d.r.
d.r.
Espaço AGECAL: d.r.
Figuig, oásis no meio do desertop. 3 Panorâmica:
d.r.
‘Escrytos’: Paulo Pires pensa a cultura no Algarve em forma de livro p. 5
O Homem que escrevia azulejos: a pena de Laborinho Lúcio
Na senda da Cultura: d.r.
p. 11
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Feira do Livro de Olhão continua a deslumbrar este fim-de-semana p. 9
Marca d’água: d.r.
JULHO 2017 n.º 105
Territórios da Arte e da Memóriap. 10
Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o PÚBLICO 5.825 EXEMPLARES
www.issuu.com/postaldoalgarve
Prémio Camões 2017:
Manuel Alegre
p. 4
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07.07.2017
Cultura.Sul
Editorial
Missão Cultura
'Fecha quando o último louletano a tiver visitado'
4 M’s: Maio, Museus, Museologia e Misericórdias no Algarve (parte 3) d.r.
Direção Regional de Cultura do Algarve
Valorização sociocultural Ricardo Claro
Editor ricardoc.postal@gmail.com
AGENDAR
A frase que serve de título a mais este editorial do Cultura. Sul é uma "figura de estilo", mas demonstra bem a fortíssima aposta do Museu Nacional de Arqueologia na maior exposição alguma vez realizada sobre o concelho de Loulé. "Loulé. Territórios, Memórias, e Identidades" já abriu portas no Mosteiro dos Jerónimos e não tem data marcada para o seu encerramento e isso mesmo quis deixar claro o responsável máximo pela "casa maior" da arqueologia em Portugal, António Carvalho, quando se recorreu da expressão para responder sobre a data de encerramento da mostra. A exposição é antes de mais isso mesmo, uma mostra sobre Loulé - sete milénios de História percorridos de forma exemplar sob a batuta de cinco comissários - para serem vistos e apropriados pelos louletanos e, também, mas não só, uma montra de um Loulé diferente do habitual: histórico antes de turístico e carregado de identidade antes de território cosmopolita aberto ao mundo. A vontade de que todos os louletanos possam passar pela exposição antes do cair do pano sobre este momento único que é a exposição é uma vontade comum ao autarca louletano Vítor Aleixo, que faz neste investimento uma "major" aposta na área da cultura do concelho. Apesar de prevista durar pelo menos até 30 de Dezembro de 2018, a exposição que se abriu aos louletanos e ao mundo com uma "figura de estilo" tem tanto de desafiante como de convidativa e, sejamos honestos, é uma proposta irrecusável.
Para além de estarem ao serviço das práticas religiosas, entendemos que se deve partilhar com as comunidades o conhecimento científico produzido, o que pode ser mais adequadamente caraterizado como socialização patrimonial. Sendo a acessibilidade ao património uma prioridade do Estado a que a Igreja também dá grande importância, pretende-se promover a acessibilidade pública às catedrais, igrejas e antigos conventos da região através de uma oferta estruturada em torno do património religioso, por via de espaços musealizados ou outras valências, como arquivos e bibliotecas, ou através de uma programação cultural que contribua para a sua valorização (vontade expressa no projecto da Rota das Catedrais que inclui Faro e Silves). Contudo, vicissitudes várias – como seja a falta de dotação financeira para realizar os investimentos necessários – têm privado a DRCAlg de assumir, neste âmbito, a sua participação plena neste programa. Por outro lado, tendo em vista a requalificação do património religioso como factor de diferenciação da oferta turística regional e de partilha deste património com as comunidades, procurou-se congregar diversas Entidades num Projecto Regional de Património Religioso e Turismo: Diocese do Algarve, Pastoral do Turismo Religioso, União das Misericórdias, AMAL, CCDR, UALG, IPDJ, IEFP, RTA, ATA, Associações de Defesa do Património, DRCAlg. Em torno dos edifícios e locais identificados pelos parceiros como prioritários, procurou-se estruturar a possibilidade de abertura concertada nos períodos de férias de alguns templos sob responsabilidade da Dioce-
Imagem da Misericórdia de Loulé se, com o apoio dos municípios. Considerou-se a viabilidade de um Programa de Voluntariado para os jovens maiores de 16 anos para este efeito, a possibilidade de envolvimento de desempregados para desenvolverem as tarefas de recepção de visitantes, a criação de uma Bolsa de Voluntariado e a realização de cursos de formação com formadores certificados, tendo em vista a preparação de recursos humanos para acolhimento e acompanhamento do visitante que pretenda descobrir e experienciar o património religioso. No âmbito da divulgação, considerou-se uma possível edição promocional dedicada a este património, a colocação de informação na internet, articulando os sites da DRCAlg, Pastoral do Turismo Religioso e municípios, bem como a disponibilização de dispositivos de interpretação dos bens culturais e a melhoria de segurança nos locais. A economia e a integração social que o património religioso pode gerar como mais-valia para a região é uma necessidade que as várias entidades envolvidas identificaram mas que exige: pequenas interven-
ções de requalificação, conservação e restauro, organização de voluntariado jovem, bolsas de participação para desempregados, edições, divulgação em vários meios de informação e suportes, material interpretativo, segurança/vigilância. Seria importante desenvolver uma memória descritiva (incluindo estado de conservação dos imóveis, horários religiosos e de abertura para visitas) com aquilo que deverá ser concretizado para cada espaço ou conjunto dos vários espaços, quer de intervenção física quer de conteúdos e outras necessidades, para organizar um documento estruturado com as acções que cada paróquia, e que cada congregação pretende implementar nas igrejas e nos espaços musealizados que poderão integrar esta rede. Há trabalho realizado e muito ainda por fazer Temos que reconhecer que há um trabalho em desenvolvimento no âmbito da musealização e da valorização deste património e que se criaram a nível nacional e na estrutura interna da União de Misericórdias
“OLHÃO COM HISTÓRIA” Até SET | Avenida da República – Olhão Exposição dá a conhecer os momentos mais marcantes da história de Olhão, bem como o património cultural da cidade cubista
o Gabinete do Património Cultural que se dedica ao desenvolvimento destas preocupações, mas também existe desde o ano passado um novo protocolo de colaboração com o Ministério da Cultura para a salvaguarda, valorização e divulgação no património imóvel, móvel museográfico, arquivístico e imaterial das Santas Casas portugueses que pressupõe o apoio técnico e consultivo de vários organismos do Ministério da Cultura, entre as quais as Direcções Regionais. Há trabalho conquistado no Algarve com a Rede Regional de Museus que poderá contribuir para a partilha de boas práticas e para a criação de sinergias interinstitucionais. Também com a Rede Regional de Arquivos alguns frutos começam a surgir em relação ao património documental e arquivístico. As práticas museológicas aplicadas a este património na região devem incluir não só a introdução de práticas de inventariação e de registo, mas também de salvaguarda e de valorização. Para que este trabalho possa ser prosseguido será necessário o estreitamento da relação com a academia, nomeadamente com a Universidade
do Algarve. Nomeadamente, ao nível dos fundos manuscritos a situação continua muito deficitária, pesem embora os esforços da Rede de Arquivos do Algarve. Finalmente, apontou-se a adesão à Rede Regional de Museus e a designação de um interlocutor regional das misericórdias como aspectos principais para o estreitamento do trabalho conjunto e para a consumação do protocolo existente a nível nacional. Os museus, pólos museológicos ou núcleos são testemunhos do real através dos objectos que incorporam. Esses objectos seleccionados representam valor de conhecimento e de informação, pois comprovam uma realidade e transmitem uma narrativa. As misericórdias são amplamente reconhecidas pela sua dimensão de protecção social, todavia, também foram espaços de lutas partidárias e mesmo instrumentos de domínio político. Foram instituições hospitalares e instituições de crédito. No passado dia 18 de Maio comemorou-se o Dia Internacional dos Museus, este ano com o tema Museus e Histórias controversas: dizer o indizível nos museus, que se constitui como excelente oportunidade para conhecer as histórias locais das misericórdias. O desejo fica também manifesto das “Misericórdias do Algarve” passarem a integrar, com uma representação de proximidade regional, as redes de cooperação regional. O desafio de criação de umas jornadas regionais de museologia ficou também expresso e foi aceite, para que esta possa ser uma reflexão continuada e partilhada publicamente. Musealizar significa dar voz a objectos, às colecções. Representar a história das misericórdias, criar uma narrativa e apresentá-la ao público é essencial. Este é um trabalho que se pode e deve ser iniciado em rede.
“LAGOS ANTIGA” Até 31 AGO | Fototeca Municipal de Lagos Exposição fotográfica formada por uma selecção de postais antigos, ampliados, que mostram a cidade de Lagos e as suas gentes nas primeiras décadas do séc XX
Cultura.Sul
07.07.2017
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Espaço AGECAL
Figuig, um oásis no meio do deserto
Nabila Jebbouri Doutoranda em Comunicação e Valorização do Património, Universidade Mohamed I de Oujda; Mestre em Turismo Responsável e Desenvolvimento Humano; Gestora cultural
“Marrocos possui um património cultural excepcional, rico e diversificado, ocorrências naturais e históricas muito importantes, que constituem recursos atractivos para os turistas”. No extremo este de Marrocos, situado no conjunto montanhoso do Alto Atlas Oriental, a norte do Saara, esconde-se uma das mais antigas cidades marroquinas: Figuig. Um oásis de paisagens maravilhosas que reivindicam aura planetária: a inscrição como Património Mundial. Encontra-se mesmo às portas do deserto, nas proximidades da fronteira marroquina-argelina, cercada de colinas e montanhas que representam a continuidade do grande Atlas saariano. O clima predominante na província de Figuig é semiárido, caracterizado pelo frio no Inverno e o calor prolongado no Verão com ventos ao longo de todo o ano. Ao mesmo tempo, ocorrem fracas precipitações geralmente mal repartidas no tempo e no espaço. A cidade de Figuig compõe-se de sete Ksours (castelos ou fortificações). Esta característica pela qual Fi-
guig se distingue, coloca-a como uma das que melhor conservaram a sua herança histórica no que se refere às construções antigas. As construções dos Ksours ou Ksar não fazem já parte dos nossos dias e raras são as cidades marroquinas que as conservam, desta forma toda a cidade é um património nacional no que se refere ao perfil “ksariano”. Figuig conta com diversos ksours, mas na actualidade somente sete se mantêm conservados tal como na origem, os ksar Hammam Foukani, ksar Hammam Tahtani, ksar Laabidate, ksar Lamiz, ksar Loudaghir, ksar Oulad Slimane e o ksar Zenaga. A organização tradicional dos Ksours está mais ligada a factores socioeconómicos e de instabilidade política, do que propriamente às condições climáticas. A sua leitura espacial, revela-nos a uni-
fots: d.r.
