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Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o

JULHO 2021 n.º 152 9.825 EXEMPLARES

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ARTES VISUAIS

Pode a arte contribuir para a coesão territorial? Imagem da escultura Metoposaurus Algarvensis (Pedro Cabral Santo, 2021)

Imagens de obras sobre Cavalo Marinho

Imagens da escultura Camaleão (Bordalo II) FOTOS D.R.

SAÚL NEVES DE JESUS Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; http://saul2017.wixsite.com/artes

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o último artigo, intitulado “Pode a arte contribuir para a preservação de espécies ameaçadas?”, fizemos referência aos dois cavalos marinhos feitos por Bordalo II, um no Campus de Gambelas da Universidade do Algarve e outro no Parque de Campismo da Praia de Faro, numa articulação entre a instituição em que é desenvolvido o conhecimento e o habitat onde se desenvolve a espécie e em que o conhecimento pode ser aplicado. No entanto, para além dos cavalos marinhos existentes em Faro, já anteriormente tinha sido construída uma escultura de um cavalo marinho à entrada de Olhão. Assim, o cavalo marinho é uma espécie transversal a vários municípios que se encontram na Ria Formosa, podendo ser fator de ligação territorial entre Faro e Olhão, concelhos diferentes mas unidos na defesa da preservação desta espécie.

Felizmente começam a surgir vários projetos envolvendo vários municípios do Algarve, em que há uma perspetiva regional e de coesão territorial que ultrapassa as fronteiras de cada município. Longe vão os tempos de quase isolamento concelhio em que cada município procurava ter o seu polidesportivo, o seu auditório, as suas piscinas, etc, não havendo uma perspetiva integradora e de articulação de esforços. O Geoparque Algarvensis é outro destes projetos recentes no Algarve, resultando duma parceria entre os Municípios de Loulé, Silves e Albufeira e a Universidade do Algarve, através do Centro de Investigação Marinha e Ambiental (CIMA), procurando candidatar este território à categoria de Geoparque Mundial da UNESCO. Como forma de assinalar o lançamento deste projeto foi recentemente inaugurada a Escultura Metoposaurus Algarvensis, em Salir, com 10 metros de altura, da autoria de Pedro Cabral Santo. Temos assim mais um exemplo do papel que a arte também pode ter nas conexões entre espaços físicos, permitindo recriar trajetos na ligação entre esses espaços ou dando

uma dimensão mais simbólica e global a esses espaços. Um exemplo ainda mais recente de colaboração entre municípios, com o envolvimento da Universidade do Algarve, através do Centro de Ciências do Mar (CCMar), diz respeito ao lançamento do Parque Natural Marinho do Recife do Algarve, uma zona conhecida como a Pedra do Valado, sendo uma área marinha protegida de interesse comunitário no Algarve, no âmbito do qual estão previstos 156 km2 de área protegida, entre o Farol da Alfanzina e a Marina de Albufeira, encontrando-se identificadas mais de 800 espécies marinhas. Neste projeto participam ainda a Fundação Oceano Azul, bem como a Junta de Freguesia de Armação de Pêra e os Municípios de Albufeira, Lagoa e Silves. Nesta zona situa-se o maior recife rochoso costeiro do Algarve, um ecossistema ímpar no continente português, que beneficia de condições naturais que favorecem uma biodiversidade marinha e produtividade únicas. Esta proposta inédita foi construída através de um processo participativo, ao longo de quase três anos, envolvendo mais de 70 entidades e

baseado numa sólida fundamentação científica. No último artigo, havíamos finalizado referindo que a “articulação entre a investigação e a sua aplicação prática é fundamental e esperamos que este seja um exemplo a seguir em relação à preservação de outras espécies ameaçadas na Ria Formosa, nomeadamente o Camaleão, podendo a arte ajudar na consciencialização para a importância da preservação das espécies e do papel essencial que a investigação pode ter neste processo.” Assim, outra espécie ameaçada de extinção no Algarve é o camaleão, tendo muito recentemente o projeto “Centro de Recuperação e Investigação do Camaleão do Algarve” sido vencedor do Orçamento Participativo Jovem Portugal, edição de 2019. Este prémio foi atribuído à Associação Vitanativa, que vai realizar iniciativas entre Loulé e Vila Real de Santo António. Este projeto visa promover a conservação do camaleão, espécie emblemática algarvia, através da sensibilização da comunidade para a sua importância e respetivos fatores de ameaça e da melhoria do conhecimento da sua biologia e distribuição geográfica, envolvendo os cidadãos e a comunidade científica. Será criado um “Centro de Interpretação do Camaleão” no Parque Natural da Ria Formosa, em Olhão, e a capacitação do Centro de Recuperação e Investigação de Animais Selvagens (RIAS), através da melhoria de infraestruturas, mais adequadas à receção de camaleões feridos ou debilitados. Está também prevista uma campanha presencial em algumas praias no Verão, assim como a colocação de sinalética com informações sobre o camaleão e sobre como as pessoas podem colaborar no projeto. Para além de Olhão, também os municípios de Faro, Loulé, Tavira, Castro Marim e Vila Real de Santo António, a Universidade do Algarve, a delegação regional do Instituto Português do Desporto e da Juventude e o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas estarão

Ficha técnica Direção: GORDA, Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Responsáveis pelas secções: • Artes Visuais: Saúl Neves de Jesus • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Filosofia Dia-a-dia: Maria João Neves • Fios De História: Ramiro Santos • Letras e Literatura: Paulo Serra • Marca D'Água: Maria Luísa Francisco Colaboradores desta edição: Mauro Rodrigues e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve FB: https://www.facebook.com/ Cultura.Sulpostaldoalgarve

envolvidos neste projeto. Fica o desafio para que, tal como Bordalo II criou dois cavalos marinhos, expressando as pontes existentes entre a Universidade do Algarve e o município de Faro na defesa desta espécie, poderia ser interessante que algo idêntico fosse feito em relação ao camaleão, enquanto símbolo de coesão territorial de vários concelhos do Algarve. Aliás, curiosamente Bordalo II já criou imagens de camaleão, nomeadamente em 2016, encontrando-se no Museu de Street Art de Murcia. Mas estas poderiam ser também implementadas em locais que permitam criar ligações simbólicas entre espaços e cidades da Ria Formosa, contribuindo para a coesão territorial e para uma perspetiva do Algarve como um todo, em defesa do ambiente e da biodiversidade.


