ARTE EM REDE~ SAFETY DISTANCE, DE ANA MUNDIM

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Safety Distance Ana Mundim


Quarteto Foto Editorial Ltda. 1ª Edição - Copyright Š 2020 Ana Mundim Direitos de edição reservados à autora. www.anamundim.46graus.com anamundimartes@gmail.com Nenhuma parte desta obra poderå ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei no 9.610/98. Se incorreçþes forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o depósito legal na Câmara Brasileira do Livro - CBL, de acordo com as Leis nos 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.

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Safety Distance Ana Mundim


Décimo primeiro dia de confinamento. Da janela do meu quarto, consigo ver a varanda do apartamento dela, embora nunca tivesse me atentado a esse fato. Comunicação “presencial” a distância. Naquele exato instante me ocorreu que poderia “encontrá-la” uma vez por dia e fotografá-la.

Fiz o convite. Ela aceitou. De imediato.




Dia 01 Um pouco sem jeito ou sem saber o que fazer ela aparece. Acena incessantemente e me manda beijos, em alegria efusiva. Ela nĂŁo me enxerga. HĂĄ tempos precisa fazer uma cirurgia de catarata que nunca se efetivou. Escreve-me no celular e pede para que tambĂŠm acene para assim tentar me ver. Eu aceno. Mas ela segue sem me ver.



Dia 02 Acordo e escrevo uma mensagem no celular chamando-a para a foto. Ela pede pra eu esperar um pouco. Avisa que está pronta. Fala que passou a noite esperando o momento do encontro. Aparece toda arrumada, com flores nas mãos para me oferecer. Ela está sorridente. Apesar de não me enxergar, sempre direciona seu corpo exatamente para mim. Entendi que ela enxerga com o coração.


Dia 03 Ela aparece, toda orgulhosa, com uma foto minha nas mãos. Era uma máscara com meu rosto, que havia sido impressa na ocasião de minha festa de 40 anos para me divertir com os meus amigos próximos. Observo mais que nunca como me pareço com ela. Mas o que desse reflexo me cabe? Também percebo ali que as expectativas dela pelos encontros diários se converteram nas minhas expectativas de saber o que ela aprontaria no dia seguinte...


Dia 04 No dia anterior, um estudo italiano realizado na Universidade de Turim mostrou que uma grande quantidade de pacientes infectados pelo coronavírus apresentava baixos níveis de vitamina D. Os especialistas recomendavam que quem pudesse tomasse pelo menos 15 minutos de sol para produzir vitamina D. Ela vai para a varanda em sua cadeira de balanço, vestida de maiô e usando óculos escuros. Os gostos de minha mãe começam a se desvelar em encontros tão performáticos quanto cotidianos: ela adora ir à praia, tomar sol e estar na cadeira de balanço. Seus prazeres se reuniam, de maneira figurada, nesta cena de quarentena.




Dia 05

O abraço. Ela aparece, se abraça de várias formas e aponta para mim. Neste dia, ela tenta tirar uma foto minha, mas a distância com o celular, não permite que eu apareça.

Ela segue sem me ver.



Dia 06 Chovia muito. Preocupada, enviei uma mensagem dizendo que ela não saísse para não correr o risco de gripar. E ela me disse: pois já estou aqui, de guarda-chuva. E assim a encontro, no melhor estilo dançando na chuva, esperando meu bom dia. Neste dia, que sua ação se encontrava na realidade presente, percebi como quase sempre suas aparições estavam atravessadas por lembranças passadas ou desejos futuros. E, eu, em casa, do contrário, seguia vivendo a radicalidade da improvisação em dança e do ato fotográfico, lidando com cada aqui e agora, sem rever memórias ou projetar futuros.



Dia 07 É o sétimo dia de fotografia, mas o décimo sétimo de isolamento social. As notícias indicam aumento significativo de casos confirmados de coronavírus, inclusive o aumento de óbitos. Ela decide rasgar documentos antigos e jogá-los fora, segundo ela para que eu tenha menos coisas para jogar fora se ela morrer. E já me avisa onde estão guardados os documentos que preciso saber onde estão, em caso de óbito. Neste dia, ela sai com a cadeira, a mesa e todos os papéis. O silêncio que ecoa na rua me permite ouvir o som de cada papel por ela rasgado.


Em determinado momento, ela se levanta, abre um mapa de Cuba e faz gestos de que vamos viajar de novo juntas. Aqui me encontro com o passado. Fomos juntas a Cuba. Lembro-me de ter comprado este mapa por uma pequena fortuna, como se fosse um tesouro, pois informação por lá custa caro. Um dia, pegamos um táxi para ir a um museu de artes que estava neste mapa. Chegando lá, o museu não existia e realmente o taxista nunca havia ouvido falar dele. Perguntei como um local poderia estar no mapa se não existia. O taxista me respondeu que, às vezes, quando existiam projetos de construir algum local, eles já inseriam no mapa, mesmo que ele nunca fosse construído. Logo me imaginei nesse momento de quarentena construindo meus locais possíveis, ainda que eles não existam. Meu apartamento é pequeno, extremamente quente e não é exatamente confortável. Ele é viável para minha vida normal: o dia inteiro fora de casa ou viajando. Mas não para demorar-se tanto dentro. Sonhar com estes outros possíveis seria sair de mim ou mergulhar ainda mais em mim? Minha mãe sempre gostou de mapas. Desde minha infância ela me mostra mapas e os estuda. Talvez desse hábito eu tenha me contaminado pelo gosto por viajar. Já mudei de cidade várias vezes, viajo com alguma constância, estou em permanente deslocamento. Nem meu sotaque tem clareza em sua existência. É um sotaque borrado. Mas agora meu corpo pausa e pousa há 17 dias. E este pouso ainda vai durar. Talvez seja desdobrar-me como origami na viagem que construo em mim.




Dia 08 Lá estava outra vez em sua cadeira de balanço. Dessa vez acompanhada de Saramago e suas Pequenas Memórias. Esta leitura que perdurou meses, e da qual ouvi vários trechos de sua voz, finalmente se finda. Minha mãe sempre leu para mim, muito, desde minha mais tenra idade. Quando pequena, recordo-me dela sentada ao chão lendo uma coleção de livrinhos que de tão lidos, eu já havia decorado. Meu avô fez parte da Academia Paraense de Letras, cadeira herdada atualmente por um tio meu. Eu amo ler. Talvez seja hereditário este sabor. Neste isolamento, cumpri um desejo de anos de colocar uma rede na minha mini biblioteca, abraçada por todos os livros que me acompanham ao longo da vida, uns lidos, outros não. Em um dia de tristeza, eu os olhava e pensava: veja quantas companhias eu tenho! Vários mundos se abrem a cada página, realidades, ilusões. As histórias que se desencadeiam em meu corpo, de meu corpo, com o meu corpo, por meio de meu corpo não me deixam só e desencadeiam flexibilidades espaciais. Saramago é uma de minhas companhias preferidas, ao lado de Mia Couto. Nesse momento que me tira a fome, me alimento de suas palavras para manter-me de pé. Enquanto meus pensamentos passeiam, recebo uma foto cortada e borrada. Era a capa do livro que ela lia.




Dia 09 Ontem anunciei à minha mãe um corte substancial em meu salário em detrimento da reforma previdenciária. Ontem e hoje funcionários públicos recebiam ameaças de mais um corte de salário de até 50%, devido às absurdas emendas parlamentares que o Partido Novo propôs na PEC 10/2020, segundo eles, em função do “combate ao Covid-19”. O clima de tensão trouxe reverberações para o meu corpo, me deixando mal por dois dias. Acordei muito tensa com a votação da câmara dos deputados e não conseguia ter forças para o encontro com minha mãe. Nesse meio tempo, ela me ligou angustiada e chorosa e disse-me que hoje seria pra eu tirar foto de onde ela estava, “desconsolada na porta do quarto pelas maldades que existem no mundo”. E assim o fiz. Ela estava na sombra e comentei que o desconsolo era escuro. E ela me perguntou se eu queria que ela mudasse de lugar porque ela poderia se desconsolar em qualquer lugar. Ri. Mas não quis. A foto já estava feita e era mesmo assim, escura, como seu rosto triste. A noite ela me escreveu dizendo que o quarto dela parecia uma casa, ventilada, com acesso pra rua e ainda dava para ver a minha janela. Disse que quando eu aparecia e lhe dava adeus, seu coração pulava de felicidade. Terminou a frase com: “Te amo, meu amor”. Os ventos mudaram seu humor. As emendas foram rejeitadas.