Um oásis que é também uma memória cultural incontornável dade elementar, a casa, e os equipamentos estruturantes que permitem compreender os modelos da organização social tradicional.
Figuig é detentora de um património histórico-arquitectónico e arqueológico de grande valor cultural. Herança da longa tradição urbanís-
Vista sobre Figuit, situada no extremo leste de Marrocos
tica e arquitectónica, do uso de materiais e técnicas locais como a tijolo em terra seca, a madeira de palmeira e a cal, é uma síntese de contributos de diversas origens. Assim, os conjuntos constituídos pelos Ksours, os jardins com as suas plataformas de palmeiras e os sistemas de irrigação, as práticas sociais e culturais particulares,
mostram-nos a implantação e culturas saharianas, tanto pela sua unidade como pelo rigor da sua organização. Os sete Ksours do oásis e os seus lugares, apesar da dispersão espacial, são um conjunto homogéneo. Identificam a marca, à entrada do deserto, de uma civilização sedentária-urbana e a expressão de uma cultura original que soube, graças ao seu posicionamento geográfico distante do modernos centros urbanos, preservar a coesão. Ao longo de séculos, a população de Figuig criou, com materiais locais, uma arquitectura e urbanismo vernaculares perfeitamente a adaptados ao ecossistema oasiano. Se por um lado, a simplicidade e pureza das suas formas neste tipo de arquitectura é uma qualidade formal inspiradora para a arquitectura moderna, por outro, os princípios de adaptação ao meio geográfico constituem um valor exemplar para a investigação e transmissão de conhecimentos sobre a cidade contemporânea, assente nos princípios do desenvolvimento sustentável.
Figuit no mapa de Marrocos (círculo preto)
Juventude, artes e ideias
CAPO - Centro de Artes de Pintores Olhanenses
Jady Batista Coordenadora Editorial do J
O CAPO inaugurou, como já vem sendo tradição, a exposição coletiva dos seus alunos, no Dia da Cidade, 16 de junho, na galeria da Biblioteca Municipal de Olhão. A exposição, que esteve patente até dia 30 de junho, reuniu trabalhos de diferentes estilos, mas todos de excelente qualidade.
d.r.
“O Centro de Arte de Pintores Olhanenses é um grupo de pintores de Olhão, sob a alçada da Junta de Freguesia de Olhão e dinamizado pelo Mestre Tó Leal”, assim está descrito o CAPO - Centro de Artes de pintores Olhanenses, na sua página de facebook, onde podem acompanhar
a grande dinâmica deste Centro, criado pela Junta de Freguesia de Olhão, há já 27 anos, e onde de forma impressionante transparece a boa relação entre os seus cerca de 40 pintores de que dele fazem parte, e onde é bem visível o talento dos pintores e a qualidade das obras produzidas.
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07.07.2017
Cultura.Sul
Letras elLeituras
Manuel Alegre – Prémio Camões 2017
Paulo Serra
Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL
A vida política Manuel Alegre nasce em Águeda a 12 de Maio de 1936 no seio de uma família da média burguesia. Fez os estudos secundários no Porto, frequentou a Faculdade de Direito em Coimbra, onde participa na oposição académica à ditadura de Salazar, chegando a ser um dos dirigentes do movimento. Ainda em Coimbra funda o Centro de Iniciação Teatral da Universidade de Coimbra e actua no Teatro de Estudantes da Universidade de Coimbra. Destacou-se ainda como campeão nacional de natação e atleta internacional da Associação Académica de Coimbra. Em 1962 é mobilizado para Angola, onde encabeça nova oposição ao regime, com uma revolta militar contra a guerra colonial, sendo preso pela PIDE, passando 6 meses na Fortaleza de S. Paulo, em Luanda, onde escreverá grande parte dos poemas do que será o seu primeiro livro Praça da Canção. Dois anos depois regressa a Coimbra onde continua a participar na luta clandestina contra a ditadura e a guerra colonial. Acaba por se exilar em Paris desse mesmo ano, onde é eleito para a direcção da Frente Patriótica de Libertação Nacional, passando depois a viver durante cerca de uma década em Argel, capital da Argélia, na emissora Voz da Liberdade. Regressará a Portugal após a Revolução do 25 de Abril de 1974 e adere ao Partido Socialista, do qual se tornou dirigente. Foi deputado e vice-presidente da Assembleia da República, de 1995 a 2009, membro do Conselho de Estado. Foi candidato independente à Presidência em 2006 e depois em 2011, com o apoio do seu Partido. O primeiro romance Em Maio de 2017 saiu a quarta reedição de Jornada de África, primeiro romance do autor primeiramente publicado em 1989, depois de ter já publicadas três obras de poesia: Praça da Canção (1965); O Canto e as Armas (1967); Atlântico (1981). Se pelo título e até pelo subtítulo, Romance de Amor e Morte do Alferes Sebastião, podemos pensar que vamos entrar numa epopeia, rapidamente percebemos que o registo é
foto: luiz carvalho
mais anti-épico. A acção inicia-se na «Estrada da Beira, Dezembro, mil novecentos e sessenta: é um dia cinzento, cai uma chuva miudinha» (p. 11), com Lázaro Asdrúbal, director da PIDE, para depois focar-se em Sebastião, em Coimbra, que dias depois irá embarcar para a guerra colonial. É em Sebastião que a acção se centra e sentem-se ecos da vida do autor, que, aliás, se imiscui por vezes na voz do narrador: «Sentado na cama, algures, talvez na Praceta Dias da Silva, está o poeta, o narrador, quem sabe quem.» (p. 18), numa incerteza claramente irónica, a começar pela imprecisão do algures para depois situar exactamente a personagem de Sebastião, para depois designá-lo como poeta e narrador, apesar de a narração ser feita na terceira pessoa. Esta auto/hetero designação surgirá novamente: «O poeta, o
Manuel Alegre já recebeu vários prémios nacionais
narrador, sabe-se lá quem, quer outra vida, outra escrita.» (p. 20). A narração é feita em tom coloquial, com uso constante de expressões, e frequentes analepses, onde se sente a distância entre o conhecimento localizado e limitado da personagem face à omnisciência de um narrador mais velho que parece lembrar o que viveu: «em breve será mobilizado, mas disso nada sabe ainda» (p. 23). Sebastião, o nosso herói, «gosta é da acção, da aventura, do lado heróico e romântico da intervenção história» (p. 21) conforme nos dá a saber o seu amigo designado de Pança. Para Pança um dos poucos defeitos de Sebastião é que «passa a vida a falar de Rilke, esse versejador decadente, chulo de marquesas, enveneado por uma rosa» (p. 22), sendo aliás curioso
que uma das epígrafes Jornada de África seja uma passagem da obra de A Balada do Amor e da Morte do Alferes Cristóvão Rilke, cujo título faz eco no subtítulo do livro de Manuel Alegre. Com Pança prenuncia-se ainda o registo anti-épico da narrativa, pois não será inocente que o protagonista tenha como melhor amigo alguém conhecido por Pança, como, obviamente, o Sancho Pança de Dom Quixote. Veremos ainda como o seu Comandante adverte Sebastião para se deixar de «atitutes quixotescas» (p. 173), a propósito de ter a PIDE sempre no seu encalço. Mas mais importante do que a possibilidade de Sebastião representar um alter ego do autor, que deixa neste livro as memórias do que terá vivido na guerra, este nosso herói vive ainda outro dilema: um excesso de ser. Chegado a Luanda, note-se quando Sebastião pensa em Mariana, a namorada: «Aperta o isqueiro que ela lhe deu na véspera da partida. Tem as suas iniciais gravadas. Sebastião tem a impressão de não reconhecer o próprio nome. Murmura-o muito baixo: parece o nome de um outro.» (p. 33). Sebastião representa assim os mi-
lhares de alferes que combateram nessa guerra que não lhes pertencia, mas em particular sente-se como Sebastião evoca o rei D. Sebastião, talvez porque ambos combateram em guerras em África ou porque ambos podem estar destinados a perder e a sucumbir? «Dentro de quatro dias (23 de Junho de 1415), terão passado quinhentos e quarenta e sete anos sobre a partida para Ceuta. Talvez Sebastião tenha sido condenado a partir dessa data. (...) Há quase trezentos e oitenta e quatro anos (era no dia seguinte ao de S. João, diz a Relação da Jornada), um outro Sebastião partiu de Oeiras e com ele oitocentas velas. Está visto, Junho é o mês do embarque, pode ser o da glória ou o do desastre.» (p. 24). Leremos ainda, mais à frente, como este Sebastião «Agora vai de avião e não tem a certeza que a história não seja a mesma. Para Angola e em força. E o dedo apontado para ele.» (p. 26). Estes 500 anos de História são ainda representados pelos constantes ecos da tradição literária. De Camões a Pessoa, seja pela citação directa de excertos da sua poesia, seja mais subtilmente na forma como o autor entretece breves trechos da sua poesia e os reutiliza, inserindo-os na sua escrita, como «nesse tempo em que festejavam ainda o dia dos seus anos» (p. 19) ou «menino e moço o levaram da aldeia» (p. 11). Haverá mesmo um capítulo na ilha do Mussulo que cria um jogo intertextual paródico com a Ilha dos Amores. São ainda constantes as citações e alusões a outros autores,
nomeadamente aos poetas franceses. Ainda a propósito desse excesso de ser de Sebastião, identidade múltipla ou voz de uma colectividade histórica portuguesa, leia-se ainda a seguinte passagem: «Devia ter nascido uns séculos atrás, nunca mais poderá ser o primeiro a pisar terra desconhecida. (...) Há cinco séculos que estão a chegar aqui, traz dentro dele todas as viagens e todos os naufrágios, é um pedaço de História Trágico-Marítima em carne viva, não vem a descer de um avião, está a saltar de um verso de Camões para esta terra violada e virgem, de Rocinante é que vinha bem, ora pífaro, não é senão um alferes miliciano de infantaria» (p. 29). Mais à frente, alguém lembra o nosso herói de que é «um Sebastião antisebastianista e anticolonialista» (p. 113). Este desencanto irónico expressa a inutilidade desta guerra, pois nem o sacrifício dos combatentes nem esta guerra parecem fadados a entrar na História ou pelo menos não pelas melhores razões: «Não penses que alguém se interessa. Estamos longe, demasiado longe. Choram por nós mas esquecem. Vamos ser os grandes cornos deste tempo. Todos nos estão a pô-los, o que é que pensas, o Estado, a família, os amigos, quem vai querer saber o que se passou aqui. Ninguém vai pôr em causa os brandos costumes, os mortos serão esquecidos, nós próprios faremos por esquecer, mais tarde ninguém contará.» (p. 105). Esse desencanto pode mesmo gerar um esquecimento ou obliteração nos anais da História: «A guerra não existe, um dia vais ver que nunca existiu.» (p. 105). Os Prémios Literários A sua obra literária abrange já cinco décadas, incluindo sobretudo a poesia, o romance, o ensaio e o conto. Manuel Alegre tem recebido vários prémios nacionais, dos quais podemos destacar o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores em 1998, pelo livro Senhora das Tempestades, que lhe valeu também o prémio da Crítica Literária da AICL; o Prémio Pessoa, em 1999, pelo conjunto da obra; em 2007, a Fundação Inês de Castro de Coimbra, pela totalidade da sua obra, o Tributo Consagração; em 2008 a Fundação da Casa de Mateus atribuiu-lhe o Prémio D. Dinis, pelo livro Doze Naus; e em 2016 foi-lhe atribuído o Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores, bem como o Prémio de Consagração de Carreira da Sociedade Portuguesa de Autores. No dia 8 de Junho de 2017 foi o vencedor do Prémio Camões, na sua 29.ª edição, tendo este Prémio sido instituído por Portugal e pelo Brasil em 1988, e atribuído pela primeira vez em 1989 a Miguel Torga.
