Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o PÚBLICO
SETEMBRO 2017 | n.º 107 6.209 EXEMPLARES
www.issuu.com/postaldoalgarve
Letras e leituras:
As potencialidades do património no meio rural
d.r.
d.r.
p. 6
A estrada subterrânea
p. 3
Artes visuais:
d.r.
A arte urbana tem uma duração limitada?
p. 4
Espaço AGECAL:
d.r.
d.r.
Italo Calvino:
Se numa noite de inverno um viajante
Gestão cultural em Espanha
p. 5
Quotidianos poéticos: d.r.
Miguel Godinho
p. 8
p. 7
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Cultura.Sul
Editorial
Missão Cultura
Joaquim Guerreiro: um adeus antes de tempo
A Feira da Dieta Mediterrânica na sua vertente pedagógica d.r.
Direção Regional de Cultura do Algarve
Ricardo Claro
Editor ricardoc.postal@gmail.com
AGENDAR
Não raras vezes, para infelicidade de todos nós, tenho utilizado este editorial para 'dizer' um último adeus a pessoas cujo relevo na área da cultura é incontornável e que nos deixam, nesta terra de passagem breve, sempre cedo de mais. Desta feita, é de Joaquim Guerreiro que nos despedimos em nome da cultura do Algarve e do país. Ficámos todos mais pobres e a cultura, enquanto actividade, particularmente desfalcada no Algarve com a partida de um reconhecido programador cultural da região. Para Joaquim Guerreiro pensar a cultura, programá-la para usufruto de todos nós era mais do que uma mera actividade quotidiana ligada ao trabalho. Algumas das ideias que gerou e fez realidade no Algarve, em particular em Loulé e Faro, são alguns dos melhores momentos culturais da agenda regional anual. Indissociável, do Festival MED, da Noite Branca, da renovada programação do Teatro das Figuras, ou do Festival F, Joaquim Guerreiro deixa em termos culturais obra feita e mais do que isso uma marca na forma como se deve programar cultura. Espaço para todos era o que a mestria do programador criava, espaço para todas as artes e para todos os públicos, num percurso que trouxe às artes novos e mais alargados espectros de público. Importa o qu fez, mas importa mais o que dele herdámos todos e que permanecerá, assim se espera, por muito tempo. Falo dos festivais e dos espectáculos, falo da cultura como a pensava, mas falo acima de tudo da qualidade com que os fazia.
A “Dieta Mediterrânica” Património Cultural Imaterial (PCI) da Humanidade tem Tavira como comunidade representativa de Portugal desde 4 de Dezembro de 2013. No mês em que decorreu, nesta cidade, a 5ª edição da Feira da Dieta Mediterrânica e assumindo Portugal, ao longo deste ano, a presidência da coordenação deste património, reforçamos a importância deste tema. A Direção Regional de Cultura do Algarve (DRCAlg) apresentou-se nesta Feira com dois projetos culturais relacionados com o PCI da região algarvia. Direcionada para crianças, a partir dos cinco anos, e suas famílias, a “Oficina dos Alimentos Incríveis! - Arte, criatividade e gastronomia” é um projeto educativo concebido e orientado por Marina Palácio (Teatro Experimental de Lagos) que se realizou no "Largo do Brincar", no sábado, das 10.30 às 12.30 horas. Uma oficina de nutrição criativa, poéti-
Dieta Mediterrânica reúne à mesa pessoas que partilham uma herança cultural ca e sensorial sobre alimentos mediterrânicos, temperada com música aromática, escrita criativa e tipografia caligráfica, que tem como objetivo explorar os alimentos em toda a sua forma, desde a degustação alimentar, musical até à literária, a partir de livros. Já no Palácio da Galeria pôde assistir-se aos documentários “Algarve em Festa”, em língua portuguesa mas legendados em inglês, que deram a conhecer três festividades da região - a Festa das Tochas Flo-
ridas (São Brás de Alportel), a Festa da Pinha (Estoi), a Festa das Chouriças (Querença) - e a Confeção da Doçaria Tradicional Algarvia, que, tal como a Dieta Mediterrânica, são parte do PCI da região. Pensar a Dieta Mediterrânica na Cultura do Algarve Mais do que um regime alimentar, a Dieta Mediterrânica é uma forma de estar que reúne à volta da mesa pessoas que partilham uma herança
cultural, o que envolve o respeito pelas crenças de cada comunidade, a manutenção das suas tradições e a valorização da sua identidade. Pelo que é importante pensar a Dieta Mediterrânica nas suas várias dimensões, que incluem: - contextos domésticos - ambiente, produção e consumo; - contextos comunitários - celebrações e festividades; - contextos regionais - contrastes e complementaridades - do
