Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o
JANEIRO 2021 n.º 146 7.237 EXEMPLARES
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Um hino à Humanidade ADRIANA FREIRE NOGUEIRA Diretora Regional de Cultura do Algarve
Ficha técnica Furna na Fortaleza de Sagres FOTO VANDA RITA OLIVEIRA / D.R.
Direção: GORDA, Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire
No início de cada ano, fazem-se listas de intenções para se cumprirem durante os 365 dias seguintes. Também é nesta altura que se fazem balanços, se observa o ano que passou com olhos mais críticos, se percebe o que se fez bem e o que se poderia ter feito melhor. Relativamente a 2020, não foi preciso esperar pelo seu fim, para se ir fazendo essa avaliação, quase diariamente, a partir do momento em que a COVID-19 passou a ser o centro das nossas preocupações, fazendo-nos esquecer, muitas vezes, a Vida que continuava a acontecer, impávida, perante a inquietação dos nossos dias e dos nossos sentimentos. Foi preciso reagir, adaptar, refazer, recriar, criar uma diferente forma de estar. Nas áreas de competência da Direção Regional de Cultura do Algarve (DRCAlg), não foi diferente. As instituições são feitas de pessoas e todos nós sentimos aquelas necessidades, perante a situação de distanciamento, de confinamento, de mudança de paradigma de trabalho. A resposta teve de ser imediata, acompanhando a velocidade a que a realidade ia mudando, de modo a não perder de vista a nossa missão e atribuições, como sejam a criação de condições de acesso aos bens culturais; o acompanhamento quer das atividades das estruturas de produção artística quer das ações relativas à salvaguarda, valorização e divulgação do património cultural imóvel, móvel e imaterial; o apoio aos museus da região e o apoio a iniciativas culturais. A recetividade de quem se candidatou aos nossos apoios foi grande, fazendo todos – instituição e agentes culturais – um esforço de adaptação, tanto no PAACA – Programa de Apoio à Ação Cultural no Algarve, como no programa DiVaM – Dinamização e Valorização dos Monumentos. Este último, em vez de durar os costumeiros 9 meses, teve se se concentrar no último quartel do ano (de 5 de setembro a 13 de dezembro). Apesar de tudo, conseguiu-se realizar quase todas as atividades inicialmente previstas, graças ao empenho dos agentes culturais (que reformularam, reprogramaram, adaptando os seus projetos) e da equipa DRCAlg, pois, juntos, conseguiram garantir o que todos queremos e que tem sido expresso, na comunicação social e nas redes sociais,
Responsáveis pelas secções: • Artes Visuais: Saúl Neves de Jesus • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Fios de História: Ramiro Santos • Filosofia Dia-a-dia: Maria João Neves • Letras e Literatura: Paulo Serra • Marca D'Àgua: Maria Luísa Francisco • Missão Cultura: Adriana Freire Nogueira Colaboradores desta edição: Teresa Rita Lopes e Vítor Azevedo Parceiro: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve FB: https://www.facebook.com/ Cultura.Sulpostaldoalgarve
através do mote, #ACULTURAÉSEGURA. Na área da salvaguarda, continuámos a responder diariamente aos desafios da defesa do nosso património cultural, apreciando e emitindo parecer sobre os projetos em áreas patrimonialmente protegidas e monitorizando os sítios arqueológicos e os trabalhos neles realizados. Visando a valorização e divulgação do património cultural, a DRCAlg realizou várias ações internas,
entre técnicos e restantes trabalhadores, assim como externas, das quais destaco as sessões de sensibilização e capacitação de profissionais de empresas de animação turística (em colaboração com Região de Turismo do Algarve), que, sob o título “O nosso património cultural”, pretenderam o fomento de uma cultura de valorização e preservação dos bens culturais da região e a promoção de uma correta comunicação e melhor experiência turística e cultural
do património edificado. Ainda nesta área, as obras não pararam, tendo-se concluído, por exemplo, o projeto de acessibilidades da Fortaleza de Sagres, a requalificação da Casa Rural de Milreu, assim como dado início à 2ª fase da recuperação dos mosaicos romanos deste sítio arqueológico. Antes de terminar, relembro as palavras de umas das intervenções do coro da peça Antígona (de Sófocles, autor grego do séc. V a.C.), conhecida como «Ode ao
Homem», um verdadeiro hino às capacidades extraordinárias do ser humano. Os primeiros versos anunciam a maravilha: «Existem muitos portentos, mas nenhum maior do que o ser humano». Depois, continua a enumerar as capacidades inventivas que o fez cruzar mares, aprender a sobreviver em situações difíceis, a aprender «a linguagem e o pensamento ágil/, os costumes civilizados». E diz ainda: «Não avança no futuro sem recursos. /Apenas ao Hades não poderá fugir;/ no entanto, meditou com outros/ o modo de escapar a doenças para as quais não havia recurso./(…)». Nestes poucos versos, lemos tanto do que ainda hoje faz sentido e que, espero, se refletirá neste 2021 que agora começa: trabalharmos em redes colaborativas, usarmos o nosso raciocínio para encontrar recursos que preparem o futuro, termos sabedoria para nos protegermos enquanto civilização. Visitemos os espaços culturais que existem nos nossos concelhos: monumentos, museus, galerias; assistamos a espetáculos de todo o género, na rua, em teatros, em salas formais ou informais; leiamos livros; participemos em encontros culturais. A nossa visita, a nossa presença, é o apoio de que todos precisamos. A Cultura é, de facto, segura.