Cultura.Sul
07.07.2017
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Panorâmica Ficha Técnica: Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural
'Escrytos' de Paulo Pires leva textos do Cultura.Sul à forma de livro
Editor: Ricardo Claro
ricardo claro
Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus • Da minha biblioteca: Adriana Nogueira • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Espaço ao Património: Isabel Soares • Filosofia dia-a-dia: Maria João Neves • Juventude, artes e ideias: Jady Batista • Letras e literatura: Paulo Serra • Marca d'água: Maria Luísa Francisco • Missão Cultura: Direcção Regional de Cultura do Algarve • Panorâmica: Cátia Marcelino • Quotidianos poéticos: Pedro Jubilot Colaboradores desta edição: Nabila Jebbouri Vítor Azevedo Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve, FNAC Forum Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com on-line em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve
facebook: Cultura.Sul Tiragem: 5.825 exemplares
Ricardo Claro
Editor ricardoc.postal@gmail.com
Paulo Pires, colaborador de anos do Cultura.Sul na rubrica "Sala de leitura", chamou "Escrytos" à obra que lançou recentemente com a chancela da Arranha-céus e que apresentou em São Brás de Alportel ao público. Mas mais do que escritos, a obra é um repositório do pensamento de Paulo Pires, investigador, programador e acima de tudo homem da cultura, sobre a intervenção cultural na região, sobre a forma de promover a leitura no Algarve e sobre o que é, afinal, cultura numa região periférica e como se criam públicos nas suas diversas vertentes. Textos do Cultura.Sul integram obra do autor algarvio Entre textos publicados noutros órgãos de comunicação social "Escrytos" recolheu na forma de livro vários dos
A apresentação da obra de Paulo Pires decorreu em São Brás de Alportel pensamentos que a pena de Paulo Pires trouxe à forma escrita nas páginas do caderno cultural mensal do POSTAL, o Cultura.Sul. Ao agradecimento que o autor deixou ao POSTAL pela publicação dos seus textos durante os anos de parceria respondemos com um agradecimento igualmente grande e com o reconhecimento pela dedicação ao Cultura.Sul. Antes de sermos parceiros neste percurso de pensar, debater e informar no Algarve sobre as temáticas da cultura, somos enquanto caderno cultural o resultado daquilo que
tantos colaboradores como Paulo Pires publicam nestas páginas que, mês após mês, levamos até às mãos dos algarvios e não só, na região, no país e no mundo. Um livro de reflexão que apela a essa mesma reflexão "Escrytos" é um livro de reflexão, de várias reflexões, feitas por quem, se nota, é um amante e amador do pensamento e, se sabe, não receia o desafio que é debruçar-se sobre as temáticas da cultura. É também um desafio ao
pensamento crítico e à reflexão ela mesma feita aos leitores das linhas que Paulo Pires encheu de análise e ponderação. São textos de quatro anos de produção do autor que mostram o quanto o Algarve tem para dar ao país, quer na cultura propriamente dita, quer no pensamento sobre a realidade da cultura enquanto objecto de estudo e enquanto desfaio permanente aos respectivos agentes. Dividido em três grupos: Artes Performativas, Bibliotecas, livros, leituras e Cultura, programação, sociedade, a obra ganha sentido na ordem cro-
nologicamente desarranjada mas profundamente ponderada que o autor imprimiu à sequência dos textos. "Escrytos" soma quatro anos de abordagem das temáticas relacionadas com a cultura numa recolha de textos já publicados mas cuja actualidade é inegável, como sublinhou Ana Isabel Soares na apresentação realizada em São Brás de Alportel com o apoio da Câmara local. Textos que Paulo Pires sublinha "inacabados" enquanto desafio ao pensamento de todos sobre os temas abordados e que constituem bons pontos de partida para que analisemos a realidade regional da mediação cultural, da divulgação da leitura, das redes de bibliotecas e de salas de espectáculos e da forma como se programa e para quem, bem como, sobre como se ganham públicos num trabalho infindável de reinvenção da forma de fazer programação cultural. Na região não os há muitos, mulheres e homens, que pensem de forma tão afincada a realidade cultural do Algarve, todos os seus contributos são inestimáveis. Paulo Pires é em definitivo um deles e por isso mesmo o seu "Escrytos" é imperdível.
Pentateuco reeditado assinala 530 anos de imprensa em Portugal A obra que marca o início da imprensa em Portugal foi impressa por Samuel Gacon em Faro em 1487 e, por isso, com toda a propriedade se pode dizer que a génese da impressão em Portugal está na cidade hoje capital de distrito. Nesse ano, o judeu Samuel Gacon levou ao prelo o "Pentateuco" ou "Tóra" para os judeus em caracteres hebraicos e tornou assim possível em Portugal o que até então só no imaginário se acreditava possível. Menos de 50 anos depois de Gutenberg ter implantado a imprensa no mundo ocidental - até então reservada aos orientais - imprimia-se em Faro o incunábulo que mais tarde viria a
ricardo claro
A mesa de honra na apresentação que teve lugar no Seminário de São José ser roubado pelos ingleses e que hoje integra o acervo da British Library, em Londres.
530 anos depois, a reedição da obra (fac-simile) tem lugar pela mão da editora Sul, Sol e
Sal numa aventura conjunta com o Círculo Teixeira Gomes – Associação pelo Algarve e foi
apresentada na passada semana no Seminário de São José, em Faro, com a presença da embaixadora de Israel em Portugal e do Bispo do Algarve. O momento foi aproveitado ainda pelo presidente da Fundação Portuguesa das Comunicações para anunciar os trabalhos em parceria com a Câmara da cidade no sentido de deslocar parte do acervo do seu museu para Faro e ali constituir um pólo museológico dedicado à imprensa. Uma boa notícia para a cidade berço da imprensa em Portugal que se espera possa rapidamente contar ao público a sua história enquanto "ponta-de-lança" da imprensa no país.
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07.07.2017
Cultura.Sul
Artes visuais
Qual o 'peso' de se saber quem é o autor da obra?
Saul Neves de Jesus
Professor catedrático da UAlg; Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora
manas, numa entrevista, o DJ inglês Goldie referiu o seguinte numa entrevista: “Se pegarem numa camisola e escreverem “Banksy”, está feito, vai vender de certeza! Sem ofensa ao Robert, acho-o um artista brilhante, que virou a arte de pernas para o ar”. No momento em que disse o nome Robert, Goldie
havia nada a fazer. Ficou revelado que Banksy é mesmo Robert Del Naja, dos Massive Attack. Já se suspeitava disto, sobretudo porque as obras de Banksy têm aparecido em diversos locais do mundo, após concertos dos Massive Attack. Isto embora anteriormente Robert tenha des-
bons amigos, tendo até escrito o prefácio do livro “3D and the Art of Massive Attack”, publicado por Robert o ano passado. Realmente Banksy (ou Robert) valorizam a discrição, encontrando-se em contra corrente com aquilo que se passa com a maioria das pessoas na atualidade, em
fosse da nobreza ou do clero, queria que fosse feito. Uma estratégia que alguns artistas utilizavam para poderem “assinar” os seus trabalhos era aparecerem desenhados na própria pintura, quase como um auto-retrato, num local discreto da mesma. Entretanto, algumas pinturas começaram a ser assifotos: d.r.