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MARCA D'ÁGUA

Política, comunicação e confiança MARIA LUÍSA FRANCISCO Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa luisa.algarve@gmail.com

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s eleições autárquicas aproximam-se, o calor aumenta e este ano as eleições são quase na época alta, ou seja, realizam-se cinco dias depois de terminar o Verão (26/09/2021). Fazer campanha eleitoral em contexto de pandemia e de máscara dificulta a comunicação, tanto mais que fazem parte destas campanhas: a proximidade, os apertos de mão, os beijinhos, os abraços e agora surgem novos desafios a vários níveis. O desafio de honrar o direito ao voto de forma a acabar com a abstenção é grande, tanto mais em clima de Verão e de pandemia. A votação

electrónica é prática, reduz custos e para além de ser mais higiénica poderá ajudar a diminuir a abstenção. É importante educar para a cidadania, aprofundando a democracia para que a sociedade civil seja mais participativa e não desvalorize os momentos eleitorais. As autárquicas protagonizam a política local, sendo indispensável haver consciência do território, da necessidade de melhoria das condições de vida das populações e da criação ou reformulação de infra-estruturas que dêem suporte às actividades a concretizar. Os cidadãos hoje em dia dispõem de muita informação, tal como os governantes e nada passa despercebido. Os políticos têm de estar muito bem apetrechados de informação, estar em cima dos acontecimentos, e claro, têm de estar rodeados das pessoas certas. A comunicação é uma ferramenta crucial na política e a forma de co-

municar tem um papel fundamental na manutenção da confiança. Para que sejam eficazes, tanto as políticas como a comunicação têm de ser confiáveis, porque resgatar a confiança perdida não é fácil. Com a proliferação das redes sociais, cada vez mais pessoas expressam os seus pontos de vista sobre as políticas públicas, o que aumenta a expectativa de mais transparência e prestação de contas. No entanto as redes sociais não devem substituir a comunicação oficial das autarquias sob pena da sua menorização e até de alguma banalização com comentários.

Liderança comunicante Nos próximos tempos, a concretização das mudanças necessárias na economia e sociedade portuguesas passa, de forma determinante, pela capacidade de as autarquias e dos seus autarcas assumirem um papel

de agentes de mudança e geradores de riqueza e bem-estar para as suas autarquias, sem se fechar em redomas, mas procurando interagir com os municípios vizinhos. Uma comunicação assertiva é algo que se exige cada vez mais, pois um(a) presidente é a imagem do município e há que ter uma liderança comunicante e uma cultura geral que lhe dê segurança e capacidade de improvisação. Todos nós já assistimos a gaffes cometidas por políticos e muitas delas seriam evitáveis se tivesse havido mais formação, nomeadamente durante o tempo de pré-candidatura. Considero importante um “banho” de cultura geral com resumo das principais teorias político-filosóficas, autores, acontecimentos nacionais e internacionais e revisão de conceitos base de ciência política, tal como de palavras a evitar e técnicas eficazes de comunicação. Eu própria tive uma formação, ain-

da no presencial, durante vários meses, para futuros líderes políticos, mesmo sem me ir candidatar a nenhum lugar, mas para estar preparada para quase tudo e poder ajudar outras pessoas que também considerem a política importante. Ouve-se habitualmente falar mal dos políticos e da política, mas ela é o melhor lugar para concretizar o bem comum e tornar o mundo melhor. Cada vez mais, os cidadãos exigem dos políticos que os representam soluções objectivas que sirvam a comunidade e não caiam em promessas vãs de quem procura apenas a sobrevivência política sem amor pela causa pública. A política é grande ou não consoante a forma como os seus protagonistas se sintonizam com a realidade social do seu espaço e do seu tempo. *A autora não escreve segundo o acordo ortográfico

ESPAÇO AGECAL

Política cultural – democracia e conhecimento JORGE QUEIROZ Sociólogo, sócio da AGECAL

"Uma visão estratégica para a Cultura constitui um elemento essencial para a democracia e para o futuro do País” Comunicado do Conselho de Ministros de 22 de Abril de 2021

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frase retirada do comunicado do Conselho de Ministros, corresponde há muito ao que pensamos como profissionais da gestão cultural e como cidadãos de um País que possui uma influência cultural no mundo superior à sua demografia e economia. A cultura, no seu sentido mais elevado, é a capacidade de pensar a realidade de forma autónoma e independente, a partir dos conheci-

mentos da história da humanidade, das artes e das ciências. É, quanto a nós, função principal da actividade cultural pública informar e formar cidadãos na perspectiva da sua autonomia decisória consciente. Na UE este debate é sensível, resulta da diversidade cultural e da história europeia de conflitos por hegemonias geopolíticas, linguísticas e religiosas, acresce ainda o actual domínio das indústrias culturais norte-americanas ligadas à promoção de estilos de vida para o consumo. Os valores humanistas continuam uma referência indispensável. A ideia de “cultura europeia” é equivoca, a diversidade cultural é a sua riqueza. Portugal necessita definir bases sólidas de uma política cultural que responda à evolução do conhecimento, a necessidades de planeamento, de desenvolvimento

cultural educativo e produtivo, que evite emergências casuísticas e promova a regionalização. Quando há 20 anos a UNESCO propôs a criação de uma Rede Internacional de Observatórios de Políticas Culturais, considerava indispensável a produção pelos países de dados fiáveis e comparáveis, baseados na construção de conceitos comuns, por forma a garantir que as políticas públicas estabelecessem objectivos e programas claros, tendo em vista o desenvolvimento educativo e cultural das populações… O Observatório das Actividades Culturais, extinto no início da última década, foi uma estrutura de investigação e análise que reunia o Ministério da Cultura, Instituto Nacional de Estatística e o Instituto de Ciências Sociais, produziu importantes trabalhos sobre a realidade cultural portuguesa. Não