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OPINIÃO
Morreste-Nos, Eduardo Lourenço! TERESA RITA LOPES Professora, escritora e especialista em Fernando Pessoa
M
orreste como eu quero morrer: sem envelhecer – estavas inteiro por dentro, esse dentro que anima o nosso fora. Não vou ao teu enterro porque não estarás lá. Fui acompanhar-te há sete anos quando morreu a tua mulher. Falaste à beira da sua cova da nossa finitude. E, à tua boa maneira, compuseste um poema. No meu Sul natal, antigamente esperava-se que os familiares dos defuntos lhes fizessem um bonito “pranto” durante o velório. Creio que isso era catártico, que ajudava a suportar a dor do desenlace. Ouvi, em Alcoutim, uma mulher gabar-se: “Quando a minha Mãe morreu fiz um pranto que foi gabado por toda a gente!” Quando, na nossa presença, desfiavas os teus pensamentos, sabias fazê-lo com a emoção e a arte de um bailarino: impossível reproduzir depois em palavras o que tinhas dito. Impossível resumir uma dança, uma música, um poema. Congresso em que não estivesses não era congresso, eras tu que os abrias e fechavas. Contavas que a tua mulher desaprovava, tu dizias que não podias faltar porque…, ela retorquia que ias porque querias, porque gostavas, e era verdade – e ainda bem! Também contavas que ela te acusava “Não sabes dizer que não nem ao teu cão!”. Mas não era por isso, não, era porque até morreres disseste sempre “sim!” à vida! (É verdade que exageravas: ralhei-te valentemente quando soube que tinhas prefaciado o livro do Sócrates – isto é, por ele assinado: “Que vergonha prefaciar o livro do Sócrates, que nem sequer é dele!”. Defendeste-te, com ar culpado: “E eu sabia? E eu sabia?!) O que para aí vai de homenagens ao teu nome! O que nos havíamos de rir disso tudo se aqui estivesses! Por mim, já sabes que detesto unanimidades, sobretudo gratuitas. A elogiar-te ninguém se compromete, pelo contrário: faz figura de culto – mas quantos de todos esses te terão
lido?! Prefiro falar de ti numa homenagem de terreiro – esta, em que falo de ti, contigo e com alguns amigos. Depois de falar contigo, vou falar de ti. Eduardo Lourenço tem vindo, às vezes, a propósito quando conto a minha vida. Existe nela há mais de cinquenta anos, quando nos encontrávamos em Paris – eu, recém-exilada, ele, eterno transeunte, então em trânsito entre Vence e Paris, onde acontecia a cultura portuguesa. A mulher, francesa, teve sempre que o repartir com outras pessoas e lugares. Encontrávamo-nos, nesses anos sessenta, num cafezinho no Quartier Latin, numa mini-tertúlia com o António José Saraiva e outros exilados. (Ele nunca foi: ao contrário de nós, era hábil a evitar as malhas da PIDE…) Era então autor de um livro só, Heterodoxia – e como esse título era oportuno! Tanto eu como o António José Saraiva torcíamos o nariz ao Neorrealismo, perfilhado pelos da Esquerda ortodoxa. (Pela minha parte, sempre torci o nariz a todos os ismos.) Gostávamos de Agustina, desdenhada pelos neorrealistas, Síbila era do nosso agrado. Dele também. A principal afinidade entre Eduardo Lourenço e António José Saraiva – eram amigos e estimavam-se mutuamente – era a natural coragem de remar contra a corrente, dizendo coisas impopulares: Saraiva brutalmente, ele à sua maneira um tanto clerical, indirecta, que não levantava suspeitas… Não vou falar nas de Saraiva, conhecidas pelos amigos da sua roda, em Paris – Eduardo Lourenço era um deles – apenas sobrevoar as reveladas pelo livro de E. Lourenço Heterodoxia (de 1949, houve outro em 69) que contestavam não só a ortodoxia marxista dos intelectuais de então, seus amigos, mas também a católica, dos sustentáculos do salazarismo, em que tinha sido educado (a Mãe queria que fosse padre, tem uma irmã freira, e, em novo, era abominavelmente parecido com o Salazar!). É claro que também desagradou profundamente aos da presença, muitos deles seus amigos, ao declarar que essa revista representava “a contra-revolução do Modernismo”. Na “Grande Entrevista” de há 5 anos, reapresentada agora, desa-
gradou com certeza a muita gente ao comentar, a propósito de agora sermos célebres no mundo apenas graças aos nossos heróis do bolapé, que “cada povo tem os heróis que merece”. Nesses meados dos anos 60, o Eduardo colaborava num jornal de Coimbra – Notícias de Coimbra – e pediu-me poemas para a sua página literária. Ouvi-o dizer algumas vezes, até em público, que o que ele teria gostado era de ser poeta. Fez poemas na sua juventude, mas depois deixou-se disso. Algumas vezes lhe disse, depois de me regalar a ouvi-lo, nas suas palestras: “Ah, ganda poeta!” porque era isso que me agradava na sua expressão. Depois de o ouvir, tentava resumir de cabeça o que ele tinha dito, e não conseguia. Ele encantava-nos com a sua fala que era impossível resumir. Roland Barthes disse, nesses tempos remotos da minha juventude exilada em que o lia e ouvia – até nos Hautes Études (era, como, Lourenço, um “charmeur”) – que a poesia se não pode resumir. E é verdade. Creio que o Eduardo Lourenço nunca gostou especialmente de investigar. Não, não tinha “assento” para ser um investigador a valer: sempre o conheci a borboletear de um lado para o outro – o que enfurecia a mulher e, provavelmente, o arredava ainda mais do lar… Lembro-me que até foi embaixador ou adido cultural em Roma. O seu Pessoa é o que a editora Ática revelou, nem sequer um vigésimo da obra. É claro que nunca teria pachorra para visitar o espólio, há muito público. Estou convencida que nem lia os meus livros, esses que tentavam revelar um “Pessoa por Conhecer”. Ofereci-lhe alguns, depois deixei-me disso. Não tinha vagar, andava sempre de palestra em palestra, de congresso em congresso, de prefácio em prefácio. Estou a ser injusta: leu, sim senhor, o meu primeiro “pavé” sobre o Pessoa, editado pela Gulbenkian em 1976, disse que um livro como aquele só acontecia de muitos em muitos anos… Claro que gostei que mo dissesse porque percebi que era sentido. Mas duvido que tivesse lido os que se lhe seguiram, sobretudo os textos pessoanos que me tenho afadigado a dar a conhecer para corrigir as desfigurações da Edição Crítica e dos novos pes-
soanos, seus continuadores. Esteve longamente matriculado para fazer um “Doctorat d’État”, para ter direito a um lugar efectivo de Prof., na Universidade de Nice, em que lecionou, mas nunca defendeu essa tese que, imagino, nunca chegou a escrever. Teve um director de tese e tudo, o Prof. Lawton, que conheci mas que naturalmente não teria coragem de lhe pedir contas do adiantamento do trabalho… Nunca se instalou, por isso, na carreira: os franceses fazem total questão dessa tese e desse título. Tínhamos a impressão que residia em Paris porque estava lá sempre connosco, a pretexto de reuniões, congressos, sessões de todas as qualidades e feitios em que nós, os exilados, éramos férteis – nomeadamente a chamada “Liga do Ensino”, filial portuguesa da “Ligue pour l’Enseignement Laique”, de que eu, a Maria Lamas e o António José Saraiva éramos dirigentes. Lembro-me da sua presença entusiasta nessas sessões. Assistir a essa “Grande Entrevista” de há cinco anos, que não conhecia, agora de novo apresentada, foi um grande prazer. Era sempre maior, confesso, que o de o ler. Surpreendeu-me que respondesse que o maior prazer da sua vida foi o de ter encontrado a sua mulher. Com manifesta má-consciência, lamentou nunca ter sido o que ela esperava dele. Conheci-os juntos: às vezes, a tensão entre o par despedia faíscas: ela era uma perfeita francesa cartesiana, professora universitária de Literatura Espanhola, na Universidade de Nice, em que o pai era Director e Eduardo Lourenço professor. Era-lhe muito dedicada, sem dúvida, até lhe traduzia os livros para francês. Contou-me, com essa sua rara qualidade de se rir de si próprio, que ela se impacientava no meio do emaranhado do seu discurso, e lhe perguntava: “Mais où est le sujet?” (Onde está o sujeito?) Comportava-se, na ausência dela, como um menino rebelde. Numa das suas constantes passagens por Paris, no intervalo para almoço de algum congresso, coincidimos à mesa de um restaurante. Encomendou o prato mais pesado da ementa, com choucroute, salsichas e não sei que mais. E já nessa altura os médicos lhe prescreviam dietas. Ralhei-lhe:
“Porque é que pediu essa comezaina? Isso nem sequer é bom!”. Pensou, e respondeu-me: “Acho que só porque a minha mulher não está aqui para me impedir!” Viveu sempre “le cul entre deux chaises” – nome de um grupo de teatro de jovens franceses filhos de emigrantes portugueses de que me lembro, não sei se ainda existe. Passou a maior parte da sua vida em França mas, como alguns peixes que emigram, voltou à pedra natal para desovar e morrer. O Eduardo Lourenço adorava rir, como eu adoro (tive que escrever o verbo no indicativo, para me não sentir póstuma). Quando aqui coincidimos em evocações públicas de amigos comuns (Urbano Tavares Rodrigues, António José Saraiva) pusemos toda a gente a rir, a começar por nós – nos espaços solenes da Biblioteca Nacional e da Faculdade de Letras, respectivamente. Mas com um rir parecido: não nos ríamos deles, dos evocados, gostávamos de os trazer para esses domínios da infância em que ambos ainda gostávamos de brincar e o riso acontecia, como um cântico. Elogiava então a minha vocação para actriz (que recusava e recuso: apenas para escrever teatro, não para o representar). Eduardo Lourenço gostava de me divertir evocando-se em cenas chaplinescas: ao tomar um táxi perto do hospital Júlio de Matos, o motorista, atentando no seu ar despassarado, imaginou-o evadido de lá e perguntou-lhe: “Tens dinheiro?” e exigiu-lhe “Mostra lá!”! Descreveu-se-me também ao volante do seu carro, a esmurrá-lo e a pôr em perigo a circulação: “Ao volante sou um perigo público!” Creio que o que o fez viver tanto tempo foi essa sua vocação para a alegria. Apesar de diabético não assumido: sempre o vi comer sobremesas açucaradas nos almoços que compartilhámos. Desmaiou uma vez na Academia das Ciências, por hipoglicémia. Creio que não levava a doença a sério. Tinha o ar de não levar nada na vida demasiado a sério – sobretudo esses anseios do baixo quotidiano a que as pessoas se acorrentam. Gostava de não ter poiso fixo, de esvoaçar de galho em galho. Uma vez respondeu a um entrevistador: “O que eu gostava era de voar!”