Dia 10 Hoje ela limpa seus anjos. Uma coleção deles. Um se quebra. E é com este que ela sai à sua varanda. Em seguida me envia uma foto dele pelo whats app. É só um bibelô, mas para ela é uma companhia, um sinal de esperança, um ser protetor, que se vai.




Dia 11 Dia de Ramos. Ela é muito católica. Chama-se Maria de Nazaré porque nasceu em Belém, no dia do Círio de Nossa Senhora de Nazaré. O domingo de Ramos ocorre no domingo anterior à Páscoa e comemora a entrada de Jesus em Jerusalém. Para os católicos, os ramos simbolizam a vitória. Hoje completo a maioridade no isolamento: 21 dias. E ela sai com a vitória na mão para me abençoar. Em seguida recebo uma foto do altar que ela fez, na porta de sua casa, com o ramo.



Dia 12 Hoje talvez tenha sido um dos dias mais quentes dessa quarentena. Baixo um termômetro de ambiente no meu celular. Dentro de meu apartamento fazem 40 graus na frente de ventilador. Ela sai com um regador para molhar suas plantas e ver a vida florescer. Que assim seja. Dia 13 Hoje ela sai sem nada na mão. Faz gestos de abraços, beijos, aponta para o sol e para as costas. Vira de costas. Na varanda de cima, a vizinha se alonga. Em certo momento a vejo debruçada tentando enxergar o apartamento de minha mãe. Hoje temos duas fotos, uma só e uma atravessada. Dia 14 Hoje ela sai com uma máscara na mão. Começou a costurar máscaras. Vai tecendo o tempo enquanto produz para alguém, não sabe quem. Hoje, após a foto, me sentindo um pouco melhor, levo para ela os alimentos que chegaram ontem e eu higienizei. Na volta, trago junto comigo a máscara para o rapaz que tece, desprotegidamente, a limpeza de meu prédio. Enquanto isso, Fortaleza tem o maior número de casos de COVID-19 por habitantes no Brasil. E a rua segue, cada vez menos silenciosa, porque não costumamos a acreditar naquilo que não é visível. Talvez por isso o amor esteja saindo de moda. Agradeço por ter minha mãe e poder receber, na invisibilidade, a força que seu sentimento emana.





Dia 15

Ser filha única é um estado sempre presente, que a qualquer momento pode pesar. Lembro-me de contar a um amigo que minha mãe não consegue diferenciar seu corpo do meu. Ainda pulsa um cordão umbilical. Ao caminharmos na rua seu corpo esbarra no meu constantemente, sem ar. Na ocasião de meu parto, ela teve uma eclampsia. Houve uma suspensão do tempo em que eu e ela estivemos de mãos dadas com a morte. O amor pode ser letal. Até hoje parece que seu medo da perda é tanto, que ela agarra a sua vida em mim. Eu, por outro lado, desenvolvi profunda agonia por situações que me impedem do direito de ir e vir. Vou à janela fotografá-la, e a encontro com meu rosto em sua barriga e ela, com um gesto de mulher grávida. Com uma mão segura minha imagem apertando-a contra a sua barriga, e com a outra, me envia um beijo. Hoje completo 25 dias de prisão domiciliar voluntária espreitando o invisível, e lá fora, me vejo refletida num porvir de amor encarcerado. Mas nem tudo é tragédia. Talvez minha maior liberdade esteja dentro de mim.

E é sempre possível oxigenar o amor.


Dia 16 Antes da foto ela me envia um áudio: “Filha, estou pronta e tô indo para lá. Hoje eu levo um crucifixo na mão. Você atenta que hoje é sexta-feira santa, né... então pedindo a Deus pela humanidade e por todos nós.” E assim ela sai, abençoando a si, a mim e a cidade, nos recortes de luz e sombra desenhados pelo sol nas paredes de concreto.


Dia 17 Minha mãe sempre colecionou babilaques. E sempre gostou de festas e de celebrá-las com toda decoração possível. Eu herdei os dois hábitos. Dentre estas festas está a celebração da Páscoa, que é, em nossa família, um momento de muita união. Sua casa costuma ficar com símbolos religiosos e coelhos distribuídos por todos os cantos. Este ano estamos distantes. E ela aparece à varanda, abraçada em uma almofada de coelho. A nossa Páscoa, à distância.


Dia 18 28 dias em casa. Tenho sofrido em meu corpo o peso da feitura de concreto e calor que me habita. Olho em volta e tudo é cinza e duro. Eu, que preciso de mato, água e areia para renascer, já começo a sentir sua ausência com um pouco mais de força. Acordo com tosse seca, dor de cabeça e dor de garganta. Meu primeiro movimento é ligar para farmácia para comprar um termômetro e telefonar para o atendimento do coronavírus para me certificar de que não precisaria me preocupar. O termômetro chega. Não tenho febre embora meu corpo queime a cada poro. Meço a temperatura ambiente. São 42 graus na frente do ventilador. A moça pergunta ao telefone se me falta ar. Sim. Ar me falta. Todos os dias. Mas ainda consigo respirar. Subitamente me lembro que é Páscoa. É dia de ressureição. É dia de comemorar. Vou encontrá-la como de praxe: eu na janela, ela na varanda. Entre nós um pombo. Ele sempre está lá. Com toda liberdade que ele tem para voar, ele sempre está lá, pousado, no mesmo lugar. Minha mãe sai com um coelho paraquedista nas mãos. Um coelho que voa, mas que está ali, parado, como o pombo. Lembrei -me de uma vez quando um grupo de estudantes me chamou para voar de paraquedas. Tive tanto receio que acordei com crise de sinusite. Autoboicote: paralisada pelo mundo do futuro, no lugar de viver o presente. Um corpo que voa, mas que está ali, parado, como o coelho, como o pombo.


Agora já não posso voar. Logo eu, que vivo transitando em voos, deslocando tempos e espaços. Trabalho em um local que a cada dia se mostra, nesse momento, mais opressor, exigindo produtividade presente e produtividade futura, em tempos de pandemia. E eu só posso agradecer, dia após dia, porque tenho um trabalho que me permite estar em home office. Por um instante me pergunto se estarei livre quando puder sair de casa. Sinto-me protegida aqui. O porvir da rua me parece histérico. Penso no futuro, logo, adoeço. O presente, de hoje, está acamado.


Dia 19 Hoje ela não carrega nada. Só seu corpo e seu amor. Abraça-se, acena, manda beijos. Tardei a tirar a foto. Sigo enganchada na enfermidade e a verticalidade se demorou em sua acontecência. Hoje me distraio. Vejo o rapaz ao telefone no portão, compondo uma diagonal com minha mãe. Ela está na sombra, mas logo abaixo se encontram os bougainvilles rosas de seu prédio, com uma réstia de sol. Hoje percebo o tamanho da distância que parece tão perto.



Dia 20 30 dias em casa. Caos. Acordo com muita tosse, pior que ontem. Tenho que trabalhar o dia todo. Abro o instagram e um amigo médico conta que estão trabalhando sem nenhum suporte: colocam os equipamentos e após paramentados chegam a ficar 14h em atendimento direto, sem ir ao banheiro, sem comer, sem beber água, para atender todo mundo, para não desperdiçar o material. Consulta médica online. “Você tem febre?” Não. “Você tem falta de ar?” Não. Então fique em casa, isolada. Só vá testar o coronavírus se tiver falta de ar ou febre contínua. Em meio a reunião da tarde um suadouro, meço temperatura. 37,5. Estado febril. E agora, o que fazer? Na reunião discutem-se demandas: tem que fazer mais isso, tem que fazer mais aquilo, fazer, fazer. Um pouco antes recebo ligação de minha tia de 81 anos dizendo que está gripada. Peço para ela ligar ao médico. Em meia hora ligo de volta e ela diz que não ligou porque já estava ótima. Demanda, demanda. Suo. Faz muito calor. As pessoas mais próximas me enviam mensagens perguntando se estou bem. Um fala pra fazer exame, outro pra tirar raio x, outro pra ficar quieta que não é nada. Dúvida, dúvida. Você tem falta de ar? Não. Você tem falta de ar? Não sei. Você tem falta de ar? Pensando bem nem sei se tô respirando. Você tem falta de ar? Sim. Falta ar, falta ar. Como se deslocar sem ar? Ia fazer uma live com um amigo e foi cancelada uma hora antes. Seu tio faleceu de coronavírus. Ir ao hospital? Não ir ao hospital? Mas e você? Se protege! Máscara, luva. Lembro da respiração. Tem que respirar. Tem que respirar. Você já meditou? Você já fez exercício de respiração? Tem que respirar.