Recentemente parece ter sido finalmente revelada a identidade de um dos maiores artistas da atualidade, Banksy. Banksy é o pseudónimo de um artista de rua, que pinta desde os anos 90, sobretudo em graffiti, e cujos trabalhos podem ser encontrados em ruas, pontes e muros de cidades de todo o mundo, embora predominantemente em Inglaterra. As mensagens visuais que produz são sobretudo de crítica política e social, expressando uma aversão aos conceitos de capitalismo, autoridade e poder. Ainda este ano, Banksy havia aberto o Hotel Walled-Off, considerado aquele com “pior vista do mundo”, pois situa-se em frente ao muro de Israel na Cisjordânia, que constitui uma das materializações mais emblemáticas do conflito entre israelenses e palestinos. E este muro é a vista que os nove quartos têm. Além disso, a decoração destes alerta para este conflito, havendo, por exemplo, por cima de uma das camas, um graffiti de uma guerra de travesseiros entre um soldado israelense e um manifestante palestino. Recentemente visitámos uma exposição sua no Museu Moco, em Amesterdão, e é realmente surpreendente a capacidade crítica que Banksy expressa através das imagens que cria. Algumas das suas imagens têm sido vendidas em leiloeiras, mas têm que ser os compradores a tratar da remoção desses graffitis das paredes. Em fevereiro deste ano, uma imagem de reformados a jogar bowling com bombas foi vendida por quase 200 mil euros. Não obstante todo este sucesso, a identidade de Banksy tem conseguido ser mantida em segredo. No entanto, há umas se-
Imagens de trabalhos de crítica social produzidos por Banksy calou-se, apercebendo-se do próprio erro, mas já não
mentido que seria Banksy, dizendo que apenas são
Imagem do trabalho 'Identificação do artista: A fisionomia e a assinatura mudam, mas a impressão digital mantém-se' (Jesus, 2016)
que toda a sua vida é exposta através das redes sociais. Aliás, para além das imagens, também os pensamentos de Banski são de bastante profundidade. Por exemplo, nessa exposição em que estivemos em Amesterdão, um dos pensamentos que se encontrava exposto era o seguinte: “I don’t know why people are so keen to put the details of their private life in public; they forget that invisibility is a superpower” (“não sei porque é que as pessoas estão tão interessadas em tornar públicos detalhes da sua vida privada; esquecem-se que o anonimato é um superpoder”). Curiosamente, o anonimato era o que acontecia com a maioria dos autores das obras de há uns séculos atrás, pois os artistas não as assinavam. Muitas vezes limitavam-se a produzir aquilo que quem pagava,
nadas e datadas, primeiro sobretudo atrás da própria tela, expressando que o principal é o trabalho produzido, pouco interessando quem o produziu. Só mais recentemente, a partir do século XIX, começou a ser prática comum os artistas assinarem de forma explicita os seus trabalhos. A assinatura começou a ter cada vez mais “peso” na valorização, nomeadamente financeira, de um trabalho artístico. O preço das obras começou a estar cada vez mais condicionado pela assinatura, havendo colecionadores que investem sobretudo nos nomes, procurando adquirir obras assinadas. Assim, é claramente verdade o que afirmou Goldie quando revelou que Robert Del Naja era Banksy (“Se pegarem numa camisola e escreverem “Banksy”, está feito, vai vender de certeza!”).
Já em artigos anteriores havíamos salientado a importância do percurso do artista, permitindo identificar o seu estilo e valorizar cada trabalho produzido nesse enquadramento histórico duma identidade expressa em arte. É totalmente diferente alguém produzir um trabalho artístico, nunca tendo feito nada antes, nem indo fazer a seguir, do que um artista conhecido produzir um trabalho idêntico do ponto de vista visual, permitindo compreender e situar esse trabalho num percurso de construção artística. É a história ou o percurso de cada artista, a persistência e a consistência do seu trabalho, a sua identidade, que pode permitir inferir a dimensão artística do mesmo. A obra “A fonte”, de Duchamp, à qual já fizemos referência em artigos anteriores, é um exemplo disso mesmo, pois foi um trabalho inserido numa originalidade e identidade que, de forma persistente, Duchamp desenvolveu, entrando para a história das artes visuais. No entanto, quando este trabalho foi apresentado, em 1917, para uma Exposição da Sociedade para Artistas Independentes de Nova Iorque, o presidente da direção desta sociedade afirmou à imprensa que esta “não era uma obra de arte, sob qualquer definição”. Duchamp, que até fazia parte deste júri, havia assinado este trabalho com o pseudónimo R. Mutt, pelo que este anonimato não permitia inserir esta obra no seu percurso artístico. Talvez se Duchamp passasse a trabalhar sempre com o pseudónimo Mutt, tal como Robert tem trabalho com o pseudónimo Banksy, tivesse sido o nome Mutt a ficar na história de arte em vez de Duchamp. Já agora, a propósito da identificação do artista, talvez no futuro a melhor solução seja mesmo o autor colocar a sua impressão digital na obra produzida. A esse propósito, aproveito para vos mostrar um dos meus últimos trabalhos, intitulado “Identificação do artista: A fisionomia e a assinatura mudam, mas a impressão digital mantém-se”.
Cultura.Sul
07.07.2017
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Espaço ALFA
Disparar, disparar, disparar, para criar imagens… ou não
Vítor Azevedo
Membro da ALFA – Associação Livre Fotógrafos do Algarve
Os objetivos de quem utiliza um instrumento que dispara para criar uma imagem e a imortalizar e as de quem utiliza um instrumento que dispara, fere e mata, inicialmente não são muito diferentes: o contacto com a natureza, o prazer e a adrenalina do encontro inesperado ou muito preparado, cara a cara, com a mais pequena ave ou o maior dos mamíferos, a necessidade de entender os seus hábitos para ser capaz de segui-lo, sem
ser detetado, na máxima proximidade e na melhor posição. Mas, o resultado final, o que provoca o imenso prazer de consumar o objetivo é bem diferente. No caso do artefacto que dispara para obter a imagem é essa memória que fica de um momento da vida e que fica com vida, do animal que fica imortalizado e continua vivo. No caso do artefacto que dispara, fere e mata é o prazer de obter um troféu, um corpo não imortalizado, morto, uma peça a menos no domínio da natureza. Não pretendo julgar, esta é apenas uma opinião pessoal, uma maneira de estar na vida de quem tem na mão o objeto que dispara e cria uma imagem que, por acaso ou ironia, na maioria das vezes, até tem o nome de um artefacto bélico.
Filosofia dia-a-dia
Se não sabe porque é que pergunta?
Maria João Neves Ph.D Consultora Filosófica
Questiona João dos Santos (1913-1987), psiquiatra e psicanalista, criador da moderna saúde mental infantil em Portugal. Se em vez de despedirmos imediatamente o desconcerto em que esta pergunta nos deixa, permitimos que ela actue em nós, talvez possamos reflectir sobre a sua própria natureza. Afinal, o que é perguntar? O que é uma pergunta? O que é que é necessário para que uma pergunta aconteça? Existem boas e más perguntas? Um ponto de vista ignorante vive-se a si próprio como um ponto de vista absoluto. Quem julga que sabe tudo, desconhece que não sabe. Por isso mesmo a frase socrática “só sei que nada sei” mostra uma ignorância sábia. É uma ignorância que se au-
to-reconhece. Já Platão afirmava que “se o conhecimento respeita ao Ser, e o desconhecimento forçosamente ao Não-Ser, relativamente a essa posição intermédia, deve procurar-se algo entre a ignorância e a ciência.” (Platão, República 477b) A pergunta seria então, para o fundador da Academia, um estádio intermédio entre a sabedoria e a ignorância; um contacto detido com isso que ainda não se tem, mas, apesar de tudo, contacto. Porém, existem diferentes tipos de não saber. Se me esqueço, por exemplo, do número de telefone de alguém, ou do nome de certo actor, não consigo enunciar qualquer dos dois, mas também não permito que um número ou um nome errado lhes corresponda. Se alguém ao meu lado começar a sugerir números ou nomes, eu vou dizendo “não”, “não”, “não”, até que a resposta certa surja de repente, e ilumine sem réstia de dúvida essa zona da memória até há pouco apagada. O número ou o nome esquecido ocupava um certo espaço que só consegue ser preenchido pela recordação
d.r.