RESTAURANTE O TACHO

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detectamos a criação de qualquer entidade que substituísse o OAC, proporcionando ao País informação quantitativa e qualitativa. As Universidades Portuguesas são essenciais no processo de desenvolvimento cultural, são necessárias licenciaturas que formem quadros preparados para a gestão dos recursos culturais, com aprendizagem de metodologias e técnicas de trabalho. Na economia da cultura os trabalhos publicados são escassos, aleatoriamente vão surgindo estudos sectoriais de âmbito académico no contexto de Mestrados e Pós-Graduações. Lacuna prejudicial aos interesses culturais e laborais é a ausência de uma estrutura socioprofissional nacional representativa das dezenas de milhares de profissionais que em Portugal trabalham em bibliotecas, arquivos, museus, teatros, cinemas,

monumentos, centros de ciência, companhias de dança, empresas culturais, festivais, comunicação, logística e outras actividades culturais, … Apesar de várias tentativas organizativas essa estrutura socioprofissional nunca avançou. Significativo que, quase meio século após o 25 de Abril de 1974, seja da iniciativa do Ministério da Cultura a proposta de criação dos Estatuto dos Profissionais da Área da Cultura, documento disponível para consulta pública na Separata do Boletim de Trabalho e Emprego n.º 9, de 5 de maio de 2021. Num mundo em transformação é evidente a necessidade e urgência de pensar a cultura portuguesa com solidez política e estratégica, como elemento essencial da democracia. * O autor não escreve segundo o acordo ortográfico


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LETRAS & LEITURAS

Maremoto, de Djaimilia Pereira de Almeida PAULO SERRA Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

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aremoto, de Djaimilia Pereira de Almeida, autora publicada pela Relógio d’Água, que relançou inclusivamente o seu primeiro romance, Esse Cabelo (anteriormente publicado pela Teorema), é um pequeno livro, de capítulos em geral curtos, com cerca de 3 páginas cada, de prosa vigorosa, numa voz original despida de pretensões a desfiar uma história cujo impacto e irresolução perdurará no leitor. Num registo predominantemente na primeira pessoa, o leitor partilha do fluxo nem sempre ordenado dos pensamentos do protagonista, ficando a conhecer a vida de um mendigo, nas suas angústias e pequenas alegrias. Boa Morte da Silva é um arrumador de carros, ex-combatente colonial, mais ou menos efetivado na rua António Maria Cardoso, em Lisboa, que escreve para a filha Aurora – note-se o contraste simbólico entre o nome do pai e o da filha. Os papéis que (nos) escreve, e que procura conservar com todo o cuidado (são aliás o seu único bem), as palavras jogadas ao vento, oscilam entre a certeza de querer passar o seu testemunho de vida à filha que nunca viu, e que ora anseia por reencontrar, numa expectativa que o mantém vivo, ora admite poder nunca voltar a ver: «no fundo sei que falo sozinho.

É só porque teu nome, tua ideia, é minha respiração. És a minha vírgula, filha.» (p. 66) Esse registo das ninharias dos dias, «longa-metragem que é o curso dos meus erros e das minhas glórias» (p. 49), confere ao livro uma natureza metaficcional, como se fossem estes papéis que realmente mantêm viva a personagem, mais do que a ânsia de reencontrar Aurora: «Não preciso de propósito para continuar com a papelada, mas ela me pede que eu esteja vivo no momento em que pouso aqui a caneta.» (p. 65) O reg isto deste na r rador homodiegético alterna, contudo, com alguns capítulos escritos por um narrador na terceira pessoa: é nesses momentos que a prosa descola em arroubos poéticos. No entanto, mesmo quando se muda a perspetiva da história, permanece uma isenção da autora naquilo que mostra, numa linguagem crua, credível. Há ainda assim algumas passagens em que, subtilmente, se contrapõe a miséria humana da personagem à opulência de certas zonas comerciais: «Dias e dias sem pegar no serviço, a comer da caridade, um homem se sente um trapo, menos do que um trapo, filha, me sinto um nada, Chiado, lugar bonito, quando estou bom vou até à loja das luvas, fico a ver as montras de luvas de senhora, lojas de café e de chocolates, lojas de atoalhados, vou vendo as prendas todas que te queria enviar: croissants acabados de sair do forno, toalhas turcas, bombons.» (p. 23). Ainda que a voz narratorial pareça deixar tudo a cargo do protagonista,

sem emitir parecer ou opinião, logo na primeira página assumese que esta narrativa parte de uma suposição, quando cruza a história da rapariga que vivia na Rua do Loreto, na paragem do 28, umas ruas acima daquela onde o ex-combatente estacionava carros: «Ter-se-ão cruzado ou não, terão conversado ou não, foram contemporâneos como duas árvores, dois cães vadios, são contemporâneos.» (p. 9) Boa Morte veio de muito longe, «da província do Cunene, nativo de Evale, terra de mandioca» (p. 16). Oriundo do Sul de Angola, nascido em 1938, filho de pai desconhecido, neto de pastores, chegou a Lisboa no dia 22 de junho do ano de 1979, «com a roupa do corpo» (p. 21). Um ex-combatente que carrega o erro do que terá feito à mãe de Aurora, provocando a sua ausência definitiva, que acabou em sangue: «Olhava para a tua mãe, via um bocado de carne em sangue. Agora, nem sou capaz de escrever o nome dela, não sou digno de o dizer, esse animal dentro de teu pai está hoje enjaulado.» (p. 23). Boa Morte tem também em si (e é este um dos pontos fortes da história, ainda que pouco explorado) a mancha de ser um combatente da guerra colonial que servia os portugueses: «preto que mata preto tem de sofrer amargamente» (p. 25). O livro tem ecos desse clássico que é Fome, de Knut Hamsun, na forma como a personagem agoniza com o que não tem para confortar o estômago e a existência. Porque,

