Limiar Caio Barbosa Luana Beatriz
Limiar
onde termina a paixรฃo e comeรงa a poesia
Caio Barbosa Luana Beatriz
índice água.
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da rua.
14
livro.
21
terra.
34
pés.
34
casa.
42
viadagi.
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coisas findas, ficarão.
55
รกgua
Dize-me por onde ondas tua boca: mar em miniatura
7
Se te quero agora, instantâneo Não esnobe meu Mediterrâneo Mas se digo que te amo É por que é maior É Atlântico mas nunca vai ser Pacífico
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Alguns se apaixonam pela lua refletida no rio E caem e viram vitórias-régias Outros se apaixonam por si mesmos E caem no rio e viram narcisos Outros ainda se apaixonam pelas pessoas erradas E se matam no rio e se tornam Ofélias Sempre tem um rio E nele eu caio por mim
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saliva o tronco em que deito teu peito com gosto de sal e sol aquece bem mais que apenas meu rosto ilumina no escuro do cinema São Luís meus olhos marejados de alguma cena minha mão
caçando
a
tua
no
acento,
pequeno
órgão
acolchoado que separa órgãos maiores como nossas peles eriçadas nossos bolsos cheios de areia e alguns centavos que não deram pra pipoca nossos poros entradas sulcos e o gosto doce da saliva com o sal nos lábios a extensão do mar inteiro no desvio de bocas
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Há dias que somos cachoeira descendo em cascatas pelas tuas costas no chuveiro em outros somos bica tímida corpo-cativeiro às vezes somos oceano eu e tu e mil outros versos foram ditos antes de nós e por vezes somos córrego mal vendo nosso reflexo mas nem por isso deixamos de ser nós tempestade em copo d’água enchente onde antes era água parada que corre e deságua mas que um dia foi nascente
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da rua
Eu vi passando por mim um garoto que sorria enquanto caminhava na rua Parecia carregar a alma no rosto e dava pra ver que era do tipo que sorria também com os olhos O passo rápido e decidido Os braços vibrando meio indecisos Passou como um borrão nublado de luz e me deixou também sorrindo como fazem paixões que duram um minuto
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Vamos nos encontrar naquela esquina numa encruzilhada de ruas que passa por muitos becos aparentemente sem saĂda por uma porta depois outra depois outra depois me encontra lĂĄ onde a palavra mais doce nos teus lĂĄbios repousa esperando pacientemente que a use
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Toda vez que te encontro é como dinheiro antigo no bolso recém-achado
Foi numa calçada como esta que ando agora Que te vi na do outro lado E resolvi atravessar Foi numa calçada como essa a primeira vez que meus lábios conheceram teus lábios e não quiseram mais largar Foi numa calçada como essa Que nossas mãos ataram nós impossíveis Foi numa calçada como essa que os muros as rosas viram confissões prematuras Para fofocar umas com as outras num chá Foi numa calçada assim que eu tropecei numa fenda caí na rua tu não me deu a mão Não dá pé fazer sonetos pra lua, fui quem não era Caíram 3, 5 estrelas do meu signo rindo Por que me avisaram
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A luz do sol quando volta depois de ser interrompida por um ônibus e por breves segundos nos deixa na sombra me lembra quando a paisagem nos esconde e teu rosto faz sombra na página do livro em minhas mãos meu dedo como marca-texto uma formiga escalando a tinta das palavras poderíamos ser um quadro algum pintor stalker talvez possa estar nos pintando por trás dos arbustos será
que
Van
Gogh
gostaria
de
nos
pintar?
você
pergunta e eu me escondo na tua sombra amando tudo em sigilo absoluto
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livro
Do tamanho de uma edição de bolso Livre me entra Eu tenho o livro e Ele me tem No bolso
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Tu é como livro, por mais que antigo Carrega sempre cheiro de novo Por mais que com páginas já amareladas Sempre
parece
que
acabei
de
colhê-lo
no
pomar
chamado livraria e quando leio a primeira linha Há sempre um familiar estranhamento Nunca o deixo, sempre o levo na bolsa, embaixo do braço ou repousando pacientemente no meu colo e quando à noite, ele dorme ao meu lado Sempre na cabeceira, amante jamais esquecido na estante entre outras lombadas
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Teus braços caídos na cama num ângulo torto na ponta quase conhecendo o abismo, o cânion na quina da mesa os papéis que não caíram das palavras que recitei enquanto tu dormia nas voltas que dei nos trópicos do teu corpo, o ventre quente as cochas ainda mornas a cabeça sonolenta no polo norte e os pés pra fora no polo sul o jeito como tu revira os olhos de prazer enquanto lê algo que te inebria, como se as páginas exalassem um aroma profundo os lençóis num círculo de panos revoltos como bandeira hasteada pra cada novo território que declaro ter inaugurado, por mais que não seja verdade pouco
a
pouco,
vou
fabricando
dicionários
pra
tuas
expressões, vocábulos, manias não
vai
demorar
muito
vou
ter
material
pra
uma
enciclopédia completa sobre um único assunto mil álbuns de fotografias que ninguém nem nada além das minhas retinas jamais terá acesso mas ainda não sei se sei todo teu alfabeto não sei se uso maiúsculas ou minúsculas pra te chamar isso de.