exacta que lhe corresponde. Algo de diferente acontece com uma pergunta. A tensão da pergunta contém em si própria uma direcção e essa direcção é responsável pelo que se poderá vir a encontrar. Uma boa pergunta aponta para a sua resposta, é uma espécie de ponto de vista grávido. Com tempo e perseverança a resposta acaba por nascer. Da mesma forma, há perguntas que são como se “se tentasse ordenhar um bode e apanhar o leite com uma peneira!” Eis
a descrição de uma pergunta estúpida! Pergunta vs. Interrogação Vergílio Ferreira (1916-1996) escritor e ensaísta português, afirma: “Uma pergunta não interroga: uma pergunta diz a resposta.” Talvez por isso tenha sido certeiro João dos Santos, com a pergunta que dá título a este artigo. No entanto, para Virgílio Ferreira esse estado inquisitivo, o estado das boas perguntas, aquelas que apontam para uma
resposta certa, é um estado degradado: “A pergunta é assim o eco da interrogação degenerada, a que já de si se esqueceu no jogo do faz-de-conta. Faz de conta que tudo tem razão de ser, que tudo é porque é, que a necessidade evidente habita o coração das pedras e dos homens.” (Invocação ao meu corpo). Na mesma linha a filósofa María Zambrano afirma que a forma sistemática, típica dos tratados filosóficos, se consubstancializa num método inquisitivo. Uma pergunta surge de uma inquietação intelectual e todos os esforços reflexivos subsequentes se realizam no sentido de encontrar uma resposta. O problema reside em que, assim predispostos para encontrar a resposta, renegamos a natureza das coisas que é intrinsecamente misteriosa. Em coro com M. Zambrano, V. Ferreira afirma: “Deus existe como a corporizarão ou a resposta, não apenas da procura do homem, mas ainda do estilo ou qualidade dessa procura. Criado à imagem e semelhança do homem, ele fixa o resultado do mistério que se saldou em
problema, da interrogação que se degradou em pergunta.” E assim é porque “uma pergunta está do lado do problema a resolver, do ainda simplesmente desconhecido; e a interrogação está do lado do insondável”. Em consonância, a filósofa reclama para o seu método filosófico a suspensão da pergunta que se traduz numa atitude de passividade activa. Chama a si o modus faciende pitagórico que consiste mais em disponibilizar-se para acolher a resposta do que em perguntar como um cientista. A força da ciência assenta nesse pressuposto sistema de razões, cujo alinhamento cabe descobrir e tudo ficará então não só clarificado mas passível de ser controlado. No entanto, quando a malha de razões se julgava suficientemente apertada para que nada escapasse, eis que o conhecimento último se esgueira, o mistério prevalece e o insondável brilha em todo o seu esplendor! Venha continuar a reflexão no Café Filosófico! Inscrições: filosofiamjn@gmail.com
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07.07.2017
Cultura.Sul
Letras e Leituras
O regresso de Arundhati Roy: O Ministério da Felicidade Suprema
Paulo Serra
Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL
O Deus das Pequenas Coisas Arundhati Roy nasceu em Shilong, na Índia, em 1959, estudou Arquitectura em Deli, onde vive actualmente. Foi autora de guiões para séries televisivas e filmes, e estreou-se na ficção com O Deus das Pequenas Coisas em 1997, publicado entre nós pelas Edições Asa em 1998. Essa obra constituiu um acontecimento literário, tendo sido traduzida para 42 línguas, vendido 8 milhões de exemplares por todo o mundo e������������������������������ , só em Portugal, 80 mil exemplares. O livro constitui um marco da ficção pós-colonial e fez de Arundhati Roy a primeira autora indiana a vencer o ������������������������������������� Booker Prize, nesse ano de 1997������ , tendo sido comparada a autores como Salman Rushdie e Gabriel García Márquez. Desde aí, a autora publicou algumas obras de não ficçã������������������� o, inclui���������� ndo os ensaios O Fim da Imaginação (1999) e Pelo Bem Comum (2001), ambos publicados pela ASA. Existe ainda uma obra, O Perfil do Monstro (2010), publicada pela Bertrand, que reúne conversas com a autora. Arundhati Roy, que chegou a estar presa, destacou-se como activista política contra a globalização, a industrialização, as armas nucleares, e foram-lhe atribuídos prémios humanitários como o Woman of Peace em 2003 e o Sydney Peace Prize em 2004. Depois de um interregno de 20 anos, chegou às livrarias no dia 6 de Junho o segundo romance da autora, O Ministério da Felicidade Suprema. Esta obra foi publicada uma vez mais pela ASA numa edição simultânea com a edição inglesa, enquanto estão já a ser preparadas traduções para outras 29 línguas. Em O Deus das Pequenas Coisas narrava-se a história de três gerações de uma família de Kerala, no sul da Índia, com especial enfoque nos gémeos Es��� tha e Rahel, nascidos em 1962.
montanhas e os vales de Caxemira». As personagens são várias, também para dar ideia desse mosaico em que muitas vezes as histórias puxam outras histórias e uma personagem que entra em cena traz sempre a sua biografia. Pode mesmo ler-se a certa altura que «As pessoas – comunidades, castas, raças e até países – carregam as suas histórias trágicas e os seus infortúnios como se fossem troféus, ou ações para comprar e vender no mercado livre. Infelizmente, e falando por mim, nesse aspeto não tenho acções para negociar, sou um homem sem tragédias. Da casta superior, um opressor de casta superior, visto de todos os ângulos.����������������������� » (p. ��������������������� 210). As personagens centrais são Garson Hobart, que nos fala aqui como a voz do Estado mas também como um resistente, ou Tilottama, com o seu triângulo amoroso em que ama um homem, casa-se com outro e cuja história é sobretudo contada por outro. Mas ����������������������� é ��������������������� com a história de Anjum que se inicia a narrativa, o quarto de cinco filhos, pelo menos segundo anuncia a parteira quando deposita a criança nos braços da mãe que apenas no dia seguinte ao explorar o corpinho da criança à ��������������������������� luz ������������������������� do dia descobre «���� ����� aninhada por baixo das partes masculinas, uma parte pequena e mal formada mas indubitavelmente feminina» (p. 17). Ensaio político? A autora proferiu em entrevista que não tinha intenção de fazer desta obra que foi nascendo gradualmente um ensaio político, mas perpassa pelo texto uma intenção de denúncia onde se faz uma revisão crítica dos últimos 20 anos da história da «Mãe Índia – uma deusa de muitos braços» (p. 113). Ou, como se pode ler noutro sítio, dessa Índia que n��������������������������������������� ão devia pertencer «������������������� aos punjabis, biharis, guzerates, madrasis, muçulmanos, sikhs, hindus, cristãos, mas sim a estas
fotos: d.r.
Arundhati Roy é uma escritora activista anti-globalização indiana belas criaturas... pavões, elefantes, tigres, ursos...» (p. 183). Tilo na sua ocupação de estenógrafa pode ser considerada um alter ego da autora: ���������������������������������� «��������������������������������� tirava fotografias estranhas. Escrevia coisas estranhas. Recolhia fragmentos de histórias e recordações inexplicáveis que pareciam não ter qualquer finalidade. O seu interesse não parecia ter um padrão ou tema. Não tinha uma tarefa definida, um projeto. Não estava em reportagem para uma revista ou jornal, não estava a escrever um livro nem a fazer um filme. Não prestava atenção a coisas que a maioria das pessoas consideraria importante. Com os anos, este seu arquivo peculiar e desconexo tornou-se particularmente perigoso. Era um arquivo de coisas recuperadas, não de uma inundação, mas de outro tipo de desastre.» (p. 287). A certa altura, declara-se mesmo como, numa história semelhante a esta, existe «demasiado sangue para dar boa literatura» (p. 300). Com especial ê���������������������� ����������������������� nfase na luta pela independ����������������������������� ê���������������������������� ncia de Caxemira, tudo ����� é ��� entretecido e filtrado por um crivo crítico
Retratar uma pluralidade
O «subcontinente indiano» Neste O Ministério da Felicidade Suprema a narrativa é mais dispersa, como se pode ler na contracapa, como forma de dar a conhecer o «��������� ���������� subcontinente indiano» na sua diversidade e diferença, desde «��������������������� ���������������������� os bairros superlotados da Velha Deli e os centros comerciais reluzentes da nova metrópole às
nesta imensa tapeçaria que desdobra a realidade indiana, da globalização à poluição: «Parou numa ponte e viu um homem a remar uma jangada circular, construída com velhas garrafas de água e bidões de plástico, pelo rio espesso, lento e imundo. Búfalos afundavam-se ditosamente nas águas negras. No passeio, vendedores ambulantes vendiam melões suculentos e pepinos verdes e lisos, cultivados com efluentes fabris puros.» (p. 125). O humor e a ironia são muitas vezes a arma utilizada para a denúncia social, como na passagem: «A vantagem da casa de hóspedes no cemitério era que, ao contrário de todos os outros bairros da cidade, incluindo os mais elegantes, não sofria cortes de energia. Nem mesmo no verão. Isto porque Anjum roubava a electricidade à morgue da cidade, onde os cadáveres precisavam de refrigeração vinte e quatro horas por dia. (Os pobres da cidade, que ali jaziam no esplendor do ar condicionado, nunca tinham vivido em condições semelhantes enquanto eram vivos.)�������������������������������� » ������������������������������ (p. 79). Ou quando Anjum ����� é ��� notificada pelas autoridades municipais de que não pode viver no cemitério, ao que ela responde «que não estava a viver no cemitério, mas sim a morrer – e para isso não precisava de autorização do município porque tinha autorização do Todo-Poderoso.» (p. 78).
Escritora publicou segundo romance após interregno de 20 anos
A instabilidade e o fervilhar político, religioso e social, estão sempre latentes. Note-se como quando se escreve sobre Bhopal, onde o desastre ambiental de 1984 é evocado, se refere que «A normalidade, no nosso lado do mundo, é��������������������������� parecida ������������������������� com um ovo cozido; a superfície monótona esconde, no coração uma gema de viol��������� ê�������� ncia absoluta. É a nossa ansiedade constante com essa violência, a nossa memória das suas obras passadas e o temor das
suas manifestações futuras, que estabelecem as regras para que pessoas tão diversas e complexas como nós mesmas possam continuar a coexistir – a viver juntos, a tolerarmo-nos uns aos outros e, de vez em quando, a assassinarmo-nos uns aos outros... Desde que o centro se aguente, desde que a gema não se desfaça, está tudo bem. Em momentos de crise, ajuda ter uma perspetiva de longo prazo.» (p. 165). Tal como Anjum coexiste com os seus dois eus... Anjum pelo seu hibridismo, note-se como a personagem possui duas vozes «������������������������������ ������������������������������� separadas mas unidas, uma rouca, outra profunda e distinta» (p. 131), revela-se, mais do que um transsexual, uma personalidade bipartida em permanente conflito, personificando as várias vozes em permanente conflito da Índia: «Ele, um revolucionário preso na mente de um contabilista. Ela, uma mulher presa no corpo de um homem. Ele, furioso com um mundo no qual o deve e o haver não batiam certo. Ela, furiosa com as suas glândulas, os seus órgãos, a sua pele, a textura do seu cabelo, a largura dos seus ombros, o timbre da sua voz. (...) Ele que acreditava estar sempre certo. Ela, que sabia que estava errada, sempre errada. Ele, reduzido pelas suas certezas. Ela, ampliada pela sua ambiguidade.» (p. 135). Se em tempos Salman Rushdie teve de fugir ao Paquistão, não é difícil crer que este romance irá perturbar muita gente na Índia. «�������������������� Os exóticos não condiziam com a imagem da Nova Índia – uma potência nuclear e um destino emergente das finanças internacionais.» (p. 49). Podemos incluir entre os exóticos o/a fascinante Anjum, dada a excentricidade da sua dupla condição, bem como a sua posição ex-cêntrica/periférica quando se decide instalar no cemitério da cidade, onde estende um tapete persa entre duas campas para dormir. É ������������� nesse cemit�� ério que se reúne uma conglomeração de exilados, quase todos alienados e sem família. E, especialmente perto do fim, sente-se na escrita da autora todo o exotismo da sua primeira obra, conforme uma atmosfera que tem sido considerada como realismo mágico se vai impondo.