ainda que nos pareça indigna a sua ocupação, é ela o garante do seu pão. Ironicamente, Boa Morte é reconhecido pela sua «barriga anafada, grávido de morte» (p. 24), pois a sua fome e a sua dor alimentam uma hérnia que o come por dentro. Mais angustiante ainda do que a fome, porém, é a solidão. À volta de Boa Morte há alguns que lhe são mais próximos, e que não vivem muito melhor do que ele; mas aquilo que é mais bem trabalhado na narrativa é a apatia social, a sensação que faz mudar de passeio um transeunte, ou olhar através dos que passam: «Viam-no assim, do outro lado do vidro, estátua a acenar aos dotados de movimento, sem chegar perto, como a plateia vê os actores no palco e sente a sua dor, ri os seus risos, a uma distância.» (p. 32) Isto não impede que Boa Morte viva da observação dos outros, entranhando as suas vidas ao ponto de lhes conhecer as rotinas: «O pensamento adormece, sou só olhos, apenas olhos em movimento e, a meio do dia, (…) ocupo o meu assento feito lente que vê tudo aquilo em que os outros não reparam. Ninharias que são prenda para mim dia após dia, são comida no termo ao fim da noite.» (p. 44) Djaimilia Pereira de Almeida nasceu em 1982. É autora de Luanda, Lisboa, Paraíso, publicado pela Companhia das Letras (Prémio Literário Fundação Inês de Castro 2018 e Prémio Literário Fundação Eça de Queiroz 2019) e de outras obras, como Pintado com o Pé e A Visão das Plantas (ambos de 2019).

Djaimilia Pereira de Almeida recebeu o Prémio Literário Fundação Inês de Castro 2018 e o Prémio Literário Fundação Eça de Queiroz 2019 FOTO HUMBERTO BRITO / D.R.

A capa do livro de Djaimilia Pereira de Almeida

Os Moçambichos, de Maria João Neves

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aria João Neves, nascida estas mesmas estórias que lhe abrem em Moçambique em os olhos para os vastos horizontes do 1971, revisita o passado seu pequeno mundo. Simultaneafamiliar no seu país na- mente, a autora consegue a pequena tal, em Os Moçambichos, proeza de nos fazer ver o mundo pelos um livro com bichos e feras dentro que olhos de Joana, sem infantilizar nem justapõe duas gerações, ilustrado por simplificar. O humor joga ainda um Jana Mélida e publicado pela Sereia papel central na narrativa. Editora. A Joana vive num mundo bi- Ao jeito africano, esta narrativa partido entre as pequenas histórias assenta no que Joana ouve contar. Até que vive na escola porque todas junto dos colegas estas histórias e as grandes históassentam na rias que ouve em memór ia e casa pela avó Aida na oralidade: e a tia-avó Ticha. A delas não menina vive aliás ficou registo com a nítida certefotográfico za de que se relatar num tempo em aos colegas aquilo que as câmaras que lhe contam fotográficas em casa, ninguém eram raras acreditará nela, Autora revisita o passado familiar no e caras. É mas são também seu país natal através da obra também esse

o objectivo deste livro, registar por escrito uma memória de um tempo perdido, dos cheiros, das cores e do exotismo de lugares mágicos como o Lago Niassa ou o Buzi, aliando a história à ilustração e à cor. E subtilmente introduz-se mesmo uma foto que, ironicamente, acaba por contribuir para a credibilização de uma das histórias mais insólitas: de quando a tia adoptou duas crias de leopardo, a Linda e a Princesa – um dos animais mais esquivos do continente africano. Muitas vezes, sobrepõe-se ao nome técnico dos animais a alcunha pela qual eram conhecidos por lá ou os nomes com que a família os apelidou, como o Dom Fuas ou a Xerreca. Quase de forma gradativa, cada história é um pequeno capítulo em que os animais que nela participam vão subtilmente crescendo de tamanho, das aranhas e das térmitas ao tubarão e ao crocodilo,

até chegar ao leão, o rei da selva. Lídia Jorge afirma: «Este texto é quase um roteiro de zoologia fantástica com a humanidade ao fundo. A humanidade representada pela avó e pela tia-avó. Mas o motor das cenas, quem as faz narrar, é a criança, ou a memória dela. A memória da criança curiosa e admirativa, fascinada pela estranheza e pelo perigo. As histórias são de revelação do exótico, seu inesperado, seu perigo de alarme: Jagra, elefante bebé, macaca voadora, crocodilos, orangotango, tubarões, leõezinhos, leõzões… A tensão é feita entre a curiosidade da criança e a lembrança das idosas. A distância do tempo remete para uma geografia animal e telúrica que não mudou apesar da civilização ser outra. Nutre-se dos olhares contrastivos: o da criança e o das anciãs; o do passado africano e o do presente português.» Ma r ia João Neves na sceu

Maria João Neves dedica-se à filosofia, à escrita literária e ao ensino de yoga FOTO D.R.

em Lourenço Marques em 1971. Doutorada em Filosofia Contemporânea, é investigadora da Universidade Nova de Lisboa. Tem publicados livros e artigos científicos, é autora do romance Troika-me (2015), e colabora com o Cultura. Sul. Dedica-se à filosofia, à escrita literária e ao ensino de yoga.


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ESPAÇO ALFA

Afinal como posso melhorar em fotografia? FOTOS MAURO RODRIGUES / D.R.