Tem que respirar.


Mando uma mensagem para minha mãe: tiramos a foto hoje? Não, filha. Hoje o dia foi tão tumultuado... eu lembrei, mas eu vi que você estava sobrecarregada e eu fiquei quieta. Amanhã... ou a gente tira agora a noite e eu mando um beijo pra você. Agora. Agora a noite porque já não sei se amanhã estou se amanhã está se amanhã estamos a foto não vai ficar boa porque não tem luz e já é noite mas o dia se eternizará o encontro se dará o projeto continuará ar ar. Ela aparece na varanda abro a janela já fechada faço uma duas três um monte de fotos e todas ficam ruins borradas tremidas com um milhão de pixels já não me importo só quero que o dia acabe só quero que o dia acabe só quero que o dia acabe e que eu consiga dormir e que amanhã esteja tudo bem boa noite até amanhã não durmo não durmo encosto o rosto no ventilador para respirar para respirar mando mensagem para meu amigo para saber se está bem só quero sonhar lembro de respirar respirar você já meditou, você já-



Dia 21

-Respirou?

Não sei. O ar tá pesado. Decido não trabalhar. Preciso olhar pra mim, cuidar de mim, buscar ar em mim. Pauso. Café. Filme. Vamos tirar a foto? Ela sai abraçada em uma foto de uma viagem que fizemos a Campos de Jordão. Uma foto impressa no azulejo feita em uma loja em que fomos super mal tratadas. Eu já nem vi ser feita. Não me delongo em locais que não me tratam bem. Ela sim. A foto ficou bonita. Não a minha, a que ela mandou fazer. A minha segue borrada. Minha mão treme. Meu cansaço ganha corpo. E ela sente. Saiu chorando na foto. Almoço. Filme. Lanche. Filme. Navegar por outras paisagens. Imaginar. Criar. Sinto o ar entrar. Me acalmo. Vamos tirar outra foto? Ela sai a varanda. Agora consigo focá-la. Ela sorri. Mas por algum motivo não consegui me desfazer da foto tremida. O choro e o riso caminham de mãos dadas em tempos de isolamento. Mas pensando bem, eles caminham de mãos dadas na vida.



Dia 22 Ele: o pombo. Estava aquele tempo que não dizia nada. Não era sol, não era chuva. Mas vinha um sopro de vento de algum lugar. Alívio. A água ameaçava chegar, mas não chegava. Eu espero à janela. Ele está lá, no mesmo canto: o pombo. Começo a perceber que cada vez que clico, ele olha para mim. Lembro-me que quando vi este apartamento pela primeira vez, fiquei um pouco em pânico com este pombal no prédio do lado, bem na janela de meu quarto. Tenho aversão a pombos. Sou muito sensível a sons e eles costumam acordar cedo resmugando, além do fato de causarem criptococose pelas fezes. Hoje me lembrei dos sintomas: dor de cabeça, febre, cansaço, náuseas, vômito, dor no peito, suor noturno, vista embaçada, falta de ar. Você está com falta de ar? Sei lá. Agora, agorinha, só sei que ele está lá. E ela chega, como a dama de vermelho, compondo com os bougainvilles e portando um guarda chuva como antecipação ao futuro. Hoje o fotografo observando nosso encontro, ou seria se encontrando conosco, ou, ainda, seríamos nós cruzando o seu cotidiano? A primeira imagem de minha mãe é distorcida lá ao fundo. Aos poucos, vou me aproximando e tornando-a mais nítida. Hoje as duas fotos conversam e assumo que somos três e não duas.


Dia 23 Ela me diz por mensagem que está acabando a faxina e que vai tomar banho e se arrumar para a foto. Pergunto porque não vai do jeito que está. Ela responde que é para a foto não ficar fedida e suada, senão pingará suor na máquina. Respondo que aí a foto estaria de acordo com a realidade. Mas ela segue para o banho e quando acaba, avisa que está pronta após limpeza e com muitas flores para alegrar o dia. Hoje, o pombo me olha e voa, antes dela chegar. Algo há movido na paisagem, apesar da ausência de vento. Ela surge em primavera, esfuziante. Vou ao quarto no fim da tarde e a encontro na janela, pensativa. Registrei o momento. Ela não sabia que eu estava lá. Mas no momento da foto olhou em minha direção. Coisas de mãe.




Dia 24 Hoje, ela surge de amarelo, iluminando toda a rua. Amarelo é minha cor preferida. Simboliza energia, vida e remete Om, mantra mais importante da tradição indiana. Na cosmologia mexicana, é renovação. Nas mãos, ela trazia uma borboleta. Havia enviado um dia antes para ela uma foto que fiz com uma borboleta morta que um dia encontrei na rua e guardei comigo. As borboletas me fascinam. Já fiz um espetáculo, Perpetua, falando sobre elas, como metáfora para a efemeridade da vida. Os japoneses associam a borboleta à figura da mulher, e a psicanálise a encara como símbolo do renascimento. Reflitamos, então, sobre a insana oportunidade que estamos tendo de nos revermos como humanidade. E que a natureza sábia, continue nos mostrando a importância da vida.



Dia 25 Antes da foto, ela me liga, falando como se falasse com um bebê. Minha mãe se amarra ao passado com muita força. É um hábito. É como se para ela o mundo tivesse parado no tempo. Talvez por isso ela não perceba que eu já saí de sua barriga e décadas se passaram depois disso. Sinto que ela quer me segurar no seu tempo, mas como vivo o tempo presente, escapo. Agora suas memórias se ativam mais do que nunca. Viu uma reportagem sobre castanha do Pará, mostrando um ouriço com as castanhas dentro, todas arrumadinhas, e lembrou da infância dela, no colégio, passando em frente a uma fábrica e pegando o ouriço que ganhava, pra abrir e comer a castanha. A comida sempre foi o modo que minha mãe encontrou de manter as pessoas em torno dela. É um dos jeitos que ela tem de espalhar amor e de se sentir menos só. O que mais gosto de comer é empada de queijo. Essa é a minha memória de infância, do meu Rio de Janeiro, querido. Hoje ela faz empadas de queijo e me manda as fotos. Estou de dieta. E também hoje, que escolho o dia para chorar, não digiro aquela imagem, assim como não digeri a fala “tatibitati”. O que para ela é um modo de me ter mais perto por meio do paladar e da fala, para mim é só dor e afastamento. O que qualquer um acharia fofo, eu só acho deslocado. Viver o momento presente tem dessas coisas: não é a foto perfeita.

E cada imagem/som é entendida/o da maneira como o corpo presente lhe permite entender, nas suas falências.


Dia 26 Lá está ela. E só. Já se acabam as surpresas. As ideias começam a se mesclar a preocupações. Eu sigo doente e sigo sendo atendida por um médico-whats app, situação mais rara. Mas nem isso me surpreende mais. Uma rede de apoios se faz em volta. É bonito de se ver. Sair e saber que estamos administrando a saúde já é muito. Hoje a luz rabisca o prédio criando outros desenhos. Até o pombo cansa de nossa companhia e investe na sua capacidade de voar. Minha mãe manda os beijos e abraços cotidianos e se distrai olhando pra baixo, pro horizonte. Os gestos se alteram. A repetição nunca é igual. Despeço-me, mudo de janela e vou ver a nesga de mar. Hoje conversamos. Ele disse que vai ficar tudo bem e, em breve, poderemos dançar juntos novamente.


Dia 27

Fui dormir 3h30. Gradativamente vou trocando a noite pelo dia. Viver abraçada por prédios está cada vez mais pesado. A noite choveu muito, com relâmpagos e trovoadas. Num impulso fui tomar banho de chuva debruçada no parapeito da janela, até que o raciocínio pousou sobre mim e lembrei-me que poderia piorar daquilo que se instalou em meu corpo e eu nem sei o que é. Corri para me secar e tomar paracetamol. Ao mesmo tempo que a culpa católica assolava meu corpo pela única loucura cometida em exatos 37 dias de isolamento, eu estava tão feliz que só podia pensar: se eu morrer, morrerei feliz. Impressionante os delírios que podemos ter. Acordo e vou fazer a foto dela. Preciso ser rápida e certeira, pois parece que a chuva não passará e eu não quero que ela adoeça. Assim é. Como um flash. Hoje é desses encontros apenas para dizer:

Estou aqui e estou viva.




