Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o
FEVEREIRO 2021 n.º 147 6.821 EXEMPLARES
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2020 um ano que nos fez, e faz, pensar
Tijoleira de Santa Catarina da Fonte do Bispo FOTO LENEA ANDRADE / D.R.
CRISTINA FÉ SANTOS Técnica superior da Direção Regional de Cultura do Algarve
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onfinados, demos valor ao que antes parecia ser “vulgar”, passámos mais tempo em família, com quem partilhámos novas tecnologias, mas com quem também construímos momentos de... histórias e memórias. O património imaterial de cada família, uma herança intangível que deixamos para o futuro, para os que nos sucedem. Mas será que também damos mais valor ao que está perto de nós? Será que valorizamos as memórias do século XX, casas e indústrias do século passado de que ainda, os mais velhos, têm memória, mas que quisemos apagar com novos modelos e novos olhares? O passado era “piroso”, antigo e pobre, hoje chamamos-lhe kitsch e passou a estar na moda. Lembremo-nos do Galo de Barcelos, das loiças de Bordalo Pinheiro, do Santo António: alguém os redesenhou
Forno a lenha
Roda de oleiro
Mosaico hidráulico FOTOS CRISTINA FÉ SANTOS / D.R.
e ficaram na moda. Vamos então colocar na moda os objectos kitsch algarvios, recriar a forma como olhamos para eles, dar-lhes valor e, ao dar valor, não perderemos os saberes dos antigos, pois os novos vão querer fazer com a mesma sabedoria. Recordemos alguns destes objectos, tomando os recursos do nosso solo como elo de ligação: - o mosaico hidráulico, se a raiz não é algarvia, o seu uso era habitual nas casas dos algarvios. Para muitos é algo que traz memórias de pobreza, pavimento vulgar das casas dos avós onde por vezes o dinheiro não abundava, materiais que os novos não quiseram voltar a usar, substituindo-os por pavimentos cerâmicos, muitas vezes imitando o que não se conseguia adquirir, mármores e afins. Hoje temos no Algarve um último artesão, que, na sua muita idade, tem energia e saber que quer partilhar, mas não faz escola, ninguém para aprender, ninguém para trabalhar em continuidade; existe procura, mas não existe resposta; - a tijoleira e as telhas, trabalho manual
e duro, diversidade nos moldes e pronta resposta aos desafios de quem os procura. Mas também aí não encontramos muita continuidade: das inúmeras olarias/telheiros que existiam, hoje resta uma meia dúzia a funcionar, alguns já não o fazem a tempo inteiro; - as peças de barro das olarias, dizem-nos os artesãos que antes era fácil o acesso à argila dos terrenos em redor, dos campos dos vizinhos, mas isso hoje tornou-se-lhes complicado, pois questões burocráticas impedem a venda simples e fácil entre dois vizinhos. Mas o artesão algarvio não viu problema e arranjou solução, e ainda encontramos no Algarve alguns oleiros que trabalham o barro, com as técnicas tradicionais, fazem pintura manual, e ainda se encontra quem use os fornos de lenha para a sua cozedura (não sendo vulgar, ainda o fazem). Mas a verdade é que já não são muitos que do barro chegam à peça que levamos para casa, decorativa ou funcional, mas a procura existe. Muitos outros objectos e os saber-fazer a eles associados poderíamos
aqui referir, mas cabe a cada um a salvaguarda das nossas memórias, dos nossos objectos tradicionais, valorizar o que está perto e espalhar esta informação pelos que nos visitam, quer presencialmente quer digitalmente, darmos a conhecer o que nos identifica e que nos faz únicos na diversidade deste mundo global. Em tempos em que a demanda por casas tradicionais algarvias tem crescido, a reabilitação das mesmas e o aparecimento de novos interlocutores que valorizam o tradicional, tem levado a um aumento de procura e de mercado destes materiais, mas a resposta não consegue acompanhar a procura. Façamos dos nossos objectos e dos nossos artesãos estrelas lá fora: compre cá dentro, divulgue para fora. Atenta ao mérito de se fazerem registos deste património imaterial, materializado de tantas formas, a DRCAlg promove a sua salvaguarda, estudo e valorização, incentivando a sua divulgação: seja nosso parceiro. http://www.cultalg.pt/pt/PCI/
Ficha técnica Direção: GORDA, Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Responsáveis pelas secções: • Artes Visuais: Saúl Neves de Jesus • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Filosofia Dia-a-dia: Maria João Neves • Letras e Literatura: Paulo Serra • Marca D'Àgua: Maria Luísa Francisco • Missão Cultura: Adriana Freire Nogueira Colaboradores desta edição: Cristina Fé Santos Parceiro: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve FB: https://www.facebook.com/ Cultura.Sulpostaldoalgarve
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Postal, 5 de fevereiro de 2021
MARCA D'ÁGUA
“Jerusalema” MARIA LUÍSA FRANCISCO Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa luisa.algarve@gmail.com
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a última semana de Janeiro deste novo ano participei num Encontro, através da plataforma Zoom, na área do empreendedorismo em tempos de pandemia. Houve um momento especialmente dinâmico em que os 298 participantes dançaram, cada qual em sua casa, uma música bastante inspiradora e cuja coreografia é fácil e intuitiva. Trata-se da canção “Jerusalema”. A música consegue transformar ambientes e pensamentos e há músicas que são verdadeiramente poderosas. Gosto de dançar e certamente cada participante, tal como eu, teve a sensação de ter a casa cheia de gente a dançar uma música tão empolgante. “Jerusalema” tornou-se “viral” e diria mesmo que é o sucesso musical que marca a pandemia. No Youtube é possível ver vídeos de pessoas de todo o mundo a dançar
esta música, nomeadamente grupos de companhias aéreas, de funcionários de hospitais, de religiosas nos conventos, de estudantes e crianças. Todos com a sua alegria e coreografia conseguiram pôr o mundo a dançar. Link: https://www.youtube.com/ watch?v=mFLk6Qfhimo com letra legendada em português. O vídeo clip foi lançado a 21/12/2019 e a letra parece uma oração, algo de profético, a busca da Nova Jerusalém, entendida em sentido bíblico, como a cidade celestial que a maior parte de nós espera alcançar na procura comum e fraterna de comunhão com Deus. Jerusalém é a minha casa / Salve-me / Caminhe comigo / Não me deixe aqui / O meu lugar não é aqui / O meu reino não está aqui / Salve-me / Venha comigo / Salve-me A canção é da autoria do DJ e produtor sul-africano Master KG e da sua conterrânea Nomcebo Zikobe, que tem uma voz fantástica. Li que foi recolhida junto de uma tribo africana (os Venda) e é cantada em língua venda, uma das 11 línguas oficiais da Africa do Sul. Trata-se de uma tribo de ascendência Judaica, são monoteístas, não comem carne de porco e são circuncidados. Este "Jerusalém, não me deixe aqui...”