Cultura.Sul
07.07.2017
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Na senda da Cultura
Feira do Livro de Olhão continua a deslumbrar este fim-de-semana
Cátia Marcelino / Henrique Dias Freire Jornalista catiam.postal@gmail.com
A cultura invadiu novamente a cidade de Olhão e até ao próximo domingo, 9 de Julho, todos os caminhos levam até à zona ribeirinha olhanense, seja para os amantes dos livros e das letras em geral, seja para aqueles que queiram aceitar o desafio de passar por um evento que é muito mais do que uma simples feira do livro. “Hoje em dia uma feira do livro não se faz apenas com bancas a vender livros. Esta feira é pequena em tamanho mas grande em objectivos e a ideia foi trazer também actividades paralelas às bancas mas sempre ligadas aos livros de alguma maneira”, disse ao Cultura.Sul a coordenadora do certame e directora da Biblioteca da Universidade do Algarve, Adriana Freire. É que a FLO - Feira do Livro de Olhão propõe um conjunto de iniciativas que unem, mais do que uma alargada proposta de stands de editoras e livreiros, um conjunto de escritores de renome que se apresentam ao público em conversas "abertas" aos ouvintes e uma panóplia de propostas capazes de agradar a todos os públicos, dos mais pequenos aos mais crescidos. Autores de renome conversam ‘À noite, na FLO’ Todos os dias, pelas 22 horas, "À noite, na FLO" coloca à conversa dois autores de renome, num diálogo "aberto" ao público por onde já passaram nomes como Sérgio Godinho e Pedro Jubilot, Cristina Carvalho e Adília César, Álvaro Laborinho Lúcio e Fernando Cabrita, José Eduardo Agualusa e Paulo Moreira. “Trazer pessoas que não vêm cá com tanta facilidade para poderem estar à conversa com pessoas que também escrevem e que até têm algo em comum” foi o objectivo da organização para este espaço da feira. “Todos têm o seu lugar e todas as pes-
fotos: d.r.
soas têm a sua preferência por autores diferentes”. Hoje, 7 de Julho, "À noite, na FLO" junta Isabela Figueiredo e Luísa Monteiro, “duas escritoras, jornalistas e duas mulheres da comunicação”. A autora do romance "A Gorda" muito aclamado pela crítica, Isabela Figueiredo, vai estar à conversa com a investigadora Luísa Monteiro e Adriana Freire não tem dúvidas de que a noite “vai ser bastante interessante”. Carlos Campaniço e Manuel Pinto Ribeiro preenchem a noite de sábado A noite de sábado coloca à conversa Carlos Campaniço, um autor que tem vindo a receber vários prémios, e Manuel Pinto Ribeiro, “um homem muito dedicado à poesia japonesa” que escreve sobre o Haiku, a forma de escrita dos povos japoneses. O sábado é também dedicado aos mais novos, com actividades como "Brincar com Papéis", com Isa Catarina Mateus; ou "Conta-me um
Exposição de pintura patente na FLO Conto", com Dina Adão. Todos os dias o público tem direito a um “pequeno apontamento teatral”, onde Alexandre Lopes apresenta um monólogo de Gil Vicente, intitulado "Branca Gil", e também diariamente, às 19 horas, há lugar para as "Conversas ao fim da tarde",
um momento organizado pelos expositores e por onde ainda vão passar nomes como Goreti Ferreira e Marco Mackaaij (7 de Julho); Luís Alexandre e Manuel Neto dos Santos (8 de Julho); Cláudio Guimarães dos Santos, Gabriela Rocha Martins, Fernando Cabrita e Fernando
As artes performativas também integram a programação da feira
Pessanha (9 de Julho). Espectáculo de Pedro Lamares encerra Feira do Livro de Olhão No dia 9 de Julho, o teatro chega à FLO através de "Móce Mó" que junta em palco João Evaristo e Joaquim Parra, às 18 horas, num espectáculo “que é sempre um sucesso”, de acordo com Adriana Nogueira. À noite apresenta-se Pedro Lamares, pelas 22 horas, para encerrar em grande a Feira do Livro de Olhão, com o espectáculo "A Poesia Amada Carregada de Futuro". “O Pedro Lamares é de facto um nome conhecido da televisão, é actor de cinema, das novelas e de teatro. Há quem não conheça o nome mas conhece a voz dele porque ele tem uma voz muito peculiar a dizer poesia. Penso que será um grande momento para fechar a feira”. Não se distraia nem por um momento nas visitas à Feira do Livro de Olhão, a cada instante as propostas são diversas e convidativas, e são vários os momentos em que "outras letras", que não necessariamente as dos livros em papel, dão origem a "outros momentos" culturais. Espaços culturais da Câmara representados na FLO
'À noite na FLO'põe a conversa em dia com os escritores
“A Biblioteca Municipal de Olhão aceitou imediatamente o nosso convite de trazer a biblioteca para a feira” e até domingo, os leitores da Biblioteca
Municipal podem entregar ou requisitar livros na FLO. “É uma aproximação das pessoas à sua biblioteca. Quem sabe se algumas pessoas que ainda não o são se tornam leitoras porque a biblioteca tem essa grande vantagem, nós não precisamos comprar os livros, ela compra por nós e nós podemos lê-los”. Também o Museu Municipal de Olhão vai estar representado na FLO, através da exposição de fotografia que José Bandeira, o conhecido cartoonista, traz à cidade cubista. "Nem gregos nem troianos" é o nome desta exposição constituída por 24 fotografias, inspiradas nos 24 cantos da Ilíada, de Homero. Na frente de mar da cidade, a feira abriu portas a 1 de Julho, com um apontamento musical a cargo da DrumSchool, numa abertura que contou com a presença do presidente da Câmara de Olhão, António Miguel Pina, e do poeta Fernando Cabrita, responsável comissário da Poesia a Sul. Programa cultural para miúdos e graúdos A expectativa da organização é que as pessoas continuem a aderir e a vir à Feira do Livro de Olhão que, além das acções que ainda estão previstas para este fim-de-semana, já recebeu actividades como: a "Dança com Livros", onde a bailarina e coreógrafa Ana Matins conta histórias aos mais jovens através da linguagem corporal; "Quem Quer Ser Português?", onde Luís Ene reflecte sobre o que é ser português de uma forma um pouco poética; um momento musical de "Poesia Cantada", com Eduardo Ramos e Tiago Rêgo; e a arruada de fogo que a companhia de teatro Viv’Arte trouxe à feira, logo no primeiro dia do evento. Motivos não faltam para fazer uma visita à Feira do Livro de Olhão e deixar-se levar pelos livros e pelo muito mais que o certame promete levar até à margem da Ria Formosa na cidade de Olhão. A organização vai continuar a promover a marca FLO – Feira do livro de Olhão, criando eventos que tragam as pessoas a Olhão e as motivem a participar activamente nas actividades.
10 07.07.2017
Cultura.Sul
Marca d'água
Territórios da Arte e da Memória
Maria Luísa Francisco Investigadora na área da Sociologia
luisa.algarve@gmail.com
AGENDAR
Há cerca de 15 dias conheci pessoalmente a pintora Graça Morais, em Bragança, no Centro de Arte Contemporânea que tem o seu nome. Com uma exposição em Paris, na delegação francesa da Fundação Calouste Gulbenkian, que decorre até 27 de Agosto, regressou a Bragança propositadamente para a inauguração da exposição no Centro de Arte Contemporânea Graça Morais. A inauguração, que decorreu no passado dia 15 de Junho, tem como título “A Coragem e o Medo”, e estará patente até 31 de Dezembro de 2017. Uma magnífica exposição, que não deixa ninguém indiferente, porque representa uma actualidade que nos chega diariamente pelos jornais, televisão e redes sociais. Nesta exposição os protagonistas das suas telas são, como referiu Graça Morais: “as vítimas mais visíveis desta convulsão global, são os milhares de migrantes a caminho do exílio, são os indignados da miséria urbana, são os refugiados coagidos por forças que não têm como controlar, empurrados para o abismo, fugindo da pobreza, da repressão das guerras, da violência e da morte; homens, mulheres e crianças que tudo arriscam, inclusive a própria vida, na utopia de um destino melhor, mesmo que incerto”. A arte como gesto cívico e de inquietação pela tragédia e pelo caos, mas ao mesmo tempo com imagens cheias de esperança e alento, daí certamente este binómio “A Coragem e o Medo”. É muito interessante ver que desde a sua primeira exposição individual, em 1980, na Sociedade Nacional de Belas-Artes (Lisboa), existem binómios. Essa exposição foi intitulada “O Rosto e os Frutos”, ainda nos anos 80 apresentou outras exposições, nomeadamente “Erotismo e Morte”, “Evocações e Êxtases”. Esta dualidade aparece também na obra “Sagrado e Profano” e ainda na obra editada em 2001 com pinturas de Graça Morais e poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen intitulada Orpheu e Eurydice. Tenho acompanhado o trabalho desta pintora, que me cativa não só pela forma
como retrata o elemento humano e as paisagens, com cores da Terra-Mãe, no esplendor e na essência da energia telúrica, mas também pelo forte sentido de lugar, pela pertença a uma região que representa com orgulho. Reparei, concretamente, nesse orgulho, ao ouvir Graça Morais referir que o Centro de Arte Contemporânea é visitado por pessoas de diferentes locais do país e de fora do país e senti a dedicação que tem ao Centro de Arte Contemporânea Graça Morais. A atribuição do seu nome foi decidida, por unanimidade, em Assembleia Municipal da Câmara Municipal de Bragança em 2007 e inaugurado em Junho de 2008. O Centro de Arte Contemporânea Graça Morais situa-se em pleno centro histórico de Bragança e o projecto foi concebido pelo arquitecto Souto Moura, que aproveitou um antigo solar do Séc. XVII, acrescentando-lhe uma nova parte em perfeita sintonia com a existente. Impressionou-me pela dimensão total do edifício, pela estrutura, organização e naturalmente pelas exposições. Todo o espaço é dedicado a promover o conhecimento da arte contemporânea, nacional e internacional, em geral, e a obra da pintora Graça Morais, em particular. Nordeste Transmontano e Nordeste Algarvio Gostei imenso da forma de estar e da forma como Graça Morais olhou nos meus olhos. Gosto de pessoas que olham nos olhos. Foi um encontro singelo em que junto das suas obras partilhamos a ligação ao mundo rural e a atenção às suas transformações. Falamos das pertenças aos lugares e como essas pertenças condicionam a forma de expressão e de ver o mundo. Redescubro a cada dia o sentido de lugar: o Algarve, uma região pela qual sou apaixonada, que procuro conhecer cada vez mais pelo estudo e investigação, mas também pelo coração e pelo gosto de ser algarvia. Partilhei que foi a minha primeira ida ao Nordeste Transmontano e que algumas das suas obras, por vezes, me remetem para imagens que tenho bem presentes do Nordeste Algarvio: por exemplo os corpos e rostos de mulheres com os traços de quem viveu as agruras de uma vida de sol a sol, o lenço à cabeça, as tarefas do quotidiano rural. Desde o Nordeste Algarvio, passando por toda a Serra Algarvia até Aljezur, encontramos mulheres como a que é retratada na obra, pintada em 1994, da
fotos: d.r.
