomentam estratégias para novos mundos e retomam suas histórias rompendo com o pacto co­ lonial do esquecimento. Este projeto foi contemplado pela convocatória Arte em Rede que se in­ sere dentro de um conjunto de iniciativas que o Governo do Estado do Ceará, a Secretaria da Cultura do Estado, junto à sua Rede de Equipamen­ tos, e o Instituto Dragão do Mar vêm realizando com o objetivo de pro­ mover e movimentar a criação, difusão e economia artística e cultural do Estado.

Com carinho, as autoras Karina das Oliveiras e Pedra Silva.

11


EUFORIAS ANCESTRAIS VIVIDAS PELA CORPA Pedra Silva

12


Movimento 1 Chegança Os documentos também brotam da carne Movimento 2 Afinal, o que é a corpa? Aprendendo com a Casa de Massapê Movimento 3 Incorporando o Funk Mapeando Memórias

Personagens: Encruzilhada 1 Encruzilhada 2 Encruzilhada 3 Encruzilhada 4 13


Esse ensaio dramatúrgico performático acontece em trânsito, possibilitan­ do aproximação entre educação e arte. Há o interesse com a elaboração desta tessitura de permanecer como um rio que se faz constante e fluido. Conflitos e estranhezas farão parte desta imersão. Caminhos e pistas serão colhidas durante o percurso. Quem facilita a leitura, podendo ser ume arte-educadore, encenadore, discente ou alguém que deseja fazer a mediação, irá propor investigações corp-orais, divididas em AJEUM. Eles devem ser encarados como cenas por quem faz as personagens e pelo público, E como uma construção co­ letiva dramatúrgica que interage com o público. Para adentrar a imersão da leitura é indicado um lugar aberto e arejado, como um pátio escolar, uma praça pública, um parque ou um quintal que possua uma árvore grande e sombrosa. As Encruzilhadas 1, 2, 3 e 4 (perso­ nagens) devem ser encenadas por mais de um atuante. Estas personagens não devem ser encaradas como figuras fixas. Há uma escolha gramatical na flexão dos pronomes pessoais das persona­ gens. Por vezes, elas serão conjugadas na primeira pessoa do singular e serão mencionadas também na mesma flexão. Que seja Odara! 14


Movimento 1 Chegança (Quem guia começa a imersão ritualística propondo o AJEUM) A Em círculo, as pessoas que irão participar devem bater palmas para o centro da roda. Quem instrui pode propor um ritmo. As palmas são um chamamento para os Ancestrais que dormem na Terra e para os que ainda andam sobre ela ou até mesmo para os Guias Espirituais. En­ quanto a ação é feita devemos ir lembrando dos nomes que pedimos benção e licença para começar qualquer ato de religamento ancestral. Falem em voz alta várias vezes os nomes lembrados para o centro da roda durante o tempo que batem palmas. Quem repete não esquece!

15


J Quem instrui, deve ter algum instrumento percussivo que possibilite uma marcação rítmica, por exemplo: pandeiro, caixa, atabaque, con­ ga, triângulo, agogô. O movimento de esbordoar palmas que ritualiza o chamamento dos ancestrais deve ir cessando. A cintura passa a ser um novo foco. Dela nasce um movimento circular. Agora, rebolando e ainda em roda, quem instrui, deve dar um coman­ do de investigação espacial. Quem rebola pesquisa nos planos alto, médio e baixo este movimento. Depois deve ser inserido a investi­ gação temporal que implica na velocidade do movimento. Com a região da pélvis aquecida, quem participa, deve sair da roda e experimentar o movimento no ambiente. Após um tempo de investi­ gação livre, quem instrui, dá outro comando aos participantes. Ao pas­ sar por alguém devemos cumprimentar esse alguém com uma um­ bigada, o movimento consiste em bater umbigo com umbigo. Quando friccionamos nossos pontos de força localizado na barriga alimenta­ mos o gesto ancestral de criação. O jogo vai evoluindo quando é dado para o público e para as persona­ gens uma nova circunstância. Elas devem começam a umbigar com mais de uma pessoa. Ao fundo o instrumento rítmico deve continuar marcan­ do a dança. Após um tempo de investigação mediado por quem instrui, o ritual de encontro deve ser finalizado e novamente a construção de uma círculo deve ser feita. 16


(Há um grande caos organizado instaurado na cena. Encruzilhada 1 e En­ cruzilhada 2 conversam no pé de uma grande árvore. Encruzilhada 4 grafa várias encruzilhadas com areia preta e vermelha no chão. Ela não interfere na conversa das amigas. É possível perceber pela atmosfera criada que a Encruzilhada 4 está noutra dimensão. Ele possui uma chave grande no pes­ coço. Debaixo de uma árvore às Entidades costuram palavras e gestos so­ bre arquivos, brotamentos de matérias, ginga, liberdade sexual, temporali­ dades, baixo ventre, desmantelo colonial e imaginários ancestrais. Encruzilhada 3 fica durante todo o Movimento 1 andando em círculos, ou melhor, circulando ao redor da Encruzilhada 1 e 2. Enquanto anda compõe uma gestualidade na variação rítmica da sua caminhada. Expande e Comprime como a Terra circula em torno do Sol, gestos de rotação e translação se presentificam. A Encruzilhada 4 que desenhava encruzas no chão as embaraça deixando-as sem forma. Começa a refazer uma enorme cruz no solo com a areia vermelha e preta. Vai até o centro desta encruzi­ lhada e tira do pescoço a chave. Fala para o público.) Encruzilhada 4: Cheguei e já me faço expandido. Sou o estado de dúvida, a questão a ser percorrida e não decifrada. Se me pedir eu dou, mas só se for do merecimento de sua evolução. Sou o Mensageiro dos Mundos Visíveis e Invisíveis. Posso aproximar e afastar as lacunas das Memórias pois estou entre as Temporalidades. O entre-lugar, o trânsito é o lugar onde habito.

17


O medo que possuem de mim é uma estratégia covarde pra desapro­ ximar a infinitude do Universo da Corpa Ancestral. (Com sarcasmo) O cristianismo tem um tal demônio na sua mitologia mas ele ainda não tinha carne. Daí criminalizaram meu nome, a cor do meu povo e nossa ciência para benefício deles. Me chamaram de demônio, desterritoria­ lizaram minha cosmogonia. Eles sabem que Profano e Sagrado andan­ do juntos implodem o plano purista deles. O corpo cisgenero é um marcador ridículo de naturalidade. (Ri alto) De onde já se viu, só mulher ter xota e homem ter pau? Se o ponto de encontro e de potência acontece naquele que o ditado popular nos aponta de forma bem diretiva: “Quem tem cu, tem medo”. Talvez seja a coisa mais democrática que a humanidade possa ter, o cu. Mas enfim, enfim! Dou benção sim, pra essa sua jornada. É batalha an­ tiga essa, viu! É preciso muito Ebó pra despachar o olhar limitante que a colonialidade criou sobre o povo negre-native. (pausa) Deixe estar que a vida dá volta, camarada! Ah como dá!

18


Ó, te deixo um conselho: A vida é feita de encruzilhadas pois você escolheu não tornar as disforias sua inimiga, o paradoxo passou a fa­ zer parte de sua caminhada quando foi admitido por você que sua existência é complexa. Algumas pessoas estão presas e conformadas com a binaridade do mundo colonial. Essa disputa acirrada entre bem e mal, bonito e feio, masculino e feminino, cultura erudita e cultura popular, arte e artesanato, entre tantas outras combinações ocidental­ izadas, faz parte do plano pedagógico da colonialidade, é uma estraté­ gia de distração. (Encruzilhadas 1, 2 e 3 cantam para a Encruzilhada 4. Depois voltam as ritualidades que executavam como estivessem vivido numa realidade onírica.)

19


“Laroyê Exu, Exu é Mojubá Pedimos licença pra trabalhar pois a Corpa num trabalha mais na senzala Corpa trabalha pra se levantar Pedimos licença pra uma boa gira que a palavra seja tua e seja minha Que o encanto seja poesia e revestido de alegria Dá axé pra nós dançar Dá agô pra nós cantar Abençoai o meu ato de continuar

20


Encruzilhada 4: Que você nunca se aliene! Que teus pés e teus cami­ nhos não deem nó (toca os pés), que tua língua seja ponto de começo e despedida (toca na boca), que tu esteja enfeitiçada pelas encruzilha­ das (toca na cabeça) ! Boa sorte, filhe! (toca no chão) (Encruzilhada 4 nunca para de trabalhar, quem vigia a porteira tem como fundamento a atenção de quem entra e quem sai. Ela volta pra sua di­ mensão particular e começa a trazer vagarosamente para a cena objetos, como: alguidares de barro de diferentes formas cheios de água, bacias de alumínio de tamanhos variados, vasilhames de madeira com argi­ las em pó de cores diferentes. Vai montando aos poucos o ambiente do Movimento 2. Criando outra atmosfera cenográfica que instaura os pre­ parativos para a brincadeira no terreiro que estava por vir. A Encruzilhada 4 finalizará a montagem do cenário ao fim do Movimento 1.)