pode ser um apelo ao regresso às suas origens, ao reencontro com o sagrado. Ao tornar-se a música mais tocada em 2020 e estando em quase todos os tops mundiais parece ter ficado no ouvido. E, possivelmente, a mensagem de que a pandemia veio preparar os caminhos para a Nova Jerusalém pode dar uma reflexão interessante. Master KG, é o nome artístico de Kgaogelo Moagi, que tem 24 anos e se tornou conhecido em 2018, quando recebeu o prémio AFRIMMA de melhor artista na categoria African Electro com o álbum “Skeleton Move”. O ritmo africano da música tem contagiado o planeta. Em Fevereiro de 2020 os angolanos do grupo “Fenómenos do Semba”, para assinalar o 5° aniversário da banda, dançaram na rua com pratos de comida na mão, e aquela coreografia (baseada numa dança habitual nas cerimónias de casamento) passou a ser imitada e contribuiu para a música ainda ser mais conhecida em todo o mundo. Adilson Maíza, coreógrado e bailarino do grupo angolano “Fenómenos do Semba”, referiu à imprensa que fizeram o "vídeo com a coreografia dançando e comendo na rua como uma brincadeira, nunca pensando que o sucesso se tornaria viral" e acrescen-
"Jerusalema" uma música e uma dança "viral" em tempo de pandemia
ta "queríamos mostrar que podemos ser felizes mesmo com o pouco que a vida nos dá, apesar das dificuldades do quotidiano, o importante é ter saúde, ser feliz, mesmo com pouco para comer e pouca água para beber". Graças às redes sociais e ao hashtag #JerusalemaDanceChallenge a “música com mais de 158 milhões de visualizações, faz dançar o planeta inteiro”. É certo que os angolanos não esperavam este sucesso planetário, mas seria bom para o grupo que Master KG lhes atribuísse uma quota-parte do crédito dos direitos de autor que auferiu com "Jerusalema". Uma vez
FOTO D.R.
que se tornou “viral” a partir de 2020 com o vídeo clip do grupo “Fenómenos do Semba”. A música é inspiração e pode ser transformação e por vezes ainda funciona como um "anestésico", quase como um factor de transe e de fuga mundis, mas acima de tudo a música é uma energia de união. Que apenas sejamos contagiados pela música “viral” e que estes tempos que vivemos nos tornem espiritualmente mais fortes para enfrentar os desafios da pandemia. * A autora não escreve segundo o acordo ortográfico
ESPAÇO AGECAL
Identidades colectivas em transformação JORGE QUEIROZ Sociólogo, sócio da AGECAL
“A cultura de massas integra e se integra ao mesmo tempo numa realidade policultural, que transforma as antigas identidades homogéneas em híbridos culturais”.
Edgar Morin “A defesa da diversidade cultural é um imperativo ético, inseparável do respeito à dignidade humana. Ela implica o compromisso de respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, em particular os direitos das pessoas que pertencem a minorias e os dos povos autóctones. Ninguém pode invocar a diversidade cultural para violar os direitos humanos garantidos pelo direito internacional, nem para limitar seu alcance”. Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, artigo 4º, UNESCO, 2001
A aceleração do processo de globalização e a crise do Estado-Nação, envolvem problemas geográficos, demográficos, políticos e culturais,
a relação entre poderes políticos e económicos, novas identidades como o “cidadão europeu”, questões linguísticas e religiosas,… As identidades colectivas estão hoje, mais do que nunca, na ordem do dia, com a redefinição de conceitos. Dois posicionamentos surgiram, as Convenções da UNESCO subscritas pelos Estados Nacionais que pugnam pela protecção da diversidade cultural da humanidade, o outro prefigura uma “identidade global”. Não é possível subestimar este debate, simultaneamente ambiental e cultural com consequências económicas. Sinal destes tempos são o surgimento de partidos políticos “verdes” e humanistas, mas também de movimentos nacionalistas, racistas e xenófobos. E o que é a identidade? São as características particulares que os seres vivos possuem, as quais permitem identificá-los e diferenciá-los de outros indivíduos ou grupos. Nos seres humanos as características individuais são biológicas e
físicas, mas também o nome, local de nascimento, naturalidade, nacionalidade, ascendentes,… A partir de 1919 o Estado Português começou a emitir bilhetes de identidade individuais registando as características, obrigatórios para os seus cidadãos. O processo de constituição das identidades colectivas é dinâmico influenciado pela aculturação. Entre 1815 e 1914, cerca de 60 milhões de europeus emigraram para as Américas em consequência das crises na agricultura e fomes em vários países (caso da Irlanda entre 1845 e 1852), mas entreosséculosXVIeXVIII,milhõesde escravos africanos tinham sido transportados para o continente americano. Nestes continentes registaram-se profundas transformações na estrutura populacional, dos modelos económicos e culturais, o uso predominante das línguas europeias a par do surgimento de crioulos e sincretismos religiosos, de novas expressões artísticas, que hoje influenciamasculturascontemporâneas. Nas sociedades subsiste um segundo