Dia 28

Acordo pior. Meu local de trabalho mantém quase todas as atividades regulares, insistindo numa possível normalidade dentro de uma pandemia. Reuniões inoperantes que se repetem uma e outra e outra vez, acerca dos mesmos temas, que dão voltas em torno de si, cuspindo uma verborragia totalmente desconectada da prática. Quando vamos aprender a ouvir? A natureza parando o mundo, pessoas se despedindo da vida, e nós, ainda, perdemos tempo nas nossas velhas repetições. Uma e outra e outra vez, sem sair do lugar. Geração após geração. Cansa-me, canso-me. Não é de hoje. Não acabará hoje. Então, o que fazer com o cansaço além de adoecer? Penso e repenso... 38 dias sem sair de casa... nem para ir ao mercado... o médico não nomeia o vírus mas parece me tratar como alguém que tem covid. Acho que não quer me apavorar. Os amigos... Você tomou limão? Gengibre? Tá comendo bem? Meditando? Toma muita água! Assiste algo leve. Faz o que você gosta. Marina Lima ficou grávida de um liquidificador, se fui viralizada foi por uma sacola de supermercado... Ironias da vida? Decido fazer a foto para me desocupar desses meus pensamentos tão cíclicos quanto o que eles criticam. Minha mãe aparece estendendo a Nossa Senhora de Nazaré junto com seu beijo. Estou abençoada e sigo o dia cuidando de mim. Nesse caminho, meus amigos também estão comigo e aparecem virtualmente um a um ao longo do dia numa rede intensa de afeto que me abraça com amor. Estou abraçada nessa caminhada.


Dia 29

Tenho meditado. Ontem meditei, quando fui deitar pra dormir. E quando estava quase apagando, shhhhhhhhhhh o ar insiste em não vir, busco, busco, não consigo engolir, shhhhhhhhh ar teimoso, cavo tento puxo me movo cadê ele cadê ele não vai pro hospital pode ser contaminada isso parece alergia diz o médico sim mas não estou respirando shhhhhhh avisa uma amiga avisa as primas doutor tô indo chego lá técnicos discutindo quem ficaria com quem porque não tem mais gente suficiente para cuidar enfermeiros como pacientes puxo puxo cadê não vem mede logo a pressão faz logo isso passar repito tudo não aguento shhhhhhh mais repetir os sintomas os amigos escrevendo as primas escrevendo o médico que tem me atendido escrevendo muito plástico muito alcool muita shhhhhhh é alergia toma anti-histamínico com efeito calmante rapidamente drogada vai para casa tira tudo no corredor alcool gel banho sabão muito sabão deito já quase apagada Acordo sem entender o que ocorreu informo à minha mãe o que aconteceu. Hoje é dia de São Jorge. São Jorge protetor. São Jorge abre caminhos. Força guerreira. Proteção. Em Barcelona e na Catalunha, em geral, meus lugares de coração, é o dia onde se trocam flores e livros. Meu São Jorge vermelho caiu e teve a cabeça quebrada. Minha mãe a colou e ele está na casa dela. Ela sai à varanda, vestida e armada com as roupas e as armas de Jorge. Escuto Jorge Ben Jor para começar o dia. E encontro um Bando de gente deshierarquizada reunida pra estudar improvisação em dança. Respiro. Revivo nos braços de Jorge.




Dia 30

Minha mãe tem um jeito só dela de complicar a vida. Coisas muito simples de serem resolvidas podem se tornar assunto para um dia inteiro. Quando faço uma pergunta, ela faz várias digressões, mas nunca responde, de fato, o que eu perguntei. É como se ela quisesse estender o tempo de conversa e para isso dá voltas contínuas sobre o assunto sem chegar ao resultado final. Tento ter paciência com essa característica. Mas um dos meus defeitos é a impaciência com coisas cotidianas pouco objetivas. Defeito esse que luto para alterar. Costumo a achar que as pessoas complicam por demais a vida aumentando obstáculos facilmente removíveis. Tenho o hábito de achar que a vida é para se resolver e não para nos deleitarmos nos problemas. Eles existem e sempre existirão. Então sigamos logo para as resoluções, assim me sobra tempo para todo resto que há de bom. Quando estou de tpm ou doente, minha paciência se acha no direito de tirar férias. Às vezes não me obedece nem com muita conversa, vira as costas e vai embora. E nesse abandono, hoje discuti com minha mãe. A foto foi feita duas horas depois. Ela sai à varanda de amarelo, com um sorriso aberto, mandando beijos. Pede pra eu esperar. Busca um balão em formato de golfinho. Eu amo golfinhos. Dizem que na praia perto de casa é possível ver alguns. Mas eu nunca os vi, então sigo olhando o horizonte na expectativa de um dia encontrá-los. Isso me acalma. Ela me escreve. E suas palavras dizem: o golfinho é para celebrar a alegria por você estar bem. Mãe é perdão encarnado. Peço a Yemanjá que junto com os golfinhos, me traga a paciência de volta. Parece que eu a avistei, ao longe, num passeio de barco. Está mais viajada que eu.


Dia 31 Acordo mareada. Sigo dopada e com sono. O País, acéfalo, precisa de respiradores para manter-se vivo. Entre os corpos que caem e a economia que se transforma, os ministros da saúde e da justiça batem retirada da linha de frente, um demitido e outro demitindo-se, desenhando a cada notícia um ciclo de horrores, no qual a pior crise está sempre por vir. Como disse um amigo meu, brincar de Bela Adormecida nesse momento pode até ser uma vantagem. Dentre esses nacos e cacos que deixam rastros daquilo que um dia se chamou de pátria amada, acordar e manter-se de pé já parecem grandes feitos. Acordar com saúde é artigo de luxo. Estou viva e melhor. Isso já me torna uma privilegiada. Ao que consta, na extrema higienização contraí uma crise alérgica dos químicos da água sanitária com detergente e do pó que se levantava a cada limpeza. O corpo sempre busca um modo de morrer. Viver é resistência diária. A gente é que não nota os detalhes. As atuais falências escancaradas parecem destilar um sabor de coloração ocre com pitada de desesperança. Mas agora que o buraco virou cratera, acredita quem quer no conto do vigário, mas cair, ahhhh cair, cair, caímos todos, uns, claro, mais fundo que os outros, como toda desigualdade regulamenta. Quando ameaço voltar para minha alienação voluntária, ativada como modo emergencial de sobrevivência, chegam algumas mensagens no direct do instagram. Pessoas escrevem para me dizer como estão emocionadas com minha história e a de minha mãe. Algumas delas nunca vimos e nem sabemos quem são. Uma jornalista me escreve querendo sugerir nossa história como pauta para um jornal local. Um rapaz me escreve se oferecendo para vir com um drone filmar uma mensagem minha para minha mãe. Envio alguns desses textos para ela, que se assusta com a dimensão que algo tão íntimo está tomando. Mas logo pondera: estou feliz porque nossa história tem feito bem a tantas pessoas.


Parece que no meio dos destroços sempre se encontra uma rosa e um som de violoncelo ao fundo para se escutar. E é na força da poesia que desafio a gravidade para levantar. Termino o dia com a força de Ekman, assistindo ao espetáculo Midsummer Night´s Dream. Por uma hora e meia volto a acreditar na força do coletivo e da dança. Vamos sonhar!


Dia 32 Devo acreditar que meu corpo tenha se entendido bailarino do espetáculo assistido no tardar da noite passada. Revolvia-me pela cama, madrugada afora, sem cessar. O calor violentava meu corpo com alguma fúria. Dormir era assunto desconhecido. Quando desperto, já se foi meio dia. E com ele, aquela sensação de tempo amassado, que não se pode voltar. Faço registro de minha mãe. Desde ontem, noto que ela começou a usar cores mais vibrantes e colares multicores. Parece que a história da história, em efeito metalinguístico, começa a lhe alcançar os ânimos. E eu sigo aqui, de camisola, esperando a vida me içar. Dia 33 Após outra noite conturbada, dançando, dessa vez, com os cisnes do Ekman, acordo num dia com cara de não sei. Chove, mas logo pára e uma massa cinzenta se prolonga no dia. Registro minha mãe no período que o sol nos permite um pouco de claridade. Ela segue solar em contraponto às águas que se acumulam do temporal recém suspenso. O jornal entra em contato conosco. Viraremos notícia de primeira mão do dia das mães.



