Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o PÚBLICO
AGOSTO 2017 | n.º 106 6.573 EXEMPLARES
www.issuu.com/postaldoalgarve
Missão Cultura:
Entrevista:
Aurea apresenta novo álbum em Tavira
d.r.
Lagos na Rota da Escravatura
p. 5
p. 2
Letras e leituras:
d.r.
d.r.
‘Swing time’, Zadie Smith: ao ritmo de hoje p. 8 Espaço ALFA:
d.r.
d.r.
A Sociedade dos Sonhadores involuntários:
Fotografia: um olhar alterado?
a pena de José Eduardo Agualusa p. 7
Espaço ao Património: d.r.
A cozinha pré-histórica
p. 9
p. 11
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04.08.2017
Cultura.Sul
Editorial
Missão Cultura
Programação cultural em rede
Lagos na Rota da Escravatura d.r.
Direção Regional de Cultura do Algarve
Ricardo Claro
Editor ricardoc.postal@gmail.com
AGENDAR
Já muito se disse e escreveu e se continua a dizer e escrever sobre a necessidade de programação em rede. São muitos, os especialistas e outros, que têm ao longo dos anos analisado esta questão de forma mais ou menos profunda, mesmo aqui nestas páginas do Cultura.Sul - em particular no Espaço AGECAL, no âmbito da gestão cultural em rede -, e a conclusão aponta sempre e de forma invariável para bondade da opção pela actuação em rede. Numa altura em que estamos em plena época alta, a que se soma um ano eleitoral, a programação autárquica na área cultural, festiva e festivaleira, representa uma despesa - e/ou investimento - de muitos milhões de euros na região. São estes milhões, dinheiro do contribuinte porque o Estado e as autarquias não têm outro, que importa saber aproveitar de forma correcta e coerente, maximizando os ganhos e garantindo, concomitantemente, diversidade e qualidade. Muitos foram já os passos dados nas áreas da programação cultural para que a mesma se faça em rede no Algarve mas, na esmagadora maioria dos casos, são de expressão residual e largas vezes fruto de gestão incidental em conjunto, algo muito diverso da programação em rede formal. Repetem-se os formatos com maiores ou menores similitudes a cada esquina, inova-se pouco ou nada, repete-se a oferta e fazem-se iniciativas do mesmo cariz em simultâneo ou quase. Reina a política, sempre conveniente ao poder, dos pequenos quintais onde manda quem pode e não quem deve e, regra geral, perdemos com este estado de coisas todos nós.
Em 1443 ocorreu no Algarve um dos episódios mais marcantes da sua história: o desembarque e venda como escravos em Lagos do primeiro grande carregamento de cativos africanos trazidos para a Europa na Era Moderna. Desde esse momento, relatado pelo cronista Zurara na sua ‘Crónica da Guiné’, foi-se construindo todo um conjunto de factos e de lembranças, que fizeram de Lagos um lugar incontornável na rota da escravatura e do tráfico negreiro de um mundo progressivamente globalizado mas que se entranharam indelevelmente na memória local. Em 2008 ocorreu em Lagos uma das mais importantes descobertas arqueológicas deste século: uma enorme lixeira formada entre os séculos XV e XVII com os resíduos
O edifício do Mercado de Escravos em Lagos urbanos da cidade dos Descobrimentos mas na qual tinham sido depositados, ao longo de sucessivas gerações, os corpos de cativos trazidos da África subsaariana e que, ao falecerem, para ali eram arrojados como coisa inútil, sendo só ocasionalmente tratados como
seres humanos. Este registo constitui o mais antigo testemunho material de um lugar de enterramento de escravos africanos em solo europeu. Em torno desta descoberta e das memórias do tráfico negreiro, decidiu o Município de
Lagos constituir um dos núcleos do seu Museu Municipal Dr. José Formosinho, instalando-o no emblemático edifício conhecido como ‘Mercado de Escravos’ – na verdade, o edifício da antiga Vedoria, onde mais tarde funcionou a Alfândega – e dedicando-o inteiramen-
te às histórias e memórias de ‘Lagos na Rota da Escravatura’. A Direção Regional de Cultura do Algarve foi então convidada para, com os técnicos do Município e os profissionais contratados, elaborar o programa museológico e apoiar tecnicamente a construção desse novo equipamento, correspondendo assim à missão e atribuições legais desta Direção: dar apoio técnico aos museus da região, na sua maioria integrados na Rede de Museus do Algarve. Inaugurado há pouco mais de um ano, em junho de 2016, este novo equipamento foi recentemente distinguido pela APOM, Associação Portuguesa de Museologia, com duas menções honrosas, atribuídas pela inovadora ‘Aplicação de Gestão e Multimédia’ e pelo ‘Trabalho na Área da Museologia’. O reconhecimento pelos pares da excelência do trabalho realizado no Município de Lagos é, para nós, motivo de orgulho e satisfação que muito nos apraz registar.
Juventude, artes e ideias
ADAPO - Associação de Defesa dos Animais e Plantas de Olhão d.r.
Jady Batista Coordenadora Editorial do J
A ADAPO - Associação de Defesa dos Animais e Plantas de Olhão, fundada a 5 de maio de 2004, nasceu de um projeto antigo, dedicado à esterilização de gatos vadios, o objetivo era “controlar o número de animais errantes”. Possue apenas três voluntá-
rias a tempo inteiro e três famílias de acolhimento fixas. Conta ainda com o trabalho comunitário e alguns voluntários ocasionais. Atualmente não possui sede por falta de verba para aluguer de espaço, estando à procura de um local na freguesia de Olhão para que possa alargar os seus projetos, bem como, criar um horário de apoio e atendimento à população. Criada no âmbito da esterilização de animais errantes, sendo este o foco principal, a ADAPO alargou a abrangência do trabalho a desenvolver (devido ao crescente núme-
“AVENTURAS EM AL-´ULYÀ” Até 18 de NOV | Alcaidaria do Castelo de Loulé Exposição de banda desenhada, com argumento de João Miguel Lameiras e João Ramalho-Santos e ilustrações de André Caetano, conta a história de Loulé ‘aos quadradinhos’
ro de abandonos e casos de maus tratos) à recolha e tratamento de animais errantes, socorro de animais feridos e abandonados, promoção de adoção responsável, projetos educacionais, fornecimento de alimentação e ao apoio veterinário a algumas famílias carenciadas, com o objetivo de evitar o aumento da taxa de abandono. Todo este trabalho é desenvolvido dentro das possibilidades da associação. A ADAPO tem parcerias regulares com várias instituições do concelho, como a Câmara Municipal, Canil Municipal, Bombeiros Municipais e
Juntas de Freguesia. Também desenvolve trabalhos com as escolas, campos de férias, ATLs, infantários, etc., estando aberta a todas as entida-
des que procurem as atividades educativas da associação. Promove a Formação dos Bombeiros Municipais em Primeiros Socorros, captura e manuseamento de animais. Foi pioneira no Algarve na organização da I e II Formações de Primeiros Socorros para animais do Algarve. Já esterilizou mais de mil gatos de rua em campanhas de esterilização massivas conjuntas com a Câmara Municipal de Olhão e contando com o apoio das clínicas veterinárias da cidade. Para mais informações: geral.adapo@hotmail.com.
“SENHORA DEL MUNDO” 4 AGO | 17.00 | Ermida de Nossa Senhora de Guadalupe – Vila do Bispo Concerto conta com as interpretações de Joana Godinho, mezzo-soprano; Daniela Tomaz, flautas e adufe; e Eduardo Ramos, alaúde
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Filosofia dia-a-dia
Bica, Galão ou Café Filosófico? fotos: d.r.