nível identitário ou de fragmentação das identidades, o posicionamento que cada um ocupa na escala social, família, profissão, bairro,… Conhecemos várias cidades dentro da cidade, com origens étnicas e classes sociais distintas produzindo culturas específicas. Consideramos identidades culturais múltiplas, a percepção que cada um de nós tem de pertença a uma comunidade influenciada por outras culturas. No caso português, consequência da relação de muitos séculos com a África e o Brasil mas também com a Ásia, essas colonizações originaram novos países e identidades culturais que têm por base a língua comum, mas também de estilos de vida. A cultura portuguesa regista também uma herança romana, muçulmana e de outras origens. Asnovasidentidadesinduziramdireitos sociais e culturais com vista ao reconhecimento e inclusão, na convivência e no trabalho,naigualdadeentreosgéneros, nos direitos das minorias étnicas e religiosas, surgindo mais recentemente
os conceitos de multiculturalismo, interculturalidade, pluralismo cultural,… O actual modelo económico global provocou intensa mobilidade das populações e de mercadorias, homogeneização dos comportamentos sociais visando uma economia de consumo. Com o surgimento no primeiro trimestre de 2020 da pandemia covid-19, a ciência procura hoje tratar pela vacinaçãooproblemasanitárioàescalaglobal, operação jamais realizada na História da Humanidade, mas que coloca em evidência um mundo desequilibrado e desigual no acesso aos recursos. Vivemos já a necessidade alterar concepções de vida em comunidade, de gerir melhor os recursos naturais e a produção de bens e serviços, também a relação com a natureza e os outros seres, o que provocara´, inevitavelmente, uma nova hierarquia de valores e a transformação das identidades colectivas. * O autor não escreve segundo o acordo ortográfico
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ARTES VISUAIS
A pandemia tem aumentado a “ligação” entre os artistas? SAÚL NEVES DE JESUS Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; http://saul2017.wixsite.com/artes
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um artigo anterior salientámos que a pandemia tem sido uma experiência global, vivida por todos em todo o planeta, independentemente de sexo, raça ou religião. Esperemos que possa servir para nos unir e ajudar-nos a refletir sobre o que realmente é importante, bem como para desenvolvermos atitudes e comportamentos mais adequados para nós mesmos e para com os outros. Efetivamente, foram muitas as manifestações de solidariedade, em particular no meio artístico, quer da sociedade para com os próprios artistas, que muito se têm ressentido do impacto da pandemia, nomeadamente em termos financeiros, quer dos artistas para a sociedade, nomeadamente com a realização de eventos solidários de música e com iniciativas que permitissem visitas online a museus de todo o mundo e a visualização virtual de obras de arte. Mas entre os próprios artistas, a solidariedade e a “ligação” também parece ter aumentado. A realização de exposições coletivas pode ser um indicador disso mesmo. Já no artigo ”Regresso ao futuro” nas artes visuais após o estado de emergência? havíamos feito referência à “Associação 289”, sediada em Faro e com fortes ligações às Artes Visuais da Universidade do Algarve, que organizou uma exposição em que participaram 57 artistas contemporâneos. Mais recentemente foi inaugurada a exposição “Projecto MAP - Mapa de Artistas de Portugal (2010-20). Mapa ou Exposição”, no Museu Coleção Berardo, em Lisboa. O subtítulo “Mapa ou Exposição” remete para a forma como a exposição foi organizada, tendo esta resultado das “ligações” profissionais e/ou afetivas de artistas portugueses, desde 2009. Neste ano foi criada a “Associação Cultural Colectivo de Curadores”, sem fins lucrativos, a qual foi criada a partir do encontro de vários curadores que escolheram Lisboa como plataforma para a sua atividade, após diversas experiências internacionais. Esta Associação tem promovido o “ProjectoMaAP”, um projeto curatorial de mapeamento dos artistas plásticos ativos em Portugal e todos os seus eventos e exposições.