MAURO RODRIGUES Membro da ALFA – Associação Livre Fotógrafos do Algarve

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oda a gente tira fotografias, mas a realidade é que comparando com as fotografias profissionais que geralmente nos inspiram em galerias, nas revistas ou simplesmente navegando pela Internet, as nossas nunca chegam aos calcanhares dos grandes artistas. Afinal, o que sabem os grandes fotógrafos que nós não sabemos? Além da dedicação e do equipamento (que não tem de ser necessariamente profissional), mas ajuda imenso em criar imagens com qualidade e fora do comum, as capacidades tecnológicas destes equipamentos fazem a diferença, existem uma série de dicas que os mestres fotógrafos antes de nós aperfeiçoaram e que nós hoje em dia, podemos seguir. Como por exemplo em qualquer arte é preciso praticar todos os dias, quanto mais se pratica, mais se aperfeiçoa… seja qual for o equipamento que estiver à mão, conhecer as diferenças entre os equipamentos é conhecer a indústria e fotografar com uma boa técnica de respiração e pose é essencial. Praticar todos os dias requere que se tenha a câmara sempre por perto, porque é simplesmente uma questão de oportunidade, quando ela estiver lá, a câmara estará também, o que pode significar imagens únicas no momento. Outra dica, como qualquer mecânico dirá em relação ao carro, é ler o manual e conhecer todas as opções e capacidades do equipamento, pode parecer aborrecido, mas é essencial, porque a fotografia tem uma relação muito dependente com o que a máquina consegue fazer e a ciência da luz. Em relação à imagem propriamente dita, na sua construção, a perspetiva e os ângulos diferentes, são algo que constantemente o fotógrafo tem que pensar, ângulos verticais, mais apertados, perspetivas ao nível do chão, ou de uma janela ou até mesmo através de um objeto podem fazer a diferença de um local ou pessoa. Os modos de medição podem também fazer diferença no aspeto final da fotografia consoante a decisão de escolher um ou outro. Uma vez que a câmara pode medir a luz num ponto incidente ou avaliar a cena na sua totalidade. A seleção dos modos de exposição automáticos, semi-automáticos ou manuais são igualmente uma ferramenta importante para controlar o famoso triângulo de exposição (abertura, velocidade [duração] e sensibilidade ISO) e que irá permitir escolher o melhor modo para a situação adequada que

vamos fotografar, tal como os modos de focagem, que permitem focar a situação que queremos de uma maneira específica, como por exemplo o de uma pessoa em movimento, que fixa o foco constantemente nesse sujeito. A arte da fotografia surge também estudando os artistas que nos inspiram e um objetivo que todos os fotógrafos devem seguir é copiar / imitar os seus mestres, conhecendo o mais possível todos os seus truques, para depois construir as suas próprias fotografias e ideias. Outro exemplo a seguir é conhecer livros de fotografia, sejam eles de artistas, formação ou fotografia em geral, existem muitas dicas e inspiração que se pode reter da leitura desses livros. Obviamente, sermos autodidatas é importante para fomentar a procura e a persistência, mas todos nós chegamos a um limite e a ajuda da formação especializada com workshops, escolas e cursos online de vídeos de artistas consagrados vai cimentar e expandir o conhecimento geral da fotografia. O histograma é outro termo que o fotógrafo irá estar familiarizado e vai consultar constantemente, que é basicamente um gráfico assertivo que mostra os níveis de exposição. Fotografar em RAW é outra decisão muito importante, uma vez que este formato de ficheiro guarda muito mais informação sobre a exposição do que o normal JPG, informação extra que vai ser crucial ao trabalhar em pós-produção. Além das perspetivas e dos ângulos, outra dica é tomar atenção à composição dita meticulosa e elementos de simetria. A composição é a disposição dos elementos na foto, se estão a mais ou a menos, se fazem sentido ou não, e a simetria é algo inerente à nossa curiosidade, uma vez que achamos as coisas simétricas como não naturais ou fora do normal. Ao prestarmos atenção a estes elementos, o enquadramento, o que está mesmo no limite da moldura da foto é igualmente importante, uma vez que estão inerentemente ligados à composição, ser observador é chave para melhorar o resultado final. Balançar tudo isto dá trabalho e por vezes acontece por sorte, mas não podemos só prestar atenção ao que está na frente da fotografia, temos que pensar igualmente nos elementos que estão no fundo, ao longe e fora de foco, são tudo decisões que podem valorizar o sujeito principal e tornar a imagem mais interessante. Outras coisas que geralmente as pessoas não tomam grande atenção, mas que são essenciais, é o chegar mais perto e ter calma/paciência para analisar o que estamos a fotografar. A proximidade é, tal como

o nome diz, estarmos próximos do nosso sujeito, da sua vida e da ação. A calma requer tempo para analisar e ponderar todas estas considerações que tenho estado a dizer, para chegar a uma fotografia melhor. A paciência faz-nos melhorar o nosso poder de observação e recompensa-nos com mais informação para trabalhar. Ao falar de equipamento essencial, o uso do tripé é daqueles objetos que vai melhorar consideravelmente o aspeto de algumas categorias de fotografias, principalmente paisagem. Como fotografar depende essencialmente da luz e vão ter que literalmente procurá-la, saber lidar com ela, seja direta, indireta (à sombra) ou artificial com flashes ou não, saber modelar e controlar a luz é das coisas mais importantes que vão aprender em relação à fotografia, por isso atenção especialmente a ela. Obviamente, quando temos muitas regras, é importante segui-las, mas também é importante fazer coisas fora da caixa, quebrar as regras, porque daí é que virá a inovação e a diferença. Conhecer a fotografia é também usar equipamento extra que não só a máquina, como por exemplo as objetivas. Cada uma serve para géneros de fotografia diferentes, grande angulares para incluir uma área grande ou teleobjectivas para um pormenor mais longe..., e geralmente quanto mais caras melhor a qualidade, principalmente as “prime”, a indústria não mete todos os ovos no mesmo saco e cada uma das objetivas tem pontos fortes e pontos fracos, cabe ao fotógrafo conhecer e escolher o melhor possível dentro do seu orçamento. Mas ao conhecer todas estas variantes o fotógrafo deve igualmente saber quando e quanto de equipamento deve levar na sua mala... por um lado variedade e quantidade, mas noutras situações menos é melhor e a limitação pode fazer com que se aguçe os sentidos artísticos. Uma grande mais valia e uma dica importante é estar atento à metereologia ao longo do ano, porque certas alturas são melhores para fotografar certos locais do que outras, a importância das nuvens é chave nalgumas situações, as marés baixas ou cheias outro elemento fulcral e finalmente conhecer os astros e a rotação da Terra para as fotografias nocturnas. No patamar da edição, saber analisar fotografias nossas antigas e ser-se crítico delas, só assim se aprende com os erros, tal como a pós-produção com software específico em que devemos ser crítcos, descartar o que não interessa e focar-se na perfeição quanto baste, tentar sempre inovar e estar aberto também às criticas de quem vê as nossas fotografias.