Dia 34 Na medida em que os dias passam, percebo que ela já instaurou em seu corpo uma coreografia do encontro. Dirige-se ao canto principal da varanda, procura a janela. Quanto mais claridade, menos ela enxerga meu vulto, eu percebo. Dá adeus, se abraça, coloca as mãos nos lábios beijando-as, envia seus beijos para mim. Olha para baixo, ajeita o cabelo que se atropela com o vento, espera um pouco com as mãos apoiadas no parapeito, na incerteza se a foto foi registrada, sai. E a cena rotineira se repete. Todo dia ela faz tudo sempre igual, já diria Chico Buarque, artista de quem herdei a paixão por meio de minha mãe.


Dia 35 Entre uma tarefa e outra nos encontramos. A coreografia se repete. 1,2,3,4. Parece tudo da mesma forma, só com outra roupagem. Mas a luz está ali, presente, para lembrar que hoje a composição é outra. Nada permanece igual. A cena me convida a olhar os detalhes. Dia 36 Quando chego à janela a coreografia já está sendo dançada. Faço um registro e ela sai da varanda. Hoje o encontro é esse. Efêmero, como a dança que fiz às 4h da manhã, para dois desconhecidos (ou conhecidos?) em uma live surpresa no instagram. Um acontecimento. Dia 37 Hoje ela sai com um livro às mãos. Daqui só vejo um por do sol na capa. Ela me diz por telefone que o livro se chama As Cores do Crepúsculo, de Rubem Alves. Novamente minha mãe lê sobre a velhice. Os atravessamentos do tempo têm rodado fixamente ao seu redor.




Dia 38 Hoje acordo com um telefone de um jornal local. Em seguida o jornalista liga para ela. Mais um tempo e ele me escreve: “Ana, confesso: cada vez mais emocionado com cada vídeo, foto, relato... Acabei de conversar com Dona Nazaré e que presente de pessoa! Muito obrigada por me permitir o contato com vocês, a conversa.” Vou à janela fotografá-la. Ela está radiante. Sai com um colar de coração, pulsando em tom maior. Ao terminar a foto ela me liga.


O jornalista perguntou qual era o sonho dela. Na noite anterior, eu tinha feito a mesma pergunta a ela em função de um ciclo de meditação que tenho feito. Para mim, ela respondeu que era me ter sempre próximo, mesmo não estando junto, porque aí ela sabia que não estava só. Para ele, ela respondeu que atualmente é difícil sonhar. Ele havia me perguntado qual era o meu sonho para ela. E eu havia respondido que era ela aprender a cuidar de si mesma, ter mais amor próprio. Em uma trajetória marcada por cuidar de amados enfermos, seu próprio corpo foi se apagando. E sua presença ficou apoiada no cuidado do outro/a, que dependia dela que dependia dele/a. Toda pergunta pessoal que faço a ela, ela desvia, sabota e redireciona para mim, sem nem ao menos pensar na resposta. Eu sempre senti que a pessoa que não sonha perambula em pulsão de morte. E a minha própria mãe parou de sonhar. Quem sabe, então, o dia das mães traga a ela o meu desejo e ela reaprenda a saborear o tempo presente, redesenhando seu corpo em nova pulsão de vida.



Dia 39 Hoje ela sai com o chinelo na mão, limpando algo do parapeito. Procura-me, sorri. Acena, como de praxe. Click. Nosso encontro marca o tempo, dos dias que se perdem em si. Eu já me afogo em mim mesma, no fantástico mundo de Ana. Ouvir o silêncio de Fortaleza é conforto para meus ouvidos. Olho notícias sobre o aumento de latrocínios na cidade e, também, de casos de Covid-19 provocados pelo desrespeito às indicações da OMS. Por um relance penso no retorno: os ruídos, o trânsito, a violência, as reclamações, a ânsia de se viver o que não se viveu. Um filme de terror se apresenta. Páro. Respiro. Parece que estou bem aqui. Comigo mesma e na companhia de um tempo elástico. Coisa estranha para alguém que persegue as coletividades. Busco a natureza que sou, fecho os olhos que abraçam uma árvore e navego nos delírios da criação. Um dia desses, eu dizia: não sei se é a criatividade que causa insônia ou se a insônia gera criatividade. São 4h18 da manhã, quase hora de fazer a próxima foto. E eu sigo aqui nas minhas inventividades. A espera do próximo encontro.


Dia 40 Das belas histórias que se criam a partir dessa história, eu já poderia escrever um livro. E hoje vou contar uma delas. Conforme já relatado aqui, um dia recebo uma mensagem de alguém desconhecido. Era um rapaz que, sensibilizado com nosso percurso, oferece-se para vir filmar uma mensagem minha para minha mãe, com um drone. Seria mentira dizer que não me assustei. Primeiro com o alcance que uma história de amor pode ter, quando exposta na internet. Depois porque pensava nos riscos de toda essa ação: o risco dele sair de casa para me filmar, o risco de dar meu endereço para alguém que não conheço, o risco de me arriscar e por a minha mãe em risco. Lembrei da fala de um amigo entendendo o risco nesse lugar do desenho, que se constrói e elabora imagens. O que seria a vida senão o risco? Logo eu, que experencio a improvisação em dança e que vejo ela surgir de relações muitas vezes inesperadas que se irrompem, não poderia receber esse presente sem refletir sobre ele. Improvisar é mergulhar no desconhecido, assim como viver. Algumas das pessoas mais especiais que conheci me foram apresentadas pela vida em situações inusitadas e pelos mergulhos que me permiti a dar no escuro. É preciso confiar na vida. Deixei o tempo me dar a resposta. Enquanto os dias se passavam e eu conversava com ele para saber como poderíamos pensar essa ação, sem colocá-lo em risco, a tia dele, jornalista que já tinha me procurado para pautar a história no jornal, me telefonou para dizer que eu não ficasse preocupada porque o rapaz era seu sobrinho.


Fortaleza tem algumas curiosidades: apesar de sua imensidão, seu funcionamento social por vezes pode parecer interiorano. Quando me mudei para cá, um amigo cearense me disse: já já você verá que aqui todo mundo se conhece. E assim foi, e assim é. Em alguns dias foram se cruzando pessoas que traziam outras relações com este desconhecido. Hoje acordo bem cedo. Nosso encontro, a distância, se configura. Ele me escreve dizendo que chegou. De dentro do carro, procura minha janela. Minha mãe sai à varanda, assim que ele chega, e olha para baixo. Ela não sabe do encontro. Rapidamente retorna à casa e não aparece mais. Ele me diz que quando levantar o braço é porque o drone começará a filmar. Ele levanta o braço. E eu danço minha mensagem para a minha mãe. O barulho do drone desperta a atenção do rapaz que limpa o prédio vizinho. Ele me assiste em contra plongée. Danço olhando para o vazio da varanda. A presença dela ainda habita este espaço. Ele levanta o braço novamente. É chegado o fim. Escrevo, emocionada, agradecendo. Ele responde que é uma satisfação. Chamo minha mãe para fotografá-la. Estou tremendo. Clico várias vezes e sua imagem permanece borrada. Hoje resolvi insistir. Na dança que fiz para ela, em um momento dancei com os dedos. Para minha surpresa, na insistência, minha mãe começa a coreografar seus dedos, tentando me dizer sobre seu impulso de caminhar até aqui. Dançamos juntas em tempos distintos. As conexões reais transcendem a presença física.




Dia 41 Tem dias que tudo acorda de cabeça para baixo e segue assim, de ponta a cabeça, para oxigenar. Tudo se chacoalha, você esquece de si mesma e rearranja tempo na administração do caos. Quando volta o momento de olhar para si, dá um alívio. Gosto de estar na minha companhia. Sigo para a janela, aceno e fotografo. Hoje ela está da cor do céu. Lembro-me das inúmeras vezes que ficamos imaginando figuras nas nuvens e o hábito que tenho de fotografá-las quando voo. As nuvens nos ensinam que o mundo gira, que tudo passa, que a vida dança. Dia 42 Hoje eu já estava na janela quando ela chegou. Eu assistia a cenas de amor explícitas. Há 3 dias o pombo, que não aparecia, surgiu acompanhado e enamorado. Por detrás de suas carícias e beijos aparece minha mãe, serelepe. Há um clima de alegria no ar.