Cada artista convidado a pertencer ao Map – Mapa de Artistas de Portugal – deve sugerir dois nomes de artistas centrais no seu universo artístico e/ou pessoal, e é a partir desta nomeação direta de artista a artista que o mapa se desenvolve exponencialmente. É portanto um mapa de relações que se desenvolve perante o nosso olhar, em que os artistas se legitimam mutuamente. A equipa curatorial não interfere no processo de seleção. Contando já com mais de 350 artistas que integram o mapa de arte contemporânea portuguesa, ao longo da última década, o “ProjectoMap” tornou-se uma das maiores plataformas online de iniciativa privada sobre artistas vivos que se apresenta em formato de base de dados através de um mapa interativo, oferecendo uma leitura diferenciada da geografia da criação contemporânea portuguesa. Tudo começou em 2010 quando quatro curadores convidaram quatro artistas, dando início à geração embrionária do projeto. No mesmo ano, cada artista convida outros dois artistas para integrar o mapa, e assim sucessivamente. Hoje o mapa conta com mais de 360 artistas, acentuando o seu carácter exponencial e hipoteticamente infinito. O “ProjectoMAP” ancora as suas raízes na exposição “Freunde— Friends — Fründ”, realizada no ano de 1969 nas “Kunsthallen de Berna e Düsseldorf”. Esta exposição foi fruto da amizade dos quatro artistas Daniel Spoerri, André Thomkins, Karl Gerstner e Dieter Roth, em colaboração com os curadores Harald Szeemann e Karl Ruhrberg. Estes convocaram os amigos de cada artista e os amigos dos amigos, propondo apresentar o universo pessoal de cada um. Nesta exposição acabariam por participar, ao lado dos quatro artistas iniciais e dos seus amigos, artistas como Joseph Beuys, Christo e Marcel Duchamp, reunindo mais de 400 obras de cerca de 50 participantes. Foi esta a exposição histórica de 1969 que se tornou fonte de inspiração fundamental, mais de quatro décadas depois, para a criação da metodologia curatorial do “ProjectoMAP”. A exposição no Museu Coleção Berardo marca os 10 anos de história do “ProjectoMAP”, um projeto que é também uma leitura do panorama artístico português da última década, um “mapa” de relações, afinidades e cruzamentos entre práticas, discursos que influenciam a leitura da produção artística contemporânea. A componente reflexiva também
Cartaz da exposição “Projecto MAP (2010-20). Mapa ou Exposição”
Imagens desta exposição
está presente, sendo ao longo da exposição colocadas questões que remetem para a reflexão de quem visita a exposição. De entre as questões colocadas, contam-se as seguintes: “O que querias ser quando eras novo?”; “Quem são as pessoas que mais te influenciaram?”; “O que te interessa nos tempos de hoje?”. Esta exposição pode ser visitada até 10 de janeiro 2021, sendo as
visitas limitadas a 8 pessoas de cada vez e orientadas pelas curadoras Alda Galsterer e Verónica de Mello. O Museu Coleção Berardo está certificado com o selo «Clean & Safe» do Turismo de Portugal e com o selo «Safe Travels» do World Travel & Tourism Council, cujos requisitos pretendem garantir ao visitante uma experiência em total segurança.
FOTOS D.R.
Entretanto, com o novo estado de emergência, as atividades culturais voltaram a ficar suspensas. Esperemos que num futuro próximo a “ligação” entre os artistas continue forte e solidária, mas que também possa aumentar a “ligação” entre os artistas e o público, para beneficio de ambos, porque os artistas precisam do público, mas as pessoas também precisam de arte e cultura.
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o seu código moral rígido e as suas histórias extraordinárias formaram o meu carácter desde cedo. A sua voz vive constantemente na minha mente. Creio que me tornei feminista em parte como desafio à autoridade patriarcal do meu avô. P Foi para esse avô que escreveu A Casa dos Espíritos, romance que começou como uma carta de despedida quando soube que ele estava doente. Como conseguimos relacionar o avô que tantas vezes recorda, com carinho e admiração, com a figura autoritária e por vezes cruel de Esteban Trueba (que Jeremy Irons interpretou tão bem)? R Esteban Trueba representa uma elite conservadora e quase feudal de proprietários chilenos durante a primeira metade do século XX. Chamavam-se a si mesmos de “aristocracia castellano-vasca”, a aristocracia castelhana e basca. O meu avô tinha alguns dos traços de Esteban, em parte porque pertenceu à mesma alta classe social, mas não era um violador nem um assassino. O meu avô foi um homem digno, honesto, e com altos princípios. Tenho a certeza de que não se teria reconhecido no carácter de Esteban Trueba.
Isabel Allende tem quase 80 anos e é a autora de língua espanhola mais lida FOTO LORI BARRA / D.R.
P Neste livro refere-se sempre apenas de raspão à questão do exílio, quando se viu obrigada a sair do Chile, devido ao golpe militar. R Não era pertinente para o livro e já o contei em outras memórias, como Paula ou O Meu País Inventado.
Entrevista à escritora Isabel Allende
“A idade não alterou a sede por amor na minha vida ou o entusiasmo de escrever sobre o amor” PAULO SERRA Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL
As Mulheres da Minha Alma, publicado simultaneamente pela Porto Editora e pelo Círculo de Leitores em Novembro de 2020, com o subtítulo Sobre o amor impaciente, a vida longa e as bruxas boas, é o mais recente livro de Isabel Allende, pouco menos de um ano depois do seu retorno à ficção histórica em Longa pétala de mar, poderoso romance ao nível dos melhores livros da autora. Isabel Allende tem agora quase 80 anos, mais de 20 livros publicados, cerca de 70 milhões de exemplares vendidos
um pouco por todo o mundo e é a autora de língua espanhola mais lida. Este não é o primeiro livro de não-ficção da autora, mas é certamente dos mais complexos, construído num palimpsesto. Apesar de começar com um tom memorialista, num registo autobiográfico da infância à idade madura, converte-se depois num manifesto feminista, onde não faltam números, estatísticas, citações, situações experienciadas em primeira mão e dados preocupantes que revivificam a jornalista que Isabel Allende era antes de se dedicar à escrita por inteiro. Allende criou, aliás, uma Fundação (www. isabelallendefoundation.org) destinada ao empoderamento das mulheres e meninas de alto risco com as receitas provenientes do
livro Paula, uma memória e uma carta de celebração da vida da sua filha – não lhe podemos chamar despedida pois para Allende a sua filha Paula, tal como outros espíritos amigos, nunca partiu completamente. Este livro, escrito para as suas leitoras, é também uma declaração de amor para essas mulheres extraordinárias que compuseram a sua vida – Paula, a agente literária Carmen Balcells, a mãe Panchita – e que nós já conhecemos tão bem como as suas personagens de papel, como a omnipresente Eliza Sommers (heroína de Filha da Fortuna), além de outras mulheres cuja vida tem sido dedicada a tornar o mundo um lar para todas as mulheres, e ainda escritoras companheiras de percurso que Allende vai evocando e citando,
A sua avó Isabel é uma memória frágil de quem herdou a sua espiritualidade e sensibilidade. A personagem Clara é inspirada na sua avó. Chegou a conhecê-la bem? P
como Margaret Atwood ou Virginia Woolf. Mas além do feminismo este é também um livro sobre envelhecer com graciosidade e sobre o amor, mesmo em tempos de pandemia. Iniciar este livro é como ler uma memória, mas apesar de ter sido escrito por uma mulher sobre as suas mulheres e para as suas leitoras mulheres (que interpela constantemente), páginas depois de evocar a sua mãe percebemos que há uma figura masculina que é quem mais se destaca, a do seu avô. P
R Alguns homens têm sido muito importantes na minha vida, em particular o meu avô, o meu padrasto e o meu filho Nicolás. Eu vivi com o meu avô até aos 10 anos; ele foi um pai-substituto para mim pois o meu pai biológico abandonou a família. Os seus ensinamentos, o seu exemplo,
R Não conheci bem a minha avó porque ela morreu quando eu era pequena. Lembro-me dela vagamente e suponho que terei inventado o resto com base naquilo que ouvi contar. Ela era uma espécie de lenda. Há muitas histórias e anedotas sobre ela e as suas faculdades paranormais. Eu cresci com uma avó mítica.