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MARCA D'ÁGUA
Alfarroba: o “ouro negro” do Algarve MARIA LUÍSA FRANCISCO Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa luisa.algarve@gmail.com
P
recisamente há um ano escrevi neste suplemento cultural um artigo sobre o Sal, referindo-o como o “ouro branco” do Algarve. Um ano depois, escrevo sobre a Alfarroba, que é considerada como o “ouro negro” do Algarve. São dois produtos que aprecio e que consumo, mas a alfarroba tem um significado especial por fazer parte do imaginário de infância. Creio que há em muitas famílias do Algarve um olhar afectivo sobre a alfarroba com memórias telúricas e de convivialidade. As alfarrobeiras fazem parte da paisagem e da identidade algarvia e os seus frutos foram durante muito tempo usados apenas como alimento para animais. Mais tarde passou a ter uso na doçaria regional e a ter mais interesse e valor comercial, sendo uma ajuda na economia familiar. A alfarroba tem destaque na economia
da região algarvia como matéria-prima. Há uma indústria local, única a nível nacional, em que a alfarroba e os seus derivados têm relevo na exportação, levando assim a alfarroba até países longínquos, sendo o Japão um dos principais destinos. Portugal é um dos maiores produtores mundiais de alfarroba, tal como a Espanha e Marrocos. A alfarrobeira (Ceratonia siliqua L.) é originária das zonas áridas do Mediterrâneo e da Península Arábica e é uma árvore capaz de se desenvolver e frutificar em condições de sequeiro. O nome alfarroba deriva do vocábulo árabe Kharoubah que noutros idiomas deu origem a carruba (italiano), a caroube (francês), a carob (inglês) e a algarrobo (castelhano). O seu uso é muito mais amplo do que se possa pensar à partida, pois é usado na indústria têxtil, na indústria do papel, na produção de colas e tintas, na indústria farmacêutica e na cosmética. Há estudos que revelam a elevada quantidade de polifenóis (antioxidantes) na alfarroba, pelo que o seu consumo diminui o efeito nocivo dos radicais livres regenerando células danificadas no corpo humano e reduzindo o risco de desenvolver doenças cancerígenas.
A goma de alfarroba extraída da semente é considerada a parte mais valiosa da alfarroba. É usada em pó e tem excelentes propriedades conservantes, por isso esta substância é adicionada em compotas, sumos, molhos e conservas. Além disso, a goma de alfarroba pode ser encontrada em carne enlatada e peixe como estabilizador e intensificador de sabor e é conhecido como emulsionante E410.
Usos da alfarroba ao longo da história As sementes de alfarroba têm um tamanho e peso relativamente uniforme e estiveram na origem da unidade de medida quilate (Carat) usada pelos ourives. No antigo Egipto estas sementes terão sido utilizadas no processo de mumificação e na manufactura de colares decorativos. Os egípcios utilizavam também a alfarroba para a produção de vinho, e com os seus frutos e cascas tingiam os couros (Marti & Caravaca, 1997). Há referências ao consumo directo da alfarroba como alimento em Pompeia e à criação de um xarope de alfarroba na Sicília. Há referência à alfarroba na
passagem de São João Baptista pelo deserto (razão porque as vagens da alfarrobeira são também conhecidas como Pão de São João). Há ainda quem designe a alfarrobeira por Figueira-de-Pitágoras e Figueira-do-Egipto. As alfarrobeiras são árvores de sequeiro o que fez com que tenha sido uma importante fonte de alimento em alturas de fome. São de crescimento lento e a idade de frutificação das alfarrobeiras varia. Pode demorar cerca de 20 anos até ter uma produção razoável, mas também pode levar 70 anos para dar frutos; o que significa que o plantador muitas vezes não irá beneficiar do fruto do seu trabalho, mas é um legado para as gerações futuras. Antigamente considerava-se o dia 29 de Setembro, dia de São Miguel, como o dia oficial em que terminava a época de “varejo” das alfarrobeiras. Em 2013, aquando do reconhecimento da “Dieta Mediterrânica” na lista representativa do património cultural imaterial da humanidade da UNESCO, a apanha da alfarroba foi uma das tradições destacadas. Neste momento a alfarroba movimenta muitas pessoas na região algarvia, não só produtores, maio-
As alfarrobeiras fazem parte da paisagem e da identidade algarvia FOTO D.R.
ritariamente idosos, mas também alguns jovens que estão a ganhar interesse nos produtos derivados da alfarroba e a criar valor na região. Sem querer personalizar muito, posso referir que há alguns anos organizei uma apanha de alfarroba na serra onde se seguiu um pequeno workshop de bolos de alfarroba debaixo de uma alfarrobeira e a respectiva degustação (não houve necessidade de usar forno!). Entretanto o interesse pelos produtos à base de alfarroba aumentou e em 2020 iniciei uma parceria de divulgação e comercialização de alfarroba no segmento gourmet. As alfarrobas (muitas vezes designadas no Algarve apenas por farrobas) são vendidas aos comerciantes em arrobas, que é uma unidade de medida que equivale a 15 quilos. Enquanto escrevia, questionei-me acerca do símbolo @ se designar arroba, mas esse tema ficará para um futuro artigo.