Maria João Neves Ph.D Consultora Filosófica
Quem nunca ouviu falar das tertúlias realizadas em cafés? Famosos nos finais do sec. XIX e princípios do sec. XX os cafés e, no caso francês também os cabarés, reuniam os artistas e intelectuais da época. Se em Paris o Le Chat Noir congregava figuras como Debussy, Satie, Verlaine ou Strindberg; em Lisboa os cafés do Nicola à Brasileira acolheram personagens tão ilustres como Bocage, Alexandre Herculano, Almada Negreiros, Mário de Sá Carneiro e Fernando Pessoa. Normalmente, as tertúlias versavam sobre temas literários, artísticos ou políticos. Não acontece exactamente assim com o Café Filosófico. Embora o tópico sobre o qual decorre a sessão possa ser comum ao de alguma tertúlia, o Café Filosófico segue os passos de Sócrates. Este filósofo ateniense do sec. IV a.C nada escreveu. Passeava pelas ruas, pelos mercados e conversava com as pessoas. No decurso da conversa, o interlocutor, invariavelmente introduzia uma pseudo-compreensão, isto é, qualquer coisa que julgava saber mas que, quando tomada com mais atenção, exibia a ignorância até então camuflada. Santo Agostinho (354-430) nas Confissões dá-nos um bom exemplo disto: “O que é o tempo? Se ninguém mo perguntar eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.” De facto, todos lidamos com o conceito de tempo de forma despreocupada. Mas se quisermos definir com rigor o que é o tempo, entramos em dificuldades. Sócrates era um especialista em reconhecer a doxa; era um excelente pescador de pseudo-compreensões. Claro que isto não o tornou popular... Quando estamos convencidos de que sabemos, não é lá muito agradável que alguém nos venha mostrar que, afinal, não sabemos. Como diz o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (19081961): “Sempre culpado por excesso ou por defeito, sempre mais simples e menos su-
O primeiro Café Filosófico surgiu em França em 1992 no Café de Phares em Paris mário do que os outros, mais dócil e menos acomodatício, causa-lhes mal-estar infringe-lhes esta imperdoável ofensa de os fazer duvidar de si próprios.” (Elogio da Filosofia) De facto, Sócrates “moscardo”, alcunha que obteve graças à tamanha ferroada intelectual que era capaz de infringir no seu interlocutor, acabou condenado à morte. Será a filosofia uma actividade perigosa? O primeiro Café Filosófico surgiu em França em 1992 no Café de Phares em Paris, iniciativa do filósofo Marc Sautet (1947-1998), e continua activo nos dias de hoje. Pioneiro neste domínio da Prática Filosófica, Sautet escreveu o livro Um Café para Sócrates publicado
em 1995. A sua ideia espalhou-se rapidamente pelo mundo, o que ajudou a desmistificar a filosofia trazendo-a para fora dos muros da Academia, reconduzindo-a ao seu lugar de origem: a rua socrática. Uma rua onde se fala, onde a oralidade domina. E urgem espaços de palavra viva porque “a filosofia livresca deixou de interrogar os homens. O que nela há de insólito e de quase insuportável está escondido na vida decente dos grandes sistemas. (...) A vida e a morte de Sócrates são a história das difíceis relações que o filósofo que não é protegido pela imunidade literária, mantém com os deuses e a cidade, isto é, com os outro homens e com o absoluto imobilizado cuja imagem lhe apresenta.” (Ibid.) No mundo moderno a rua
está cheia de veículos motorizados, poluentes e barulhentos. A conversa mudou-se para o café. No entanto, esta não é uma simples “conversa de café” a bem do rigor, o Café Filosófico exige um moderador qualificado que seja, pelo menos, licenciado em filosofia. O moderador tenta que os participantes vão além doxa, o mero discurso opinativo ou das ideias mal alicerçadas, promovendo a gestação de um pensamento fundamentado, lúcido e responsável. Mesmo que para tal se requeira, de quando em vez, uma ferroada! Nas tintas para o bem-estar? A ferroada deixa-nos sem chão. E não conseguimos caminhar sem ele, por conseguinte, somos obrigados a
Participantes do Café Filosófico entregam-se de corpo e alma à procura da verdade
procurar. Este é o momento fulcral incontornável, a tensão intelectual está ao rubro e não se pode fazer outra coisa senão procurar, procurar, procurar! “Ora hoje, quase não se procura. ‘Regressa-se’, ‘defende-se’ uma ou outra tradição. O nosso pensamento é um pensamento aposentado ou enrugado. Todos expiam a sua juventude. Esta decadência está de acordo com o processo da nossa história. Passado um certo ponto de tensão, as ideias deixam de proliferar e de viver, caem no plano das justificações e dos pretextos, tornam-se relíquias, pontos de honra, e aquilo a que pomposamente chamamos o movimento das ideias reduz-se ao conjunto das nossas nostalgias, dos nossos rancores, dos nossos acanhamentos, das nossas fobias.” (Ibid.) Se se quiser realizar um esforço sincero sobre o que há a saber sobre o que quer que seja para depois tomar uma atitude, fica-se condenado à indecisão, à atrapalhação e, provavelmente, à imobilidade. Este constitui um exemplo de um dos modos de escondimento de que padece o humano: a impossibilidade de tomar em consideração todas as hipóteses alternativas, agravado pela circunstância de o ponto de vista não possuir com respeito a si próprio uma medida justa da sua incapacidade de as colocar, quer dizer, mesmo reconhecendo
que nos escapam algumas hipóteses a considerar, o volume das que se ocultam é, na realidade, muito superior ao que de princípio supomos. Posso reconhecer facilmente que a não admissão de todas as possibilidades alternativas a tomar em conta sobre um assunto determinado me induz, seguramente, em erro. No entanto, este procedimento que actua como um mecanismo de simplificação –de todas as possibilidades a considerar elegem-se intuitivamente algumas cuja possibilidade de apreciação se considera averiguável – parece estar estreitamente relacionado com a sobrevivência. Este fenómeno, quando tomamos verdadeiramente consciência dele, atira-nos para um estado de inquietude. Levado mais a sério pode mesmo provocar um perigoso esmagamento do ponto de vista. Que se saiba não existe ainda solução para este problema da sistemática elisão das possibilidades alternativas. É aqui que a Filosofia se distingue de outras matérias. A Filosofia não é “Coaching” nem “Auto-ajuda” nem “Programação Neurolinguística”, nem nenhuma outra técnica “New Age” que, em apenas meia-hora (bem paga decerto) promete resolver todos os problemas do indivíduo e deixá-lo com uma agradável sensação de bem-estar. A ambição da Filosofia não é fazer-nos sentir bem! O Filósofo ama a verdade. E se ao tentar alcançá-la ficar sem chão debaixo dos pés esse é um risco que está disposto a correr. A filosofia é para os audazes! Não é um sofá mental e emocional. É duro descobrir uma pergunta para a qual não se tem resposta e permanecer com ela; não desistir dela por mais que incomode. Os participantes do Café Filosófico entregam-se de corpo e alma à procura, mesmo que doa! São gente corajosa e resiliente cuja sede de saber se sobrepõe ao desejo de conforto. Será o caro leitor uma alma afim? É daqueles cuja inquietude assalta? Então venha daí... Tome um café connosco! Inscrições para o Café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com
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Cultura.Sul
Letras e leituras
A Casa das Tias: a estreia literária de Cristina Almeida Serôdio
Paulo Serra
Doutorado em Literatura na Universidfade do Algarve; Investigador do CLEPUL;
A Casa das Tias é o romance de estreia de Cristina Almeida Serôdio. A autora nasceu em 1958 no Porto e é mestre em Literatura Portuguesa Moderna pela Faculdade de Letras de Lisboa, onde foi professora convidada entre 1991 e 2006. Professora de Português e de Literatura Portuguesa no ensino secundário, investigadora do Centro de Estudos do Teatro, publicou trabalhos sobre literatura, teatro e sobre a educação literária dos jovens. É ainda co-autora do Programa de Literatura Portuguesa dos 10.º e 11.º anos. A Casa das Tias é uma promissora estreia literária, pela elegância e poesia da escrita em que a autora apresenta uma história de família de modo fragmentado e recortado, como um enigma ou um álbum de família composto por fotos em tons sépia, como na capa, ou mais geralmente em fotos de cores vivas que retratam o percurso das duas tias e dos irmãos, bem como dos que se sucederam na família: «A casa dali era a casa das tias, assim o dizíamos nós e a nossa mãe, no tempo em que o mundo parava nos eternos dias de Setembro da nossa infância feliz, cheia de mimos.» (p. 181). O livro é narrado numa sucessão de episódios, muitas vezes breves, constituindo capítulos curtos, intitulados de forma sugestiva e em jeito cúmplice com o leitor, como no primeiro capítulo: «Eram duas as tias». A herança A história começa naturalmente pelo fim, isto é, num tempo presente mais próximo ao leitor em que M., a herdeira, recebe a casa na aldeia em Constantim onde as tias Teresinha e Francisca sempre viveram: «Ficaram ali para sempre. Os irmãos saíram cedo de casa. Os mais velhos para trabalhar em Lisboa, os mais novos para estudar no liceu e
se formarem depois.» (p. 6). Apesar de as tias serem solteiras e sem filhos conseguem manter este legado da família que teria cabido a todos os irmãos por igual, e aos seus descendentes, se não fosse um estranho revés do destino: «A casa com cem anos que ficou para M. de modo inesperado era a casa das tias, a dos pais do seu avô materno, onde elas viveram a vida toda. Era a casa de um lavrador rico com nove filhos, melhor, oito, com a morte de uma menina muito nova que não conheceu, nem de fotografia.» (p. 5). Ao herdar a casa, M. herda ainda os sussurros da memória, os objectos perdidos, meio trastes, meio relíquias, e as fotografias, e, como se pode deduzir da passagem anterior, mesmo quando não há registo ou instantâneos que o comprovem, M. reúne ainda as histórias de família que foram passadas de boca em boca. Existem ainda agendas, cartas (pelo menos até à década de 50, até serem substituídas pelo telefone), cadernetas do liceu... Mas as histórias são muitas vezes apenas rumores e deduções e não encerram todo o passado ou toda a verdade: «Nunca se casaram. Talvez por não haver na aldeia noivos da mesma condição dos irmãos. Conta-se que a mais velha teria gostado de um rapaz dali, que a ela se chegara, mas tinha interrompido a voz do coração e feito com a irmã um acordo para a vida. Prometeram as duas ficar sós e amparadas uma à outra, a gastar os dias naquele lugar parado e seco, com pouco mundo para além da gestão do azeite e das uvas, dos bordados e das missas.» (p. 6). Desta passagem, destaque-se o advérbio Talvez ou a forma verbal Conta-se que são palavras recorrentes na narrativa e que ilustram como se tenta narrar uma história a partir de suposições e, ao jeito de qualquer narrativa que se preze, do divagar e do fazer de conta. Oscilamos entre o facto e o rumor, o imaginado e o vivido, o afirmativo e o negativo ou a certeza e a dúvida, mas no fim é como nos diz a voz narratorial: «De que mais precisa um escritor senão de assunto?» (p. 196). Recuperar o fio da história
fotos: d.r.