21


Os documentos também brotam da carne Encruzilhada 1: (Olhando para o público) Quando os Documentos Ofi­ ciais, produzidos pela Historiografia Única, são criados é como se as in­ formações ali contidas fossem congeladas no Tempo e quisessem para­ lisar também a vida de quem é registrada. Não acompanhando a fluidez que nossas Corpas possuem. O Documento Oficial é usado como marco zero, é a identificação genéri­ ca do indivíduo diante do Estado, é o olhar universal mapeado pela lógica linear. Estes documentos são criados pela língua do colono que insiste em querer enclausurar as múltiplas existências. Devemos ques­ tionar a veracidade desses arquivos. Não levanto aqui o desdém na elaboração de documentos ou da historiografia mas a atenção de como e por quem estes arquivos são construídos e por qual cosmovisão eles estão aportados. Por exemplo, é algo natural o forjamento de documentos pela comuni­ dade afro-diaspórica. Já que a Corpa dentro do processo transatlântico torna-se também um lugar de documento, pois na escravização força­ da o único território que acompanhava os escravizados era eu, a Corpa Ancestral, e os saberes que em mim foram semeados. Assim o ponto de referência para criação de arquivos torna-se móvel. O ponto de elabo­ ração opera pela encruzilhada dando dinamismo na Tradição e nas Tem­ poralidades, atualizando a cada ação uma memória que volta mas não re­ torna para o mesmo lugar, pois estamos falando de uma Cultura Espiralar. 22


(A Encruzilhada 2 pega um pífano que estava guardado no seu bornó. Começa a tocá-lo enquanto a Encruzilhada 1 levanta-se pegando a espada que carrega na cintura. Ao fundo escuta-se gradativamente sons de caixas, outros pífanos e triângulos que vão colorindo o ambiente com a musicali­ dade de um cortejo de Reisado. A Encruzilhada 1 inicia imagens de defesa e ataque enquanto fala o texto. Ao fim desta célula cênica a música deve estar bem alta e a Encruzilhada 1 deve também está no ápice de sua com­ posição de partituras a partir da dinâmica corporal da personagem Mateus. A Encruzilhada 4 continua a montar o ambiente do Movimento 2. A Encru­ zilhada 3 permanece a circular a Encruzilhada 1 e 2 mas agora foi acres­ centada na sua partitura o ato de rebolar enquanto anda.) Encruzilhada 1: Tenhamos como exemplo as festividades populares nas­ cidas das alianças de aquilombamentos entre diaspóriques e natives nos séculos XVII e XVIII nas Terras de Pindorama. Estes acordos coexistem até hoje e foram firmados antes do nosso nascimento. São Ritualidades Sagradas. São a elaboração de mundos. As Manifestações Populares são ebulições racializadas. Existe uma personagem bem importante no Reisado, chama-se Mateus. Ele e sua esposa, Catirina, são escravizados que cuidam de uma fazen­ da. Sua mulher está grávida e possui um desejo. Comer língua de Boi. A epopeia de Mateus começa na procura desta língua. Introduzo como essa Manifestação Popular começa para exemplificar como penso que a Corp-Oralidade se apresenta, sendo esta, um dos processos de documen­ tação e tecnologia do povo negre-native. 23


Quando um brincante de Reisado manifesta a personagem Mateus ele não está no ato da cena apenas no tempo presente. Atualiza neste mesmo Tempo gestualidades e cantos realizadas pelo brincante que fazia o Mateus, anteriormente, sem perder a alteridade criativa nessa construção. E repassa naquele mesmo momento para o seu sucessor, como um filhe ou um netu, de que forma um Mateus daquela região brinca na roda. A festa passa a ser o evento que possibilita o desman­ telo do Tempo Linear e o lugar da transmissão dos saberes. Acontece uma repetição sem a imitação. Pois cada brincante apresenta o seu Mateus de uma forma, cada território grafa características nesta personagem. Assim é a Cultura Espiralar e a Tecnologia Ancestral da Corp-Oralidade, nela se aprende fazendo, experienciando. A Corp-Ora­ lidade é realizada no gerúndio. É feita com palavra e gesto, é encantada e tem poder de (mu)dança. A Cultura Oral se organiza como um tabuleiro, possui peças de barro moldável, pois são retalhos da memória. Costurando um a um é pos­ sível chegar numa integrabilidade desta malha memorial. Haverá fen­ das e suturas nesta costura. Às vezes faltará tecido. Será necessário forjar alguns pedaços e inventar alguns pontos. Assim, nasce a perso­ nagem Mateus presente nos Reisados sem perder de vista a subjetivi­ dade desta figura. Assim, acontece a transmissão de nossas ciências e tecnologias no trânsito entre mais Novos e os mais Velhos.

24


(Finalizada a célula cênica da Encruzilhada 1, ela retorna para o lugar onde estava sentada. Encruzilhada 2 guarda o seu pífano e levanta de onde esta­ va sentada e vai até o público como um ato de confronto.) Encruzilhada 2: Os Documentos Oficiais não dão contam de nossas existências insurgentes. Pai Francisco, já foi Teca e hoje é Teco mas seu Registro Geral só aponta o nome dado por seus pais, Francisco José Barbosa da Silva. O mesmo acontece com minhas tias Pretinha e Chica e com minha mãe Vera. Esses são seus nomes batizados lá pelas Sementes do Sertão-Central. No “Registro Oficial” Pretinha é Francisca Maria de Oli­ veira da Silva, Chica é Francica Veleda Oliveira de Almeida e Vera é Rita Maria de Oliveira da Silva. (Com sarcasmo) Imaginem, eu me cha­ mo Pedra Preciosa de Oliveira da Silva, sou não-binárie racializade mas a Certidão de Nascimento diz que me chamo Pedro Henrique Oliveira da Silva, sou parda e do sexo masculino. (pausa) Ou meu pai que nasceu no mesmo dia e mês que eu, 23 de agosto, e foi registrado no dia 29 do mesmo mês, ou minha mãe que brotou no Ayiê no dia 01 de outubro e seu registro marca seu início de vida no dia 11 de setembro, data de nascimento de sua irmã Pretinha.

25


(Enquanto fala deve fazer o ato de cavar o umbigo, como se quisesse des­ cobrir algo.) Será que de fato esses nomes são nossos já que a língua fala­ da é a do colono? (...) Será que esses sobrenomes que carrego é nativo ou diaspórico ou colonial? (...) Será que sou negre já que minha ancestralidade é native? (...) Será que cai na armadilha colonial de pensar a racialização das corpas pelo viés binário? Será que Exu é o demônio judáico-cristão? Será que existe um Tempo ou Temporalidades? (...) Eu fico pensando em coisas como: se 13 de maio é uma data marco da libertação de um povo escravizado?, se os povos nativos cearenses são apenas 14 etnias?, se minha memória não foi editada pela colonialidade?, se eu sou a única não­ binárie de minha família? Vivo num estado de incertezas, de caminhos aber­ tos e possibilidades curvilíneas. As vezes isso cansa, as vezes isso é a saída. (Finaliza sua partitura e retorna ao lugar onde estava sentada).

26


Encruzilhada 1: A colonialidade não acompanha a constante trans­ mutação de nossa tecnologia ancestral, a Corp-Oralidade. Este me­ canismo complexo desmantela a boca única, ou melhor, rasga o pa­ pel oficial que distorce os discursos polifônicos. Se meus parentes me cantam sobre suas memórias é porque conseguem respirar nas esqui­ nas da máquina colonial, me dando brechas por onde caminhar com nossas histórias, indo nas curvas não-oficiais dos cadernos governa­ mentais. Encruzilhada 2: Também sinto a necessidade de operar nesta outra lógica linear como estratégia, como negociação atenta com a cultura ocidental. Já que ela e sua literatura extensa coberta de racismos, mi­ soginias e autoritarismos durante muito Tempo ditou os imaginários e narrativas sobre corpas desviantes e racializadas. Ter ágrafos comigo é lugar de herança. Desenhar com a corpa no espaço-temporal é continuidade. É direito meu escrever sobre minha comunidade ancestral, é compromisso com os Invisíveis emancipar a imagem grotesca, criminosa e caricatural forçada sobre a corpa negre-native e é pela encruzilhada que desejo criar esses discursos sem necessariamente ter uma linguagem fixa para manifestar-me.

27


Movimento 2 Afinal, o que é a corpa? (O ambiente está montado. Enquanto o Movimento 1 acontecia a Encru­ zilhada 4 curava o ritual que estava por vir. Bacias de alumínio, alguidares de barro e argilas de diferentes cores estão no chão a frente da Encruzilha­ da 1 e 2 e dentro do círculo imaginário feito pelos gestos da Encruzilhada 3. É estabelecido um ritual para iniciar a cena. Ambas as Encruzilhadas 1 e 2 levantam de onde estavam sentadas e começam um jogo entre borrar a corpa de barro e lavá-la com água. A Encruzilhada 4 acende um cachimbo e se senta onde a Encruzilhada 1 e 2 estava repousando.)

28


Encruzilhada 2: Se hoje meu corpo é Corpa,

Se tranço a ancestralidade a minha bixialidade preciosa

É porque sei das andanças que essa barro caminhou.

Moldada, fornalha, sopro de reencarnação no agora.

Andanças, danças, molejo, gingado, criança-viado,

Brotamento de re-volta.

Não sei se sei,

Mas sei dos sussurros.

Outrora A Velha Senhora Sapa apareceu em meus sonhos,

Muitos olhos, pouca fala,

Mãos de artesã.

Não há como uma matéria vinda de suas mãos

Está grafada apenas pela colonialidade.

Ela contesta, ela regrafa, ela protege,

Ensina e direciona o olhar para a trans-mutação.

Se essa Corpa é barro,

Moldarei eu, da forma que bem achar melhor.

O sopro já foi me dado

Basta continuar no seu processo de

Remanutenção.

29


Pois na Hora-Grande,

Grande será a minha Dança

E com ela virarei cri-Onça

Me encantando no Sertão Central de Quixadá.

Quando resolvi nascer de novo tive que abandonar algumas alianças.

Outras já foram deixadas para trás a algum tempo, como a promessa

heterossexual que meus pais firmaram antes do meu nascimento.