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Se houvesse um campo gravitacional no mundo dos poemas como ele ficaria palavras caindo mais ao sul da pĂĄgina ou ao norte dependendo de como tu segura o livro (supondo que tenha sido publicado) Se houvesse tal campo sempre puxando pra baixo sempre um lĂĄbio inferior entreaberto ardendo ainda da tua mordida Se houvesse Tu se abaixaria pra catar essas palavras e dar-lhes uma espĂŠcie de lar
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terra
meu corpo é o melhor habitat pra esse hábito de você
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Dos quatro cantos da Terra Aquele canto Entre o teu olho E o teu cabelo É meu canto Predileto de ficar
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novo mundo tu veio nas matas virgens das minhas pĂĄlpebras fincou tua bandeira nessa terra fĂŠrtil e desde entĂŁo tem florido no meu olhar
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latifúndio quando tu entra na minha carne deixa os chinelos ao lado da porta e toma pouco a pouco como se fosse um sem terra como se me desmembrasse em capitanias na colonização do país meu corpo com muita história pra contar mas não lembro quando tua mão passou a ser meu brinquedo favorito prenha de descobrimentos cheia de espólios de tantas guerras e abismos a beira de outro
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Guardar teu olhar quando está acordado teus abraços tuas palavras teu sexo será isso ter tesouros no céu em vez de na Terra?
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pés
Bater perna no teu corpo Fazer dele trajetória até nossas pernas bambas balançarem no despenhadeiro da cama bater pernas apenas até cansadas ficarem submersas uma na outra
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o pé do ouvido é pra falar coisas baixas? mas ao pé do ouvido tu me conta céus
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tu não se parece com nada que eu já tivesse sentido tocado, querido e acho que por isso te quis mas de manso escondido sentindo primeiro com a ponta dos dedos do pé seguro às bordas ainda não sei se devo alçar mergulho e despertar essa fera que afia as unhas na minha pele
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O que mais me encanta em ti não é nem teu sorriso nem teus olhos, apesar disso também Mas é a linha do teu tornozelo Que me chama mais atenção A força da tua bacia Tuas espáduas tua clavícula Teus dedos de piano Te amo cheio de ossos
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dois pares se tocando plantar a planta dos teus pés nos meus pés na cama no corpo onde brotam coisas próximas ao que se diz em silêncio detalhes não sei se o amor é adubo se semente se fruto se tudo junto sei que agora nesse minuto é dois pares de pés
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casa
Bem me quer Mal me quer Bem-te-vi
contato visual Passo por tuas lentes como formiga capturada por uma lupa ao sol
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O teu sorriso é como o sol batendo nos vidros e espelhos da casa ou uma mangueira jorrando água e fazendo um inesperado arco-íris
maçã reinventada colhia as maçãs do teu rosto e todo veneno era destilado
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Quero uma casinha na serra ou no meio de uma floresta Casa não é nome certo Um chalé, uma cabana de um cômodo só é mais apropriado Com uma exposição de desenhos meus e de quem mais me der Quadros e reproduções baratas de Frida e Van Gogh Água sempre fervendo pru café Certeza às 9 da manhã ou às 5 da tarde Todos os 3 móveis entulhados meio que caindo um em cima do outro e eu no meio Vários livros espalhados Clarice e Caio sempre na cabeceira Música o tempo todo numa vitrola quebrada só pra enfeitar Talvez eu te chame pra passar o dia Talvez eu te convide pra passar a noite Ou talvez eu não queira nada menos que uma vida a dois
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viadagi
um conto de fadas gay Quero montar num cavalo Patas batendo no cascalho Correntes de ar movendo meus cachos As folhas, a relva brilhando com o orvalho Crinas luzidias castanho-claro Patas ferozes galopando no lago Quero o beijo de um cavaleiro armado E que ao invés de acordar que eu adormeça calado Não trocaremos palavras finais mas deixarei o silêncio fazer seu estrago familiar de coisas não ditas que descem com gosto amargo Alguma glória, porém você deve ter cavaleiro amado Me levará num caixão de vidro para que todos vejam a alegria do meu rosto roubado e quando chegares ao castelo ou ao palácio dormirá tantas noites quanto eu, de cansaço e quando acordares me beijará novamente apenas por força do hábito e dessa vez acordarei por que teu beijo me tiras e colocas em diferentes espaços
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e agora vemos que o castelo era de areia e as torres ruíram e nós nem de longe éramos quem pensávamos Quem
sabe
teremos
que
dormir
mais
mil
anos
e
acordar com beijos trocados pra perceber que mudar é fato mas agora, meu príncipe amado quero apenas montar no seu cavalo alado Quem necessita ser amado quando se pode voar?