ESPAÇO AGECAL
DIETA MEDITERRÂNICA JORGE QUEIROZ Sociólogo. Responsável técnico pelo dossier da candidatura da dieta mediterrânica a PCI da Humanidade da UNESCO
Completam-se dez anos que, em Janeiro de 2011, após uma reunião no Ministério da Agricultura, se iniciou a preparação da candidatura da dieta mediterrânica a Património Cultural Imaterial da Humanidade da UNESCO, processo que envolveu Portugal e mais seis países de cultura mediterrânica com as respectivas comunidades representativas, entre as quais Tavira escolhida por Portugal. A candidatura foi aprovada em Baku a 4 de Dezembro de 2013, por unanimidade e sem recomendações. Após esse momento de satisfação, havia a consciência que era o início de um trabalho conjunto para várias gerações. Foram dez anos de trabalho intenso, de consciencialização e acções a níveis, internacional, nacional e local, interdisciplinar e interinstitucional,
que justifica algumas reflexões: A dieta mediterrânica não é apenas um padrão alimentar, é um estilo de vida, um modelo cultural que não é possível compreender sem identificar e observar as práticas agrícolas, de subsistência alimentar e saúde comunitária, as convivialidades religiosas e profanas, que um longo processo histórico originou e determinou comportamentos sociais que permanecem vivos. O universo cultural mediterrânico inscreveu-se na história do mundo, as suas civilizações avançadas estabeleceram uma rede de centenas de cidades mercantis a partir das quais se desenvolveu a agronomia e práticas alimentares, a náutica e astronomia, medicina, surgiram no Médio Oriente as três religiões monoteístas, também idiomas e alfabetos unificadores, a aritmética necessária ao comércio e a geometria às grandes realizações construtivas. A medicina romana evoluiu a partir das experiências dos gregos, na “Naturalis História” (disponível na internet) escrita no primeiro século após Cristo, Plínio o
Modelo cultural e urgência da sustentabilidade
Velho aborda também geologia, botânica, zoologia, astrologia, pintura, tendo como ideia a aprendizagem dos recursos naturais e os ciclos da vida. A descoberta recente em Pompeia de um termopólio intacto, espécie de restaurante de venda directa datado de 79 d.C, fornece informação sobre a alimentação da população no dia em que a cidade foi soterrada pela erupção do Vesúvio. Informações sobre a Península Ibérica resultam também da investigação, estão na posse de Instituições de investigação e ciência, devendo ser utilizadas pelas comunidades. Verificamos que a alimentação da população portuguesa, maioritariamente camponesa até aos anos 50 do séc. XX, baseava-se em produtos frescos, da época e localmente produzidos. O clima e a extraordinária diversidade geológica e biológica do espaço português, nos campos, rios e oceano, garantiram a sobrevivência das populações durante muitos séculos, apesar das crises frumentárias (os cereais foram sempre fragilidade no mundo mediterrânico) e a estruturação de uma cultura não
apenas alimentar mas envolvendo todos os aspectos da vida quotidiana. Esseconhecimentoacumuladocommais de dois milénios deixou de ser válido? Não, será cada vez mais actual e necessário o uso dos princípios da dieta mediterrânica, no âmbito das políticas de ambiente, agrícolas, educativas, culturais e de saúde pública. Se analisarmos os relatórios de organizaçõescientíficasinternacionais,nosúltimos 50anosreduziram-senomundoosecossistemasnaturais(75%dasflorestasprimárias desapareceram), extinguiram-se espécies (2/3davidaselvagemestáextintasegundo a WWF), foram ocupados solos agrícolas férteis (80% segundo a Agência Europeia do Ambiente), a poluição dos oceanos é um problema grave (41% estão afectados segundo a “Science”), as alterações climáticas progridem (400 temperaturas recordes ocorreram no hemisfério norte no verão de 2019), com degelo nas calotes polares, aumento das doenças da civilizaçãooudocomportamento(AVCs,diabetes, cancros,obesidade,…)sãoasprincipaiscausas de incapacidade e morte.
O IPCC recomendou a redução do consumo de carne, preferência por alimentos vegetais,sazonaiselocais,evitardesperdícios,utilizarviaturaseléctricas,caminhar ou pedalar, substituir viagens de negócios por videoconferências, o isolamento térmico das casas, aquisição de bens com baixo teor de carbono incorporado,… A pandemia que em 2020 atingiu a humanidadeparoupartedaeconomiamundial, em particular a menos limpa, é um sério alerta global que irá antecipar muitas medidas urgentes sempre adiadas. Mas há também boas notícias. A dieta mediterrânica é internacionalmente reconhecida como um dos instrumentos adequados para fazer face à crise global ao promover a agricultura de proximidade, a preservação ambiental e a valorização do património cultural, contribuindo para a saúde pública e a educação alimentar, em Portugal integra os currículos escolares. Universidades em vários países promovem formação e investigação sobre a dieta mediterrânica. Dez anos com significativos avanços e resultados.
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ARTES VISUAIS
Terá que haver imagens externas ao sujeito para podermos falar de arte visual? SAÚL NEVES DE JESUS Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; http://saul2017.wixsite.com/artes
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sta questão foi-nos suscitada ao assistirmos à inauguração da exposição de Pedro Cabral Santo (PCS), intitulada "#2 The Gateway to the Stars", na Galeria Trem, no passado dia 26 de novembro. Simultaneamente, foi lançado o livro “The power of Love. Breves anotações em torno da Imagem Artística e Outros Assuntos”, uma compilação de textos escritos por PCS, e publicados de forma intermitente, ao longo dos últimos 20 anos. Em comum, o livro e a exposição procuram “deslindar o fascínio, quase impenetrável, que se esconde por detrás daquilo que se designa por Imagem Artística”, segundo palavras de PCS. Mas seria suposto, que numa exposição de artes visuais, em que o tema de fundo é a “imagem artística”, fossem apresentadas diversas imagens que o espetador poderia apreciar. No entanto, o que encontramos ao entrar na galeria é apenas uma única imagem numa das paredes da galeria e um conjunto de textos impressos em painéis brancos dispostos nas restantes três paredes da galeria.
Mas será que a surpresa que podemos ter ao entrar na galeria traduz desilusão? Seguramente não! A esta capacidade para nos surpreender de PCS está associada a sua capacidade para nos fazer refletir sobre a essência da imagem visual e do próprio sentido das artes visuais. É transportar-nos para além da imagem retiniana ou visual e para alguma desmaterialização da arte. Já em 1968, John Chandler e Lucy Lippard, no artigo “A desmaterilização da arte”, referiam que a forma intuitiva e intencional de fazer arte estava a dar lugar a uma arte ultra-conceptual que enfatizava quase exclusivamente o processo de pensamento. Esta ênfase na desmaterialização encontra um dos seus exemplos mais fortes na exposição de Robert Barry, em 1969, na Galeria Art & Project, em Amesterdão, em que pintou na porta de entrada “during the exhibition the gallery will be closed” (“durante a exposição, a galeria estará fechada”), não estando nenhum trabalho à vista, nem sequer uma janela que permitisse ver algum trabalho no interior. Já em 1958, Yves Klein havia realizado uma exposição em Paris com o título “Vazio”, em que o espaço estava literalmente vazio, pretendendo expressar um “estado pictórico invisível” que estaria presente através da radiação. Na atualidade, numa época que alguns já designaram como de poluição visual ou de obesidade de imagens visuais, urge parar e refletir sobre o senti-
do e a necessidade destas. Em vez de mero consumidor de imagens produzidas por outros, o espetador pode ser o próprio criador de imagens internas que os estímulos apresentados numa exposição podem proporcionar. É realmente infinita a capacidade que cada um pode ter para criar imagens internas, como infinito é o universo representado pela única imagem apresentada nesta exposição de PCS. As breves histórias de ficção científica apresentadas nos painéis expostos na galeria, acompanhadas pelo som de pequenos rádios colocados ao lado de cada painel, como se fosse uma música de fundo do espaço intergaláctico, permitem ao espetador criar imagens visuais que expressam a sua subjetividade. É caso para dizer que o universo das vivências e projeções imagéticas de cada um é o limite. “#2 The Gateway to the Stars” é mesmo uma porta para o universo da criatividade de cada um, ajudando-nos a explorar os nossos próprios limites. Aproveitando as palavras sublimes escritas por Mirian Tavares no folheto desta exposição, “as suas criações são discursivas, são meta-referentes – não existem sem um contexto e exigem, do espetador, além do espanto, a adesão consciente num jogo de múltiplos
sentidos e de significações diversas”. Este é o mistério e simultaneamente a magia desta exposição de PCS (!)... a visitar até 2 de fevereiro de 2021... Uma última nota para salientar que esta exposição conta com a curadoria da licenciatura em Artes Visuais da Universidade do Algarve, com o apoio do CIAC, expressando o contributo que as Artes Visuais na UAlg têm vindo a dar para o desenvolvimento da cultura no Algarve. Aliás, com a curadoria de PCS, foi inaugurada, também no dia 27 de novembro, a exposição de desenho “O Lápis Mágico”, assim intitulada em homenagem à série televisiva homónima dos anos 70, contando com os desenhos dos artistas António Olaio, Tiago Batista e Xana.