Deixar de lado pedaços seus gera consequências e algumas disforias. Tive que deixar o corpo cisgênero morrer mas fiquei atenta para a sua transmutação. Pois devia deixá-lo apodrecer, como me indicou a Velha Sapa Lamacenta. Podre ele desmanchava-se em pó, bastava um pou­ co de água para iniciar a modelagem de minha Corpa. Encruzilhada 1: (Com alegria) Quero falar do meu nascimento, da minha reivindicação enquanto Corpa. Me chamo assim por que an­ tes de qualquer coisa somos uma existência em trânsito que não cabe no corpo cisgênero. E por sermos muitas louvamos a ancestralidade que herdamos de nossos Encantados. Nossa corpa é território, morada dos que já foram deitar em solo sagrado. Construída com barro mole e água, nossa Corpa é uma Casa de Massapê. Falamos de pistas, de rastros deixados em nossa Corpa, como um ter­ ritório semeado. Basta olhar para o formato de nossos olhos, de nossas mãos e pés, da forma que dançamos, do jeito que coreografamos 30


as palavras, do modo que articularmos os rituais. Pistas deixadas no preparo do plantio de algodão, do feijão, do milho, do jerimum, da batata doce e da macaxeira. Rastros encontrados nas histórias contadas nas festas de família e na forma de ficar acocorada baforando o ca­ chimbo. (Encruzilhada 4 levanta-se de onde estava sentada e começa a retirar do ambiente os utensílios ritualísticos que trouxe para a cena. Aos pou­ cos o lugar vai se transformando. A paisagem vai se modelando fluida­ mente.) Vultos presentificados pelo barro de Nanã. É ela que abençoa a per­ formance de gênero das corpas racializadas nos dando o livre arbítrio de modelar a existência. Se fui expulsa do plano de humanidade, Yayá me dá permissão para adentrar no seu reino. Já que existências como as nossas não se encerram nas questões binárias. Somos coloca­ das como perigosas pelo cis-tema colonial. Viver nas encruzilhadas é questão de coragem e de disciplina. A Corpa abandona o corpo mecânico implantado pelo sistema cap­ italista. Quebra o falo patriarcal que existe na individualidade compe­ titiva. Ela se reivindica como um organismo vivo que faz parte de um ecossistema denso e complexo. A Corpa não é um maquinário rígido e modernista, é uma parte da natureza, é fragmentada por entender que o Cosmo e ela são ancestrais infinitos. 31


Antes de qualquer coisa, a Corpa manifesta-se em muitas camadas. É ancestral e racializada pois Nanã Buruku (Yayá) transmuta o corpo cisgênero morto em Corpa viva transitória, territorializando as Tem­ poralidades e Memórias da comunidade no qual o individuo brotou. É cósmica e espiritual por entender que o Ori é um satélite de comu­ nicação com o mundo Visível e Invisível. A Corpa é uma tentativa de desmantelo. É aquilo que deseja ser modelado por quem cria e antes de qualquer coisa manifesta-se em muitas camadas. (Ao fim do rito, En­ cruzilhada 1 e 2 pegam, cada qual, uma zabumba e um triângulo para adentrarem a cena que segue. A Encruzilhada 3 que andava ao redor das amigas que conversavam vai para o centro do espaço cênico e começa a contar com a sua corpa a história narrada por Encruzilhada 1 e 2. Encruzilhada 4 após ter tirado todos os objetos cênicos da cena “Afinal, o que é a Corpa?” volta para onde estava sentada e acende seu cachimbo novamente.)

32


Aprendendo com a Casa de Massapê (Com zabumba e triângulo em mãos, Encruzilhada 1 e 2, iniciam a cena tocan­ do um “Forró Pé de Serra”. Encruzilhada 3 está no centro da encenação.) Encruzilhada 2: Sou semente da banda mais quente, Quente na boca, quente no pé. O forró é meu ancestral, Toca a zabumba pra tu vê a Madrinha Pretinha Girando na ponta do pé. Chega de um tudo! Roçado de perna com perna, Requebrada de Moça-Velha, Espirais brilhando entre o céu e as estrelas do Custódio, Poesia cantada no pé da Serra e no ouvido de minhas mais Velhas. Dançar É um movimento natural em minha família. Minha corpa Guarda pelo movimento da memória As pernas rápidas de meu pai Teco Ao brincar no terreiro da família Com minha tia Francisca. Ela é a dançante aqui do alto, Madrinha Pretinha. 33


Encruzilhada 1: Cantar dançando,

Dançar narrando

É um gesto conhecido dus diaspóriques, dus ameríndius.

Dançar na roda,

“olha a cobra, é mentira”,

Dançar à dois, dançar a três, dançar consigo mesma,

Gozar pelo êxtase do toque.

A dança é gesto que se remarca no agora

E nOs Tempos de outrora,

E uma imagem em movimento que transpassa a espiral temporal.

Falo de danças que louvam o chão,

O chão de suas corpas,

O chão de onde brotaram,

O chão de suas memórias.

Essa dança é composta pela reorganização das narrativas coloniais, e

isso assusta o cis-tema de captura. Se essa dança costura as temporal­

idades da memória com intenção de desmantelar a narrativa colonial,

ela trás, como um big-bang, rastros, vultos que assombra o sono das

sinhazinhas, dos doutorzinhos arrumados.

34


Encruzilhada 2: Eu aprendi a dançar antes mesmo de validarem mi­

nha dança no espaço acadêmico.

Dançar

É burlar pelas gingas ancestrais os traumas do plano colonial.

Eu danço correndo pelos becos da minha favela

Antes que os cana me pegue com o bagulho na mão.

Minha bike dança,

Sendo ela extensão da minha Corpa,

Quando velozmente corro nessa cidade que a cada sinal vermelho,

Vermelho eles também querem me sangrar.

Danço no Cosmo Maior

Ao sentir as vibrações na corrente durante a Gira,

É minha corpa-espiritual acasalando com meus Guias.

Dança o meu cu e toda a cintura pélvica e escapular liberando as

repressões somatizadas nos meus chakras.

Aprendi a gingar a Corpa

Vibrando com es vetin lá do Genibaú

Mandando os passin da Swingueira.

35


Aprendi a vibrar

A sensualidade de minha Corpa com minhas irmãs-primas.

Dançar pra nós é um ato de experiência,

Não se aprende falando, se aprende fazendo.

Isso é traço de nossa Cosmogonia do Chão.

Pra se dançar com auto-confiança na ativação da ancestralidade é

preciso estar de bonde, físico ou metafísico. O bonde não te escula­

cha, o bonde é o aquilombamento da favela, sendo a favela, o próprio

Quilombo.

(Encruzilha 1 e 2 guardam seus instrumentos. A última imagem corpo­ ral que a Encruzilhada 3 manifesta da cena anterior é a posição base do funk. Pernas abertas, joelhos dobrados e o peito apontado para o chão. Ela começa a investigar os movimentos de rebolar e tremer focado na cintura pélvica e escapular enquanto canta o texto.)

36


Movimento 3 Incorporando o Funk Encruzilhada 3: (som de funk pontinho vai ambientando o lugar) No meio do baile,

Calor tá rolando.

Bebida na mão,

Suor tá descendo.

Mó multidão!

A gente embrazada,

Uma galera gargalha.

Do nado, uma roda se abre o povo começa a bater palmas.

Uma mona chega no meio da roda.

Ela mete dança até que outra pessoa pede espaço pra também

poder dançar.

Pode prestar atenção, quem dança no meio da roda, incorpora o mo­

vimento da desordem ativada pelo cinturão de força. Nosso globo se­

xual. (Aponta para o umbigo) Se o funk é um convite a consciência am ­ pliada do calor interno, convido a quem esteja disposta a Incorporar o

Desmantelo proporcionado pelo o frivião favelado.

(Quem instruí deve dar o comando acordado entre as participantes para a cena começar.) 37


E Em dupla, as participantes devem se dividir no espaço. O jogo concen­ tra-se nas cintura pélvica e escapular das performers. Elas devem bater alternadamente estas duas regiões da Corpa. Pélvis com pélvis, pélvis com escápula, escápula com pélvis, escápula com escápula, varian­ do a combinação de acordo com o desejo de quem participa. Ao co­ mando de quem instrui as participantes devem mudar de parceire. A Batidinha é um jogo de confiança entre us funkeirus, é uma descon­ tração condensada. É importante que no fundo da cena tenha a batida de um funk pontinho para dar base a quem manifesta-se. U Ainda em dupla e com o funk ao fundo, empurre as Corpas uma contra outra. As cabeças devem ficar juntas e os braços abraçados, o quadril estará inclinado para trás, longe da parte superior e os joelhos dobra­ dos. Se estabelece nesta gestualidade um jogo de tensão de vetores. Vibre a cintura pélvica entre velocidades rápidas e vagarosas. Por hora entre em harmonia com sua parceira, por outra experienciam a desor­ dem vibratória. Ao comando de quem instrui mudem de companheire. O jogo evolui quando as duplas começam a ser quimeras, é admitido a presença de um terceiro. Mais de uma corpa vibrando juntes. M Agora individualmente cada participante deve investigar focado na cintura escapular o ato de vibrar, rebolar, tremer, quicar e jogar. Vari­ 38


ando entre velocidade e espaço. Depois deve ser acrescentado a cin­ tura pélvica nesta investigação. Quando todes estiverem passado por todas as etapas é hora de Incor­ porar o Funk. Quem participa deve misturar os exercícios dos E, U e M. indo a um pico de explosão. O exercício finaliza quando a Encruzilha­ da 3 começa o seu texto. (A Encruzilhada 4 continua a cachimbar sentada. No centro do espaço cênico Encruzilhada 3 faz uma conversa em trânsito. Ora, fala para o públi­ co. Ora, fala para si mesma.) Encruzilhada 3: E se tem uma coisa que gente branca tem medo é de gente escura reunida, e digo mais, gente escura reunida apontan­ do pau e xota, xota e cu pra qualquer lugar que quiser, colocando no mundo sua poesia erótica pra girar. Cê já viu o medo estampado na cara da playboyzada quando nós es­ tamos cantando o que queremos?, onde botar?, com que velocidade?, que somos safadas, piranhas e que se quiser cair pra cima só vai che­ gar com o nosso consentimento? As epistemes de cunho eurocêntricas e ocidentalizadas se põem falo­ centricamente de pé. Se recusam a baixar a cabeça para chão. Não há Corpa Ancestral que não respeite a sua mais Velha. Se curvar a quem 39