a divulgação para a visita ao Centro e à exposição patente até 31 de Dezembro. Ficou ainda apalavrada a vinda de Graça Morais ao Algarve para uma actividade/exposição. Espero que o Algarve venha a ter um Centro de Arte Contemporânea, porque é um equipamento cultural que faz falta na região, e a exemplo do Centro de Arte Contemporânea Graça Morais, possa ser equacionada a recuperação de um edifício histórico para esse fim. Reencontro com a memória judaico-sefardita
Graça Morais e Maria Luísa Francisco, no Centro de Arte Contemporânea Graça Morais, em Bragança série As Escolhidas. A pintura de Graça Morais está cheia de evocações de uma ruralidade vivida, de um conjunto de memórias que retratam a sua infância, os seus medos e as suas alegrias, a religiosidade e os rituais, o sentido do sobrenatural, as lendas e a valorização do que lhe vai chegando pela tradição oral. Há uma série de
desenhos de 1984 em que a autora escolheu um título bem elucidativo: “Na Cabeça de uma mulher está a história de uma aldeia”. Esta mulher, que se tornou um nome incontornável na pintura em Portugal, com toda a simplicidade, pediu que divulgasse o Centro de Arte Contemporânea Graça Morais no Algarve. Aqui fica
As Escolhidas, série de 12, 1994. Sépia s/ papel. Col. Centro de Arte Contemporânea Graça Morais
“CONCERTO DE RITA GUERRA” 8 JUL | 23.00 | Parque de Feiras e Exposições - Tavira Artista vai interpretar as canções mais emblemáticas da sua carreira
Não poderia deixar de referir o “Congresso Internacional Identidade e Memória Sefardita: História e Actualidade”, que decorreu em Bragança de 15 a 18 de Junho e no qual participei. Este congresso, que contou com participantes de vários países, foi considerado um reencontro com a memória, um trabalho de busca e de redescoberta de uma identidade colectiva. O direito à liberdade religiosa foi negado aos judeus portugueses, que apenas tinham como marca distintiva o facto de terem outra religião. E como referiu o presidente da comissão executiva do Congresso, Paulo Mendes Pinto, “apenas porque eram os mais cultos, os mais alfabetizados, os mais conhecedores nos campos das várias ciências da época. Foram estes, os nossos melhores, que perseguimos, definindo uma mediania, que é uma mediocridade, que ainda hoje nos persegue nas taxas de sucesso escolar e nos níveis culturais. Conseguir, após estes séculos, regressar à temática sefardita, numa das cidades mais emblemáticas para este tema, é imagem de uma imensa coragem e de uma ainda maior visão da autarquia de Bragança”. Hoje, praticamente não existem judeus em Bragança, mas nos dias do Congresso foi possível estar com judeus, ouvir as suas comunicações, participar nas suas celebrações e assistir à inauguração do Memorial e Centro de Documentação - Bragança Sefardita. Por fim, uma breve referência a três cidades do Algarve com ligação histórica aos judeus: Lagos, que atraiu mercadores judeus; Faro, que teve uma judiaria que se destacou por ter sido o berço da imprensa em Portugal e onde existe um cemitério judaico e Tavira onde existiu uma judiaria na antiga cerca do Convento da Graça e onde existiu uma Sinagoga, transformada em 1542 na Igreja de Nossa Senhora da Graça.
“ALBUFEIRA DOS TEMPOS IDOS” 15 JUL a 15 SET | Museu Municipal de Arqueologia de Albufeira Exposição de fotografias antigas, que mostra Albufeira nas décadas de 50 e 60
07.07.2017 11
Cultura.Sul
Da minha biblioteca
O Homem que escrevia azulejos, de Álvaro Laborinho Lúcio Adriana Nogueira
Classicista Professora da Univ. do Algarve adriana.nogueira.cultura.sul@gmail.com
Álvaro Laborinho Lúcio tornou-se conhecido dos Portugueses quando ocupou o cargo de ministro da Justiça, entre 1990 a 1995. Atualmente é juiz-conselheiro jubilado do Supremo Tribunal de Justiça, mas, como o próprio diz, aspira a ser escritor. Como ficcionista, publicou o seu primeiro romance em 2014, O Chamador, e em setembro de 2016 publicou este, que hoje vos trago, O Homem que escrevia azulejos. Álvaro Laborinho Lúcio: «O Homem que escrevia azulejos»
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Parece que estou quase a repetir o título, invertendo a ordem, mas a ideia que quero passar é mesmo essa: o autor identifica-se, no Prólogo, com a personagem que, afirma, não sabendo pintar os azulejos que tanto aprecia, «Podia muito bem escrevê-los. Escrever neles os sonhos da minha vida. A trama, no conjunto final, teria sempre de ser mais do que a soma dos azulejos. E se fosse um romance? Talvez um romance satírico. O esmalte vidrado vem criar uma dúvida persistente, quando se pretende distinguir o que parece ser do que realmente é. Dúvida boa, esta, para inspirar a sátira» (p. 13). O livro tem dois gran-
des painéis: «A Cidade», a parte maior, constituída por 32 capítulos, chamados «azulejos», e «A Montanha», constituída por 13 azulejos. E tal como acontece com estes, só quando os vemos à distância (aqui, o final do livro) percebemos o seu todo, mas sem cada um dos quadradinhos esse todo estaria incompleto. Mantendo a metáfora (tema tratado no livro, também, onde se diz «São perigosas, as metáforas» - p. 213) dos azulejos, há personagens pintadas (ou descritas) em vários: uma pincelada aqui, outra ali, e o quadro vai-se formando na nossa cabeça, levantando perguntas e dando algumas respostas. E também, tal como num painel, o quadriculado interrompe a narrativa, para logo a colar. Por exemplo, o 30.º azulejo começa assim, na p. 164: «Está lá fora o Sr. Martinho da Leitaria. Foi Maria Augusta quem trouxe a notícia». Depois, Otília, a personagem que narra este episódio (e grande parte da história), divaga sobre o avô e o modo como este vivia através das personagens dos livros que lia. O início
fots: d.r.
hei-de fazer, menina. - E Álvaro? Ainda não te disse que se chama Álvaro? - Esse não. Ainda há outro, menina?» A Montanha
d.r.
Laborinho Lúcio é juiz-conselheiro jubilado do Supremo Tribunal de Justiça do 31º azulejo junta-se ao início do anterior (p. 170): «Maria Augusta fez como lhe disse. Conduziu à biblioteca o Sr. Martinho da leitaria». A Cidade A primeira parte tem cenas em Portugal e em França. Percebemos as razões da ida para este país do pai de Marcelo e Joaquina (que são uma única vez assim nomeados, pois em França – e no livro – são Marcel e Jacqueline); percebemos a cumplicidade entre Marcel e Norberto, um dos narradores principais, a par de Marcel e Otília; vamos compreendendo que Otília narra a história do avô João Francisco, muitas vezes assumindo a sua voz,
Livro é o segundo romance de Laborinho Lúcio
“CONCERTO DE ANA MOURA” 28J UL | 22.00 | Complexo Desportivo de Lagos A fadista vai cantar temas como ‘Desfado’, ‘Dia de Folga’, ‘Cansaço’, ‘Tens os Olhos de Deus’ ou ‘Fado Loucura’
misturando-se com a dele. O espaço privilegiado da cidade é o bar de Marcel, com mesas reservadas e nomeadas com as alcunhas dos seus frequentadores: Poeta Póstumo, Tumor Anarquista, Professor, Chinesa… A par da história principal – o desenho central do painel –, podem ver-se outras personagens que seguram um fio que se desenvolve ao longo da narrativa: a busca por um Peugeot 404, com um urso de peluche no banco de trás, que parece um delírio de Norberto, inspirado num conto de Cortázar, mas que serve de pincelada final no último azulejo. A personagem de João Francisco é das mais emocionantes: professor de música forçado a reformar-se. A neta, que por ele nutre uma paixão enorme (podia dizer admiração, mas quero manter – como o autor o faz – alguma ambiguidade), afirma: «Ainda não percebeu? O meu avô não está doente. Ele apenas perdeu a sua identidade. E perdeu-a porque lha roubaram.