Dia 43 Hoje ela volta a rasgar papéis. Encontra entre as lembranças uma caricatura minha e é com ela que vem me visitar na varanda. Minha memória quase sempre é uma imagem vaga no horizonte. Não lembro onde esta imagem foi feita. Mas é interessante que logo eu, desatada do hábito de me olhar no espelho, me veja assim, retratada por outro alguém. O olhar de cada um sobre nós também nos constitui como seres humanos. Dia 44 Cheguei ao fim de semana, exaurida do trabalho. Nosso encontro hoje foi rápido. O excesso de contato com equipamentos eletrônicos desfaz qualquer energia que eu insista em ter. Envio um beijo, faço o registro e busco descanso. Meu corpo, em estado de esgotamento, exige pausa.


Dia 45 55 dias de distanciamento social. 45 dias de lockdown. Dia das mães. Acordo e meu celular está repleto de mensagens. Safety Distance saiu na capa do caderno Verso, do Diário do Nordeste, com uma matéria feita por pessoas amorosas e cuidadosas, que têm trabalhado de forma incansável e arriscada nesse período de enfermidade crônica. O projeto foi replicado em território nacional via twitter e inúmeras pessoas se conectaram com a história ou a repudiaram. Em um país de desigualdades sociais latentes, o ódio sempre se manifesta mesmo quando o assunto é amor. Não julgo. Se o fizesse estaria fazendo o mesmo que fizeram comigo. Ter empatia não é saber a dor do outro, mas reconhecê-la e respeitá-la. E respeito toda dor que foi projetada em nós, porque sei que ela é fruto de tantas outras dores provocadas por um sistema sócio-econômico que desfavorece a grande maioria de nós, historicamente, e o qual dedico minha vida tentando colaborar para alterar. Mas ainda é pouco. Sempre é. Em um País onde o seu maior dirigente passeia de jet ski em meio a uma pandemia, apagando a morte de dez mil pessoas e a vida de outras tantas que agonizam por falta de saúde ou de condições de subsistência mínima, qualquer coisa que fizermos em busca de justiça social, ainda é pouco. Por outro lado me impressiono com a autoridade operada pela internet que legitima que as pessoas saibam mais da nossa vida do que nós mesmos. Os posts odiosos inventavam tantos fatos sobre mim, que se poderia criar uma novela das 20h com personagem já montado. A imaginação realmente é poderosa. A internet também. Mas da mesma forma que elas podem criar equívocos, distâncias, mentiras, elas também podem criar aproximações, afetos, conexões.


Foi uma avalanche de mensagens carinhosas. Tem um mar de gente que vibra no amor: gente de todas as cores e todas as dores, de todas as experiências, idades, bairros e de todas as classes sociais. Muitas delas, muitas mesmo, as quais desconheço, vieram contar suas histórias para mim. E agradeço. Eu relutei muito para compartilhar essa intimidade, mas quando vejo que ela inspira sutilezas que precisamos reforçar no mundo, fico feliz pelo caminho escolhido. Não, não somos exemplo, não somos melhores, não somos perfeitas. Somos apenas duas pessoas que se amam e que nesse momento não podem se abraçar. Parece conto de fadas mas a vida não é feita dessa matéria. A vida real tem muitas camadas e é muito mais complexa do que possa parecer. Isso não nos impede de sonhar, lutar e agir pela democracia e justiça nesse País. Junto com a matéria, chega de presente um vídeo, que também foi produzido por um encontro gerado nessa conexão de afeto. Ainda não conheço o videomaker pessoalmente. Como contado anteriormente, as imagens foram feitas a longa distância e sob proteção. Minha mãe se sentiu homenageada e se emocionou profundamente. Aos estranhos, tão próximos, que se mobilizaram para presentear-nos, só gratidão. Feliz dia das mães, que se faz cotidiano. Desejo que juntxs possamos pedir e agir pelas mães e filhxs que têm se despedido e por aqueles que têm sua sobrevivência marcada pela violência e pela injustiça.




Dia 46 Hoje me preenche o vazio. A foto não sai. O texto não sai. Hoje é daqueles dias que não tenho nada a dizer. Ou talvez tenha. Às vezes, ou quase sempre, o silêncio é um modo de fala. Escuto o silêncio e falo por meio dele. O casal de pombos segue lá no parapeito, entre beijos ardentes. Ela sai. Com o livro Pássaro Encantado, de Rubem Alves, nas mãos. Quantas vezes li e reli este texto, que termina assim: “Ah! Mundo maravilhoso que guarda em algum lugar secreto o pássaro encantado que se ama... E foi assim que ela, cada noite ia pra cama, triste de saudade, mas feliz com o pensamento. – Quem sabe ele voltará amanhã. E assim dormia e sonhava com a alegria do reencontro.” Que bom que eu estava em silêncio para ouvir o som da voz de Rubem Alves lido por minha mãe. Pois vou dormir, sonhando com o reencontro de cada dia, ainda que a distância, mas esperando o dia em que poderemos nos beijar novamente.



Dia 47

Ela sai de óculos. Cada detalhe Ê um gesto da passagem do tempo. Veste verde, sua cor preferida, cor da esperança.

E seguimos.


Dia 48 Hoje tudo está ainda mais do avesso. As simples coisas cotidianas vão ficando cada vez mais complexas com o lockdown. Uma ação atravessa a outra, os horários se mesclam, as coisas se atrasam, os fluxos são outros. Ela sai à varanda no fim da tarde. O sol está contra a câmera. Uma névoa de luz recai sobre ela. Impossível fotografar. No entanto, ou é isso ou a foto se tornará desistência pois as reuniões encavaladas seguem uma após a outra. Faço o registro na possibilidade que se apresenta, ela está meio cabisbaixa nos primeiros clicks porque não me vê, nem o vulto. Mas quando o sol baixa um pouquinho ela se anima timidamente. Hoje é isso. Voltar para a imersão virtual e seguir o ritmo para ganhar o pão.


Dia 49 Antes da foto ela estava com rolos na cabeça, antigo hábito que ainda perdura. Pedi para fotografá-la assim, mas ela não quis. Foi pentear-se para a foto. Ela sai, o vento bate e invade seus cabelos com força. O dia escuro e o corpo em movimentos rápidos deixam a foto turva. Ela ri. Resta rir. A vida não é controlada como desejamos. É preciso saber rir de si próprio e dos acasos.





Dia 50

Não vi o dia passar. Uma função virtual atrás da outra. O dia está cinza. E ela vermelha. Seu cabelo reluz como floco de neve. Foi a única luz que vi fora das telas dos eletrônicos hoje.

Um respiro.



Dia 51 Cada vez que chegam compras no delivery, o meu dia se resume em negociar com o entregador as ausências, as trocas, os acréscimos, os horários. E, claro, dar banho em coisas. Dos hábitos que nunca pensei em ter na vida: dar banho em sabonetes. É preciso surpreender-se com as experiências. A casa se perfumou de baunilha. Ela sai linda. É um alento. Amamos baunilhas e orquídeas. Quando lembro de orquídeas, lembro de Lenine, cuidadoso e curioso colecionador dessas lindas plantas e um dos artistas que me fazem flutuar. Ele tem me feito companhia nesse isolamento, ainda que não tenha tido a linda oportunidade de saber disso. Há pessoas necessárias nesse mundo porque elas não desistem da poesia. Felizes são os que conectam com elas. Então convido que a leitura deste dia seja seguida da escuta de sua canção poema, Paciência:

Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma / até quando o corpo pede um pouco mais de alma / a vida não pára. Enquanto o tempo acelera e pede pressa / eu me recuso faço hora vou na valsa/ a vida é tão rara. Enquanto todo mundo espera a cura do mal / e a loucura finge que isso tudo é normal/ eu finjo ter paciência/ o mundo vai girando cada vez mais veloz / a gente espera do mundo e o mundo espera de nós / um pouco mais de paciência / Será que é tempo que lhe falta pra perceber / será que temos esse tempo para perder/ e quem quer saber / a vida é tão rara (tão rara) / Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma / Mesmo quando o corpo pede um pouco mais de alma/ eu sei, a vida não para / A vida não para não.