A Casa das Tias é o romance de estreia de Cristina Almeida Serôdio Em quase todos os capítulos, em jeito de conclusão, existe um depoimento de M. que nos é transcrito ou transmitido pela narradora – nem mesmo no fim saberemos se é de facto uma narradora, apesar de se referir que foram colegas do colégio, mas preferimos acreditar que sim... A narradora está sempre presente no livro, como uma cúmplice de M., e é a ela que cabe, mais do que ouvir e reunir os fragmentos das memórias da amiga, reinventar e reencaixar as peças de um passado fragmentado e incompleto: «Fala-me dos tios em pequenas histórias, algumas já conhecidas, porque as contava nos dias do colégio para nos entreter. São momentos de maledicência benigna, caricaturas de figuras da casa com qualquer coisa embaraçosa e ridícula, fixada por repetidos recontos.» (p. 196). Ainda que lhe tenha delegado expressamente essa tarefa de cronista, M. por vezes exaspera-se com a amiga e narradora e prefere rasurar as releituras que esta faz, não sabemos se num assomo de pudor da verdade ou de manter o bom nome da família: «M. não quer que continue, não percebe o interesse desta história, diz que é melhor ficar o que está como está.» (p. 75); «M. acha cruel o que escrevo. Que não devo escrever tudo o que conta.» (p. 30); «M. acha
que são de folhetim estes bocados, que me desvio da verdade, invento muito.» (p. 95). A narradora chega aliás mesmo a narrar em alguns momentos como episódio verídico aquilo que não passa de congeminações como no final declara. Incestos e convenções A Casa das Tias é também uma viagem através do século XX, a um tempo de convenções e etiqueta romântica, com pontuais referências históricas ou a figuras como a de Salazar, muito parecido com um dos irmãos. Contudo, é curiosamente o tempo presente que impera na narrativa, como se apesar do desalinho da casa que é preciso reorganizar, o passado fosse visto como um instantâneo fotográfico que se projecta como um filme na tela a decorrer aqui e agora: «Afonso é o mais bonito dos filhos rapazes, com grandes olhos cor de mel, expectantes. Tem um nariz forte, o cabelo liso e vigoroso, a boca larga desenhada no rosto claro.» (p. 32). Ainda que vivessem na aldeia a verdade é que nem por isso as vidas das tias eram completamente secas ou paradas, uma vez que iam por vezes passar longas temporadas a Lisboa, ficando hospedadas na casa do irmão Afonso que lhes dava todos os mimos que se podem prestar a uma
amada. Reina, novamente no campo da dúvida e da suposição, a ideia de que há algo de levemente incestuoso no sentimento das duas irmãs pelos seus manos solteiros que por vezes também vêm à aldeia «passar muitos dias, em busca de mimos.» (p. 125). As suas vidas não são aliás realmente vazias, como ficamos a saber por exemplo na passagem em que Teresinha terá salvo um rapaz do Outeiro de uma perna com gangrena, «livrando-o de uma amputação certa, já marcada.» (p. 126). Teresinha, porque reconhece que «terá chegado o momento em que as duas ficarão solteiras para sempre, declaradamente tias, espera que elas possam conquistar o direito aos diplomas de Professoras de Corte e de Contramestras de Costura, que lhes servirão, tanto de ornamento como de instrumento de trabalho, caso precisem.» (p. 127). Não sabe ela que os irmãos se conluiam entretanto para salvaguardar os seus direitos apesar de as irmãs serem membros marginais na família, na medida em que não darão frutos, em detrimento inclusive do irmão Afonso, que recebe um duro golpe capaz de dividir a família quando sabe da alteração ao testamento. O que é facto indiscutível é que a certa altura as tias passam por uma transformação quando se tor-
nam inegavelmente avarentas. Talvez por saberem que no seu mundo não há espaço a mulheres independentes, até porque estas estão aquém? «A crosta do pão recente estala-lhe nos dedos e nem fala, admirada com o que o irmão Afonso conta ao pai sobre as suas funções, a justiça, o país, o mundo vibrante que escuta, ávido, na telefonia e lê nos jornais. Os homens discutem as notícias, sabem o nome de países, capitais, tratados, e tudo parece natural e fluído como as conversas de todos os dias.» (p. 149). Apesar de apaixonada por Joaquim, Francisca recusa a possibilidade de um amor com um rapaz de aldeia, porque este poderia nunca estar à altura dos seus, da casa, de si... «De novo, no escuro, a dúvida antiga, corrosiva. E se quisesse dela só o que ela tinha, ou teria um dia? Se o desejo fosse só desejo de uma vida rica?» (p. 151). Respira-se no texto, pela densidade da memória circular ou fragmentada e nem sempre linear, pela respiração da casa como entidade viva, uma narrativa tecida com esmero com passagens belíssimas remanescente de feminismos, como quando se fala na toilette pensada e anotada como entrada de diário, na costura, no anseio por uns braços que nos cinjam na noite.
Cultura.Sul
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Panorâmica
Aurea quer todos a cantar em Tavira
É uma das vozes mais conhecidas da cena musical nacional e move com as suas interpretações uma verdadeira legião de fãs. Dez anos depois de ter lançado o álbum de estreia homónimo, a artista é uma constante no maistream da música portuguesa e um nome incontornável. Dona de um estilo
Cultura.Sul (CS) - Dez anos depois de deixar o percurso que prometia levá-la à carreira de actriz a música é uma aposta pessoal ganha? Aurea (A) - Sem dúvida. Não podia estar mais realizada. As melhores coisas na vida, por vezes acontecem quando não estamos à espera e sem aviso. Foi assim o meu percurso na música a partir do primeiro disco. Mas, em re-
lação à carreira de actriz, por vezes ainda penso nisso, nem que seja durante as filmagens dos vídeoclips... (Sorrisos) (CS) - Perdeu-se em definitivo uma actriz para os palcos portugueses? (A) - Não. Nunca se sabe que surpresas podem surgir. (CS) - Há um lado de performance cénica nos concertos, o palco é o seu espaço natural ou apenas um dever de promoção de uma cantora que se sente mais confortável em estúdio? (A) - O palco é cada vez mais o meu espaço de eleição! Definitivamente. Gosto muito das sessões de estúdio, gravações, ensaios, composição... Mas a interacção com o público, conseguir levar a minha música e mensagem ao Público, é o que dá grande parte do sentido de tudo isto! (CS) - Muitas das influências musicais que assume ter são vozes que estão entre o que de melhor a história da música produziu, como se gere uma herança de tal gabarito cantando num país sem grandes tradições nesses géneros musicais? (A) - Humm... Bem, até agora as coisas têm corrido bem! (Sorrisos) Provavelmente existe mais apetência para os géneros musicais que refere do que a ideia que aquilo que acreditamos! Além disso, provavelmente existe um reconhecimento natural do público pelo verdadeiro talento de vozes extraordinárias, independentemente do género musical. (CS) - Há temas que marcam a sua carreira de forma incontornável, como Busy (For me) ou Scratch My Back. Estas são escolhas pensadas
para singles de grande impacto junto do auditório, mas são também os seus temas preferidos? (A) - São temas que gosto, isso é incontornável, mas tenho outros temas que gosto ainda mais. O facto de serem singles e, supostamente mais apetecíveis para o público em geral, não os transforma em músicas menos pensadas ou mais fáceis, foram como cartões de visita para apresentação de dois álbum distintos. (CS) - Em Restart que descrição faz da sonoridade conseguida ao lado de músicos de renome mundial? (A) - Estou muito contente com a sonoridade obtida e creio que existe uma evolução notória em relação aos discos anteriores. Isso percebe-se logo na primeira audição. A produção é bem robusta e os músicos de excelência que trabalharam neste disco, contribuíram certamente para um som mais cheio e complexo. (CS) - Há no disco uma reinvenção da linha musical que a levou ao reconhecimento junto de milhares de ouvintes? (A) - É normal que existam sempre transformações de disco para disco. Foi o que aconteceu neste caso. (CS) - Como foi cantar lado-a-lado com Enoque o tema I Feel Love Inside? (A) - Foi um grande prazer, estou muito contente por o ter convidado para cantar comigo neste novo single. O Enoque é um jovem talento com um grande futuro à sua frente. (CS) - Em Tavira, a 8 de Agosto, o que pode o público esperar do concerto que decerto atrairá pessoas de todo o Algarve e de todo o país que estão na região por esta altura? (A) - Muita energia em palco, vários singles para cantarmos todos juntos e um espectáculo que eu e a banda estamos desejosos de realizar.
os: d.r .
Jornalista / Editor ricardoc.postal@gmail.com
charme e o timbre aveludado numa aliança perfeita talhada para a sedução. No próximo dia 8 de Agosto Aurea vai marcar presença em Tavira num concerto inserido no programa de animação da autarquia para a época estival ‘Verão em Tavira’. O Cultura.Sul tem convites duplos para oferecer num passatempo em que pode participar a partir de hoje (ver caixa abaixo).
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Ricardo Claro
pessoal e inconfundível que desde sempre se encontra marcado pelas heranças de influências onde pontuam o gospel, a soul, R&B e o jazz, há uma sonoridade única que a torna numa intérprete de raras qualidades. Num fulgurante percurso que soma apenas uma década, Aurea tornou-se numa Senhora da música portuguesa cantada em inglês e soma sucessos e prémios que mais não são que o produto de um trabalho aturado aliado a um dom precioso, o de uma voz inconfundível que alia o
Aurea ao vivo em Tavira GANHE CONVITES DUPLOS PARA O CONCERTO Saiba como ganhar entradas para o concerto em www.postal.pt
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Cultura.Sul
Artes visuais
Pode a arte emergir a partir do 'lixo'?