“Os carreiros do monte – Madeira”

"Barranco de Pisões - Monchique"

"O descanso da beleza"

É importante gostar do resultado final para nós mas ser aberto ao que as outras pessoas ou fotógrafos pensam do nosso trabalho. Por isso é que é importante seguir mais esta dica, ter ideias, conceitos, projetos na nossa mente ou num caderno e convencermo-nos que temos que expandir, estruturar e os concluir. É igualmente gratificante apesar de não parecer, mas devemos procurar por abstratos, coisas feias / menos interessantes em vez de bonitas para estimular a criatividade em situações menos usuais, a experimentação é sempre algo a explorar, às vezes podemos ter surpresas agradáveis.

Obviamente, com todo este saber e procura por imagens, é importante desenvolver um estilo próprio, que mostre a nossa personalidade, mas isso desenvolve-se com o tempo, à medida que se melhoram as nossas capacidades. Uma coisa que podem também fazer é estudar outros tipos de arte e entretenimento, geralmente esses outros interesses podem servir de inspiração para o estilo das vossas fotografias. Finalmente, é preciso fazer um esforço para que não percam os momentos decisivos e se divirtam, no fim, isto tudo precisa de fazer sentido nas vossas vidas. Boas fotos!


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FILOSOFIA DIA-A-DIA

FOTO D.R.

O amor e as suas palavras MARIA JOÃO NEVES PH.D Consultora Filosófica

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os olhos do apaixonado, não existe nada de mais precioso e belo que o objecto do seu amor. Como expressar o seu encanto, a sua graça? No Cântico dos Cânticos de Salomão, cuja data é incerta, podendo oscilar entre o séc. X e o séc. II a.C., o amor manifestava-se assim: “Como és formosa, minha amada, como és formosa: teus olhos são como os das pombas através do teu véu; teus cabelos, como um rebanho de cabras que vêm descendo dos montes de Galaad; / teus dentes, como um rebanho de ovelhas tosquiadas que sobem do lavadouro: todas com filhotes gémeos, nenhuma estéril entre elas. / Teus lábios são como uma fita escarlate e tua fala é doce; como a metade da romã, assim as tuas faces através do teu véu.” Se uma jovem do séc. XXI recebesse esta declaração de amor como reagiria? Comparar os seus olhos a pombas talvez não seja muito boa ideia pois o pombos são considerados os “ratos do céu”, uma autêntica praga das cidades que tudo arruínam com os seus imundos dejectos. Difícil seria perceber a comparação com um rebanho de cabras a descer um monte, porque só com alguma sorte, numa excursão ao campo, se avistariam. Ainda assim, a imagem poderia não ser de uma beleza evidente. Quanto à louvada fertilidade, a promessa de vir a ter imensos filhos é mais indi-

ciadora de pesadelo do que de outra coisa qualquer. A preocupação é precisamente a oposta, bloquear a fertilidade, utilizar os contraceptivos de maneira adequada por forma a não colocar filhos indesejados no mundo. Quanto à boca, ainda que as jovens de hoje soubessem identificar escarlate com a cor vermelha, certo é que, frequentemente, pintam os lábios de outras cores como roxo ou preto. A fala doce, por seu lado, pode ser entendida com ser uma “choninhas”, uma “atada” ou uma “tótó”, e a face de romã poderia facilmente ser interpretada como uma cara cheia de borbulhas. Hoje em dia o rap substituiu a serenata, já ninguém escreve cartas de amor em papel perfumado, as palavras seguem por formato digital, via SMS, WhatsApp ou Messenger. Como se declara um adolescente do séc. XXI? Talvez pudesse ser qualquer coisa como isto: “Tens bué de swag, fiquei com um crush fui stalkear o teu perfil, curti a tua cena, quero que sejas a minha BITCH.” Para a maioria de nós, à excepção dos termos bué, de origem angolana que significa “muito”, e de curtir que se tornou um sinónimo de “gostar”, as outras palavras requerem tradução. Vamos a isso: - Crush: é uma palavra inglesa que, em sentido literal, significa esmagamento, compressão ou aperto. Porém, em sentido figurado, denota a paixão súbita ou paixoneta. A palavra alberga uma intensidade variável: ter um crush por alguém pode significar que se sente atracção, que se tem um interesse romântico ou que se está apaixonado.

- Swag: teve origem como sigla para da expressão secretly we are gay (somos homossexuais em segredo), que terá começado a ser usada na década de sessenta por prisioneiros homossexuais. Segundo consta, a palavra começou a popularizar-se no rap americano, através de Jay-Z. Dez anos mais tarde, em 2011, swag entra para a gíria adolescente com o sentido de ter estilo, ter atitude, ser bonito ou vestir-se bem. Ao visitar as páginas do Facebook “Adolescentes com swag” ou “Adolescentes mais que perfeitos” ficamos esclarecidos. Ter swag implica usar roupas das marcas da moda, vestir-se bem, ser-se bonito e, last but not least, saber posar para as fotos que depois serão colocadas nas redes sociais. (Esta violência da imagem que os jovens exercem sobre si próprios merece um pensamento aturado. Fica prometido um artigo sobre o tema para depois do verão). - Stalkear: é um estrangeirismo que tem origem no verbo inglês "to stalk", que significa perseguir. Embora na vida real a perseguição seja um acto criminoso, não é este o sentido da palavra na gíria adolescente. Eles referem-se ao mundo virtual, a seguir alguém no Facebook ou no Instagram, ou noutra qualquer rede social, de forma constante. Como facilmente se depreende, alguém por quem se tem um crush é alvo frequente de stalkeadas. - Bitch: em inglês designa uma cadela ou qualquer outro animal do género feminino. Contudo, a sua utilização é frequentemente depreciativa, como insulto pretende referir-se a uma prostituta. Porém, BITCH entrou para a gíria adolescente como sigla