Dia 52 Hoje ela sai celebrando o domingo. Decidi fazer biscoitos. Tocar a textura aveludada da farinha de trigo me acalma. Monteiro Lopes é um biscoito que surgiu entre 1850 e 1890 em torno do meu tão amado Mercado do Ver-o-Peso, em Belém, sua terra natal. O biscoito se chama assim em homenagem à família que o criou. Minha mãe aprendeu essa receita com minha avó. E eu aprendi com minha mãe... das poucas receitas que ela me ensinou a medida certa. Porque normalmente as quantidades de sua pedagogia culinária se resumem à célebre frase: é no olho. O tamanho do meu olho é diferente do dela, então nunca consegui chegar a um resultado gastronômico similar. Como exceção, estão aquelas receitas que ela se debruçou sobre a medida certa, para anotar num caderno que pedi para ela fazer para mim. Preciso de receita até para cozinhar um ovo. Mas após destruir a cozinha, costumo obter resultados saborosos. O de hoje não foi diferente. Após permitir de forma descuidada que a calda derramasse lentamente em todo fogão, que eu havia acabado de limpar, finalizei minhas pequenas delícias, com cheiro de casa de mãe, para afagar o coração. Ela quis comer. Por um momento tive um ímpeto de ir visitá-la, mas tivemos medo. Seguem fazendo festas em meu prédio. Os funcionários começam a adoecer... consideramos, ponderamos, desistimos. Hoje quem manda a foto dos biscoitos sou eu...





Dia 53 Ela disse: vamos tirar a foto que já estou com minha coroa. E sai reinando alegria, com uma blusa de borboletas, flores e cores. Dia 54 Acordo acamada. Garganta inflamada. O mundo pede que eu me cale. Dói falar porque dói sentir. É isso. O dia seria de pausa. Mas tem que trabalhar. Tem que trabalhar. E tem que lembrar de agradecer que tem trabalho. Tem que trabalhar. E agradecer. Agradecer e trabalhar. Já disse isso. Já. E não só hoje. O texto se repete. A doença se repete. O trabalho se repete. A vida se repete. A repetição se repete. No meio disso tentamos sobreviver. No meio disso tentamos ser solidários. No meio disso tem muito meio. E eu costumo falar sobre os meios, questionar os meios, provocar os meios, desestabilizar os meios. Então o mundo me calou. Hoje a foto foi só pra dizer: levantei por alguns segundos, mas me levantei.


Dia 55 Eu já não sei há quantos dias tô aqui. Me perdi. Mais remédios. Mais letargia. Levanta e tela. Tela, tela, tela. Lembro de comer. Lembro da foto. A luz quase se foi. Foram feitas 30 fotos e nenhuma, tentando manter a nitidez de uma imagem que não é nítida. Tá tudo embaçado. Tudo. Nem tinha notado que ela estava com uma blusa que foi minha. Abandono. Minha mãe sente. Seus gestos são desistidos. Há um cansaço. Há um cansaço. Há mesmo um cansaço. Uma foto é da partida. Tem que ser da partida. Pela primeira vez o degradé do céu do Ceará que costumava encantar meus fins de tarde, aparece para me dizer que há um porvir, sempre há um porvir. Aquele dia não saímos para a foto. Saímos para encontrar o céu. Decido contar os dias. 65. É mesmo...





Dia 56 Meu corpo não sou apenas eu. Meu corpo são muitos. Sou docente, mas antes de tudo sou artista docente, mas antes de tudo sou cidadã docente. Sentir a dor emocional dos estudantes que me cercam tornou-se minha dor. Assim como tantas outras dores de amigos e não amigos que fazem eclodir nesse momento os mundos tão díspares em que vivemos. Hoje a tristeza me alcança, minha coluna curva, meu pescoço pesa. Há dias e dias. A vida é assim, dentro ou fora do isolamento. Minha mãe sai com sorriso largo. Suspiro. Eu só queria poder deitar em seu colo. Dia 57 Hoje a foto é entre uma faxina e uma live. O encontro é pontual. Limpar a casa e tomar um banho para receber quem chega. Deixar o ambiente perfumado. Buscar a leveza em mim para trazer mais leveza pro mundo. Estamos precisados. A live é de um amigo que me acolhe como cearense, que me faz sentir abraçada em Fortaleza, que me faz rir. E hoje também comemoramos seu aniversário. Ele pede uma receita e fazemos os Monteiro Lopes online. Ele pede que eu conte sobre o projeto com minha mãe. E assim minha mãe novamente se materializa no instagram sem nem saber que lá estava. Ela sempre está entre nós. Ele me presenteia com a Peça Aquática, de Yoko Ono: “Roube a lua da água com um balde. Continue roubando até que não se veja a lua na água. Primavera de 1964.” E agora me sinto no desejo de ser lua dançante. Onde está a lua em mim? Como a lua me dança? Termino o dia cantando Beradêro, de Chico Cesar. Lembrei que posso cantar.



Dia 58 Hoje acordei cedo e já fui fotografá-la. O presente que a natureza nos deu foi uma linda luz recaindo sobre ela. E essa imagem seguiu ecoando ao longo do dia. O vento invade seus cabelos. Ela ameaça ajeitá-los e creio que se lembra da última vez que ocorreu isso e comentei da beleza daquela dança dos cabelos provocada pelo ar. Então pausa e permite o vento seguir seu curso. Este é o registro de hoje. Neste fluxo de respiro, um amigo me chama pra tocar na festa online “Ajuntamento”. Em menos de três horas a festa está montada. Meu corpo reage à paralisia dos dias.


Dia 59


Dia de descanso.


Dia 60

Um corpo que cai.


A dor se manifesta novamente, na garganta, no ouvido. Mas talvez seja mesmo a dor da falta. Fecho os olhos e penso: queria ver o mar, queria ver minha mãe. Vou à janela. Ela sai com as mãos em reza para me abençoar. O médico tem receio de uma infecção, sugere a ida ao hospital. Lá estou eu de novo na dúvida. Minha imunidade baixa me traz reticências e pela primeira vez reflito: “estou preparada para voltar ao mundo?” Volto a tomar o remédio. Química, química. As doenças foram se arrastando em meu corpo e ontem brinquei: o isolamento me tornou uma hipocondríaca. A noite tenho uma live agendada para improvisar com 13 pessoas ao longo de uma hora. Preciso estar bem. Esse mantra se repete, uma e mais uma e mais uma e mais uma vez. E danço. É transcendental. A entrega de todos, o desejo de encontro, a generosidade, a energia gerada. Termino em êxtase. Corpo em transe.


Dia 61 Acordo bem. Além da química, a benção e o rito da dança me fazem trasladar. A repetição dos dias faz com que nosso encontro se converta quase em uma tarefa a cumprir, em meio a exaustão das tarefas cotidianas, mas vê-la traz alento. A saudade aperta. Há coisas que o tempo não traz de volta. A presença é uma delas. Faço um bolo de chocolate com coco, receita dela, e o apartamento se enche de afago.



Dia 62 Definição de infinitude: serviço de casa, misturado a trabalho, misturado a estudo, misturado no tempo, misturado no misturado. É irônico. Meu sotaque, também misturado, sempre causava questionamento: de onde você é, de onde você vem? E eu sempre respondia: sou do mundo, moro no avião. Pois agora aqui estou, há 72 dias dentro de casa, abrindo a porta duas ou três vezes na semana para pegar entrega e jogar lixo fora. Parte do corpo pausa e pousa, mas a outra parte segue deslocada. Hoje foi ela quem me ligou, preocupada. A manhã passou de modo invisível. Acordei às 6h e sua ligação me alerta que já são 13h. Tenho tendido a achar que minha casa se auto desorganiza, como um organismo independente. Qualquer dia não encontrarei a mim mesma em meio as coisas que me fazem companhia. Aproveito que ainda não me perdi em mim e vou à janela encontrá-la. Hoje ela não me enxerga. Seu rosto está triste.




Dia 63 Acordo e vou fotografá-la. Ontem ela pediu que a foto fosse pela manhã para ela tentar me enxergar. A luz muda muito a possibilidade de existência do meu vulto-corpo para ela. Ela sai e vê algo de mim. Fica feliz. Hoje, acima, sua vizinha reaparece em alongamento, e no prédio ao lado, meninos jogam futebol. Parece que lá fora anda tudo normal. Às vezes penso sobre minha radicalidade de não sair, de fato, de casa. E as consequencias disso para o físico/emoção/imunidade. Ontem à noite, o céu me permitiu ver um degradé entre azul, rosa e amarelo. Fez-se aconchego.



Dia 64 Hoje a luz está favorável para que ela me veja. Seu corpo se anima quando pode me ver. Ela está reluzente e a foto se faz na primeira tentativa. É bonito quando o encontro se faz fluxo leve. Dia 65 Ela está com desejo de tomar sorvete sonho de valsa, o chocolate que mais gosta. Peço para entregarem na casa dela. Ela sai à varanda extremamente contente, tomando seu sorvete. Os afetos dos alimentos, por vezes, tentam nos ajudar a diminuir as distâncias.