Saul Neves de Jesus
Professor catedrático da UAlg; Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora
Recentemente, realizou-se a 25ª edição do festival Super Bock Super Rock, no Parque das Nações, em Lisboa. Desta vez, foi convidado o artista Bordalo II para construir uma obra para o recinto, tendo criado uma guitarra de grandes dimensões, a “Guitrash”, feita com resíduos urbanos. O administrador de Marketing da Unicer justificou esta opção pela preocupação da marca com a reutilização do desperdício. Bordalo II (Artur Bordalo assina assim pois é neto do pintor Bordalo), é um dos principais nomes portugueses em arte urbana, utilizando “lixo” para contruir obras/instalações/composições de grande dimensão com uma consciência ambiental. Nascido em Lisboa, em 1987, frequentou o curso de pintura, que não terminou, na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. As suas obras pretendem chamar a atenção para as problemáticas do consumismo exagerado e dos desperdícios derivados do mesmo. São a tradução plástica da frase o lixo de um Homem é o tesouro de outro. Ou, conforme refere o próprio: “todo o lixo que eu utilizo é por causa do nosso dia a dia e da forma como nós não sabemos gerir os recursos, o próprio planeta, de forma sustentável (…) A ideia que eu tenho é de criar imagens das vítimas da poluição e da ação do homem exatamente com aquilo que os destrói, com aquilo que os mata. O mundo está a ser destruído e eu estou a criar imagens com aquilo que o destrói, com aquilo que destrói a natureza, que a vai degradando.” As obras que produz, criando imagens a partir do aproveitamento daquilo que os outros desperdiçam, são a prova que na arte, tal como na natureza, nada se perde, tudo se transforma, aproximando-se do princípio de Lavoiser. À distância vemos imagens, sobretudo de cenas urbanas
ou animais, mas aproximando-nos surgem torneiras, bocados de uma mangueira, um telemóvel, uma calculadora, pedaços de casacos peludos, pneus, plástico, entre outros elementos provenientes de fábricas abandonadas, peças em vários tipos de plástico e lixo electrónico. Todo o material que compõe as peças maiores é aparafusado ou soldado, e assenta num suporte, embora nas peças mais pequenas seja utilizada cola, numa técnica mista. Antes desta criação da “Guitrash”, Bordalo II já havia tido várias intervenções em arte urbana com aproveitamento de “lixo”, sendo a sua obra “Owl Eyes” (“Olhos de Mocho”), na Covilhã, destacada pela Street Art News na lista das 25 obras de arte urbana mais populares
fotos: d.r.
Imagens dos trabalhos 'Guitrash' e 'Owl Eyes', produzidos por Bordalo II do mundo, em 2014. Mas são muitos os artistas que, na atualidade, utilizam
Imagens de trabalhos produzidos por Erika Simmons
“lixo” na produção das suas obras. Os artistas conseguem dar valor aos materiais descartáveis, utilizando desde os objetos mais simples até às esculturas mais incríveis. Por exemplo, Erika Iris Simmons reaproveita as fitas de antigas cassetes para criar quadros de ícones da música, como John Lennon e Marilyn Monroe. Além de aproveitar o material, a ideia da norte-americana é utilizá-las como símbolo do obsoleto para construir a metáfora de como as fitas ajudaram a imortalizar o espírito dos cantores retratados. Por seu turno, Jaime Prades é um artista brasileiro que encontra nas ruas uma de suas matérias-primas: a madeira. Ele recolhe os restos de madeira, que podem ser de móveis velhos, para construir novas peças, em particular árvores. Isso gera o ciclo da árvore que se transforma em objeto de mobiliário, sendo posteriormente descartado no lixo, mas podendo ser depois reaproveitado na forma de árvore. Prades intitula este
Vista da exposição 'Ordem e Progresso', de Vik Muniz, no MAAT (2017)
trabalho como “Natureza Humana”, ilustrando o poder da intervenção do homem sobre a natureza, sendo importante que essa intervenção seja no sentido construtivo. Numa outra abordagem das questões ambientais, da destruição e do lixo na arte, recentemente foi realizada uma exposição na Sala Oval do MAAT (Museu Arte Arquitetura Tecnologia), em Lisboa, intitulada “Ordem e Progresso”, da autoria do artista mexicano Héctor Zamora. Colocou nesta sala sete embarcações que haviam sido dadas para abate em portos portugueses e contratou trinta trabalhadores temporários para as destruírem com marretas, martelos e pés de cabra na inauguração, marcada para as 18 horas do dia 22 de março deste ano, tendo podido o público assistir a esta performance-instalação. Esta exposição retoma as duas anteriores realizadas em 2012, no Paseo de los Héroes Navales, em Lima, Peru, e, em 2016 no Palais de Tokyo, em Paris. Na versão apresentada em Portugal, destroços de barcos de pesca tradicionais portugueses, de diferentes regiões costeiras, ocupam temporariamente a Galeria Oval do MAAT, pretendendo evocar a tradição marítima profundamente enraizada na identidade portuguesa, mas também a dimensão sociopolítica do problema do abate dos barcos, dadas as restrições para a pesca artesanal impostas pela União Europeia. O problema das perigosas travessias no Mediterrâneo, com a morte de milhares de refugiados, é outra questão sociopolítica
que esta exposição procura abordar. Descobrir o belo onde a maioria só vê lixo e, melhor, transformar esses desperdiçios em arte, foi o que esteve na origem do documentário “Lixo Extraordinário”, que mostra um projeto do artista plástico brasileiro Vik Muniz, indicado para o Oscar de Melhor Documentário, em 2011. Assim, a utilização do “lixo” é cada vez maior na produção de obras em artes visuais. No entanto, desde o início do século XX que a produção de obras em colagem ou técnica mista faz uso de objetos do quotidiano. Veja-se, por exemplo, a obra “Natureza Morta com Cadeira de Palhinha”, de Picasso, em 1912. Em todo o caso, sendo a produção artística expressão da época em que ocorre, é na atualidade que o “lixo” é cada vez mais utilizado, numa perspetiva de chamar a atenção para as questões ambientais. Esperemos que a arte possa ajudar a que as pessoas tomem consciência da importância do seu comportamento para a preservação do ambiente, em particular para a necessidade de não desperdiçarmos e para a separação do lixo, permitindo a reciclagem e a reutilização dos materiais. A utilização do lixo nas artes visuais está muito ligada à arte urbana. De uma forma geral, esta forma de arte nasceu de uma atitude de transgressão e ilegalidade, sendo os primeiros grafites e instalações feitos clandestinamente. No entanto, esta expressão artística tem suscitado o interesse de entidades públicas e privadas, sendo atualmente a maioria das obras realizadas por convite, nomeadamente por parte de câmaras municipais ou associações culturais, no sentido dos artistas poderem intervir em espaços públicos e em prédios devolutos, dando-lhes uma nova imagem, tornando aquilo que era quase “lixo” em obras artísticas de grande dimensão e, do ponto de vista urbanístico e turístico, tornar aquilo que eram zonas feias das cidades a evitar visitar, em zonas procuradas como pontos de referência dos roteiros turísticos das cidades. No próximo número iremos dedicar-nos a abordar aspetos ligados à durabilidade e ao impacto social da arte urbana.
Cultura.Sul
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Espaço ALFA
O olhar fotográfico é um olhar alterado
Dário Agostinho
agostinho.dario@gmail.com
O olhar fotográfico é um olhar alterado. A visão humana não vê da mesma forma como o que nos é mostrado numa fotografia. Nem com plena nitidez em todo o plano, nem com nítido desfoque do que antecede e está atrás do que foca. Talvez seja este o motivo elementar pelo qual tanto nos maravilha e fascina a imagem fotográfica. Através da câmara a humanidade criou
um olhar diferente e que transcende o seu próprio. Não obstante esta compreensão ter surgido relativamente cedo na história do meio, durante muito tempo as particularidades desse olhar foram encaradas como limitações ou mesmo como deficiências da fotografia. O modelo pictórico era o arquétipo dos arquétipos e tudo se fez para o reproduzir e inclusive superar. Não é que daqui tenha resultado mal algum para a fotografia. O determinismo cultural é inevitável e há sempre um caminho a percorrer. Com efeito, muito de belo e relevante nos chegou desses tempos - veja-se por exemplo os magníficos trabalhos publicados por Stie-
glitz entre 1903 e 1917 na brilhante Camera Work. No entanto, o meio apenas se libertou e ganhou o devido estatuto (quase digo respeito) para si próprio enquanto expressão artística, quando se afastou do modelo pictórico. Até aí, refém da arte tradicional, não se havia conseguido impor como arte. A fotografia, apesar de a par de outras artes se manifestar visualmente, possui uma linguagem própria. E é dentro desta linguagem que existem as grandes fotografias, grosso modo, as que recordamos. O olhar alterado é afinal um olhar humano que a câmara fotográfica amplifica em absoluto. Não existem limites para o que pode criar.
Espaço AGECAL
Origem, evolução e desenvolvimento da gestão cultural em Espanha (1ª parte)
Rafael Morales Astola Doutor em Filologia Hispânica, gestor cultural, cofundador e ex-Presidente da GECA.