À esquerda: Vistas da exposição "#2 The Gateway to the Stars” À direita: Vista da exposição "O Vazio”, de Yves Klein (1958) e Cartaz da exposição "#2 The Gateway to the Stars”, de Pedro Cabral Santo (2020-21) FOTOS D.R.
ESPAÇO ALFA
Aquele olhar ao ar livre VÍTOR AZEVEDO Membro da ALFA – Associação Livre Fotógrafos do Algarve
A pandemia veio mudar as nossas vidas, os nossos hábitos, o nosso conforto, a nossa adaptação a um determinado estado de coisas que nos pareciam até agora garantidas. Não é que isto seja uma novidade uma vez que estas pandemias são cíclicas. Elas já devastaram a humanidade várias vezes e as últimas não há assim tanto tempo. As
nossas recordações da história e o que com ela devíamos ter aprendido fazem-nos perceber a que ponto os homens e as mulheres são maus alunos. Não pretendo aqui escalpelizar esta fatia da história pela qual estamos a passar, o importante é que a vida continua, não podemos parar, temos sim que encontrar os caminhos certos para atingirmos os nossos objetivos. O principal objetivo da ALFA é, como associação de fotógrafos, promover e divulgar a arte
fotográfica e os seus autores, dar acesso à divulgação dos seus trabalhos fotográficos e com eles participar no desenvolvimento do conhecimento de quem a eles tem acesso, consequentemente também expandir o acesso a esses trabalhos fazendo a sua divulgação o mais frequente, diversa e dispersa que nos é possível. Vamos então refletir um pouco: a ALFA tem fotógrafos, o nosso clima é ameno, as pessoas gostam de andar na rua e precisam de andar na rua, gostam
de apreciar e conhecer coisas novas, a CMF quer ter eventos para apoiar os seus munícipes os visitantes e os turistas. De que precisávamos para concretizar esta ideia? Do apoio da Câmara Municipal de Faro (CMF) para podermos realizar as exposições de rua que já temos delineadas para espaços amplos e abertos, em perfeita segurança, recorrendo a expositores de exterior com qualidade, ideia que não é nova e muito menos inédita. Faro tem explorado pouco es-
A Doca de Faro te conceito, mas agora e com o apoio da CMF vamos conseguir fazê-lo. Esperamos em breve poder di-
FOTO VÍTOR AZEVEDO / D.R.
vulgar a fotografia em espaços abertos onde todos nos possamos sentir mais seguros para dela desfrutar.
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colonizador que a defende (p. 51), ou na pessoa de Mariano, que por lá combateu, quer na de Custódio, latifundiário, explorador colonialista com características próximas do animalesco (descrito como “touro” na pág. 156). Este é um ponto de vista que se reparte entre vencedores e vencidos, uma visão crítica dicotómica a apontar a complexidade histórica da mudança: “a história mudava de uma margem para outra da razão” ( pág. 360).
PAULO SERRA Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL
“Livro de Vozes e Sombras”, o mais recente romance de João de Melo, editado pela Dom Quixote, é um dos mais importantes romances de 2020. Um livro que acredito ter sido escrito ao longo de vários anos, até pela sua arquitectura complexa. Uma prosa torrentosa, ainda barroca e hiperrealista, mas onde a linguagem sempre poética é mais depurada. Cláudia Lourenço, jornalista, é enviada de Lisboa à ilha de São Miguel ao serviço do jornal “Quotidiano” para entrevistar um conhecido ex-operacional da Frente de Libertação dos Açores. A partir dessa narrativa condensa-se gradualmente a história da Ditadura, do fim das guerras em África, a descolonização, a diáspora portuguesa e o “retorno” a casa, quase sempre intranquilo. P A jornalista Cláudia Lourenço, mais confidente do que protagonista, pertence a uma nova geração pouco conhecedora da história não muito remota de Portugal. É um ajuste de contas com o passado, mas também parece constituir um final de um ciclo na sua obra para, naturalmente, abrir novo ciclo.
Quando olho para trás, para os livros que até hoje escrevi, nunca vejo ciclos nem outros caminhos programáticos da minha escrita. O meu passado decide-se entre boa ou má literatura. Daí ter repudiado os primeiros livros: de quando absorvia o mundo dos outros através da leitura. Só me senti “escritor” a partir de O Meu Mundo Não é Deste Reino, um romance que você conhece muito bem. Porquê? Se descobrimos uma linguagem dentro de nós, associamos-lhe uma geografia íntima e uma possibilidade existencial para o mundo dos outros. Este de agora é um livro que se explica e justifica a si mesmo: tinha de ser escrito, só eu podia fazê-lo. Não o concebo de outra maneira. Nem faço ideia, ainda, do que irei escrever a seguir. R
P Este é também o seu romance mais metaficcional, aliado à reflexividade da história, que cruza Açores, Portugal e África colonial. Não será por acaso que a jovem jornalista vem da metrópole, capaz de oferecer um olhar crítico externo às ilhas. R Concordo. Houve a preocupação de contextualizar no mesmo tempo narrativo a memória de três lugares distintos entre si, todos eles complementares em relação à “crónica” e à recuperação da memória histórica
R Podemos, antes, falar de uma espécie de “jogo”. O jogo da ficção sobre as verdades históricas, em que ambas (ficção e realidade) se invocam e provocam com frequência. Mas eu pertenço a uma ideia ou escola de literatura quase sempre motivada na ousadia social e na ética do compromisso com o mundo. Gosto dos livros que suscitam diversas leituras. Não me interessa a unanimidade. Uma das coisas que mais me atrai na literatura é, como no meu caso, criar narradores. Que se contradigam, que sejam como que um inventário de ideologias opostas.
Como o título indica, as vozes têm um peso imenso neste romance polifónico. O lexema vozes é recorrente na narrativa: as vozes do povo, dos Açores, etc. A perspectiva muda diversas vezes entre a primeira e a terceira personagem, temos diversas personagens que em algum momento se tornam centrais e a perspectiva da voz narrativa oscila de acordo com o ponto de vista de cada uma dessas personagens, recorrendo ao discurso indirecto livre e acedendo à sua voz interna. Temos ainda um narrador que de vez em quando fala directamente com o leitor (p. 83), ao mesmo tempo que percebemos como a entrevista de Cláudia a Mariano dará origem a um livro feito a partir das histórias deste mosaico. P
O escritor gostaria de ver na juventude mais cultura, mais livros, um sentido crítico e sobretudo auto-crítico do seu inconformismo FOTOS JOANA MELO / D.R.
Entrevista ao escritor João de Melo
"Este livro quer provocar o clamor, trazer de volta a palavra, a dor e a revolta" ainda recente. Açores, Lisboa e África são geografias muito próprias, ainda que tangidas pela mesma vitalidade da mudança política. O golpe de Estado e a Revolução de Lisboa abriram portas às “independências contraditórias” dos Açores e das Colónias africanas. Se me tivesse cingido ao caso da FLA, haveria a ilusão de pensar-se que tudo acontecera como por geração espontânea, não como causa e consequência
do fim da Ditadura e do Processo Revolucionário. Da mesma forma que se concertam três geografias narrativas, também pretendi opor duas gerações no conhecimento desse passado ainda tão recente, porém ignorado pela nova juventude portuguesa. Aproveito para acrescentar o seguinte: este livro abre-se a todas as gerações de leitores. Só elas o podem entender e completar à sua maneira e à medida de cada uma.