veio antes é se curvar para si mesma já que a ancestralidade é movi­ mento que se nutre do encontro temporal. Eu me curvo A Terra pois como diz minha mãe Rita “Eu nem sei se ela há de me cumer”. Dese­ jo e rogo que sim, que me decomponha em nutrientes bons para memória gestual de meu chão, de minha gente. Nossa gente escura e favelada não é análoga aos conhecimentos do povo brancu, não somos o outro, a versão dupla de um lado esclare­ cido. Temos nossos olhos virados para dentro, tecnologias, saberes e ciências que se fazem nascente em rios diaspóricos e na encruzilhada com a Terra Pindorama. O funk é uma performance de rebeldia e des­ cumprimento cívico, é uma metodologia multilingue que desmantela as narrativas hegemônicas, uma filosofia corporal que desconstrói a si­ metria unilateral da percepção anatômica. Encruzilhada 1: A Performidade do Funk é uma percepção aguçada de como a natureza e seus elementais se desenham em curvas. Quan­ do danço, dançamos apontando nossas Corpas para os sete caminhos da encruzilhada bantu como se de alguma forma pudéssemos pelo es­ tado de profanação e desconcerto da métrica vigente reencontrar o calor de nossas memórias fragmentadas. Cabeça prum lado, Ombrinho pro outro, O sexo pra baixo, Joelhos pra frente, 40


O umbigo colado no chão, Os pés trançados na gente, A boca bifurcando a poesia. (Encruzilhada 3 ginga enquanto fala o texto, ao fundo uma trilha remixa e samplea sons afro-diaspóricos e nativos cearenses. A Encruzilhada 4 per­ manece sentada fumando seu cachimbo.) Encruzilhada 3: A Pedagogia do Funk é colocada hoje pelo cis-tema colonial na criminalidade como ontem a Capoeira, o Jongo, o Samba de Roda, o Tambor de Crioula e tantas outras Pedagogias Negres-Na­ tives foram perseguidas pelo simples medo do motim. A branquitude vive num estado de eterna suspeita, pois sabe que chegou rouban­ do. E como estratégia de manipulação e baixa intelectualidade cos­ mogônica transfere pelo valor da binaridade (bem-mal, feio-bonito, rico-pobre, sujo-limpo, vulgar-puro) as suas sombras para a população originária e negre. O racismo é uma fantasia de superioridade criada pela população branca. (A Encruzilhada 1 começa a fazer várias cruzes de terra com areia preta e vermelha.) Encruzilhada 2: Us Brancus precisam de contorno, precisam aprender a viver na escuridão, precisam entender que é de olhos fechados que se vê o mundo onírico, precisam saber que às vezes saber demais é veneno, ou não, talvez se soubessem roubariam tudo de novo, e de novo, e de novo. 41


Encruzilhada 3: (A Encruzilhada 3 senta-se no lugar onde a Encruzil­ hada 1 estava sentada no começo do espetáculo.) Pois se estamos na manutenção de nossos saberes eles também estão. A Eugenia Social permanece a ser atualizada como movimento pedagógico de colo­ nização. Encruzilhada 1: Ter medo de uma Corpa negre-native que manifesta sua realidade favelada em denúncia é ter culpa no cartório. Estar re­ ceosa de uma cultura que trans-muta sua subalternidade forçada e seu isolamento geográfico em poesia erótica, em atrevimento sexual na ginga aquilombada é também ter culpa no cartório. O medo vem pois coloca em cheque a universalidade epistêmica da branquitude, o modo genérico de sentir o mundo com grafias cronológicas lineares. Encruzilhada 2: (A Encruzilhada 2 começa a fazer círculos em torno de quem está sentado) Rebolar é ter na cintura a espiral temporal que re­ organiza o fogo do auto-cuidado. Quando quicamos quebramos nesse exato momento a vergonha implantada, o pudor judaico-cristão forçado no processo de colonização. Não há boca linear que sustente uma corp-oralidade explosiva, intuitiva e raqueadora. Dançar voltado ao chão, para os nossos é reencontrar o que a coloni­ alidade quis deixar no esquecimento com seu plano pedagógico de dominação. Pois dançar é sinônimo de oração para o povo negre-na­ tive. Se canta para afastar o mal, se dança para aproximar a cura. E que assim se faça o círculo bantu que garante a gira de sete caminhos. 42


Profanar e cultuar não são antônimos, nem inimigos, são parte da mesma célula molecular do movimento. (A Encruzilhada 4 permanece sentada onde a Encruzilhada 2 repousava no começo do espetáculo.) Encruzilhada 4: Se o começo é fim e o fim é meio. (Todas as perso­ nagens param e olham para o público.) Devemos desconfiar de quem acha que descobriu a roda! (As Temporalidades são espiralares e assim as personagens também se manifestam. A imagem inicial do espetáculo é remontada com as persona­ gens ganhando outras funções.)

Fim

43


Inspirações para a Tessitura álbuns e músicas: Música de Elza Soares Exú nas Escolas com participação especial de Edgar. Deus é Mulher é o 33°álbum da artista que foi lançado em 2018. https://www.youtube.com/watch?v=NmDsmHtOgyw Álbum Gira do grupo Metá Metá que foi criado para ser trilha sonora do espetáculo do Grupo Corpo, 2017 https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_kvpUzO6rjKJ-rHVvfbnSgSHAr-noJRuAE Bandida é o álbum de estreia da cantora brasileira Mc Carol. Foi lançado em 2016 pelo selo Heavy Baile Records. https://www.youtube.com/playlist?list=PLT6ZdiXs8yMEahkG0aEUXFiB3ibL68daJ 9/11 é um álbum de hip-hop/rap da cantora Monna Brutal lançado em 2018. https://www.youtube.com/watch?v=aeNT6tDSYfA Pajubá é o álbum de estreia da cantora, compositora e atriz Lina Pereira conhecida como Linn da Quebrada. Foi lançado em 2017 de forma independente e possui pro­ dução da DJ BadSista. https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_ktyKUW-snSphkBqmMIQc5bVZRATdXdwdo Podcast Ritmo doido cria - 170BPM de Iasmin Turbininha 012 que é a primeira DJ mu­ lher do funk carioca nascida no bairro da Mangueira, 2019 https://www.youtube.com/watch?v=O82YCV9Gu08 Vida-código é um álbum de Tiganá Santana, cantor e compositor baiano, lançado en­ tre 2019 e 2020 após 10 anos da gravação de seu último álbum, Maçalê. https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_mMJz3PIiB_78B1r3hEmJPTyLB0wqHEjOY 44


livros: Pedagogia das Encruzilhadas de Luiz Rufino, 2019.

A Cena em Sombras de Leda Maria Martins, 1995.

Afrografias da Memória de Leda Maria Martins,1997.

Gule Wukule: ancestralidades & memórias de Tsumbe Maria Mussundza, 2018.

A História do Negro no Teatro Brasileiro de Joel Rufino dos Santos, 2014.

Dramaturgia Negra, organizado por Eugênio Lima e Julio Ludemir, 2018.

Quando encontro vocês: macumbas de travesti,

feitiços de bixa de Castiel Vitorino Brasileiro, 2019.

Memórias de Plantação: episódios de racismo cotidianos de Grada Kilombo, 2008.

45


MAPEANDO

MEMÓRIAS

46


47


48


49


50


51


52


53


54


55


56


57


58


59


60


61


62


63


64


65


66


67


68


69



CARTA

18 de julho de 1997


72


73


REFLORESTAR

Karina das Oliveiras


Prelúdio: no pingo do sol quente A estrela solar sol carrega os sons SOL. O que se banha de sol cresce quente. É através do transporte da energia em raios com múltiplas di­ reções que a matéria se expande. O pingo do sol quente é expressão conhecida na boca cearense. É a marcação temporal do sol em torno do meio dia e da intensidade de temperatura a partir da incidência de luz e calor. Perceber os tempos, as sensações e as estações através da cor do sol impressa no chão são sabedorias muito antigas. Essa energia lumino­ sa pode lamber a pele de sal e fazer arder o rachar do pé no fogo do chão. Quando os pés amaciam a terra, a pele porosa sente a textura, terra com pedrinha, terra de areia, de barro, terra seca, molhada, terra mangue, ter­ ra aberta, fechada, terra sem invasão, sem extravios, sem queimadas, sem garimpo, terras não roubadas. Estamos em fortes movimentos de tocar o chão, de retomar a terra-corpa em ação e reação, impulso e pulso, en­ raizamento e voo. Vocês já observaram o processo de uma semente até o seu florescimento? O nascimento da vida vegetal é como um trabalho de pesquisa processual que une crescimento vital e pensamento criativo em artes da vida.


Paisagens na memória: As paisagens são registros dos tempos e espaços expressos através das matérias. Podem ser compostas por ambientes naturais e criações artifici­ ais. As memórias desenham paisagens em nosso ser, no dentro, no âma­ go. Há muitas maneiras de compreender as paisagens e as suas diversas perspectivas e significados. Ao longo do texto entendemos a paisagem como a elaboração de uma imagem estática que ganha movimento a par­ tir do encontro. Em outras palavras, trata-se da paisagem como suporte de registro histórico e estímulo sensorial da imaginação e da memória. Podemos trazer nas lembranças sensações da infância. Algumas remon­ tam com detalhamento circunstâncias vividas, outras trazem os cheiros como estímulos e outras evocam cenários distantes. O toque da mão reconhece, o som da voz vibra e as paisagens seguem em constantes movimentos dentro de nós. Hoje a minha criança traz histórias que ela ama contar e remontar. São as presenças no sertão de Quixadá e os saberes ancestrais da minha linhagem materna.