Porque lha roubaram na escola, porque lha roubaram em casa, porque lha roubaram na leitaria, onde quer que ele fosse. As personagens que passou a viver não são o resultado de qualquer perturbação mental. Apenas deixou de saber quem é, e a procura de si próprio dentro dos outros não é mais do que um grito de revolta contra aquilo que lhe fizeram» (p. 191). Todavia, apesar da tragicidade desta personagem, rodeiam-na o amor e a alegria. Quer quando vivia feliz com a mulher, quer quando, já viúvo e se procura encontrar, há um humor que o envolve. Queixa-se a velha empregada (p. 167): «Mas, agora, menina, então não é que muda de nome todos os dias? Manda-me chamar-lhe Fernando, e quando o chamo, diz-me que é Alberto. Trato-o por Alberto, e afinal é Ricardo. Foi isso que percebi. Mas devo ter percebido mal. Acho que é Bernardo e não Ricardo. E de cada vez que muda de nome, muda de feitio, muda de roupa, muda tudo. E eu não sei o que
Este livro tem várias referências literárias que conduzem o leitor pelos não-ditos que os nomes evocam. Como esta divisão entre cidade e montanha, uma montanha onde há um antigo sanatório, que nos faz lembrar A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Esta casa na montanha, gerida por uma viúva, a D. Leontina da Conceição, que, ao contrário do que seria de esperar, sentia-se com «a missão de converter os sãos à pureza dos loucos» (p. 188). É neste lugar que se vem a dar o desfecho, com um regresso a Paris que se liga ao 1.º azulejo do 1.º painel. Antes disso, no 12.º painel, intitulado «Não se morre para sempre», há uma fala do Sr. Martinho, muita curta, que me emocionou às lágrimas. É, talvez, o azulejo mais bonito, pleno de compreensão do mundo. Que um livro com muitas citações não pareça que é incompreensível. Nada disso: quem as reconhecer, sorrirá com satisfação, como acontece quando encontramos um amigo inesperadamente. Quem não reconhecer, apreciará igualmente a história, porque ela vive por si. Para quem tiver curiosidade para saber onde ler os textos citados no livro, tem nas páginas finais os textos consultados pelo autor, podendo fazer leituras complementares. Um livro muito bem escrito, com elegância e sem lugares-comuns, a que já apetece voltar. Termino com uma frase do avô João Francisco (na p.84) que «dizia sempre que a curiosidade, o conhecimento e a cultura são lugares de encontro, sítios bons para fazermos perguntas». Marquemos encontro em frente ao próximo painel.
“O MEU OLHAR” 14 JUL a 9 SET | Galeria Municipal João Bailote - Albufeira Exposição de pintura de Brian Mehl. O artista gosta de trabalhar em vários suportes e linguagens, não tem preferências de tema ou estilo
Última Quotidianos poéticos
Gabriela Rocha Martins
Pedro Jubilot
pedromalves2014@hotmail.com canalsonora.blogs.sapo.pt
Gabriela Rocha Martins, com formação na área de Direito e em Técnicas Documentais, nasceu em Faro e tem quatro livros editados. Foi fundadora e coordenadora do projecto literário, a nível nacional, “Bienais de Poesia de Silves” (de 2005 a 2015). Podemos lê-la em várias Antologias e Revistas, em Portugal e no estrangeiro. Participou em quatro projectos poéticos ibéricos e faz parte dos Poetas del Mundo. E no quotidiano poético…. “Ser poeta é…….” Não ,não sou .nem o princípio nem o fim .não estou nem no aqui ,nem no agora .estou e digo .falo .escrevo .brinco com as palavras e com os leitores com quem estabeleço jogos de fuga ou persuasão .como o faço ,diariamente ,comigo e com os outros .não gosto de compromissos .gosto do Ser-em como premissa de uma vagamunda da palavra .é com ela e só com elas que me assumo .liberta .tudo o mais é voragem , até porque o meu livro de horas há muito que se fechou Acerca de dias em que acontece poesia … um dia ,há muito tempo ,alguém me ofereceu uma caneta e mostrou as estrelas .de imediato ,teci pontos de confluência ,silêncios ,afugentei medos ,chorei de raiva ,misturei-lhes gargalhadas e um pouco de melancolia .comecei a ter ,por companheiros de jornada ,um Vergílio Ferreira ,um Alexandre O’Neil ,um Manuel Gusmão ,uma Margueritte Yourcenar ,uma Simone de Beauvoir ,um James Joyce ,um Jean Paul Sartre ,um Rimbaud ,um Jacques Derrida ,um Haruki Murakami ,uma Sylvia Plath ou uma Maria Gabriela Llansol ,entre muitos outros ,e ,no meu acordar devagar ,fui colhendo pétalas .hoje ,tenho-os no meu dia a dia .acordo e adormeço com eles ,roubo-lhes ( sem plágios ) as palavras e as ideias e vou construindo novos trilhos ,no-
fotos: d.r.
vas cadências ,outros escritos ,sem regras e sem normas .não tenho horas para escrever .nem dias .nem semanas .o Levante é o meu senhor .todavia ,tenho a Norma Linguística como ponto de partida e de chegada .diários O material e ao imaterial nos processos de escrita … sou ,por natureza e vocação ,uma amante do belo .o visual tem imensa importância no meu delírio escrevente .por isso ,não pontuo ,ou quando o faço ,por uma questão estética ,arrumo a vírgula e o ponto final à palavra que ,cúmplice ,se avizinha .não uso maiúsculas ,porque o computador é a minha tela e sou “uma senhora muito bem educada .não berro ,escrevo” ( exige-se uma gargalhada no fim desta frase ) .desconstruo e construo palavras ,naquele jogo que estabeleço com a Língua e o leitor .pergunto-vos? como se abraça? com os braços ,não? então o hífen ,também meu companheiro ,ajudar-me-á a juntar os braços ,afim de a-braçar ,porque o a-braçar traduz uma acção contínua .contrário ao hífen que junta ,o ponto final separa .se eu permitir ao leitor duas leituras ,porque ficar-me ,apenas ,numa? assim ,pego ,por exemplo ,no verbo referir e separando o prefixo re ,dou de bandeja ,a quem me lê ,a possibilidade de jogar com os verbos ferir e referir .e é este construir ,desconstruindo palavras que vou pintando na tela/ecrán do
Gabriela Rocha Martins tem quatro livros editados meu computador ,único meio de poetar .por fim posso ,eventualmente ,no meu correr pelo dia ,parar numa frase que alinhavo num qualquer papel .posso acordar ,a meio da noite ,com um poema rascunhado .tento passá-lo ,para uma folha .esqueço-o ,durante horas e dias ,nas algibeiras ,sobre as mesas ,secretárias ,ou bancos do carro .há uma notícia que me chama a atenção .um homem que morre gazeado .algures,uma mulher violada .na maré-baixa ,uma criança morta .um olhar perdido de um miúdo .homens
e mulheres que fogem de nenhures .então ,há um grito que me obriga a consciencializar o Outro .aquele Ser-em que ,colado à minha pele ,me acompanha .e ,um dia ,numa hora ,pego-lhes e ,perante a tela branca do computador ,pinto e trabalho as palavras ,com amor ,com raiva ,com desdém ,com mágoa ,nunca com indiferença .uma ,duas ,três ,as vezes que achar necessárias .demoro a escrever Como aconteceu o projecto do último livro…. “A crispação de um toque a-fora o Ser” não é ,senão ,a minha homenagem a alguém por quem tenho uma enorme admiração e cujos livros descansam ,numa pequena secretária ,ao lado do meu computador – Maria Gabriela Llansol .às vezes tenho necessidade de pegar num ,enquanto os outros repousam e me olham de esguelha .preciso dela ( como preciso duma Maria Teresa Horta , duma Sylvia Plath ou uma Nélida Piñon ) para ser Eu na escrita .mas a Maria Gabriela Llansol ,como eu ,não é uma mulher fácil .muito menos a sua escrita .quando ,há anos ,peguei no seu livro
“Lisboaleipzig I. O encontro inesperado do diverso” senti uma enorme resistência à leitura .não a percebia e a minha angústia em não entender alguém que admirava sem saber porquê ,levou-me a tentar lê-la ,mais e mais e ,a par da leitura ,a estudá-la .a procurar ,nos outros ,caso ,por exemplo ,de Carlos Santos ,de João Barrento e Maria Etelvina Santos – igualmente responsáveis pelo “Espaço Llansol” – de Eduardo Lourenço e ,sobretudo ,da Maria João Cantinho ,que me conduziram ,pelas imagem ,lugares e tempo do universo llansoliano .a partir de então ,Gabriela Llansol passou a ser minha convidada diária … e ,de quando em vez ,havia recados que me pousava no regaço ,que me sussurrava ,enquanto ,eu ,mui lentamente ,ia sentindo a necessidade de interiorizá-los .de assumi-los como meus .e ,daquela crispação primeira fruto de um toque ,adveio a admiração pelo/a-fora esse Ser em excelência ,de seu nome Maria Gabriela Llansol .assim nasceu o livro “da crispação do toque a-fora o Ser”( assim se justifica o título ) um poema escrito sobre a água * há dias em que durmo sobre uma enxerga como se um rol de andarilhos tivesse deixado num vão de escada os andrajos do vagamundo * os vizinhos do prédio onde Amadeus Mozart escreveu “Idomeneo” conhecem-me os passos o vestuário sujo as mãos cobertas por luvas esbulhadas * sirvo aos transeuntes um naco de pão onde o bolor se alapa para em troca receber uma nuvem carregada de chuva * não sei que mão devo estender ( porque ) reservo pendurado à esquerda um saco rasgado por onde o argaço escorre deixando para trás um oceano aberto à genialidade * levanto a gola do sobretudo onde se acolhem as pernas e visto-me de sombras para mergulhar faminta no repasto do chiste * a vida não é uma instalação de arte