“Gosto dos livros que suscitam diversas leituras” P A escrita deste livro representa um acto de coragem, o risco de confundir a ironia com a sua opinião dos factos. Nomeadamente quando tece toda uma crítica à guerra colonial pela óptica de um branco
R A minha ideia era justamente acordar as vozes portuguesas que tudo viveram até ao 25 de Abril e depois, e que aos poucos foram recuando no meio de nós, a ponto de se calarem. Este livro quer provocar o clamor, trazer de volta a palavra, a dor e a revolta. E a justiça, também. Refiro-me a um processo português global. Não se trata de um livro “açoriano” strictu senso, mas de uma paisagem protegida da nossa vida colectiva – em Lisboa, na África e nos Açores ao tempo em que conceberam um sonho independentista à direita de toda a política. Qualquer leitor que entre no livro entra também nesse jogo narrativo. Creio que a linguagem flui, que não se ocorre no obscurantismo nem num mero exercício de estilo. Concorda?
Claro. Tanto que a própria entrevista rapidamente se torna uma conversa, uma narrativa com vida própria e cronologia desfasada, em que, como convém, a voz da jornaP
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LETRAS & LEITURAS
lista se silencia. Apenas sabemos das suas questões através da voz de Mariano. R Quem é Mariano? Quem é a jornalista Cláudia Lourenço? Podia dizer, como Flaubert disse da sua Madame Bovary, “sou eu”. Esses os ingredientes e mistérios da ficção. Tal como eu, cada um pode ir buscar a este Livro de Vozes e Sombras a voz e a sombra da própria pessoa. P Não só volta ao Rosário (p. 79), como retoma a atmosfera do seu romance sobre o Rosário. Ele representa aqui, uma vez mais, o arquipélago? R A povoação do Rosário pode ser, tanto neste como noutros livros que escrevi, o meu Macondo (salvo seja); ou o masculino simbólico de Achadinha, a terra açoriana em que nasci, para melhor se identificar com Portugal (nome masculino). Será sempre um lugar inserido na corrente contínua do tempo histórico. Nessa medida, já o referi como “Rozario”, “Rozário” e na sua grafia actual. A sua descrição não é muito distinta de outras aldeias açorianas. Interessa é que a sua representação seja endossada ao leitor. Não tenho nenhum sentido de posse sobre os lugares da minha ficção.
Não me escondo daquilo que escrevo; mas só em parte o revelo em termos pessoais P Nova Roma parece ser igualmente um cenário atópico, entre a ficção e o real, ao jeito do Rosário. Ou mesmo Munakala. A África colonialista, uma África nunca nomeada (porque será?) mas que se toma por Angola (na referência aos musseques). R Tem razão. Aparentemente, Nova Roma não existe, mas pode intuir-se sob outros nomes: como a “Nova Lisboa” de Angola, por exemplo. Por outro lado, talvez que Munakala seja o eco perdido de Calambata, o aldeamento em que se situava o quartel da minha guerra colonial. Assim sendo, não me escondo daquilo que escrevo; mas só em parte o revelo em termos pessoais. Nunca pretendi ser um autor autobiográfico. Sou apenas uma peça e um enigma do jogo. Acrescento: no livro nunca se menciona o nome de “Angola”; é sempre a Colónia. O propósito era identificar o colonialismo português. Mariano, sim, conta a sua paixão pela Guiné-Bissau: esse capítulo é fulcral para a caracterização ideológica dele.
Além dos temas que lhe são recorrentes, e do léxico que lhe é caro, este livro parece subsumir anterioP
res títulos seus... quase como um mosaico do conjunto da sua obra. A começar pelo Rosário, passando pela guerra colonial, temos ainda o vinho como estimulante da verdade, os anjos, os vencidos. R Isso pode ser claro como água corrente; ou ser uma parte fictiva da chamada “unidade da obra”. Tenho formação em Filologia Românica, fui professor da hermenêutica textual. Podia muito bem escrever uma tese em sede própria. A quem interessaria? Nem ao próprio eu. Já estou numa fase da vida em que cada vez me interessam mais as leituras múltiplas dos outros. Fico-me com a minha pequena, quem sabe se inútil, “mitologia” literária. Só isso me pode individualizar entre outros escritores e ser eu próprio “uma voz” literária. P Uma das personagens, combatente da guerra colonial, tenta purgar-se do trauma da guerra transferindo a sua memória para “cinco cadernos escritos à mão” (p. 57). Foi isso que de certa forma deu origem aos seus dois primeiros romances, depois reescritos em “Autópsia”?
Não, nada. A personagem Mariano deste livro oscila entre o linear pessoal e a complexidade do ser, do carácter e sobretudo da ideologia colonialista. Quanto a mim, o chamado “stress pós-traumático de guerra” levou-me a escrever tudo o que vivi em tempo de guerra em Angola. Vim de lá desiludido, cheio de mágoa e muito perturbado. Só a literatura me pôde valer. Costumo dizer, aliás, que nós, os da geração da guerra colonial, fomos para África uns e voltámos outros, diferentes de nós mesmos. Nesse sentido, foi um privilégio assumir a condição da escrita e regressar à vida verdadeira depois da guerra. Trago-a ainda na pele e nos ossos, pois como disse o poeta René Char, “há guerras que não acabam nunca”.
guia pelo livro, mesmo quando parece desaparecer dele para depois regressar. É esta cega - de visão clarividente e sentidos sobreapurados - uma metáfora da necessidade de olharmos mais para dentro face ao ruído dos tempos?
O “Livro de Vozes e Sombras” é um dos mais importantes romances de 2020
R Ora aí está! O nosso povo diz que “a verdade vem da boca dos inocentes”. Também eu quis acreditar na cegueira de Ângela como mecanismo de uma visão outra do nosso mundo. A cegueira dela é, simultaneamente, a sua inocência e a descoberta de novas formas de verdade. Lembra-se de quando, ao abandonar Nova Roma com a família de regresso a Portugal, ela jura ver milhões de mortos espalhados pela cidade? Essa é a Ângela histórica a falar. A consciência e a culpa. Fala pelo lado avesso da epopeia portuguesa. Só ela “vê” a derrocada histórica de um império que afinal nunca existiu.
Os nossos jovens não têm consciência dos sacrifícios que marcaram a vida dos
R
avós e dos pais Para um leitor mais atento, o apelido Mendes Pinto é claramente um piscar de olhos que reforça este livro como uma antiepopeia da história portuguesa das últimas décadas, a partir da descolonização e da revolução de Abril. E tal como Fernão Mendes Pinto que procura contar o reverso da expansão portuguesa, este seu livro é dedicado à sua neta para quando ela o puder ler e compreender. P
Nós, portugueses, precisamos de sair de “Os Lusíadas” heróicos e assuR
sado; nunca por nunca nos referimos à nossa condição de piratas do mar e da terra; nem nos penitenciamos da feroz Inquisição que tanta gente torturou brutalmente e mandou arder nas suas fogueiras; nem do tráfego de escravos de África para o Brasil, aos milhões. Na minha ideia, cabe à literatura nomear a vítima e resgatá-la do esquecimento. Faço-o por sistema, de livro para livro. Também tenho uma ideologia histórica. P
P Em jeito de conclusão, qual é hoje a sua relação com os Açores? É um local onde ainda regressa por imperiosa necessidade ou sente que nunca de lá saiu?
R À minha maneira sim, nunca à de Mariano. Acontecem perdas contínuas entre nós, de geração para geração. Refiro-me ao caso português. Os nossos jovens não têm consciência dos sacrifícios que marcaram a vida dos avós e dos pais. E não fazem ideia de como Portugal subiu da miséria miserável e da exploração laboral para a libertação do 25 de Abril, para um
R Os Açores são o que sempre foram para mim. O lugar que me completa. O sítio do regresso perfeito. Devo a essa idealização a fonte de onde mana o meu desejo de criação pela literatura. O propósito foi sempre o mesmo: impor as ilhas como imaginário da Literatura Portuguesa, não como regionalismo, antes como simbologia do humano universal. Se olhar para um planisfério, verá que todo o Mundo é um arquipélago, sendo os continentes ilhas muito grandes e as outras fragmentos verdadeiros da mesma natureza. O humano não tem de ser geográfico, e sim global, ontológico, no sentido em que todo o ser apenas tem sentido quando visto à escala ou à medida do planeta Terra. Daí para baixo, é o chão, o barro, a pedra, a contingência da nossa passagem por aqui. Muito obrigado.