76


Recontar é imaginar, criar fatos e elaborar mundos. Os exercícios imagi­ nativos transitam entre ideias de verdades, fogo dos questionamentos e poesia das invenções. A paisagem de hoje se desenha nas cores e mo­ vimentos através da vibração sonora transmitida pela voz de minha mãe Francisca Maria, conhecida como Pretinha das Oliveiras, filha natural do Quixadá. Uma grande historiadora da vida e uma radiante contadora de histórias. É por meio de sua oralidade como fonte histórica que investiga­ mos as ancestralidades vivas e seus processos de reconhecimento. Você já pensou em quem veio antes de ti? Ou qual o suco predileto de sua ta­ taravó? Ou as cores das flores que ela percebia no mundo da sua época?. Vestígios, indícios, fatos e matérias atravessam os tempos e, às vezes, sem nos darmos conta ressurgem, ou não. A dança da fala de minha mãe nos leva para tempos não tão distantes. Generosa e respeitável, como de cos­ tume, ela trouxe suas memórias lapidadas entre as pedras e as águas. É dela a frase “Filha, tudo que plantar na pedra dá”, fazendo uma alusão ao terreno pedregoso e cristalino do sertão de Quixadá onde viveu, cresceu e teve como sustento a agricultura. Pela guiança de minha mãe adentramos a camada da memória de Petro­ nilha minha avó que já se encantou. Eu tive a sorte de conviver com ela durante minha adolescência. Doçura, garra e amor são sentimentos que chegavam constantemente quando estava em sua presença. Mas uma dúvida seguia a me rondar: o que se sabia sobre sua existência? 77


Escolhi partilhar essas histórias que são pontos de encontro e conexões para tantas outras pessoas que estão no processo de buscar suas raízes com respeito, atenção e cuidado. Escolhi registrar e deixar presentifica­ da no agora os acessos ao futuro no momento que investigamos os pas­ sados. Escolhi historicizar e ser personagem e conforme adentramos as paisagens no texto ora serei coletiva, ora serei individual. Apresento con­ fluências de pesquisas que estão em andamento e tem como propósito principal resgatar a ascendência nativa em minha família materna e pa­ terna; e investigar como o roubo colonial nos impos aos esquecimentos e as perdas de informações sobre si. No momento que buscamos saber quem somos promovemos irrupções profundas nas histórias pessoais e nas Histórias Oficiais de Terror no Bra­ sil Pós-Invasão. Cada pesquisa histórica sobre si é um novo Brasil que surge diante da pluralidade e diversidade das identidades. Cada pesqui­ sa histórica constrói novas historiografias e memoriais. Cada pesquisa histórica de pessoais racializadas e nordestinas rompe com o pacto da colonialidade. Portanto, caminharemos por algumas paisagens da família de minha mãe entrelaçadas com os contextos e realidades que as circun­ dam. Apresentando, como o voo rasante de uma pássara, algumas infor­ mações históricas que nos trazem pistas, rastros e fatos.

78


Minha mãe Pretinha e meu pai Raimundo Nonato costumavam fotografar os caminhos quando estavam indo ou voltando a Quixadá. Essas são fotografias analógicas digitalizadas com ângulos diferentes da paisagem em distintos tempos. 79


Quixadá: afloramento rochoso e correspondências para não esquecer O que me encanta pensar é que os antepassados caminharam por rotas semelhantes às que hoje realizamos. Conforta e me encanta pensar que uma rocha não se parte de um dia para o outro, que um rio não muda de curso de uma hora para outra e que uma serra não se desloca entre meses. Quixadá está situada no Sertão Central do Ceará aproximadamente cento e sessenta quilômetros da capital Fortaleza. Localizada numa região es­ tratégica, interliga através das estradas o norte ao sul do estado. Trata-se de um grande ponto de encontro, cruzamentos e encruzilhadas. Uma região do semi-árido nordestino com fauna e flora da caatinga resistindo às intempéries humanas e naturais. Lugar de mistérios e de lutas, reple­ to de pedras com grandes dimensões e aspectos figurativos. Essas tantas pedras minhas antepassadas já as conheciam. Sua configuração territorial se divide entre uma sede e doze municípi­ os que são Custódio, Cipó dos Anjos, Califórnia, Daniel de Queiroz, Dom Maurício, Juá, Juatama, Riacho Verde, São Bernardo, São João dos Quei­ rozes, Tapuiará e Várzea da Onça. Faz limite com os municípios de Ba­ nabuiú, Choró, Ibaretama, Ibicuitinga, Itapiúna, Morada Nova e Quixera­ mobim. Os meses entre dezembro e março fazem parte do período chuvo­ so que garantem ou não um bom inverno.


Os monumentos de formação rochosa, como Inselbergs e Monólitos trazem uma radiante beleza cênica. Algumas outras pedras são a dos Macacos, do ET, das Bruxas, da Foca, do Urso e das Faladeiras. Essas rochas são formações plutônicas surgidas ao longo dos processos do lento arrefecimento do magma em zonas muito profundas e em grande quantidade. O tempo geológico é mensurado em profundidades e den­ sidades dos mistérios com milênios de elaboração. Esses tempos la­ pidaram o Bico da Arara como anteriormente era conhecida a pedra que se transformou a Galinha Choca. Esculpida pelo ventos, pelo sol e pela chuva o monólito da Galinha Choca faz parte do Monumento Natural dos Monólitos de Quixadá com a extensão em média de dezesseis mil seis­ centos e trinta e cinco hectares. A preservação das esculturas em pedra criada pelos tempos possibilita também a continuidade da vida do Papa­ gaio cara-suja, Pyrrhura Molinae, que faz das rochas sua morada, estando ameaçado em outras regiões, na pedra cria seu reinado. Pretinha das Oliveiras, em nossos encontros relatou memórias das caças como meio de alimentação para todas. Seu pai Sebastião costumava caçar, por exemplo, Peba, Preá, Tamanduá, Nambu, Tatu, Tejo e Veado. As armadilhas da caça criadas no mato não focava no sofrimento do animal. Andar pelas matas com respeito é uma atitude comum de quem caminha e conhece onde pisa.

81


Minha mãe ao longo do tempo que nos conhecemos falou e fala com amor do seu lugar de origem. As visitas e retornos a casa da nossa família no Alto do Urubu foram compromissos em datas comemorativas, finais de anos ou pretextos para em algum momento chegar ao seu ter­ ritório e abraçar as saudades. Muito conhecida em sua região, as pessoas a chamam de Pretinha ou filha do Peta e do Sebastião. É recebida com alegria, carinho, respeito e admiração por vários. Ela como poucas sabe cultivar quem está ao seu redor. Pretinha, é uma das flores da pedra, uma mulher guerreira, conhecedora das artes da dança, da fala e do que mais ela desejar. Com o humor de riso fácil e a gaiatice cearense ela cria personagens e cenas no cotidiano do seu viver. Dança forró desde que se entende por gente e se deixa levar pelo ritmo da zabumba. Com a sua poesia de contar histórias e remontar memórias as cenas basicamente se tornam incorporáveis e táteis. É como se vivêssemos as situações a partir da sua narrativa. Em 1989, migrou da terra onde nasceu e se criou e foi para o litoral de Fortaleza. Ao lado de sua irmã Rita Maria, que é também minha amada tia-mãe, chegaram em busca de sonhos com novos horizontes nas águas salgadas.

82


83


Pretinha passou alguns anos até conseguir retornar à sua terra natal. A minha presença com os familiares, especialmente, minha avó e avô, se manifestou primeiramente por intermédio do papel fotográfico colorido com imagens me evocando e apresentando a quem ainda não me co­ nhecia. Curiosamente minha mãe escrevia com a caneta dedicatórias no verso como se fosse eu. Ela também narrava as personagens da foto e os desejos de bons tempos. Essas fotografias estiveram durante tempos no Albúm que Petronilha guardava suas recordações. Ela que recebia as correspondências e após seu encantamento, Pretinha resgatou da sua mala o Albúm. Depois de alguns anos tivemos contato com essas fotografias. Morei na lembrança da minha avó Petronilha. Morei na evocação da presença através dos registros imagéticos com paisagens dos dias no parque e dos passeios na pracinha. A fotografia que Pretinha está sentada em postura de lótus, postura firme e acolhedora, e eu sentada entre suas pernas também na postura de lótus, representa o fluxo eterno da ligação ancestral, sou a semente brotando e ela a árvore crescendo. Essa fotografia me toca como me toca uma flor ao desabrochar. São através das atualizações das memórias evocadas pelas fotografias que os trânsitos entre mundos ocorrem possibilitando rituais de acesso aos tempos e espaços do passado presentificado. A gestualidade do en­ vio das correspondências fotográficas são caminhos de muitas mãos até chegar à destinatária. Essas travessias entre Fortaleza e Quixadá compõe paisagens nas memórias. Era a maneira de se fazer lembrar. 84


85


Corpas d’água: rios, caminhos Rio é tudo que prosseguiu. Rios são espaços de nutrição, fluxos, movimen­ tos. A multidão do rio caminha para desembocar na imensidão do mar. As libertações das memórias das águas são processos concomitantes aos passos que empregamos para transformar nossas histórias coletivas. Não crescemos sem água. Não saberemos o gosto da justiça até o momento que as águas possam dançar em paz. A semente não vinga sem água. Há múltiplas maneiras de investigar nossas ancestralidades nativas, uma delas acontece através das águas como espaço de estudo. Acompanhar as trajetórias das migrações familiares, seus lugares de origem e conhecer as nações indígenas presentes nos territórios ancestrais, como as beiras de rio e os litorais, organizam algumas pistas e elaboram dúvidas que não se sabe ao certo quando, quem e se responderão aos questionamentos. Os envolvimentos com a luta dos povos indígenas contemporâneos, os acessos aos documentos históricos e as conexões espirituais movi­ mentam memórias e impulsionam a regeneração das histórias silenciadas e invisibilizadas que tanto nos rodeiam. É um trabalho coletivo, de res­ ponsabilidade, com muitas margens e profundos caminhos. As populações nativas no Syará e na Abya Yala (américa) durante os séculos milenares de ocupação a terra, antes da invasão colonial européia, durante, entre e atualmente encontram nas águas fonte de alimento, vida e conexão.