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vire-se: ele disse e os dois viram-se viris
Â
 Expulso de casa o viado foi morar no viaduto
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Tudo voz é lícito E apenas provamos da liberdade Preciso mais que teu fantasma dançando em cortinas Preciso do sumo da música na tua voz falada e no silêncio também Na palidez duma página engavetada pra sempre No entrechoque de ventres, bacias, cochas No grosso do teu fruto Pequenos incêndios nos membros por todo o corpo Preciso que exima minha culpa com teus ardis Preciso-te Isso também convém
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coisas findas, ficarĂŁo
caça ao tesouro Eu percebi quando as ligações ficaram mais esparsas como poças d'água que por descuido caímos eu fui deixando sinais nas mensagens tarde da noite e cedo do dia no jeito que eu falava mais arrastado que o normal até
no
jeito
que
te
toquei
tinha
alguma
pista
involuntária mas o anzol do teu olhar não se deu conta nem pescou percebi
quando
os
encontros
desculpas
se
tornaram
não
eram
mais
tão
efusivos e
as
frequentemente
mais
óbvias mas de tudo a ficha só caiu quando percebi que tu não me enviava mais teus poemas
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tô cansado de morder tampas de caneta e me sujar com tinta faça o favor de voltar e trazer junto minhas palavras
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Tenho a mania de perder coisas os bottons na minha bolsa laranja chaveiros receitas páginas com versinhos que nunca vou lembrar a forma exata pessoas também fazem parte da lista mas quando penso não sei o que vou fazer se um dia eu não tiver fins de tarde contigo e um vinho barato algumas cervejas pingos vermelho-sangue na toalha sobre o verde domingos de cama feita por dois colchões no meu quarto a marca no céu de todos os cigarros que nossos lábios compartilharam
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sombras ele me ama às vezes quando a gente vai dormir brigado o travesseiro pesa toneladas e parece que quilômetros nos separam mesmo lado a lado faixa de Gaza nos lençóis nesse dia a gente não se ama mas aguarda pacientemente o amor voltar e não tarda trisco em sua mão toque de borboleta trégua o amor aguarda a manhã pra adoçar o café amanhece junto com o dia o amor guarda
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Todo amante tem a tendência narcisista de achar que seu amor, por tê-lo infligido e flagelado, é o maior do mundo, que ele ama mais ardentemente que todos os amantes passados e futuros. E é verdade, dentro do inferno pessoal que precede a ida do outro e o luto do amor.
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Minha dor cabe na palma do meu corpo que se faz em concha e se empertiga ante o teu toque Minha dor tem nome e quando escuto alguém falar me arrepia Tem endereço numa rua que nunca mais passei por que o motivo se extinguiu Tem uma blusa que eu dei um lençol com meu cheiro Meu livro favorito marcado no conto que dizia tanto sobre nós Mas que acho, nunca foi lido Tem uma rede armada ainda que nos abrigou em todas nossas conversas e cochilos abraçados Nus em pelo Nus em espírito Minha dor nem é mais tão dor Talvez um pouco ainda Uma pontada Uma dorzinha sumida Minha dor foi fruto de mentiras mas eu quero ver minha dor sorrindo
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Onde quer que esteja Nem precisa lembrar de mim mas bem que eu gostaria Quero minha dor bem escondida mas se vez ou outra ela vier à superfície onde estou ocupado demais com coisas como a vida Quero que ela seja sutil Até mesmo doce e que sente e me faça companhia
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Caio
Barbosa
escritor,
poeta
Natural
de
(1998) e
é
desenhista.
Fortaleza,
mas
reside em Sobral, é graduando em
Direito
pela
(Universidade
UVA
Vale
do
Acaraú). Escreve desde cedo contos, poemas e sonha um dia
talvez
escrever
romance,
mas
atravessado
por
um tudo
poesia.
Os
desenhos surgem quase como uma extensão de seus poemas, imagens metafóricas que por si
só
contam
uma
história.
Gosta de criar colagens com palavras recortadas de livros, revistas,
dicionários
inesperadamente transformam brincando
se
em
com
que
poemas,
significados.
Adora fazer pequenos livretos com poemas e ilustrações e presentear amigos.
Luana Beatriz (1998), mais conhecida artista.
como
De
nascida
Sobral,
em
retorna
a
atualmente
Bia,
é
mas
Fortaleza,
capital estuda
na
Universidade
do
Ceará.
onde Teatro
Federal
Desde
muito
cedo trilha seu caminho ao lado da escrita, da cena e do
desenho.
Gosta
de
investigar a imagem, seja através
do
corpo,
através
de
desenhos
pinturas
ou
fotografias.
utiliza
das
técnicas guache,
No
de
escrita
em
dramatúrgicos, poemas.
e
através
Na
aventura
seja
se
textos contos
e
desenho,
se
mais
como
diversas nanquim,
aquarela
e
giz.
Criar é o que mais gosta de fazer.