A certa altura Mariano diz à jovem jornalista: “– É muito jovem, vive num mundo novo, não tem obrigação de o saber. O seu tempo português resulta dos fardos que nós carregámos, para que a sua geração se risse dos excessos de memória e de uma experiência que a geração seguinte julga ser coisa de taralhoucos: velhos a matutar em utopias que já não servem para nada.” (p. 52). Partilha desta visão desencantada?
João de Melo traz para a literatura temas da História portuguesa, como o fim das guerras em África e a descolonização P Ângela Mendes Pinto parece ser a personagem central ou fio condutor destas histórias. Uma espécie de anjo cego da História, que nos
mir o pícaro da nossa “Peregrinação”, dentro e ao redor de nós mesmos. É por complexo de inferioridade que nos exaltamos no heroísmo do pas-
talvez notável progresso económico, a liberdade individual e a democracia social. Conheço os novos problemas da nossa juventude, com a qual sou sempre solidário. Mas gostaria de ver nela mais cultura, mais livros, um sentido crítico e sobretudo auto-crítico do seu inconformismo.
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FILOSOFIA DIA-A-DIA
Saudade MARIA JOÃO NEVES PH.D Consultora Filosófica
SAUDADE - Esta foi a palavra escolhida pelos portugueses para caracterizar o ano que findou, tendo sido a preferida de 40 mil internautas em votação levada a cabo pelo grupo Porto Editora. Saudade imensa dos entes queridos, saudade do toque, dos beijos, dos abraços. Saudade de se ser espontâneo nos gestos e nos apetites, saudades de meter conversa com alguém desconhecido, saudades de estar em grupo, saudades de conviver, saudades de dançar! E com saudade se inicia 2021 ao falecer Carlos do Carmo na sua primeira manhã. Saudade título de um dos muitos fados a que deu voz: “E com um nó de saudade na garganta/ Escuto um fado que se entoa à despedida (...) Na memória dos que vão, tal como o vento/ o olhar de quem se ama e não desiste.” Com uma mãe fadista e um pai livreiro estavam criadas boas condições para que o pequeno Carlos crescesse prestando uma grande atenção à música e às palavras. Renovou o Fado e trouxe para este género musical um repertório repleto de poetas: Herberto Helder, Sophia de Mello Breyner, Hélia Correia, Júlio Pomar, entre outros. A voz límpida e dicção irrepreensível foram duas notas que o caracterizaram. Aliás, não saberia dizer se Carlos do Carmo canta como se falasse ou se fala como se cantasse. Nuno Júdice afirma que foi com ele que aprendeu a escrever poesia para ser cantada: “Porque ele me dizia para estar muito atento, não apenas à melodia da própria língua, mas à métrica, à forma como os acentos têm de estar localizados para que não haja nenhuma traição quando [se] está a cantar”. E a saudade da voz de Carlos do Carmo com que acorda 2021 incendeia no peito uma outra saudade incontornável: a do piano de Bernardo Sassetti, o compositor que nos deixou em 2012 com apenas 41 anos de idade. Um viveu quase do dobro da vida do outro e em 2011 gravaram um álbum juntos. Trata-se de um disco que não é de Fado nem de Jazz, é de piano e de voz, é de Bernardo e de Carlos, a “respirar juntos” e gravado “sem rede”. Carlos do Carmo tinha uma voz límpida como límpido era o toque de Bernardo Sassetti nas teclas do piano, tão nítido o timbre do seu ataque sem contudo deixar de ser doce. Este album é constituído por 10 músicas nunca antes cantadas, tocadas ou gravadas por nenhum dos dois. Há apenas um tema original composto por Bernardo Sassetti com poema
de Mário Cláudio. As outras faixas são “revisitações” de canções de José Afonso, Sérgio Godinho, Fausto e Rui Veloso, Violeta Parra, Léo Ferré e Jacques Brel, um tradicional Açoreano (“Sol”) e «Talvez por acaso», fruto de uma parceria de Manuela de Freitas e Carlos Manuel Proença. Tendo sido o principal mentor do Museu do Fado, Carlos do Carmo protagonizou junto com Rui Vieira Nery a candidatura que levou a UNESCO a reconhecer o Fado como Património Imaterial da Humanidade nesse mesmo ano. Agora, na ocasião do seu falecimento, em homenagem ao fadista, a Câmara Municipal de Lisboa decidiu tornar o fado “Lisboa menina e moça”, com letra de Ary dos Santos e música de Paulo de Carvalho, hino da cidade. Também nesta primeira semana de 2021 falece João Cutileiro, cujas esculturas deram nova vida ao nosso mármore, de norte a sul do país. Em 2018 doa todo o seu espólio juntamente com a sua casa-atelier em Évora ao Estado. Ministério da Cultura e Município e Universidade de Évora recebem então a incumbência de dinamizar residências artísticas e uma programação cultural e académica na área da escultura em pedra. Cutileiro revolucionou a escultura em Portugal, e suscitou controvérsia durante toda a sua vida artística. O seu monumento ao 25 de Abril, situado no Parque Eduardo VII em Lisboa desde 1997, ficou conhecido como “o pirilau” da cidade devido à sua forma fálica. Contudo, uma das obras que maior polémica suscitou desde sempre, ergue-se precisamente aqui a Sul, em Lagos. Trata-se da estátua de El Rei D. Sebastião, talvez a sua escultura mais icónica, erigida em 1973. Chocou o regime! Cutileiro esculpe um rei-menino, com um ar frágil e quase andrógino, qual anjo sem género. É uma criança que exibe a sua vulnerabilidade, de elmo tombado no chão, em grande contraste com a forma habitual de retratar as figuras históricas, de porte atlético, e aura heróica. O saudosismo que emana desta estátua transparece nas palavras de Fernando Pessoa no poema “Terceiro” do livro Mensagem: Ah, quando quererás, voltando,/ Fazer minha esperança amor?/ Da névoa e da saudade quando?/ Quando, meu sonho e meu Senhor? Saudade, é possivelmente a palavra portuguesa de mais difícil tradução. Existem expressões que se aproximam deste sentimento: “te hecho de menos”, dizem os espanhóis; “I miss you”, dizem os ingleses.; “tu me manques” dizem os franceses. Em todas estas línguas são verbos que exprimem um movimento do
Em cima Carlos do Carmo e Bernardo Sassetti gravaram um álbum juntos em 2011 À esquerda João Cutileiro revolucionou a escultura em Portugal e suscitou controvérsia durante toda a sua vida artística À direita A estátua de D. Sebastião, erguida em Lagos, foi uma das obras de Cutileiro que maior polémica suscitou FOTOS D.R.