Povo Jaguaruana entre o rio Curu e Acaraú. Jaguaribaras entre Jaguaribe e Serra do Baturité. Tupinambás e Arariús na beira do Acaraú. Paiacus en­ tre o rio Açu, Serra do Apodi e baixo Jaguaribe, chegando próximo ao rio Choró. Choró e Pirangi são rios que deságuam diretamente no Atlântico. Rio choró, do tronco linguístico Tupi, xororó, significando possivelmente rio murmurante, pássaro de canto murmurante. Rinaré nome nativo hoje se chama Banabuiú. Tarairiús, na região do baixo Jaguaribe e Banabuiú, grupo histórico que reúne diversos povos como Canindés, Jenipapos, Jaduins, Paiacus. Habitantes das beiras d’águas no sertão do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. Pretinha das Oliveiras, faz questão de ressaltar as memórias da infância no período das cheias dos rios e dos transbordamentos dos açudes. Foi ela a grande responsável por fomentar a curiosidade e a paisagem de um sertão com rios, lagoas, riachos, açudes, poços e córregos. Evidenciou, paralelamente às dificuldades da seca, uma abundância de águas em dif­ erentes momentos, mas, afirma ser memória do tempo da adolescência e que não mais houve semelhante abundância de água. No período do inverno, o riacho Urubu, na fazenda Jurema, enchia e para atravessar a estrada coberta de água na volta da escola, minha mãe e minha tia Rita passavam com auxílio de uma tora de madeira que era lançada e puxada pelos seus irmãos. Às vezes, a água alcançava a cintu­ ra no momento da travessia. Essas memórias dos rios cheios e em segui­ 87


da seco conta sobre a intermitência temporária característica da região, rios que apenas no período do inverno chuvoso se tornavam fluídos. Exímia conhecedora de peixes de água doce, Pretinha, destaca algumas espécies que permeiam sua memória e colorem seu paladar como Cará tilápia do lombo vermelho, branco e preto, Kurimatã, Piaú, Traíra, Bodô, Kangati, Tucunaré, Pescada, Piabuçu peixe de enchente e Camarão de água doce. Acaraú, Curu e Jaguaribe são rios perenes com grandes extensões e com importâncias estratégicas na história do Ceará. São pontos de confluên­ cia com múltiplos afluentes e amplas conexões. São sistematicamente es­ tudados como As Ribeiras destacando os caminhos da invasão colonial e acúmulo de histórias com violentas atrocidades direcionada aos povos indígenas. Acumulam também resistências, estratégias de guerra e de de­ fesa aos territórios ancestrais pelos povos nativos ali presentes. A invasão do sertão pela expansão da pecuária se deu pelos caminhos, principalmente, destes rios e de seus afluentes. Estão organizadas em Ribeira do Acaraú com os rios Acaraú, rio Coreaú e rio Aracatiaçu. Ribeira do Ceará com os rios Curú, rio Ceará, rio Pacoti e rio Choró. A Ribeira do Jaguaribe abarcando o rio Jaguaribe, rio Banabuiú, rio Quixeramobim e rio Salgado. A bacia do Jaguaribe está dividida em Alto, Médio e Baixo incluindo as bacias do rio Salgado e Banabuiú. Percorrendo uma área de aproxima­ damente seiscentos e trinta e três quilômetros. A bacia do Banabuiú é uma das mais influentes do rio Jaguaribe, em sua margem direita encon­ tra o riacho Livramento e a sua esquerda os caminhos do rio Patu, Quixe­ 88


ramobim e Sitiá. Essa paisagem natural tão antiga da terra e do curso das águas já estava ali quando homens brancos coloniais, na ganância do ex­ travio, intitulando-se como descobridores de terras, a serviço de um reina­ do falido, chegaram pela rota Jaguaribe-Banabuiú-Sitiá. O Keiru nome nativo para o rio Sitiá, nasce no município do Custódio, em Quixadá, e deságua na bacia do Banabuiú. A Serra do Estevão é divisora de águas entre as bacias hidrográficas do rio Sitiá e rio Choró. Seus aflu­ entes principais são o riacho Caracol, riacho Catita, riacho Mororó, riacho Salgado, riacho São Caetano. Uma peça chave no início dessas pesquisas veio pela vibração da voz da memória de minha mãe. Quando criança ao acompanhar a avó Petronilha junto com tia Rita, numa caminhada a beira do riacho Urubu na Fazenda Jurema encontraram um buraco e uma tampa, ambos de pedra, com uma marca de pés impressa na rocha. Segundo ela, moradores mais antigos da região sabiam e repassavam as informações que os nativos tinham feito aquilo e não sabiam como os pés que pareciam ser de uma criança seguiram ali. Os rastros dos pés de uma criança transpassou o sol e os tempos impressos na pedra?

89



Mapa municipal de Quixadá elaborado pela Gerência de Estatística,

Geografia e Informação- GEGIN do Instituto de Pesquisa e Estraté­

gia Econômica do Ceará- IPECE(2018)

No mapa temos uma detalhamento dos riachos, rios e açudes.

Também está mapeado as fazendas e suas extensões.

Muitas a beira d’águas. Um grande quebra-cabeça.

Não esqueçam.

91


92


93


Sesmaria, moradores, há terra O curral das pedras passou a condição de curral dos bois. Sal e suor. Terras devolutas, terras de ninguém?. O curral ao lado da casa é estrutura espacial comum na delimitação e relação de poder no sertão cearense. Com a invasão portuguesa ao ter­ ritório, o sistema de distribuição de terras, já adotado desde o século XII em Portugal, as sesmarias, foram implantadas no Brasil servindo como política de ocupação colonial, usurpação dos territórios indígenas e a base do re­ gime de propriedade. O sistema sesmarial durou 288 anos, de 1534 a 1822.


No Ceará, de 1680 a 1715, houve uma enorme distribuição de sesmari­ as e concessões para criação de fazendas e currais. A intensificação das invasões e doações de sesmarias no final do século XVII, principalmente, nas regiões às margens do rio Jaguaribe, Banabuiú e Salgado acirrou os conflitos entre brancos e indígenas. A forte resistência e as estratégias de lutas da Confederação dos Kariris, também conhecida como Guerra dos Bárbaros, durante os anos 1683 e 1713, uma aliança entre o povos An­ duís, Paiakus, Karipus, Ikós, Karatiús e Kariris e tantos mais resistindo nas paisagens que hoje se chama Ceará, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. Uma reação direta em defesa ao território ancestral e a honra nativa diante dos extravios e violência dos invasores portugueses.

95


A primeira solicitação de sesmaria em 1702, na região do hoje Custódio, os suplicantes justificavam ser “descobridores de terras” com risco de vida e que tinham gado, cavalos e outras criações. Os mesmos em 1705, solicitaram novamente a terra alegando “que não haviam povoado anteri­ ormente devido ao fato de os Tapuias os impedirem.” Solicitava nos limi­ tes territoriais “A sesmaria requerida pelos suplicantes Manuel Gomes de Oliveira e Agostinho Moreira de Barros, possuía três léguas de com­ primento com uma légua de largura para cada um dos suplicantes, sendo meia légua de largura para cada banda do rio Sitiá”. Para mais infor­ mações a Plataforma digital S. I. L. B traz um amplo acervo de sesmarias. As cartas aqui citadas estão no código 00115 de 1702 e 00049 de 1705 ambos nos nomes e sobrenomes dos já mencionados.

96


A legitimação de uma atividade como descobridor de terras e a cons­ trução histórica dos indígenas como invasores de seus próprios territórios evidenciam as estruturas do plano colonial visando a usurpação, domi­ nação e exploração das terras e seus recursos. A elaboração de histórias únicas que narram a personagem nativa como o empecilho para a grande civilização acontecer positiva acriticamente a colonização e a coloca na perspectiva eurocêntrica como se fosse o mal necessário. Anacé, Gavião, Jenipapo-Kanindé, Kalabaça, Kanindé, Kariri, Pitaguary, Potiguara, Tapeba, Tabajara, Tapuia-Kariri, Tremembé, Tubiba-Tapuia e Tupinambá são povos ancestrais presentes na contemporaneidade e tan­ tos outros a ressurgir, emergir, retomar e irromper no futuro de agora no Ceará e no global mundo. Atenção, seguem as tentativas de renovação do pacto colonial. Não atualizem a cartilha do esquecimento. Não acredi­ tem em marco temporal.