Sei que o amor e a paixão são possíveis em qualquer idade
P Por falar em Clara e Esteban Trueba, quando o filme foi rodado em Portugal chegou a acompanhar as filmagens? Como se sentiu ao ver o seu livro transformado num filme que, inclusivamente, corta uma das gerações, pois de Clara passa para Alba, esquecendo Blanca…
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LETRAS & LEITURAS
R Não visitei as filmagens em Portugal. Passei uma semana com a equipa da filmagem num estúdio em Copenhaga. Gostei muito do filme e não me importei quanto às mudanças inevitáveis que o realizador teve de fazer.
Entre todas as personagens que chegam a pulular entre livros, como Nívea e Severo Del Valle, ou mesmo Clara que ressurge em Longa pétala de mar, a que aqui se destaca é Eliza Sommers, a jovem que partiu por amor para o cenário da febre do ouro e se fez passar por homem. P
R Para mim Eliza Sommers representa as primeiras feministas que tiveram de deixar a segurança (e prisão) das suas casas e tomar de assalto o mundo dos homens. Eliza foi à procura do amor e conquistou algo igualmente precioso: a liberdade.
Quase poderíamos pensar que a Isabel é uma céptica no amor… Eliza, como várias heroínas suas, não é a jovem donzela que se deixa arrebatar pois nos seus livros o amor nunca é cor-de-rosa mas sim uma espécie de via para a emancipação… Eliza, aliás, termina o livro sem o homem que perseguia e descobre o amor onde menos esperava…
amor nunca é perfeito, porque não é perfeito na vida real. Desejava poder escrever romances com um final feliz! Ainda sobre o amor… os seus últimos romances parecem pulsar com a pujança dos primeiros, como O amante japonês ou Longa pétala de mar. P
R A idade não alterou a sede por amor na minha vida ou o entusiasmo de escrever sobre o amor nos meus livros. E porque é que haveria de alterar? Sei que o amor e a paixão são possíveis em qualquer idade, por isso nos meus últimos três romances tenho amantes mais velhos.
Espero que depois da pandemia sejamos capazes
P
R O amor tem sido importante na minha vida. Sou abençoada; nunca vivi sem amor. É também importante na minha escrita, mas, tal como diz, o
de imaginar e criar uma normalidade melhor Apesar de viver a maior parte da sua vida na Califórnia, ainda hoje escreve em espanhol. No livro, pode ler-se que «A linguagem é muito importante, pois costuma determinar a forma como pensamos.» (p. 68) Pode explicar-nos porque é que ainda hoje continua a escrever em P
espanhol? É também a língua em que pensa? A língua em que sente melhor?
soas que procuram asilo e migrantes que fugiram às condições terríveis na América Central. Entre eles, os mais vulneráveis são mulheres e crianças. A minha fundação tenta ajudá-los.
R Eu vivi em inglês durante 32 anos, mas ainda sonho, conto, rezo, cozinho, faço amor e escrevo apenas em espanhol. Claro que preciso de ter um dicionário de espanhol na minha secretária porque esqueço-me com frequência de palavras em espanhol que só me ocorrem em inglês. E vice-versa… P Neste livro não só cria um manifesto feminista como um libelo do envelhecimento, mas sobretudo contesta o politicamente correcto e defende o binário pois separa muito bem a forma de sentir e de pensar da mulher da do homem…
Não sou contra os géneros fluídos, muito pelo contrário, defendo o direito de cada indivíduo definir o seu género. Não é preciso mantermo-nos apenas entre um género ou outro. Contudo, ao falar da nossa civilização, é necessário usar os termos masculino ou feminino para definir valores e atitudes. O patriarcado é o sistema prevalecente para a opressão política, económica, cultural e religiosa; durante milhares de anos tem assegurado o domínio e os privilégios do género masculino. O feminismo é uma revolta contra a autoridade masculina. Pretende substituir o patriarcado com um sistema em que a gestão mundial seja R
P Num livro que apela à mudança de consciência, escreve as últimas páginas em março de 2020 em pleno confinamento justamente quando o mundo quase parou. O que acrescentaria quanto ao que se tem vivido desde então?
Livro é uma declaração de amor para as mulheres extraordinárias que compuseram a sua vida
partilhada equitativamente entre homens e mulheres, em números e condições, e que os valores masculinos e femininos tenham o mesmo peso na sociedade. Esses valores são diferentes.