para Beautiful, Intelligent, Talented, Charming and Hot (Bonita, Inteligente, Talentosa, Charmosa e Sexy). Obviamente, apesar de se utilizar o referente do acrónimo, a conotação original está lá e é conhecida, conferindo um travo irreverente e, quanto a mim, desagradável, à expressão. Porém, há que convir que embora de um modo muito diferente ao do Cântico dos Cânticos, a comparação com a natureza está lá e é assim trazida para a linguagem amorosa. O filósofo francês Bachelard no seu livro A Poética do Espaço diz-nos que “as palavras são casas com porão e sótão. O sentido comum reside no rés do chão, sempre pronto para o comércio com o exterior, no mesmo nível dos outros, desse transeunte que nunca é um sonhador.” É a linguagem da utilidade, da sobrevivência, do quotidiano. Porém, a palavra-casa de Bachelard tem vários pisos “subir a escada é abstrair, descer ao porão é sonhar”. Já o escritor português Gonçalo M. Tavares no seu livro Atlas da Imaginação diz-nos que “Devemos olhar para a linguagem como se olha para um objecto — para uma mesa, por exemplo — e ver, por vezes, a linguagem de baixo para cima, de modo respeitoso, de cima para baixo, de modo altivo; observar depois um perfil da palavra, depois o outro; ver os sapatos da palavra e o seu chapéu, a sua nuca e o seu rosto. Porque pensar também é mudar de posição relativamente à própria linguagem. Não olhar sempre da mesma maneira para as palavras”. Precisamente, é isto que fazem os adolescentes ao criarem a sua gíria própria, um meio de comunicação

que é simultaneamente linguagem secreta, ininteligível para o mundo adulto, e marcador da sua identidade. A linguagem está viva e em constante mutação, assim também os géneros literários e as correntes de pensamento. No século passado os romances de cavalaria deram lugar ao D. Quixote de Cervantes. Numa época de tanta possibilidade de correcção da imagem fotográfica, de tantos filtros no Tic Toc e afins, de tantas pernas de deusa, abdominais marcados e lábios com botox, talvez valha a pena recordar o Amor Impossível do poeta espanhol Jesus Águàdo pela sua Gorda, que aqui traduzo: “Como uma criança a uma roda levava-a rebolando a todo o lado. Nunca lhe chamei gorda. Chamava-lhe meu pequeno planeta expulso do céu, meu hambúrguer duplo, minha baleia. Eu não era o namorado dela, mas um alienígena que vinha do espaço para a colocar em órbita, ou uma família faminta numa tarde de domingo, ou Capitão Ahab. Às vezes explodíamos de gozo, e a minha botija de açúcar deixava-me magoado e feliz como um mergulhador mordido pelo seu próprio traje de mergulho. Uma tarde ao chegar a uma rua íngreme empurrei-a sem calcular as consequências e ela saiu a rodar da minha vida.” Inscrições para o Café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com * A autora não escreve segundo o acordo ortográfico


CULTURA.SUL

Postal, 9 de julho de 2021

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FIOS DE HISTÓRIA

A Viagem das Plantas (2)

- UM DOCE PECADO

FOTO D.R.

RAMIRO SANTOS Jornalista ramirojsantos@gmail.com

É

a árvore do paraíso. Símbolo da tentação e do pecado: “A mulher viu que a árvore tentava o apetite (...) pegou no fruto e comeu-o; depois deu-o ao marido e ele também comeu. Então abriram-se os olhos aos dois, e eles perceberam que estavam nus. Entrelaçaram folhas de figueira e cobriram-se com elas” (Génesis, 3.6). Assim apresenta a Bíblia, o figo como fruto do pecado original. Ao mesmo tempo sagrado e proibido. Trazida como a amendoeira e a alfarrobeira pelos árabes, as suas origens perdem-se no tempo. A figueira era conhecida na Mesopotâmia – onde a texto bíblico localiza o jardim do Éden - havia cerca de 12 mil anos. Os budistas têm-na como árvore sagrada e os maias e astecas utilizavam a sua casca para produzir papel usado nos seus livros sagrados. No Algarve do Al Andaluz, que o poeta e historiador Ibn Saide comparou ao “paraíso terreal”, a figueira veio encontrar o local ideal para florescer. Além de ser o pão dos pobres, o figo tornou-se o alimento identitário do Algarve. Um escritor do século XVI, Duarte Nunes de Leão, refere que “os figos do Algarve eram bastantes para fartar o mundo”. E a paisagem algarvia era descrita no Livro de Arautos (1416), de autor anónimo, nestes termos: “Este reino tem abundância de peixe, vinhos excelentes e variados, e azeite. Mas a sua maior riqueza são os figos e as uvas, que cada ano são transformados em passas que negoceiam com trigo e pão.” Porque, de facto, o pão de trigo era um bem raro e caro que só ia à mesa dos ricos. Na toalha dos pobres, era substituído pelo figo seco ou por um bolo feito de fava moída. Mais o pão de S. João (Baptista), que assim era chamado ao pão de alfarroba. O vinho acompanhava as refeições, e o azeite sendo de grande qualidade, chegava e sobrava para alimentar toda a gente e uma grande parte era destinada à exportação. Cada produtor de azeitona fazia o azeite em sua casa, não a moendo, mas pisando-a em sacos com os pés, para reduzir a acidez e obter um produto de alta qualidade muito apreciado em toda a Europa. Por sua vez, as uvas, depois de vindimadas, eram molhadas para