Dia 66 Hoje o dia amanhece chuvoso. A gente comemora o tempo que nos foi dado de suspensão do duro calor. Hoje é dia de ver filme. A minha paixão pelo cinema veio de minha mãe. Recordo-me desde muito criança de ir aos cinemas de rua, no Rio de Janeiro. E, antes, claro, abraçar-me em um pacote de pipoca, mentex e bala de hortelã garoto. Tornei-me cinéfila fervorosa. Ser atriz em um filme é um dos sonhos que tenho, ainda não realizados. Quem sabe um dia... Enquanto isso, registro minha história com minha mãe.


Dia 67 Acordo bem cedo para trabalhar. A luz em sua varanda está linda e peço para fotografá-la. Hoje começam as fases de abertura do lockdown e meu corpo se sente ansioso. Fico muito tempo tentando registrá-la. Ver a imagem tão preciosa e não conseguir materializá-la em fotografia começa a me causar irritabilidade. Ou será que a irritabilidade está instaurada no meu corpo e se manifesta agora? Quanto mais tempo tardo, mais me incomodo com o tempo de exposição de minha mãe ao sol para que o registro seja feito. Insisto, insisto, insisto. Não posso compreender que uma imagem tão bonita não consiga ser compartilhada com o mundo. Nós e essa necessidade humana de nos eternizarmos de alguma forma... Começo a me preocupar com a minha visão. Será que está tudo bem? Porque não consigo foco? Dali já penso na falta de foco na vida... minha vida anda desfocada... ou minha vida é desfocada? A cabeça dá voltas, gira, imagina, pensa, se confunde, se emaranha. Um encontro nunca é só um encontro. Uma foto também não.



Dia 68 Minha vida atual poderia ser sinônimo de trabalho. São de 12h a 14h na frente do computador. Mais reuniões para definir o que fazer, como fazer, quando fazer, com a continuidade de um curso/vida que pressupõe o corpo em movimento dançado, em contato, o esparramar de fluidos. Converso com uma amiga infectologista. Ela me diz que os infectologistas consideram totalmente despropositado que todas as pessoas retornem à vida “normal” nesse momento. As ideias circulam, os pensamentos rodeiam, a cabeça pesa. Que decisão tomar sobre o desconhecido, o improvável, o impreciso? Tudo é risco. Vou fotografá-la, quase sem luz. E volto a trabalhar. Meu raciocínio “desrraciocina”. Só quero dormir e sonhar.




Dia 69 Hoje novamente vou fotografá-la contra luz. Meu corpo dói. São 79 dias imersa no meu apartamento. Meu único contato com o mundo exterior é via internet ou quando desço à portaria para pegar alguma mercadoria que chega. Hoje o rapaz que trabalha na portaria me disse que eu sou a única pessoa que não sai do prédio para nada. Hoje ele me disse que emagreci. Hoje ele me disse que já está acabando. Questiono e requestiono a minha radicalidade (?) de ficar em casa. Combino com a minha mãe de que amanhã faremos a última foto deste projeto e que irei vê-la. Afinal, é perto. A lua cheia nos visita e nos brinda com seu jeito doce de existir.



Dia 70 Acordo. Está faltando água no meu prédio. Coisas simples, como comer, se tornam um evento. Há espera. Há espera de que volte. Mas não. Assim segue o dia. Peço que ela vá à varanda para fazermos nossa última foto. Ainda não é hoje que conseguirei vê-la. Não teria como me higienizar na volta. Mais um dia. 80 dias de lockdown. Ela entristece. Meu corpo padece.


Dia 71


Finalmente, o encontro! Hoje nĂŁo tenho nada a dizer, sĂł a sentir.




Apêndice 1 Ela faz empadas de queijo para mim. Não queria ser fotografada de camisola. Falou que estava feia. Eu a achei linda. E fotografei. Ela aceitou. Mãe é mãe.



Apêndice 2 Acordo e nos falamos pelo whats app. Ela aprendeu a abrir o vídeo. Ela pede pra tentar novamente produzir uma foto minha. Vou para a janela. Em seguida, ela me envia uma foto dela em sua sacada com meu prédio de fundo. Há uma minúscula mancha em uma das janelas. A mancha sou eu. Hoje almoçaremos juntas. Somos sobreviventes, até aqui.



Anexo 1 No dia 14 de abril de 2020 foi anunciado pelo Jornal O Povo que o bairro onde moramos superou o número de casos de coronavírus de 10 estados brasileiros (Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Acre, Roraima, Alagoas, Piauí, Sergipe, Rondônia, Tocantins). Anexo 2 Dia 07 de junho de 2020, dia em que a primeira versão deste livro foi finalizada, o Brasil sumiu das estatísticas mundiais sobre o COVID-19 do site da Johns Hopkins University, porque o Governo Federal alterou e atrasou a forma de divulgação dos dados do coronavírus no país desde o dia 05 de junho de 2020. O atual presidente considera o vírus letal como uma “gripezinha” e entende que os meios de comunicação estão fazendo um alarde desnecessário sobre as mortes decorrentes da contaminação. Segundo a Uol, no dia 06 de junho de 2020, o portal do Ministério da Saúde excluiu o número total de infectados pelo coronavírus no País. As notificações da doença a partir deste dia se referem aos dados de apenas 24 horas. O Brasil é o país que menos testa a população para a doença e, ainda assim, de volta ao site da Johns Hopkins University na data de hoje, o País aparece como segundo no ranking do maior número de pessoas infectadas. O site G1 alega que em levantamento exclusivo junto às secretarias estaduais de saúde, os dados atuais são: 36.499 mortes e 691.962 casos confirmados. Mas aponta que o balanço nacional do Ministério da Saúde divulgado foi de 35.930 mortes e 672.846 casos confirmados. Desde o início da pandemia o governo teve duas


trocas no cargo de ministro da saúde, com saídas, 16/04 e 15/05. Dia 16/05 o terceiro ministro, militar, assume o cargo como interino. Paralelo a isso, vêm a tona vários casos de assassinatos de negros no Brasil, incluindo crianças, vítimas de operações policiais em comunidades periféricas. Infelizmente, esta pandemia é histórica e contínua. Dia 31 de março de 2020 torcidas organizadas de futebol se juntam nas ruas para protestar a favor da democracia e contra a presidência. Hoje, dia 07, pessoas vão às ruas protestar contra o racismo e contra o facismo. Apesar do uso de máscaras, é legítima a preocupação de que os protestantes se contaminem lutando pelos direitos básicos à vida, à igualdade e à dignidade. O meu local de trabalho segue dizendo que não podemos parar, sem organização geral planificada, sem preocupação pedagógica, sem empatia ou afeto.. Meu curso faz resistência, assim como outros, na tentativa de não sucatear mais a educação. Afinal, o que seria viver, senão resistir? Amanhã, em Fortaleza, serão reabertos, entre outros estabelecimentos, shoppings, salões de beleza, livrarias e comércio em geral. Que seja dada a largada do novo mundo. Até quando? Anexo 3 Dia 22 de setembro de 2020. Fechamos o livro para a publicação. Hoje são 965.529 mortes por Covid-19 no mundo, 137.350 no Brasil e 8.834 no Ceará. Em Fortaleza, de modo geral, as aglomerações sem uso de máscara voltaram a ocorrer com alguma normalidade, como se a cura para o vírus tivesse sido encontrada. Sigamos em esperança e espera.


Safety Distance Fotos e textos Ana Mundim Conselho Editorial Presidente: Juan Esteves Membros: Alexandre Sequeira Danny Bittencourt Eder Chiodetto Elinaldo Meira Elza Lima João Kulcsar Lia de Paula Luciana Arslan Patrícia Veloso Yan Belém Projeto Gráfico Igor Cavalcante Revisão de Textos Carmen Dolores Rocha Este livro contou com o apoio do edital Arte em Rede da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará.



Safety Distance é um projeto que se inicia no décimo primeiro dia de isolamento social, em função do surgimento do Covid-19, doença infecciosa causada por um novo vírus e que é transmitida pelo contato físico entre seres humanos. Nos dez primeiros dias, visitava a minha mãe diariamente. Eu continuo trabalhando home office e necessito de internet. Ela não a tem e achamos arriscado colocar um técnico em sua casa nesse momento, com risco de transmissão. Começo a cair doente e considero prudente parar de vê-la. Conversamos e decidimos nos afastar fisicamente. Dados: Uma mãe. Uma filha única. Pai falecido há 25 anos. Eu: a filha. Ela: a mãe.


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