R Espero que o mundo tenha aprendido uma lição difícil. O vírus tem-nos ensinado que somos uma família humana; o que acontece a uma pessoa numa cidade na China acontece a todos nós e a única forma de vencer este inimigo invisível é através de um esforço colectivo global. Todos vivemos neste planeta frágil. Temos um destino comum. Espero que depois da pandemia sejamos capazes de imaginar e criar uma normalidade melhor, uma realidade mais inclusiva, sustentável, razoável, empática.
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P Por fim, os vários poemas citados e em destaque neste livro obedecem a critérios afectivos?
R Sim. Há uma crise humanitária na fronteira entre os E.U.A. e o México em que se reuniram milhares de pes-
R Os poemas ilustram alguns dos temas do texto. Por exemplo, quando eu explico porque é que o feminismo é ruidoso, o poema «Arde» de Miguel Gane, que inicia por «Não, caladinha não ficas mais bonita», pareceu-me apropriado.
Além do empoderamento feminino, a sua Fundação também se centrou no apoio aos refugiados desde 2016, principalmente na fronteira entre os E.U.A. e o México.
ESPAÇO ALFA
A música na fotografia RAÚL GRADE COELHO Membro da ALFA – Associação Livre Fotógrafos do Algarve
Todos nós vemos e ouvimos aquele artista que é o adorado por todos e conhecido por uma multidão que entoa os cânticos. Vamos tirar a fotografia! - gritam alguns. Alto lá! Nem sempre é possível retirar aquele retrato que simbolizaria o nosso cantor ou cantora. Há regras que permitem ou não fotografar tal artista. Há concertos em que tal é mais simples de conseguir. Por exemplo, nos concertos desenvolvidos pelas autarquias ou associações, nalguns deles tal é possível. Para o amante da fotografia basta estar no momento certo no lugar certo. É um mundo de emoções que é retratado e muitas vezes é a capa daquela revista ou jornal. São fotos que dão
prazer ao fotógrafo que lá se encontra no meios das emoções sentidas pelo público e que as tentam expressar ao máximo aos cantores. São as maravilhas que as lentes fotográficas guardam. Contudo, é com muita pena que surgiu este vírus de nome Covid-19 que é pouco amigo daqueles que transportam a máquina fotográfica, bem como daqueles que transportam aquela guitarra ou outro instrumento que já fora muitas vezes a primeira página de várias publicações. Diminuíram de forma drástica os concertos que dantes se assistiram mas que esperamos que se voltem a realizar. Temos no entanto as fotos de arquivo, que em momentos drásticos como este que vivemos agora, podemos ver e recordar todas as alegrias daquele cantor masculino ou feminino que para além das canções posaram para a nossa fotografia.
Em tempo de pandemia, podemos recordar os cantores que posaram para as nossas fotografias FOTOS / D.R.
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FILOSOFIA DIA-A-DIA
Res Pública - A “coisa” pública MARIA JOÃO NEVES PH.D Consultora Filosófica
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gasalhei-me, desinfectei as mãos, coloquei a máscara, verifiquei se a caneta que levava escrevia bem e, apesar da apreensão, fui votar. Houve um tempo em que, por ter nascido mulher, esta acção não seria, de todo, possível. Para que eu hoje possa votar, muitas mulheres lutaram, algumas delas perdendo a vida. Cumprir o dever cívico é, pois, para mim, honrar essas heroínas, fazer o pouco que está ao meu alcance para lhes demonstrar que a sua coragem não foi em vão. Mas fui votar sob uma nuvem negra, e não era apenas o perigo da pandemia que me afligia... Na capa da revista Sábado (14 a 20 janeiro 2021) pode ler-se: “ATENTADO AO ESTADO DE DIREITO. Pela primeira vez em democracia, o Ministério Público liderado por Lucília Gago mandou seguir e fotografar jornalistas e vasculhou as suas contas bancárias. A operação foi ordenada por agentes encobertos da PSP para devassar fontes de informação.” O Editorial de Eduardo Dâmaso esclarece que estas acções foram levadas a cabo sem cobertura legal e violando o direito ao sigilo profissional. Este atentado contra a liberdade de imprensa faz-nos recordar outros tempos bem negros da nossa história, que a revolução de Abril se orgulha de ter terminado... Mas será realmente assim? Há eleições presidenciais cá dentro, e Portugal assume desde o início de Janeiro a 4ª Presidência portuguesa do Conselho da União Europeia. Contudo, é uma presidência que se inicia de forma turva, de novo evolvendo o Ministério Público, com a polémica sobre a nomeação do procurador europeu. A Procuradoria Europeia ocupa-se, precisamente, de casos de fraude e corrupção. Como pode a nomeação portuguesa deste cargo realizar-se debaixo da suspeita destes crimes? A perplexidade é tanto maior precisamente porque o cargo de Procurador Europeu é aquele cuja função é zelar pela justiça e transparência! Revejamos os factos. Baseando-se numa análise curricular o Conselho Europeu tinha elegido Ana Carla Almeida - magistrada responsável no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) pelos processos relativos a fraudes nos fundos comunitários - mas o governo português, veiculando a decisão do Ministério Público, intercedeu colocando em primeiro lugar o magistrado José Guerra. A comunicação social revelou que esta ultrapassagem
A imagem retrata uma cena da Ilíada em que Ulisses bate com o ceptro em Tersites, por este simples homem do povo, pertencente aos subordinados, ter ousado fazer ouvir a sua voz junto da classe dirigente FOTO D.R.