deste modo acelerar a fermentação. Constituindo a dieta básica dos marinheiros portugueses, os frutos secos, mais o azeite, o vinho, a azeitona, o pão, os biscoitos e o pescado, acompanharam sempre os navegadores por todos os mares do mundo, sobrando ainda para os mercados europeus. E já então se tinha a exata noção dos dois Algarves distintos, de que tanto se fala: o litoral - dos frutos, azeite, legumes e vinho - e o interior serrano com o “pão” - trigo, centeio e cevada - e o gado (porcos, ovelhas e cabras). E o que é que se comia no Algarve, entre o séculos XV e finais do sec. XVI? Todos os autores são unânimes: não havia muita fartura e a dieta medieval era pouco variada. Como em todo o reino, para matar a fome à penúria, além do figo, consumia-se muito a fava, couves, ervilhas, grão, alface, cenouras e rabanetes que acompanhavam o peixe, a carne e os ovos. Os frutos secos, o vinho e o azeite, eram, pois, a riqueza fundamental desse tempo e tinham um peso económico e comercial que fazia do Algarve uma região farta e com excedentes que eram escoados pelos portos de Tavira, Lagos, Vila Nova de Portimão e Faro, para Portugal e para as terras descobertas. E ainda para os mercados vizinhos como a Andaluzia e norte de África, em troca de trigo. E também para a Flandres e Itália. E a sua importância na balança comercial do reino pesava tanto que muitas vezes a coroa recorria – já nesse tempo! - a uma certa forma de cativações, tardando a devolver o que devia aos seus credores. Isso mesmo era referido no pedido dos procuradores de Faro, apresentado nas cortes de 1439, para que o rei “pagasse as dívidas que tinha contraído com alguns moradores do concelho, por lhes haver tomado vinhos e figos para ajudar a custear a fracassada expedição a Tânger”. Segundo Frei João de S. José, no Algarve tinha-se por hábito – que ainda se mantém nos nossos dias - varejar os figos. Depois de apanhados, eram lavados e calcados em sacos ou panos e estendidos em esteiras que eram enroladas ao pôr do sol para os proteger da maresia. E depois de secos, havia quem os torrasse. Um trabalho demorado e trabalhoso, mas “o figo que se faz para vender para o estrangeiro não se usa com ele de tanta ceremonia”. A Flandres, sendo o principal destino dos figos e das passas de uva, não

se limitava, porém, a mercado consumidor. Também fazia o seu negócio com eles, revendendo-os para outros países: “Os flamengos dispunham de representantes no Algarve ou vinham eles cá adquiri-los a troco de panos e trigo, e mostravam-se exigentes na qualidade, sobretudo dos figos. Furavam as seiras três vezes ou mais com um espeto e passavam-no pela boca. Se o sabor fosse azedo, rejeitavam o conteúdo. Por vezes, a má qualidade do figo só era detectada na Flandres, originando não poucas vezes conflitos e protestos diplomáticos”. Um cultivo também importante foi a cana de açúcar que D. Afonso III herdou da experiência dos mouros e, com o conhecimento dos genoveses, incentivou a sua produção no Morgadio de Quarteira e, mais tarde, D. João I enviou para a Madeira. Mas seria no Brasil, depois de S. Tomé, que se afirmaria séculos depois como produto alternativo ao comécio das especiarias que tinham vindo a perder o valor económico dos anos de ouro do império do oriente. O eixo do comércio passava da rota do cabo para a rota do atlântico com centralidade no Brasil. O trabalho nos engenhos do açúcar absorvia muita mão de obra e esteve na origem do comércio de escravos de África para o continente americano. Sendo uma região aberta ao mar, o Algarve medieval encontrou, naturalmente, na pesca uma importante fonte de rendimentos. O atum era de abundância e, conforme escrevia Frei João de S. José, na sua Corografia do Algarve, era “o mais proveitoso que no mar se pesca”. Juntava-se outro peixe grado como a baleia, a corvina e o solho, que com o atum eram os que mais interessavam à coroa, ficando o Infante D. Henrique, com o exclusivo da pesca do alto. Para tanto criou mecanismos de controle do comércio ilegal, com a instalação de lotas obrigatórias em Lagos e Faro. Esse monopólio real não foi, porém, impeditivo de uma crescente fuga ao fisco por parte de pescadores e comerciantes, num esquema de venda a operadores estrangeiros que escapava às malhas da administração aduaneira. A intermediação especulativa das regateiras e a “apropriação abusiva de percentagens do pescado, por

parte de agentes da governança e da administração”, eram os principais operadores de fuga ao fisco. A pequena corrupção em todo o seu esplendor! E por ter essa riqueza do mar - onde se incluía também a cavala, a sardinha e a pescada - o Algarve necessitava de sal. Assim, estando a lota do “peixe da rainha” localizada em Faro, não surpreende que houvesse ali “Casa do Sal”, abastecida a partir das marinhas da Casa Real. Uma boa parte deste pescado entrava na Sicília a troco de trigo, mas também os mercadores de Cádis pagavam o peixe algarvio com este cereal. De resto, o figo era uma referência cambial nos negócios com o exterior, valorizando ou devalorizando como qualquer moeda corrente. No caso, era boa moeda com elevada cotação no mercado. Era, em tudo o que anteriormente fica enunciado, que se baseava a economia e a alimentação dos algarvios nesse tempo. Porém, com as grandes viagens a partir do seculo XV, tudo mudou. As navegações deram a conhecer novas terras, novos povos, novas plantas e novos produtos que revolucionaram os hábitos de consumo e a produção alimentar. Aos portos portugueses começaram a chegar todos os sabores dos novos mundos. E que levavam do Algarve, o figo, a amêndoa, a alfarroba, a oliveira, a pereira, a vinha e as passas de uva, enchendo os porões das

naus das descobertas. Que tentaram reproduzir depois, em alguns casos com sucesso, em viveiros experimentais nas novas terras. Uma revolução comercial e dos hábitos alimentares à escala global, como nunca antes se tinha visto e que ainda não acabou. Basta observar o que de novo se vai produzindo por cá e que gradualmente vem alterando a paisagem dos campos algarvios: a manga, a papaia, o abacate, o ananás, o kiwi e a banana. Vindos dos trópicos, mas como se aqui tivessem nascido, mostram-se tão presentes no quotidiano de cada um, fazendo esquecer que são produtos de origem tão distantes e de climas tão diferentes. Passados séculos, apesar desta revolução das plantas, continua a subsistir a sagrada trindade dos frutos secos como marca identitária de um Algarve, onde as figueiras – como dizia Torga – são “pequeninas e anãs para que nenhum Judas se possa enforcar nelas”. E o figo, que antes não despontava maduro e doce sem um ‘toque’ de provocação e de desejo, já começa a dispensar a sua Eva para se multiplicar sem a “vergonha” da tentação e do pecado. Fontes: “Frei João de S. José e a sua Corografia do Reino do Algarve de 1577”, M.V.Guerreiro; “Os Alimentos Identitários do Reino do Algarve”, Mª H.Coelho e J.M.Santos; “A Viagem das Plantas”, F.Tapada e M. Bettencourt; outras


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