Gestão cultural profissional e democrática: origem Ainda que estudos como o de Xan Bouzada rastreiem projectos e programas da II República para situar as origens das políticas culturais em Espanha tal como hoje as conhecemos (39-55), existe um grande consenso em explicar as ditas origens na reinstalação dos municípios democráticos em 1979. A administração local prestou-se a intervir na acção cultural no que hoje poderíamos denominar por paradigmas clássicos: democratização da cultura (acesso da cidadania às artes) e democracia cultural (participação da cidadania na criatividade artística). Ambos os paradigmas, inspirados no artigo 27
d.r.
da Declaração Universal dos Direitos Humanos, sustentaram as políticas culturais prosseguidas depois da Segunda Guerra Mundial, especialmente em França e Inglaterra, países que, juntamente com Alemanha, frequentemente nos serviram de modelo para a transição democrática dos anos setenta e princípios dos oitenta até aos nossos dias. Evolução da gestão cultural a partir dos anos 80 do século XX Em resultado do artigo 44 da Constituição Espanhola e de outros artigos dos Estatutos de Autonomia, sucessivos Ministérios de Cultura, Consejerías de Cultura e Áreas Provinciais e Locais de Cultura, aprovaram orçamentos para implementar serviços descentralizados de difusão, fomento, ajuda, investigação e formação, organizando por rubrica oficinas de dinamização sociocultural, casas de cultura, bibliotecas, museus, auditórios, teatros, espaços polivalentes, galerias, programações de artes cénicas e música, exposições de artes plásticas e
Imagem da sede do Ministério da Edfucação, Cultura e Desporto espanhol em Madrid
visuais, ciclos de cinema, encontros literários, festivais, circuitos, contratação de agentes culturais para dirigir as Áreas de Cultura, avisos de abertura de ajudas a associações culturais e ao sector profissional e empresarial da cultura, planos estratégicos, cursos específicos para criadores e técnicos, mestrados generalistas e específicos, conselhos sectoriais, etc. Nas últimas décadas as instituições culturais e o sector da cultura em geral foram incorporando o que poderíamos designar – de acordo com a filosofia do limite de Eugénio Trias – paradigmas fronteiriços de duplo potencial, para: em primeiro lugar, promover modelos híbridos no entrecruzamento de origens e finalidades; segundo, gerir dissensões sem que isso suponha dissolução das mesmas, mas sobretudo a sua activação e valorização. Estes paradigmas fronteiriços são, primeiramente, a diversidade e os direitos culturais - excelentemente desenvolvidos na Mondiacult 82 - em seguida, as indústrias culturais e criativas, isto é, um determinado perfil de sector privado, ainda que provindo do
contexto neoliberal hegemónico, removeu positivamente os cimentos da gestão cultural no que se refere às suas práticas (mais inovadoras na hora de comunicar e organizar mediante novas tecnologias e artes emergentes) e a sua conceptualização (diversidade cultural graças, entre outras coisas, à infrequente tendência da deslocalização por parte das grandes empresas culturais); por último, a cultura 2.0, pela qual o território, não está submetido às limitações espácio-temporais, da qual resulta uma espécie de transterritorialidade (entre territórios físicos e virtuais e entre territórios virtuais) nas vinte e quatro horas diárias e sem barreira alguma de distancia geográfica. A globalização dos meios de comunicação agregou todos estes paradigmas - clássicos e fronteiriços – que estão em interacção quotidianamente; contudo, a elaboração das políticas culturais públicas seguem adormecidas pela falta de participação dos agentes implicados. Na próxima edição: Actualidade da gestão cultural em Espanha
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Cultura.Sul
Letras e leituras
Swing time, Zadie Smith: ao ritmo de hoje fotos: d.r.
Paulo Serra
Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL;
Zadie Smith nasceu na zona noroeste (NW, como no título do seu anterior romance) de Londres em 1975. Estudou Literatura Inglesa na Universidade de Cambridge, é membro da Royal Society of Literature e foi eleita duas vezes pela revista Granta como um dos melhores vinte romancistas britânicos com menos de 40 anos. Dentes Brancos (2000) foi o seu primeiro romance e marcou uma estrondosa estreia na ficção, premiado com o Guardian First Book Award, o Whitbread First Novel Award, e foi finalista do Booker Prize. Todos os seus romances encontram-se, aliás, distinguidos com os mais diversos prémios. Ao romance O Homem dos Autógrafos (2002) seguiu-se Uma Questão de Beleza (2005), considerado um dos dez melhores romances do ano, finalista do Man Booker Prize e premiado com o Orange Prize for Fiction 2006. Em 2012 publicou NW, finalista do National Book Critics Circle Award 2012, e considerado pelo New York Times e pelo Washington Post como um dos livros de destaque desse ano. Swing time é o seu quinto romance, traduzido por Francisco Agarez e publicado pela Dom Quixote em Junho (que tem publicada toda a sua obra). Além do burburinho que se tem criado desde a sua publicação lá fora, saiu há dias a notícia de que é um dos romances nomeados para o Man Booker Prize 2017 (à semelhança do mais recente romance de Arundhati Roy, também apresentado aqui no mês passado). No «Prólogo», lemos como a protagonista passou por uma humilhação que a deixa suspensa num interregno, período esse que traz provavelmente a longa reflexão e busca pessoal em que se torna este romance. Corre o ano de 2008 e a personagem passou «tanto tempo fora de Inglaterra que agora havia muitas expressões britânicas coloquiais e simples que me soavam exóticas, quase absurdas.» (p. 12). O eu como espelho O livro divide-se em sete partes, sendo a primeira parte, justamente intitulada «Primeiros Tempos», correspondente à infância da protagonista, quando ela tem uns nove anos, para a partir da segunda parte a narrativa passar a alternar entre a infância e a idade adulta, quando a protagonista
a inspiração por si bebida em livros dúbios de auto-ajuda: «Os governos são inúteis, não se pode confiar neles, explicou-me Aimee, e as organizações humanitárias têm agendas próprias, as igrejas preocupam-se mais com as almas do que com os corpos. E, portanto, se quisermos que este mundo mude realmente (...) teremos de ser nós a fazê-la, sim, teremos de ser nós a mudança que queremos ver acontecer.» (p. 131). Tempo, som, ritmo
Swing time é o quinto romance de Zadie Smith tem quase trinta anos, trabalha com Aimee há sete e deixou de falar com Tracey por volta dos vinte e dois anos. «Se é possível pensar em todos os sábados de 1982 como um só dia, conheci Tracey às dez da manhã desse sábado, quando atravessávamos o areão de um adro de igreja, cada qual pela mão da sua mãe. Estavam presentes muitas outras raparigas, mas por razões óbvias reparámos uma na outra, nas semelhanças e nas diferenças, como fazem as raparigas. O nosso tom de castanho era exatamente o mesmo – como se tivessem cortado da mesma peça de tecido cor de canela para nos fazerem a ambas – e as nossas sardas concentravam-se nos mesmos sítios, éramos da mesma altura.» (p. 19). Se, por um lado, a protagonista do livro não tem nome, por outro, é difícil não sentir nesta torrente feita na primeira pessoa uma confissão em jeito autobiográfico, até porque esta jovem é, como a autora, mestiça, e oriunda da mesma cidade e zona (novamente o Noroeste de Londres). É sempre a partir da outra que ocorre a escrita do “eu”, ou seja, a voz da protagonista e os moldes da sua identidade definem-se sempre a partir, primeiro, da sua relação com a mãe, depois com a amiga Tracey, mais tarde com a chefe Aimee... «Estava a ter a revelação de uma verdade: que sempre me havia ligado à luz de outras pessoas, que nunca tivera luz própria. Sentia-me uma espécie de sombra.» (p. 14). Esse contraste é particularmente
notório na amizade da protagonista com Tracey, pois apesar das semelhanças, as simetrias (Tracey é filha de mãe branca e pai negro) e os contrastes são mais fortes, nomeadamente pela atitude destemida e irreverente de Tracey, que será também das duas aquela que evidencia desde logo ter verdadeiro talento na dança, pois é em aulas de dança que ambas as amigas se irão conhecer. Note-se como a jovem protagonista evidencia ter uma boa voz mas procura sempre nunca cantar demasiado alto. Identidade mista Na visão do mundo que aqui se vai construindo está bem marcada a classe social de estrato económico baixo, apesar de a mãe sempre se ter orgulhado de não recorrer a subsídios, mas mais importante é a identidade mista da jovem sem nome: «Mas isso não a confundirá no seu crescimento?», «Como é que ela escolherá entre as vossas culturas?» (p. 162). Há um fino humor, nomeadamente na forma como se descreve a relação entre a protagonista e a mãe: «Laços amarelos de cetim eram um fenómeno que a minha mãe desconhecia. Apanhava-me a grande gaforina atrás numa única nuvem, presa por um elástico preto. A minha mãe era feminista. Usava o cabelo num corte afro de meia polegada.» (p. 19). A mãe é também a personagem que revela um percurso mais interessante e surpreendente, de dona de casa que
expulsa o marido e a filha para poder estar tranquilamente em casa aos sábados a assistir à sua tele-escola para mais tarde se tornar uma deputada com uma relação lésbica assumida: «Estava eufórica, a poucos dias de se tornar Membro do Parlamento pelo círculo de Brent West, e (...) senti, como de costume, a minha pequenez em comparação com ela, com o nível que havia atingido, a trivialidade daquilo que fazia em comparação com o que ela fazia, apesar de todas as suas tentativas de me orientar para outro caminho.» (p. 155). A dada altura, a mãe acusa mesmo a filha de se ter anulado de tal forma no seu trabalho com Aimee, uma estrela pop que se reinventa continuamente e que aposta no trabalho humanitário como boa publicidade, que esqueceu mesmo as suas raízes: «As pessoas vêm de algures, têm raízes – tu permitiste que esta mulher arrancasse as tuas. Não vives em sítio nenhum, não tens nada teu, passas o tempo num avião.» (p. 160). A globalização como tema identitário é também premente, como aparece personificada em Aimee: «Reparei que já não tinha sotaque australiano, mas também não era bem americano nem bem britânico, era global: era Nova Iorque e Paris e Moscovo e LA e Londres, tudo junto.» (p. 101). Curiosamente, é graças a Aimee que de alguma forma a sua assistente pessoal acaba por partir para uma experiência decisiva em África. Porque este é também um romance de poder, como se pode ler nesta tiragem do discurso de Aimee, pese embora
Regressando ainda ao «Prólogo», ficamos a saber que o título do livro se deve ao fascínio pelo filme homónimo com Fred Astaire: «Entretanto o realizador falou de uma teoria que tinha sobre o «cinema puro», que começou por definir como a «interação entre a luz e a escuridão, expressa como uma espécie de ritmo, ao longo do tempo», mas eu achei o raciocínio enfadonho e difícil de acompanhar.» (p. 13). As referências ao cinema, aos musicais e à música são diversas, numa era em que o digital vai matando as estrelas do vídeo e os VHS que se rebobinavam constantemente até gastar a fita à espera de rever a cena tão desejada se tornam obsoletos. Mas é fora do digital e do que é passível de ser partilhado mundialmente, num mundo dito primitivo, que a jovem descobre um dançarino que suplanta Fred Astaire: «O maior dançarino que vi na minha vida foi o kankurang. Mas na altura não sabia quem era, ou o quê: uma forma alaranjada que se agitava freneticamente, da altura de um homem, mas sem cara de homem, coberta com muitas folhas sobrepostas, sibilantes.» (p. 167). Note-se ainda que é quando canta que a nossa heroína parece capaz de sentir as suas raízes e sentir não só que o seu eu se expande, como estar em comunhão com os demais e sentir a pertença a uma comunidade: «Cheguei a ter uma visão sentimental de mim como elemento de uma longa linhagem de extrovertidos irmãos e irmãs, compositores, cantores, músicos, dançarinos, pois não tinha eu também o dom tantas vezes atribuído ao meu povo? Sabia transformar tempo em frases musicais, em ritmos e notas, atrasando-o e acelerando-o, gerindo o tempo da minha vida, por fim, até que enfim, aqui, em cima de um palco, ainda que só aqui.» (p. 143). A linguagem é coloquial, rápida, em frases que se distendem, onde não faltam repetições como que a marcar o ritmo. E é no sentir a música, em vez de a pensar (como quem mergulha na torrente desta narrativa), que se parece resolver e responder aos dilemas que pareciam irresolúveis.