se baseou numa carta enviada para a UE, em Novembro de 2019, contendo dados falsos sobre o magistrado preferido pelo governo português para o cargo. Os “lapsos”, como de forma eufemística se chamou a estas mentiras, foram considerados irrelevantes. De vários quadrantes políticos surgiram pedidos de esclarecimento. Um eurodeputado português apresentou, inclusivamente, uma queixa à Provedora de Justiça Europeia sobre esta polémica. Emily O’Reily considerou o assunto “preocupante”, admitindo a possibilidade de se abrir uma investigação, caso a Comissão e o Conselho europeu não obtivessem os devidos esclarecimentos. A organização portuguesa Transparência e Integridade reiterou o pedido de acesso a documentos feito ao Ministério da Justiça a propósito deste caso. Contudo, a 6 de Janeiro, o governo recusou alegando que os documentos do processo são “actividade política”. Nas palavras da actual presidente da Transparência e Integridade, Susana Coroado, “O Governo deve estas informações aos portugueses e aos nossos parceiros europeus. E se, quer a ministra da Justiça quer o primeiro-ministro estão tão seguros de terem procedido da melhor forma, só têm de publicar todos os documentos, como a Transparência e Integridade lhes pediu e a lei os obriga, para que toda a verdade seja co-
nhecida”. (https://transparencia.pt/ novo-pedido-documentacao-completa-escolha-procurador-europeu/ Consulta a 23 de janeiro) Entretanto, o nosso Primeiro-Ministro veio reiterar a confiança política na Ministra da Justiça, “pelas suas próprias razões”. Dias depois afirma no parlamento que o caso está encerrado “não queiram fazer mistérios onde eles não existem” rematou, não dando mais explicações. Porém, devido a uma denúncia apresentada pela Ordem dos Advogados, a PGR continua a investigar. Polémica levanta questões pertinentes sobre o Estado de Direito
Estando ou não o caso devidamente encerrado, esta polémica levanta questões pertinentes sobre o Estado de Direito: - A reserva do governo e do parlamento em se imiscuir neste caso deveu-se ao respeito pela divisão dos poderes legislativo, executivo e judicial, ou ao receio de se enfrentar ao corporativismo do Ministério Público? -Pode um dirigente da Res Pública ter “as suas próprias razões”? Para a primeira questão não tenho por onde procurar respostas, mas a segunda é do foro de reflexão de todos nós, cidadãos da República. Parece-me que um político não pode ter “as suas próprias razões”, pelo contrário, tem o dever de justificar todas e
qualquer umas das supostas razões, tanto ao povo que o elegeu como aos que não o elegeram mas se submetem porque a maioria assim o decidiu. As “suas próprias razões” os senhores políticos são livres de as ter nas suas próprias casas quando, justamente, não estão em exercício político. Se um político recusar um cozinhado “pelas suas próprias razões” ninguém tem nada que inquirir sobre o seu palato ou idiossincrasia. É do foro privado. Mas as decisões políticas são públicas - res pública que dizer coisa pública portanto nossa, de modo que temos direito a perguntar e a querer conhecer até à exaustão as razões das decisões que nos afectam a todos. Aristóteles na Política, defende sem reservas que “uns nasceram para obedecer e outros para mandar”. Portanto, que nem se lhes ocorra aos primeiros pedir razões aos segundos. Quando isto acontece - como quando em plena guerra de Tróia, Tersites, um simples homem do povo, resolve levantar a voz defendendo o regresso a casa, cansado de montar cerco durante 10 anos e farto de dos caprichos de Agamemnon, - a resposta não se fez esperar: Ulisses deu-lhe com o ceptro na cabeça e Tersites acabou desprezado e humilhado. Que sirva de lição! Os que nasceram para obedecer não devem imiscuir-se nas deliberações dos que nasceram para mandar! A corrupção, a falta de transpa-
rência, este não se sentir obrigado a explicar decisões que são do foro público aos cidadãos da República, tem contribuído para o descrédito da classe política e consequente descontentamento e até alienação dos cidadão relativamente à causa pública. A pandemia não chega para justificar os 60.7% de abstenção nas eleições presidenciais que acabam de realizar-se no nosso país, porém, a recente direita radical obteve 11,9% dos votos, ocupando um diria preocupante 3º lugar nesta corrida às urnas. Temos exemplos históricos de como o descontentamento social com um regime democrático ineficaz levou ao poder regimes extremistas, por exemplo, na Alemanha Nazi. É como cidadã apartidária que deixo aqui o meu apelo à reflexão sobre a relação entre estes 3 factores: a corrupção, falta de transparência e corporativismo; o descontentamento da sociedade civil; a ascensão dos regimes radicais e extremistas de discurso populista. Quase 30 séculos depois da Ilíada é urgente que parem de nos tratar como a Tersites! Partilhe as suas reflexões no grupo Café Filosófico do Facebook: https://www.facebook.com/ groups/1369727349722120 ou por email: filosofiamjn@gmail.com
* A autora não escreve segundo o acordo ortográfico
CULTURA.SUL
Postal, 5 de fevereiro de 2021
FIOS DE HISTÓRIA
A Primeira Nau RAMIRO SANTOS Jornalista ramirojsantos@gmail.com
Mal haviam posto os pés em terra e já tinham a recebê-los uma grande surpresa. Aquele toque das torres de Ceuta soava-lhes familiar. Eram os sinos da igreja de Lagos que tinham sido roubados uns anos antes pelos mouros num assalto à vila algarvia. Mas esta não foi a única surpresa. A praça africana que D. João I escolhera para ali armar os seus filhos cavaleiros ofereceu, afinal, pouca resistência. De tal modo que “à hora do jantar a cidade estava tomada”. A sua conquista demorou apenas um dia. E se a sorte protege os audazes, os portugueses tiveram os deuses com eles. Os ventos, o nevoeiro e a agitação marítima haviam dispersado a frota de D. João I e enganado o alcaide da cidade. Salah Ben Salah, presumindo que os portugueses tinham desistido da operação, virou costas e mandou retirar os reforços de 10 mil homens que tinham chegado em seu auxílio. Se assim não fosse, o assalto a Ceuta poderia ter resultado numa enorme tragédia. Tanto mais que estavam lá o rei, o príncipe herdeiro D. Duarte e os infantes D. Pedro e D. Henrique. Foi uma conquista um pouco ao sabor dos ventos e das marés! Tudo havia começado uns seis anos antes, numa operação organizada no maior sigilo e pensada para não falhar. Partilhada apenas por um grupo restrito de conselheiros do rei e pelos infantes seus filhos. As ribeiras do Tejo e do Douro transformaram-se em estaleiros gigantes, tendo sido mobilizados enormes recursos do Estado. Os que havia e os que não havia. Construíram-se navios, encomendaram-se outros ao estrangeiro, mobilizaram-se soldados e mercenários, carpinteiros, calafates, trons e bombardas. E encheu-se a despensa de víveres: biscoitos, carne de salga, vinho e frutos secos. Mel, ovos, galinhas e outros animais vivos. Era um frenesim. Com Ceuta, D. João de Portugal passaria a controlar o Estreito de Gibraltar, o que abria o país ao comércio mediterrânico. E além disso, desviava para Marrocos “uma nobreza turbulenta, ávida de conquistas, tenças e comendas, afrouxando algumas das tensões sociais internas”. A tomada de Ceuta era, pois, um objetivo estratégico do ponto de vista económico, político e militar! E religioso também.