ânimo -verbos-, portanto, -acções-. Inversamente, no caso Português, a saudade é um substantivo, é um nome, a saudade é uma “coisa” que se tem. A saudade tem-se como uma dor de dentes ou uma pedra no sapato. A saudade, em português, é material e corpórea. Descartes poderia dizer que, no nosso caso, a saudade é res extensa; é uma “coisa”, uma substância, ocupa espaço e pesa. Justamente tudo isto se predica de algo que não se tem. Se se tivesse já não havia razão para a saudade. A saudade é esse paradoxo: a intensa presença de uma ausência. O escritor e filósofo portugês Afonso Botelho sintetiza a questão deste modo: “Se o que domina a ontologia existencial é a definição do ser do tempo, creio que esta só poderá reencontrar-se na ontologia da saudade, que é a do tempo
sem ser – ontologia negativa ou transcendida que determina a eliminação do tempo, precisamente porque em verdade o completa”. Na minha experiência pessoal deste sentimento avassalador, essa ausência que se apresenta escava um buraco dentro da alma que é, como diria São João da Cruz, “uma ânsia de amor que não se cura, senão com a presença e a figura”. E este é um dos muitos problemas que enfrentamos hoje em dia. Não são apenas os buracos nas estradas ou o buraco financeiro para onde esta pandemia nos atirou. São também os buracos afectivos que este distanciamento, embora tão necessário, criou. A saudade de alguém só se cura com a presença desse alguém. Não basta a voz, nem a fotografia, e as chamadas pelo Skype, Zoom ou WhatsApp
mitigam mas não resolvem o problema. Não ficamos saciados! O digital é um sucedâneo que agradecemos mas que pertence à categoria do chocolate light ou da bica descafeinada, não é, de todo, a mesma coisa! Falta o toque, falta o cheiro, faltam os olhos nos olhos, falta tudo aquilo que pode acontecer quando estamos perto uns do outros em condições de poder responder aos “convites suspensos na surpresa dos instantes”, como diz Sophia de Mello Breyner. Apesar de tudo, 2021 amanhece com um laivo de esperança ao administrarem-se as primeiras vacinas, oxalá seja também o ano em que se podem começar a matar as saudades! Reflexões e inscrições para o Café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com
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FIOS DE HISTÓRIA
Algarve Sempre o Mar RAMIRO SANTOS Jornalista ramirojsantos@gmail.com
“Terraço aberto aos ventos e aos astros”, daqui vê-se o mar e a sua transparência. E escutam-se as vozes que nos chegam do levante. Dos confins do longe e dos confins dos tempos. Ecos de um abraço dos que um dia aqui chegaram e aqui ficaram. Outros se foram. O Algarve tem sido ao longo dos séculos uma placa giratória de gentes vindas de toda a parte. Uma porta aberta ao mundo: Ligures, turdetanos, fenícios, gregos, cartagineses e visigodos. E antes do Algarb do al Andaluz , já por cá tinham andado os romanos e os cónios do cineticum. Assim eram chamados o Algarve e os algarvios desses tempos. E também Viriato e os lusitanos, contra Roma. E ainda Hanibal, de Cartago. Em época de domínio romano houve mesmo uma diocese em Ossónoba, tendo D. Vicente como um dos seus primeiros bispos. E nos tempos mais recuados dos cónios ou cinetes, o Algarve possuía um alfabeto próprio que hoje ainda se pode encontrar na chamada escrita do sudoeste. Gravada na pedra. Uma babel de gentes e de línguas. E sempre o mar como estrada de comunicação. Mareantes, mercadores, aventureiros, viajantes, soldados e piratas. Que não se podem dissociar da pesca e do comércio, do negócio e das trocas de produtos que se estabeleceram num vai e vem permanente entre os algarves do lado de cá e os do outro lado do canal. Com a Andaluzia no meio. Por aqui se produziam e exportavam frutos verdes – citrinos e maçãs – e frutos secos – figos, amêndoas e alfarroba – e o vinho e mais o azeite e o sal, recebendo em troca, cereais andaluzes e marroquinos. Um intenso comércio de exportação que é salientado por diversos geógrafos árabes, sendo a sua fama e riqueza forte atractivo para os de fora. E o mar - ainda o mar - como via para assaltos e pilhagens às suas cidades mais prósperas: Balsa, Baesuris, Ossónoba, Lacobriga, Portus Hannibalis, Cilpis e Baltum. Já no tempo de D. Afonso Henriques, não havendo ainda uma ideia a quem haveria de caber este rectângulo, “há notícias de esquadras portuguesas que aqui vinham combater a navegação muçulmana, chegando a atacar a praça africana de Ceuta em 1180”. E, logo de seguida, o seu filho, D. Sancho I, subindo o Arade, utilizou navios para transporte dos exércitos que em 1189 conquistaram Silves, pela primeira vez. Antes da reconquista, o Algarve já era - como se vê - terra cobiçada e disputada pela sua riqueza. Fazia parte de um bloco regional integrando a Andaluzia e o Magreb. Aquilo a que os historiadores chamam o golfo dos algarves ou o mar das éguas. Este triângulo constituia uma região individualizada quer pela sua proximidade geográfica, quer pelas características físicas
e climáticas ou ainda pelos interesses comuns nas actividades produtivas. E também pela barreira física do Caldeirão que dificultava a ligação terrestre com o território a norte. Os algarvios de então, puxavam mais para o lado de cá do que para o lado de lá. Por tudo isso, “a reconquista, trazendo algumas rupturas políticas e institucionais, não veio alterar significativamente a vida da região”. Os dias correram iguais. Como ao longo das décadas seguintes. Não se registaram grandes movimentos de população nem grandes modificações nas estruturas comerciais, económicas e sociais. Pode mesmo dizer-se que “a integração do Algarve no reino de Portugal foi quase imperceptível”. Tudo como dantes! De tal maneira que são raríssimas as visitas que os monarcas portugueses efectuaram ao sul do país: D. Afonso III esteve cá uma vez, D. Dinis, duas vezes, D. Afonso IV e D. Pedro I, uma vez também, e D. Fernando nunca cá pôs os pés. Isto quer dizer que, apesar da sua integração na monarquia portuguesa, o reino do Algarve manteve por muitos anos uma vida própria e autónoma. Só a partir de D. João I e da conquista de Ceuta, em 1415 - que marca o início da expansão portuguesa - se passou a olhar o Algarve com outros olhos. Fortificaram-se e municiaram-se as principais cidades, organizadas numa rede de praças avançadas de defesa de todo o reino contra a ameaça dos turcos, dos mouros e de castela. E dos que mais houvesse. E há a singularidade histórica de o Algarve ter conhecido uma dualidade de poderes, repartidos pelo rei de Portugal e Afonso X, de Castela. Por largos anos, este recusou reconhecer território português o novo reino, de tal modo que o Algarve chegou a ter dois bispos: o português D. Nicolau, e D. Roberto, bispo de Silves, nomeado por Castela. Ou seja, Afonso X - que chegou ainda a nomear D. Garcia, bispo de Silves - estendia a sua jurisdição ao Algarve por via eclesiástica. A disputa da soberania sobre este território só terminaria no acordo de Badajoz em 16 de Fevereiro de 1267. Ainda assim, tardaria quase dois séculos até que o poder real em Lisboa passasse verdadeiramente a preocupar-se com este reino no extremo sul do país. Era neste quadro de isolamento perante o resto do território português, acentuado pelos obstáculos da serra e da charneca alentejana, que se encontrava o Algarve quando por aqui passou a armada de D. João I a caminho de Ceuta. Pela primeira vez os infantes D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique avistaram Sagres e as praias algarvias. A armada que partira de Lisboa, desembarcou em Lagos, tendo depois permanecido em Faro durante uma semana. De seguida, enchendo as velas de vento, zarpou em direcção ao estreito de Gibraltar e dali preparou o assalto final a Ceuta: Seria “a primeira lança em África”! Fontes: “Voz Inicial”, Antº Ramos Rosa; “Lagos e os Descobrimentos”, Rui Loureiro; “O Reino do Algarve de Pleno Direito”, J. António Martins; “O Algarve, da Antiguidade aos nossos dias”, Maria da Graça Marques; outras
O mar - sempre o mar - como via de comunicação, de comércio, de conquistas e descobertas. Daqui escutam-se as vozes vindas dos confins do longe e dos confins dos tempos FOTOS D.R.
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