97


98


99


Seguindo a máxima filosófica e poética de Pretinha das Oliveiras quan­ do diz “Filha, tudo que plantar na pedra dá”, faz muito sentido quando é lembrado as qualidades de vegetais, legumes e frutas comum no roçado que sua família mantinha como sustento e conhecimento. Abrimos para a pluralidade das sementes manejadas pela família. São elas cultivadas nos roçados: Batata doce, Pepino doce, Jerimum, Macaxeira, Mandioca, Melancia, Melão pepino, Melão. Algodão, Arroz, Feijão, Fava, Milho. Esse ano em 2020, minha mãe lembrou dos roçados ao redor de toda a casa e muitas qualidades de sementes. Falou também o quanto achava injusto quando via as colheitas saindo em caminhonetes levada pelos “donos da terra”. Sua família ficava com uma parte que era utilizada para comer e um pouquinho mais para algumas trocas. Uma divisão desigual e exploratória que mediaram muitas das relações de trabalho em um país invadido e com a base em sistemas escravocratas. Após árduos e dedicados anos de trabalho na terra, vó Peta e Vô Se­ bastião se aposentam como agricultores. Tendo ele sua carteirinha do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Quixadá datada de 1987. Uma das primeiras associações no estado para reivindicar seus direitos, mediar conflitos de terra e regulamentar as relações trabalhistas na região. 100


Após o encantamento de meu Avô Sebastião, minha avó Petronilha jun­ tou dinheiro a partir dos aposentos e comprou um pequeno terreno. Tra­ ta-se realmente de uma grande virada de chave, uma transformação gera­ cional de muita força e ainda não conhecida em sua linhagem ancestral e das migrações forçadas após a invasão colonial. Passado alguns anos minha avó se encantou. A casa foi vendida. Tempos depois através de muito empenho entre sol, sal e suor trabalhando com costuras e feiras pelo Ceará adentro minha mãe Pretinha e de meu pai Raimundo Nona­ to conseguiram novamente o terreno. Hoje essas terras fazem parte deles. Diante de suas possibilidades manejam o espaço com determinação e amor. O que aquece meu coração é saber que minha mãe está na pai­ sagem que ela nasceu e se criou. 101


102


103


Vó e Vô, protege contra todo e qua inveja e ódio.

Protege a porteira.

Quem guarda, guarda bem.

O que for bom bota pra dentro e o Que se firme o ponto do nós nas ju Que se honrem os caminhos.

Nós podemos.

Acolhemos.

Caminhamos.

Proteção.

104


alquer mau olhado,

o que não for deixa lá fora.

unções dos tempos.


106


107


Uma pedra bem nascida:

eugenia, mestiçagem, esquecimento

A incidência do sol revela o não dito. Organizar memórias sobre alguém que não se encontra mais no plano terrestre é tarefa de muita responsabi­ lidade e quando esse alguém pertence a sua história individual é trabalho ainda mais sensível. A curiosidade sobre a Petronilha e sua trajetória ainda segue. Pretinha das Oliveiras é a filha mais nova, portanto, há um recorte temporal específico na coleta das informações. Quando ela nasceu, Petronilha era uma mu­ lher com mais de quarenta anos. Quando eu cheguei ao mundo Petroni­ lha tinha um pouco mais de sessenta anos. Pretinha, indica conversar com Veleda, a filha mais velha e a minha querida tia pisciana conhecedo­ ra de muitas habilidades e memórias. A investigação a partir do relato da Veleda abre margem para outros pesquisas e aponta para novas camadas a serem tocadas na investigação e construção de uma historiografia com base no discurso da memória oral. Petronilha Eugênia Oliveira é o nome completo no registro de nascimen­ to da minha avó em 1926. O nome de sua mãe, minha Bisavó, era Maria Eugênia ambas nascidas e criadas no sertão de Quixadá. É indefinido o nome do pai no registro e na vida real pouco se sabe sobre ele. Eugênia era considerado como segundo nome até encontrado no documento de registro a referência que confirmou ser também o sobrenome de sua mãe.


A quem pertence o sobrenome Eugênia? Tudo tranquilo, se a coincidência entre vida e nominação não estivesse em estreita relação. Como assim? Eugenes é uma palavra de origem grega, significa bom em sua origem ou bem nascido. Eugenia é uma teoria sistematizada cientificamente en­ quanto ideia e prática no final do século XIX na Europa, sobretudo, na França. Ganha adeptos ao redor do mundo e se adequa aos interesses e contextos de cada país. No Brasil, as primeiras décadas do século XX são momentos de efervescência e infiltração do pensamento que considera o melhoramento genético uma base para evitar a degeneração das raças nos aspectos físicos e mentais. Em outras palavras, trata-se de uma práti­ ca de controle social que fundamenta racismos e fascismos no contexto global.

109


No final da década de 20, com o acirramento de leis e políticas raciais geridas pelo estado, a face positiva que até então se sustentava da eu­ genia com argumento de melhoramento na saúde do indivíduo entre gerações assume sua face mais cruel. Engendrada pela elite e intelectua­ lidade branca da época a prática-teórica influenciou diversos setores da sociedade transitando desde a medicina a educação. E aí? E aí que proibir a reprodução dos considerados pelo estado como degen­ erados, promover políticas de esterilização, incentivar migração européia caucasiana e controle racial figuravam como pilares das discussões no Bra­ sil do início do século XX, em seu contexto de guerra racial, nunca uma de­ mocracia racial, não esqueçam. A eugenia se inseriu no momento crucial da produção de identidades nacionais e coletivas, da mestiçagem intensi­ ficada como prerrogativa de fim necessário e no contexto de recém tran­ sição do sistema de escravização negra e indígena teoricamente findado em 1889. Contudo, a assinatura do papel garantindo libertações configura uma fabulação branca para seguir ainda nos sistemas de explorações e ex­ travios. Como por exemplo, minha Bisavó Maria, mãe de Petronilha, nesses períodos entre 1889 e 1920 vivia e trabalhava na casa de fazenda de uma mulher que tinha o nome de Sinhá. Petronilha viveu tempos nessa casa e quando envelheceu e o alzheimer chegou nos contou algumas memóri­ as da exploração. Maria não recebia nenhum dinheiro e era tratada com requintes de crueldade. Que sua alma descanse e viva em paz. 110


Minha avó Petronilha nada disso sabia sobre teorias raciais, seu sobrenome e o destino tramado pelos brancos para pessoas semelhantes a ela. Mas sofria as consequências da maldita estrutura colonial, das políticas de es­ quecimentos e dos pensamentos racistas e discriminatórios alicerçados pelo pensamento eugênico reproduzidos no meio do Sertão, no Ceará que sonhava em ser branco. No Ceará ,a inusitada argumentação ao longo das gerações, afirmando que somos em grande maioria de tez e cultura branca nos causou con­ fusões memoriais, psicológicas e imagéticas. As invisibilizações dos mo­ dos de vidas, das artes e culturas dos povos racializados contribui para a continuidade do enquadramento colonial, aprisionando imagens no pen­ samento. Nada disso se deu sem resistências, alianças e estratégias de rupturas organizada pelos povos que se viam subjugados por meia dúzia de membros da igreja, do senhor e do branqueador com pólvora. Não estava na linha de indagações disponíveis a Petronilha refletir sobre quem ela era, quais suas origens e a quais povos pertencia. Esse direito que nos aproxima agora no texto, por exemplo, foi retirado de minha avó pelo mesmo sistema colonial que construía estruturas para justificar que ela logo deixaria de ser ela nas futuras gerações e melhoraria conforme sua pele ficasse opaca e sua cultura assimilada.

111


A mestiçagem, a pardalidade e o não-lugar caminham juntas formulan­ do esquecimentos, zonas de dúvidas, opressões e homogeneizações. Tomemos cuidados com eles e com o que eles impregnaram no discurso, na memória e na imagem sobre nós. As violências ao longo dos séculos, cobertas pelos véus das mestiçagens, narradas como se fossem simplesmente relações interraciais, ocultaram por vezes as violações, estupros e raptos das corpas femininas. As mestiçagem alicerçadas aos pensamen­ tos “tudo misturado” e “não tem como saber mesmo quem se é”, “somos um grande encontro de culturas” foram elaboradas pelo projeto colonial com intuito de causar confusões mentais e distorções identitárias para enfraquecer e homogeneizar as pluralidades nativas e negras. Não preci­ samos segui-las. Em muitos casos, são memórias de dor e impunidades a consolidação das mestiçagens em nossas histórias. O que fazemos com isso? Como cuidamos dos nossos corações e identidades?

112


Cabe muito as nossas gerações viventes na simultaneidade do agora os debates, discussões e novas organizações acerca das racialidades, suas retomadas e interpretações. A mestiçagem não ocorreu somente entre brancos e negros e indígenas e brancos, há diversas variabilidades, sabe­ mos. As variações se alinham as particularidades da vida de cada povo e de cada região que partilha com o coletivo semelhanças e divergências em suas composições étnicas. Não há como considerarmos os proces­ sos coloniais das mestiçagens de modo igual, como se a realidade cea­ rense fosse a mesma na Bahia, na Amazônia, no Sul ou no Mato grosso. E é justamente sobre esse cuidado e respeito que precisamos ter como nossas histórias e com as alheias a nós.

113


114


115


As mãos de cururu, assim como a Pretinha carinhosamente fala das mãos da Petronilha, ao mencionar sua qualidade de mexer com a brasa do fogo manualmente sem nenhum utensílio, apenas com a proteção de sua pele e a prática de lidar com o quente. São dessas mãos que as galinhas caipi­ ras com os melhores caldos eram feitos, os mingaus de arroz que aque­ cia o dentro e os molho de pimenta com leite, uma tradição ancestral do sertão cearense. Seu ateliê foi a cozinha, seu território conhecido onde se apresentava ao mundo. Constantemente em movimento transformava o pouco em muito e generosamente partilhava o alimento. Potes de barro substituem geladeiras e ofertavam as águas de beber com suas políticas de uso sendo algumas para banho, outras para bebida e outras para a feitura da comida. O fluxo da presença e ausência d’água era uma zona de responsabilidade e consciência por que na maior par­ te do tempo quando não se chove é preciso economizar. A batedeira de peças de alumínio estava presente, refletindo com luzes prateadas quan­ do expostas ao sol. O fogão a lenha era marca registrada na elaboração de suas alquimias.