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Espaço ao Património Ficha técnica: Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Ricardo Claro
A cozinha pré-histórica como um exemplo de experimentação didática fotos: prehistoricskills
Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus • Da minha biblioteca: Adriana Nogueira • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Espaço ao Património: Isabel Soares • Filosofia dia-a-dia: Maria João Neves • Juventude, artes e ideias: Jady Batista • Letras e literatura: Paulo Serra • Missão Cultura: Direcção Regional de Cultura do Algarve • Panorâmica: Ricardo Claro • Quotidianos poéticos Pedro Jubilot Colaboradores desta edição: Dário Agostinho, Pedro Cura, Rafael Morales Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com on-line em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve
facebook: Cultura.Sul Tiragem: 6.573 exemplares
Pedro Cura
Investigador em Experimentação Arqueológica
Como todos sabemos a arqueologia é uma disciplina que lida com o passado de uma forma muito particular, procurando entender o comportamento humano através dos vestígios materiais que chegaram até aos dias de hoje. Quando nos referimos à Pré-História este processo de entendimento torna-se ainda mais complicado, devido à sua natureza extremamente fragmentada. A experimentação arqueológica, em especial na Pré-História, surge como uma ferramenta para a compreensão desse passado fragmentado, tendo sempre como principal objectivo tentar entender os gestos, as técnicas e a funcionalidade dos objectos e estruturas identificados nos sítios arqueológicos. Apesar dos resultados provenientes desta atividade de pesquisa não poderem ser vistos como respostas taxativas às questões levantadas pelos arqueólogos, o cruzamento destes (resultados), com outros métodos e técnicas de análise, utilizados na pesquisa arqueológica, permitem levantar novas hipóteses sobre o comportamento do homem pré-histórico e as
Cozinha pré-histórica no monumento de Alcalar Portimão suas adaptações culturais e tecnológicas. Por outro lado, este método de abordagem à realidade arqueológica surge num conjunto de vários resultados que podem ser convertidos em materiais e atividades didáticas. Da experimentação retiramos métodos e técnicas de reconstruir diversos objectos, habitats e modos de vida, que podem ser apresentados ao grande público de uma forma lúdica e interactiva, tornando este período mais perceptível aos olhos de todos. Neste sentido, o Museu de
Portimão tem desenvolvido um trabalho bastante importante junto da comunidade, mostrando todos os anos em “Um dia na Pré-História”, como viviam os habitantes de Alcalar há cinco mil anos atrás. Tem sido também no âmbito deste projecto que desde 2014 temos apresentado, a todos os que visitam este monumento, no dia do Património a atividade de cozinha pré-histórica. Esta atividade surgiu precisamente a partir da arqueologia experimental. No início tinha-se como objectivo ana-
lisar e observar os resultados da utilização de estruturas de combustão (lareiras) encontradas nos sítios arqueológicos, e dos restos faunísticos que poderiam ter sido cozinhados e consumidos. A partir destes trabalhos organizou-se uma atividade onde são demonstradas várias técnicas de cozinhar os alimentos, explicando os processos e enquadrando cronologicamente cada tipo de confecção. Em Alcalar todos os anos propomos aos visitantes assistir ao esquartejamento de um animal, utilizando materiais
pré-históricos, à confeção deste e outros alimentos sobre fogo direto, em estruturas de covete, com seixos aquecidos, ou em réplicas de recipientes cerâmicos. Os materiais e os alimentos utilizados no decorrer da atividade são sempre, tanto quanto possível, semelhantes aos que eram utilizados pelas comunidades pré-históricas, que habitaram aquele espaço desde há cinco mil anos, tornando a experiência mais realista. O objetivo é envolver públicos de todas as idades, sem treino específico em arqueologia e através da experimentação didáctica, nos problemas da investigação científica para criar uma ligação de reciprocidade. Esta é a razão principal pela qual não são só mostrados os resultados finais, mas antes as questões e métodos à nossa disposição para procurar respostas (e questões), assumindo que em Pré-História, tal como em qualquer outra disciplina, a comunicação com o público em geral é inseparável da promoção de um espírito crítico e interrogação reflexiva. Sem dúvida alguma a Experimentação Didáctica tem inquestionáveis vantagens como meio interativo entre os monitores e o público em geral. Um reviver do passado de uma forma realista pode ser atingido por uma fusão natural entre os monitores e o público.
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Cultura.Sul
Marca d'água
Uma nova cultura da água e da vida: uma experiência fluviofeliz fotos: ivone palma
/ d.r.
fotos: d.r.