Finalmente, chegou a data anunciada. Uma quinta-feira. Dia de Santiago. A armada, constituída por mais de 200 embarcações e 20 a 30 mil homens, zarpou do Restelo a 25 de julho de 1415. A bordo seguiam o rei, o príncipe herdeiro, D. Duarte, e os infantes D. Pedro e D. Henrique. E a mais alta nobreza do reino. Muitos estrangeiros também. “O vento frio nas velas começou a lançar a frota pela boca da foz” – assim reza a crónica de Zurara, assinalando a partida da expedição que marca o início da expansão portuguesa que há-de revolucionar a geografia e a história do mundo. Ao sábado sobre a tarde, começaram a dobrar o Cabo de S. Vicente. Em sinal de respeito pelos mártires que ali jaziam, recolheram as velas e detiveram-se por alguns momentos antes de seguirem para Lagos, onde fundearam nessa mesma noite. No dia seguinte, 28 de julho, o rei incumbiu Frei D. João De Xira de anunciar, na missa desse domingo, o objetivo e o destino da missão: “El Rei nosso senhor vos faz saber... ir sobre a cidade de Ceuta”. E é anunciada uma bula de cruzada com a promessa de absolvição dos pecados e salvação das almas. A armada segue viagem, quarta-feira, último dia do mês de julho, com destino a Faro. E aqui, “porque em seguindo, encalmou o vento, foi necessário de estar ali até outra quarta-feira que eram sete do mês de agosto”. Oito dias de espera. E na sexta-feira, um pouco antes da noite “houveram vista de terra de mouros”. Em Algeciras “mandou el-Rei que fizessem andar todos os navios de mar em roda porque não era vontade entrar pela boca do Estreito senão de noite”. Seguiram-se 13 dias de uma longa espera. Perdeu-se o efeito surpresa! No meio de peripécias várias, imprevistos, avanços e recuos devido aos ventos e às correntes, - provavelmente uma ‘suestada´ - que obrigaram a frota a afastar-se ao largo, o alcaide de Ceuta,
Salah ben Salah, convencido de que os portugueses tinham desistido da operação, decidiu dispensar os 10 mil homens que tinham vindo em seu auxílio. Quando deu por ela, estava cercado. O tempo amainou e, na noite de 20 de agosto de 1415, a esquadra de mais de 200 velas com tochas e candeias acesas, fundeava no porto de Ceuta. E, conta Zurara: “A cidade respondeu ao desafio, iluminando todas as janelas e terraços. E assim pela grandeza da cidade, e por ser de todas as partes tão iluminada, era muito formosa de ver”. Ao alvorecer do dia 21, começa o desembarque. É o dia D. O batel de João Fogaça, contra as indicações do comando, desembarca na praia de Stº Amaro. E o algarvio Vasco Eanes Corte Real foi o primeiro a romper as muralhas defensivas e a lutar corpo a corpo nas ruas e vielas da cidade: “150 cristãos foram entrada na medina e o primeiro foi Vasco Eanes Corte Real e depois outros após ele” – relata Zurara. Em poucas horas a bandeira portuguesa é colocada no alto do castelo que tinha sido abandonado pelo alcaide. Não houve mais resistência naqueles dias. "(...) Já passavam de sete horas e meia depois do meio dia, quando a cidade foi de todo livre dos mouros”. Diz o cronista que descreve o desvario das pilhagens habituais em ações bélicas daquela época. Ceuta havia sido conquistada num dia. No domingo seguinte, 25 de agosto, depois de limpa e sagrada a mesquita de Ceuta, foi celebrada uma missa de acção de graças, seguida das cerimónias em que foram armados cavaleiros os filhos de D João I. No regresso, já em Tavira, a 3 de setembro, o rei chamando os seus filhos, disse-lhes: “O Infante D. Duarte é herdeiro de meus reinos, a D. Pedro faço duque de Coimbra e a D. Henrique faço duque de Viseu e senhor da Covilhã”. E El Rei e a sua comitiva partiram por terra para Évora que se vestiu de festa e regozijo!
A conquista de Ceuta representa o início da expansão portuguesa. A armada de D. João I onde seguiam os seus filhos, D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique, desembarcou na manhã de 21 de agosto de 1415 e ao início da noite a cidade estava tomada FOTOS D.R.
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