116


Petronilha foi vaqueira durante a juventude, manejava cavalos e ordenha­ va vacas. Boiadeira, sua voz ecoou no aboio pelo mundo. As pedras ouvi­ ram. Trabalhou durante anos em casas de farinha o que a tornou também uma dançarina das mãos, pois, o mexer da goma no momento do prepa­ ro, é uma dança das mãos. Ela de fato era uma mestra na lida e preparo das mandiocas. Trabalhou também na feitura de queijos. Mas, sobretu­ do, trabalhou muito nos roçados, plantou quase todo tipo de qualidade de sementes que se tinha no sertão. Realizava como uma guerreira sua posição de mãe e transitou entre vários dos papéis estipulados pelo pa­ triarcado para uma mulher. Seguiu até o fim de sua vida com carácter, ho­ nestidade, amor e respeito. Quem a conhecia tinha por ela muito amor e carinho. Até hoje as pessoas quando falam sobre ela trazem as melhores palavras e reconhecem sua grandeza. Grande curadora das plantas e sementes. Tinha cantos antigos guardados em sua memória, alguns era cantarolados outros não. Dor­ miu toda a sua vida em rede, tinha a corpa de balanço. Quando vinha a Fortaleza, chamava Parangaba, de Porangaba, nome antigo. Era a lagoa da Porangaba que lhe chamava atenção. Tinha o cheirinho de fumo, ca­ chimbou e mascou quase uma vida toda. Produziu durante um tempo seu próprio fumo de rolo até seguir comprando o fumo de Arapiraca. E dentro da ciência das plantas, os rapés estavam presentes e eram utilizados para sinusites, resfriados e bem estar. 117


118


Guerreira, que a fumaça das memórias de seu cachimbo nos guie até o infinito. Eterna gratidão.

119


Cuia, estômago, cura, mel A cuia é um elemento comum para família Oliveira desde a técnica de plantio da cabaça ao seu uso mais diverso no cotidiano. Na cozinha como reservatório de alimento, no banho como o famoso banho de cuia, no roçado como guardadora de sementes. A palavra Kúia tem sua origem no tronco linguístico Tupi. O fruto da árvore é kuieté (cuia verdadeira) e a derivação como Cumbuca vem de Kuimbuka (cuia dividida). Banho de kuia é o gesto memorial da casa da avó Petronilha. Dioneide, é a primeira da geração das primas, conviveu muito tempo com Petronilha. Conta que quando criança após comer muitas bananas ficou com uma forte dor na barriga, com receio de contar para as mais velhas e receber alguma advertência se manteve em silêncio. A intensidade da dor a levou buscar ajuda da avó Petronilha para conseguir algum remédio alegando estar com dor de estômago. Preparando uma cabaça cortada ao meio, Petronilha esquentou no fogo a carvão e colocou morna na bar­ riga de Dioneide que durante alguns minutos se manteve deitada com a barriga para o alto e as mão segurando a cabaça colada ao seu ventre e estômago.

120


Ao relatar despretensiosamente este episódio, Pretinha das Oliveiras, tia de Dioneide, rememorou dizendo que era assim que se fazia, esse era o remédio que a Petronilha dava para elas quando a questão era dores no estômago. A cabaça é elemento central em muitas culturas nativas, desde saberes das curas a rituais de acessos aos mundos espirituais. A cuia da cabaça recebe o mel da abelha Jandaíra (Melipona Subnitida). Seu ninho é feito nos troncos ocos das árvores vivas. Seu mel é forte com grande poder de cura. Pretinha relembra que seus irmãos coletavam o mel da Jandaíra com a cabaça dentro do oco da árvore. Pretinha, tem em sua casa cabaças com diferentes dimensões, trouxe do sertão de Quixadá. Uma delas foi grafitada com peixes no fundo do mar. As cabaças estão assentadas em cantos estratégicos da casa como se a energia estivesse cuidadosamente estudada. São elementos de ancestra­ lidade, espaços de conexões e da presença das anciãs representadas pe­ las cabaças.

121


Folhas e raízes: a vovó fazia assim. Lambedor é uma tecnologia de cura muito conhecida no Ceará e em ou­

tras regiões do Nordeste grande e bonito. O antídoto das folhas, cascas e

raízes foi ao longo da formação de minha mãe seu principal remédio. A re­

ceita transmitida da avó Petronilha para mãe Pretinha é a seguinte: casca

de Cumarú, casca de Ameixa, casca de Angico, raiz de Chanana, raiz de

Mussambê e raiz de Pepaconha

Manjericão para o ouvido

Vassourinha para o sistema urinário e ventre

Manjerona para os olhos

Eucalipto e cumaru para o nariz

Tabaco como purificador

Aqui o broto rompe a terra.

Há continuidade.

Logo nos encontraremos.

Cuidem da semente de vocês.

Cuidem das raízes.

Cuidem do agora.


Por favor, prestem atenção às minúcias dos caminhos e não deixem que a memória coloni­ al seja a sua, façam suas histórias. Cuidem das ancestralidades de vocês com respeito e res­ ponsabilidade. Cuidem do pertencimento e das raízes nativas. Trabalhem coletivamente. Não passará mais 500 anos para descolonizar. Retomem. O fio segue.

123


124


125


NOTAS PARA CONSULTAS Livro didático de História e Geografia, Construindo Quixadá Ensino Fundamental I com Organização de Lidia Noemia Santos, Maria Elia dos Santos Vieira, Sander Cruz Caste­ lo, 2011. http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/ce_construindo__quixada_f.pdf Acesse o Plano de manejo Reserva Particular do Patrimônio Natural, RRPN Não me deixes, 2012, que traz um levantamento sobre fauna, flora e território da região de Quixadá https://www.icmbio.gov.br/portal/images/stories/docs-planos-de-manejo/rppn_nao_ me_deixes_pm.pdf Música Antídoto de Tiganá Santana no disco Tempo e Magma realizado em 2015. No capítulo Corpas d’água há um trecho da composição que diz Rio é tudo que prosseguiu https://www.youtube.com/watch?v=EvE_bJvHB4k Cartilha do Projeto Tribo das Águas. Cuidando da água e dos ambientes aquáticos Ta­ peba. De Mayara Melo Rocha e Fernando Leão, 2012. http://adelco.org.br/wp-content/uploads/2020/10/Cartilha-1.pdf Artigo em PDF Indígenas e Negros no Vale do Jaguaribe: entre cativeiro e a liberdade. de Cicinato Ferreira Neto. Acesso em: https://apeoc.org.br/extra/artigos_cientificos/In­ digenas_e_Negros_no_Vale_Jaguaribe.pdf

126


PDF da pesquisa Índios e Terras – Ceará: 1850-1880.

de João Leite Neto, 2006. https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/7010

PDF Na Mata do Sabiá: contribuições sobre a presença indígena no Ceará.

Organização de Estêvão Martins Palitot, 2009.

https://muvic.files.wordpress.com/2009/08/008940-na-mata-do-sabia-miolo-2ed.pdf

Conflitos Jurisdicionais no Sertão do Ceará (1650-1750).

Josetalmo Virgínio Ferreira, 2013.

https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/11414/1/DISSER­

TA%C3%87%C3%83O%20Josetalmo%20Ferreira.pdf

PDF do artigo 1863: o ano que um decreto que nunca existiu extinguiu uma população

indígena que nunca deixou de existir, de Ticiane de Oliveira Antunes. 2012.

https://seer.ufrgs.br/aedos/article/view/29051

PDF Ceará raízes indígenas: sobre os povos, territórios e cultura.

De Vitória Alves Lima. 2020.

https://www.agb.org.br/publicacoes/index.php/terralivre/article/view/1894/1607

Os primórdios da organização do espaço territorial e da vila cearense.

Clóvis Ramiro Jucá Neto. 2012. Acesso em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=s­

ci_arttext&pid=S0101-47142012000100006

127


Consultar a Plataforma S. I. L. B, Sesmaria do Império Luso brasileiro, arquivo com mui­

tas cartas sesmarial digitalizadas e sistematizadas http://www.silb.cchla.ufrn.br/

http://www.silb.cchla.ufrn.br/

Sesmaria pesquisa com marcação a partir do riacho Sitiá.

Carta-CE, 00049, 1705.

http://www.silb.cchla.ufrn.br/sesmaria/CE%200049

Sesmaria com marcação a partir do riacho Queiru.

Carta-CE, 0115, 1702, http://www.silb.cchla.ufrn.br/sesmaria/CE%200115

PDF Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação Colonial, Territorialização e

Fluxos Culturais. De João Pacheco de Oliveira. 1998.

Acesso em:

https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93131998000100003

Etymologia de algumas palavras indígenas.

Thomaz Pompeu Sobrinho. 1918.

Acesso em:

https://www.institutodoceara.org.br/revista/Rev-apresentacao/RevPo­

rAno/1919/1919-EtymologiadeAlgumasPalavras.pdf

128


Contribuição à Toponímia cearense.

Florival Seraine.1948.

Acesso em:

https://www.institutodoceara.org.br/revista/Rev-apresentacao/RevPo­

rAno/1948/1948-ContribuicaoaaToponimiaCearense.pdf

Vocabulário Indígena em uso na Província do Ceará.

Paulino Nogueira, 1887.

Acesso em:

http://portal.ceara.pro.br/index.php?option=com_content&view=article&id=33021&­

catid=433&Itemid=101

Mapa municipal de Quixadá elaborado pela Gerência de Estatística, Geografia e Infor­

mação- GEGIN do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará- IPECE ,2019.

https://www.ipece.ce.gov.br/wp-content/uploads/sites/45/2019/02/mapas_munici­

pais_Quixada_2019.pdf

129


130


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.