Maria Luísa Francisco Investigadora na área da Sociologia
luisa.algarve@gmail.com
A crónica de Agosto pretende fazer jus ao nome desta rubrica: “Marca d’água”. Iniciada em Junho, a convite do Jornal Postal do Algarve, teve como escolha esta designação pelo facto das questões ligadas à água me interessarem particularmente, e porque se cruzam com as minhas áreas académicas: sociologia da cultura e das religiões, sociologia rural e urbana. Sucintamente pode dizer-se que água está sempre presente ao longo da história da humanidade. Os rios eram como deuses na antiguidade clássica e considerados sagrados como ainda acontece com o rio Ganges, na Índia. De uma forma muito simples: dos quatro elementos da natureza - água, terra, fogo e ar - a água é dos elementos que mais “mexe” com a vida, com o sentir, com a emoção… A água como fonte de vida está referida em todos os compêndios e livros sagrados. Por exemplo, na Bíblia aparecem mais de trezentas referências à água, e com forte simbolismo, como se pode ler no Evangelho de S. João: “Do seio daquele que acredite em Mim, fluirão rios de água viva, como diz a Escritura” (Jo 7, 38) Uma Nova Cultura da Água
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Em 2011 participei no Congresso Ibérico da Água, em Talavera de la Reina (Toledo), no âmbito da investigação sociológica sobre os estrangeiros que vivem em barcos no Rio Guadiana. No Congresso conheci o Professor Francisco Javier Martínez Gil. Catedrático de Hidrogeologia na Universidade de Salamanca e na Universidade de Zaragoça. Doutorado em Hidrologia pela Sorbone e em Geologia pela Universidade de Barcelona, ou seja, um homem de ciência, que dedicou grande parte da sua vida ao estudo dos rios nos seus aspectos técnico-científicos. No final da sua carreira académica centrou-se num outro olhar sobre os rios e aí está
Fluviofelicidade: um novo conceito aplicado à investigação sociológica de Maria Luísa Francisco a grande surpresa que tive durante este Congresso em Espanha. Ao ouvir a expressão “Uma Nova Cultura da Água” percebi que uma outra dimensão, diferente da que estava a ouvir nas várias comunicações, seria apresentada. E assim foi, o Professor Francisco Javier Martínez Gil defende que Uma Nova Cultura da Água passa por uma profunda alteração de valores, inspirando-se na ética ecológica e na cultura da sustentabilidade. Refere ainda que “para se conseguir uma implicação real e positiva dos actores sociais na promoção de um uso sustentável da água e conservação dos ecossistemas fluviais, não são suficientes iniciativas legais e técnicas, mas é essencial contar com ferramentas efectivas de carácter social como a educação ambiental, a comunicação e a participação, enquanto estratégias que ajudem a promover a extensão social da Nova Cultura da Água”. E entra naquilo a que chama uma hidrologia “holística” ao dizer que se trata de uma cultura que é uma fonte de luz para o conhecimento humano, na qual os rios são um meio onde experimentar um novo sentido de progresso e de bem-estar. Refere ainda que “a ciência sem coração corre o risco de acabar numa ‘sem-razão’ (…) ou num simples entretenimento pessoal”. Acrescenta que “a gestão da água exige uma visão humanística com abordagens que possam ir para além de uma visão mesquinha do desenvolvimento económico, cego pelo produtivismo”. E remata com esta frase: “Falta-nos mais
cultura e sensibilidade do que água!”. Fiquei a conhecer a Fundação Nova Cultura da Água que defende um novo olhar sobre a água, em especial, sobre os rios e que tem a “missão de transmitir conhecimento e valores humanos para promover a adopção de Uma Nova Cultura da Água, entendida como uma mudança de paradigma para a sustentabilidade ambiental, económica, social e cultural”. Fluviofelicidade e poesia Foi o Professor Francisco Javier Martínez Gil que criou o conceito de fluviofelicidade referindo que este está ligado a uma sensação de bem-estar a partir do contacto com os rios e que estes devem ser vistos a partir do mundo dos sentimentos. Sempre com a consciência de que a água é o líquido mais precioso e que mais condiciona o nosso futuro. Vê os rios como “uma força de bem-estar integral e uma força positiva que humaniza a existência e gera harmonia levando-nos a reconciliar connosco próprios e com os outros”. Gostei imenso do que aprendi neste Congresso e fui estudando, vivendo a temática da fluviofelicidade e fazendo uma ligação com o mundo poético. Acredito que a água e os rios em particular sempre inspiraram os poetas. Estar perto de um rio não nos pode deixar indiferentes, e quando nos deixamos levar por essa corrente, que é a poesia, abrem-se caminhos inesperados… A água desperta emoções e viver junto de um rio é ter um manancial aos
“VIAGEM INTERIOR”
As escolhidas, Até 29 AGO série | IPDJ de e CCDR 12, 1994. Algarve Sépia s/ papel. Col. Centro de Arte Telma Veríssimo apresenta umContemporânea documentário fo-Graça Morais tográfico sobre desertificação e despovoamento no Algarve
nossos pés... que nos envolve até à cabeça... passando pelo coração… por isso “a poesia diz sempre mais do que diz”, porque ela é uma experiência única de encontro de quem escreve consigo mesmo e pode ser tão fluída e profunda como um rio. Esta vivência poética levou-me a apresentar uma comunicação intitulada Fluviofelicidade e a influência dos rios na poesia dos poetas algarvios, na Biblioteca Municipal de Tavira no âmbito do Encontro ARMA PALAVRA / Palavra Ibérica que decorreu em Abril de 2011. Não irei reproduzir o que disse nessa data, mas destaquei poetas que têm referências concretas aos rios, tais como Casimiro de Brito, Teresa Rita Lopes, Carlos Brito, Fernando Cabrita, entre outros. Sinto sempre que um rio é um mistério, tem rios dentro de si. Ligado a cada rio há um mundo de emoções, um património de memória, de cultura e identidade e é isso que a hidrologia científica ignora. Para sentir os rios é preciso abeirar-se deles, vê-los por fora, senti-los por dentro e essa é uma experiência fluviofeliz! Ao observar os modos de vida dos estrangeiros que vivem em barcos e conversar com eles, percebi que vivem uma certa fluviofelicidade e enquadrei este conceito no estudo.
intitulado Una Nueva Cultura del Agua y de la Vida: la experiencia fluviofeliz, da autoria de Francisco Javier Martínez Gil e editado pela Fundacão Nova Cultura da Água. Fala dos rios a partir do mundo das emoções. É um pequeno livro, repleto de enormes abraços. Tem algumas páginas dedicadas ao fluvioabraço, em que é referida “a vivência metafísica do rio” e a filosofia de afecto num vínculo emocional do ser humano com a água. Refere Francisco Javier Martínez Gil que não há nenhum outro componente na natureza com que o ser humano tenha uma ligação emocional tão forte, tanto no plano cultural, simbólico, sensual ou lúdico. “A experiência fluvial no clima humano da fluviofelicidade facilita a aprendizagem do fluvioabraço; desbloqueia o nosso mundo dos afectos.” E porque a poesia é como um rio que nos corre nas veias… partilhando o fluído das suas palavras… deixemos que neste Verão, a morfologia cristalina da água e a gramática profunda dos rios nos levem por outras navegações… ao encontro da poesia que há em nós…
Fluvioabraço
Esta crónica foi escrita com base nos apontamentos que tirei durante o Congresso de 2011 e com base no livro editado em 2010 pela Fundação Nova Cultura da Água, acima mencionado.
Não poderei deixar de referir mais uma surpresa do Congresso que foi a oferta aos participantes, de um livro
Um abraço fluviofeliz!
“LAGOS ANTIGA” Até 31 AGO | Fototeca Municipal de Lagos Exposição fotográfica formada por uma selecção de postais antigos, ampliados, que mostram a cidade de Lagos e as suas gentes nas primeiras décadas do séc. XX
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Cultura.Sul
Da minha biblioteca
A Sociedade dos Sonhadores Involuntários, de José Eduardo Agualusa fotos: d.r.
Adriana Nogueira
Classicista; Professora da Univ. do Algarve
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José Eduardo Agualusa é um autor sobejamente conhecido nos países de língua portuguesa e não só. Está traduzido em mais de 30 línguas, recebeu vários prémios internacionais, sendo o mais recente o International Dublin Literary Award, pelo romance Teoria Geral do Esquecimento (A General Theory of Oblivion), de 2012 (escrevi sobre ele na edição de 6 de julho daquele ano). O anúncio foi feito a 21 de junho, pouco mais de uma semana antes da ida do autor, no passado 4 de julho, à Feira do Livro de Olhão – FLO 2017, para apresentar o seu novo trabalho: A Sociedade dos Sonhadores Involuntários. Quem teve o gosto de o ouvir, ficou a saber que sonha, frequentemente, os livros que escreve. E é o sonho que serve como pano de fundo de tudo o que acontece na narrativa, na qual somos guiados por Daniel Benchimol, a personagem que une todas as outras. Curiosamente, liga-nos também ao outro livro aqui referido, pois já aparecia na Teoria Geral do Esquecimento, onde era chamado de «colecionador de desaparecimentos». Uma das histórias deste A Sociedade dos Sonhadores Involuntários resolve o enigma de um avião, um Boeing 727, propriedade da American Airlines, desaparecido em 2003 do aeroporto de Luanda, depois de 14 meses parado, e já mencionado naquele outro livro: «Daniel Benchimol coleciona histórias de desaparecimentos em Angola. Todo o tipo de desaparecimentos, embora prefira os aéreos. (…) O jornalista classifica os desaparecimentos recorrendo
a uma escala de zero a dez. Os cinco aviões desaparecidos nos céus de Angola, por exemplo, foram classificados por Benchimol como desaparecimentos de grau oito. O Boeing 727, como desaparecimento de grau nove» (p. 103 – Teoria Geral do Esquecimento). Uma personagem que passa de um livro para outro não é de espantar, quando vamos ver personagens que entram e comunicam nos sonhos de todas as pessoas, ou quando os sonhos vão poder ser fotografados e filmados. Título Gosto do desafio que os títulos nos propõem, mas muitos autores queixam-se de que, aí, são muitas vezes condicionados por editores. Mas não parece ter sido o caso deste A Sociedade dos Sonhadores Involuntários, cujo nome nos abre as cortinas, como num teatro, para uma série de histórias que acontecem dentro de uma história maior: histórias de sonhadores involuntários e voluntários. O sonhador mais presente é Hossi Apolónio Kaley, proprietário de um hotel onde se
da não-violência. A acusação feita aos 17 jovens nomeados na dedicatória, porém, foi a de estarem a preparar um atentado ao presidente. Também no livro há jovens presos com esta mesma acusação, mas em vez de um rapaz protagonizar essa luta coletiva (na nossa comunicação social de quem mais ouvimos falar foi de Luaty Beirão), José Eduardo Agualusa escolhe uma rapariga, Karinguiri, a própria filha de Daniel Benchimol, que aparece como uma Antígona, essa jovem da tragédia grega de Sófocles, que faz frente ao regime. Karinguiri inspira os outros à resistência, incluindo o próprio pai, de início renitente. Os sonhadores voluntários criam novos sonhadores («Dão-me coragem – como quem oferece o coração», p.241). Epígrafes
Agualusa, traduzido em mais de 30 línguas, já recebeu vários prémios internacionais passa uma parte da ação. Hossi tem um diário, através do qual vamos conhecendo esta personagem que, sem o querer, entra no sonho dos outros. É um sonhador involuntário, com quem desconhecidos se lembram de ter sonhado, e que por isso passa por tentativas de manipulação desse poder. Até que um dia se torna um sonhador voluntário. Sonhadores voluntários são também aqueles jovens que lutam por um mundo melhor, mas essa pista é-nos passada pela terceira dedicatória. Dedicatórias Para além dos títulos, sempre me despertaram curiosidade as dedicatórias que os autores fazem nos seus livros. Dependendo da criatividade e originalidade que lhes queiram imprimir, as dedicatórias podem ser um desvendar de uma intimidade que nos é permitido apenas adivinhar num nome e nalgumas poucas pa-
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lavras, normalmente isoladas numa página. As três dedicatórias deste livro descortinam um pouco o enredo: depreende-se que a primeira será à mulher amada, pois é quem amamos (e nos ama) que nos acompanha na realização (ou, em alguns casos, é a própria realização) dos nossos sonhos. Haverá na história uma mulher amada com quem se partilham sonhos? Sim. Literalmente. Porque, aqui, os sonhos chegam a ter uma concretização na matéria, nomeadamente em filme. E chegamos à segunda dedicatória, que será aos amigos, onde nos aparece o nome de Sidarta Ribeiro, um neurocientista, diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Percebemos que esta dedicatória é um indício de como virá a ser criada a personagem Hélio de Castro, também ele brasileiro e neurocientista, que trabalha sobre sonhos (p.119), investigando a
possibilidade de se «produzir filmes curtos a partir da atividade cerebral de um sujeito sonhando» (p.176). Também é desta personagem a teoria que explica os sonhos premonitórios: «O tempo é uma dimensão como o comprimento, a largura ou a altura. Assim, não faz qualquer sentido dizer que o tempo passa. Não passa. Está. (…) talvez seja possível que nos recordemos de eventos futuros, muito importantes ou muito traumáticos. Pode ser que nos ocorram, por vezes, rápidas memórias de pessoas que ainda não conhecemos, mas que irão marcar profundamente a nossa vida» (p.183). E a terceira dedicatória, aos «jovens sonhadores angolanos», muitos dos quais foram detidos, em 2015, por estarem a ler o livro Ferramentas para destruir o ditador e evitar nova ditadura — Filosofia política da libertação para Angola, de Domingos Cruz, uma obra que promove a resistência através
As epígrafes são também pistas de leitura, são um primeiro olhar cúmplice que o autor troca com o leitor. A primeira, de Cioran, «O real dá-me asma» remete para o não-real, para o que de onírico este livro tem. Sempre os sonhos: os que se perseguem, os que se alcançam, os que nos confundem e nos deixam sem saber em que dimensão estamos. A segunda epígrafe, de Bernardo Soares/ Fernando Pessoa, é mais explícita: «Recordemo-nos sempre de que sonhar é procurarmo-nos». Um livro de busca de concretização de sonhos, que podem estar bem perto de nós. Como Karinguiri diz ao pai, depois de Daniel a informar que vai ao Brasil «em busca de sonhos e de sonhadores» (p.161).: «Não precisas de ir tão longe, papá. Eu tenho tantos sonhos. As outras presas, as mulheres-polícias. Todas nós sonhamos muito. Nem imaginas os sonhos que cabem dentro desta prisão». Talvez dentro de todo o tipo de prisões.
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Última Quotidianos poéticos
Vítor Gil Cardeira foto:d.r.
Pedro Jubilot
pedromalves2014@hotmail.com canalsonora.blogs.sapo.pt
Natural de Conceição de Tavira, Algarve, antropólogo e professor (agricultor de vez em quando e exorcista de palavras inúteis). Um homem como outro qualquer com tendências para o silêncio e para a misantropia. Leitor compulsivo, tem com lema de vida -«nunca incomodar». Já disseram que é um autor conotado com a corrente literária barroco-surrealista. Editou: - Transeuntes (contos); Partículas (poesia); passagem através do fogo ( estórias do quotidiano); A Leste de Tavira (monografia etno-histórica); Uma mulher Disponível (conto); Exilados (conto); Espuma Evanescente (antologia breve); Poema Falido (folha volante); Cicatrices (contos e alegorias); Escaras (poesia); Danças(?) (poesia). Como é o quotidiano do teu poeta…. Sou um observador de tudo o que mexe e do que está parado. Posso ficar longos tempos num café, na praia, a uma janela, a ver a fauna que passa. E isso, de vez em quando, dá-me bons motivos para escrever: um cão que passou com o dono, um tipo alto com chapéu estranho, uma mulher da Serra que transporta um cesto, uma mota barulhenta, enfim, coisas sem aparente interesse que despoletam em mim qualquer química que me leva à escrita. Como se vê, não tenho quotidiano de poeta. Consegues nomear um livro e um poema de tua autoria que possa ter sido mais relevante por qualquer razão…. ‘Transeuntes’, o meu primeiro livro. Nunca mais escreverei como naquele livro. E depois… bem, depois, são textos da juventude… Não sou um poeta, no sentido clássico: escrevo poesia por oportunidade, facilidade instrumental e por questões de tempo -, é complicado escolher. São tão diversos e abordando tantas temáticas que se torna impossível escolher um por preferência. Mas, referiria o poema “Poema Falido”, aliás publicado a solo na editora Canal So-
Escritor está conotado com a corrente literária barroco-surrealista nora, num formato de folha volante, ou, completamente diferente, o poema “Esta é a tua nova casa”, na antologia “12 Poetas A Sul Do Século XXI”. Autores que gostas ou que possas dizer que te inspiram a escrever? Não posso estabelecer uma relação direta entre autores de quem eu gosto e a forma como escrevo, mas alguma coisa devem influenciar. Eu sou um leitor compulsivo desde miúdo, quando esperava ansiosamente pela visita à minha aldeia da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian, e levava o máximo de livros que eram permitidos levar de cada vez. Mas sempre leitor de prosa. De romances e histórias de aventuras. E continuo assim: pouco leio poesia. Embora goste muito de Pessoa, de Rimbaud, Al Berto, Baudelaire, Herberto, ou, os nossos Ramos Rosa e Aleixo, continuo a ter como grandes referências romancistas ou contistas, nomes como Edgar Allan Poe, Boris Vian, Jonh Steinbeck, Albert Camus, Nuno Bragança, José Saramago, António Lobo Antunes, Jonathan Franzen, Jorge Amado, Gabriel García Márquez, Haruki Murakami, esquecendo-me, certamente, de outros que me marcaram e marcam ainda. Posso ainda dizer, aqui que ninguém nos…lê, que sou um doido pelo Nietzsche. Leio tudo o que o homem escreveu. Às vezes não percebo muito. Mas o que é que
isso interessa? Como passa a tua poesia para a escrita? Porque não tenho muito tempo para escrever, ainda escrevo muito no papel. Em folhas soltas, guardanapos e toalhas de papel de cafés e restaurantes, e em pequenos blocos de apontamentos. Como dizia anteriormente, a ocasião faz o… escritor. Depois, na passagem para o digital, faço a revisão dos textos. No entanto, já consigo escrever diretamente no computador quando tenho tempo para me abalançar em longos textos. O word é parecidíssimo com a máquina de escrever: Suporte branco à frente e teclado. Até já chego a escrever no telemóvel… Quando mais escreves? Infelizmente, quase só escrevo no Inverno. Preciso de chuva, frio, de dias sombrios e, mesmo, de tempestade para escrever. O que é uma pena: já escrevo pouco e, ainda por cima, só numa época do ano. Ando a ver se me aventuro nos dias mais claros, mas a coisa não tem sido fácil. Talvez por isso a minha escrita seja tão agreste, rude, triste e sombria. Vícios, manias e outros segredos relacionados com a tua escrita … Andar sempre com um bloco de apontamentos para tirar notas. Meter “buchas” no texto já preexisten-
te: escrevo, escrevo, escrevo e, depois de uma narrativa já estruturada e consistente, vou introduzindo pequenas frases nesse texto como que a dar-lhe espaço, textura, respiração. Às vezes mudando mesmo o sentido do texto original. Uma espécie de enxertia no tronco genético. Já a poda, o deitar fora e cortar, me custa muito. Tudo aquilo que está no papel, afinal, faz Um poema…. Nunca fomos a Veneza Estamos sempre a mudar como as serpentes. Não iremos percorrer as margens lamacentas Do rio Mekong onde o sangue coagula nas lamas Envenenadas. Tenho medo de viajar de avião E tu cansas-te quando a casa se afasta de nós. Iremos a Cádis: ver o pôr-do-sol e comer salmorejo Numa rua estreita atrás da catedral. Beber tinto de verano E cañas com algas do golfo magrebino. Para o ano iremos a Veneza. É um sonho antigo que a vida tem atirado para o futuro. Atravessaremos Espanha, França e Itália de automóvel E chegaremos à cidade dos canais no Verão. Seremos turistas Como milhões, mas seremos nós a construir o nosso roteiro. Dormiremos onde calhar e comeremos o que nos apetecer. Seremos só nós e não conheceremos ninguém. Nas viagens Só se conhecem cromos e palermices exóticas. As pessoas Normais detestam estranhos e repelem-nos como bactérias E vírus que atacam um corpo. Transportamos a nossa condição De doentes de amor sem que os outros nos perturbem com Mesinhas salvíficas: a doença faz parte de nós Como caminhantes duma estrada sem fim. Estamos sempre a mudar como serpentes. Nunca iremos a Matchu Pitchu. A montanha é abrupta e o mar imenso. Sonharemos nas praias do mediterrâneo próximo onde As autovias nos tragam depressa a casa. Para comer iogurtes Que fazes na bimby, dormir no nosso colchão de aloé vera como se não houvesse mais nenhum dia. Abrir a janela pela manhã e deixar entrar a buganvília roxa e a pimenteira bastarda. Ouvir o rumorejar do Levante na costa. Nas ruas desertas conheceremos o que os outros nunca viram. Subiremos as ruas para a Alhambra e beberemos A água da fonte das laranjeiras da mesquita de Córdoba e voltaremos Na urgência dos corpos que se cruzam nas noites Ardentes do Verão. Viajaremos para lá dos séculos, Das linhas que os roteiros turísticos nos traçam nas mentes burguesas. Um dia iremos a Veneza. Hoje, beberemos uma imperial preta no REF enquanto Tavira Se liberta dos pesadelos de Agosto. Cativa, 28 de agosto de 2016