familiar ao tradicional - da casa ao restaurante. Numa região habitualmente referida pelos turistas que atrai, é relevante pensar na proteção e salvaguarda; tradição e inovação; autenticidade; deslocalização e outras problemáticas (auto-representação, identidade, performance, mercantilização, estilos de vida e mudança social). A participação nesta Feira é um dos meios que a DRCAlg utiliza para dar a conhecer o PCI da região. Para além desta participação, é membro de diversos grupos regionais e nacionais no âmbito da salvaguarda da Dieta Mediterrânica e desenvolve a vertente da edição e apoio à publicação de obras que, entre outros temas, versam sobre Lendas, Provérbios e estudos sobre a alimentação no Algarve. Outro dos propósitos da DRCAlg, no sentido de salvaguardar o PCI da região, tem sido o apoio às comunidades que pretendem registar e salvaguardar a sua herança cultural através do registo e inventariação, para que as gerações vindouras se sintam parte integrante de uma comunidade com passado, presente e futuro. •
Juventude, artes e ideias
AID - Associação Igualmente Diferentes
Jady Batista Coordenadora Editorial do J
A Associação Igualmente Diferentes – AID é uma associação RENAJ, fundada a 28
de dezembro de 2016, com “o intuito de responder às necessidades específicas da população com deficiência, que o tecido institucional do Algarve não (ou nem sempre) consegue corresponder”. Com atuação em diversas áreas, como Reabilitação/Habilitação, Desporto, Cultura, Lazer e Formação, a AID é composta por “uma equipa jovem, de profissionais
de diversas áreas (Educação Social, Desporto, Psicologia, Fisioterapia, Terapia da Fala, Terapia Ocupacional, Farmácia,…) e, na sua grande maioria, com experiência efetiva na área da deficiência. Neste momento desenvolvem trabalho no âmbito do Programa Geração Z e do Plano Nacional de Desporto para Todos, em resultado de duas candidaturas do IPDJ e na área
“ELOS” Até 30 de SET | Biblioteca Municipal de Olhão Rebeca Porto Martins apresenta um conjunto de 35 fotografias que tirou em vários países entre 2009 e 2015, com registos de gente, espaços, ambientes e locais visitados
da formação, “onde a parceria com a empresa MDC – Formação & Psicologia, se tem revelado importantíssima”. A AID esteve presente na festa de encerramento dos VII Jogos de Quelfes, no Festival do Marisco de Olhão e na Fatacil (Lagoa). Para o próximo ano civil, os objetivos “já serão mais ambiciosos, perspetivando-se uma intervenção mais concertada e regular, de modo a conseguir
apresentar com segurança e mais frequência à comunidade local e regional, desenvolver novos projetos e atividades, submeter mais candidaturas, angariar financiamento e assim crescer, com vista àquele que é, em última instância, o objetivo maior: o desenvolvimento e a criação de respostas sociais concretas, em estruturas físicas adequadas, para a população com deficiência!”. •
“CONCERTO POR CAPICUA” 16 SET | 21.30 | Cine-Teatro Louletano Rapper regressa a Loulé para apresentar o seu novo espectáculo, em absoluta estreia algarvia, com uma nova banda completa, novos arranjos e um novo conceito de concerto
Cultura.Sul
Ficha Técnica: Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Ricardo Claro Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve
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Letras e leituras
A estrada subterrânea, Colson Whitehead: a emancipação de um destino fotos: d.r.
Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus • Da minha biblioteca: Adriana Nogueira • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Espaço ao Património: Isabel Soares • Filosofia dia-a-dia: Maria João Neves • Juventude, artes e ideias: Jady Batista • Letras e literatura: Paulo Serra • Missão Cultura: Direcção Regional de Cultura do Algarve • Panorâmica: Ricardo Claro • Quotidianos poéticos Pedro Jubilot Colaboradores desta edição: Rafael Morales Astola Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com on-line em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve
facebook: Cultura.Sul Tiragem: 6.209 exemplares
Paulo Serra
Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL
Cora é uma jovem escrava que nasceu numa plantação de algodão e apesar de nunca o ter ponderado é confrontada com a possibilidade de escolha quando Caesar lhe propõe fugir. Cora diz que não à primeira, sendo essa recusa automática a voz da avó dela, Ajarry, a falar em si. Lemos depois como Ajarry viu o mar pela primeira vez, quando é levada para as masmorras onde mulheres e crianças raptadas nas aldeias de África esperavam pelos barcos que as levariam para as Américas. Durante o seu percurso Ajarry será vendida por várias vezes, passando de uns negreiros para outros; tenta matar-se por duas vezes, na travessia do Atlântico; é marcada por várias vezes, como uma peça de gado; e o seu preço vai flutuando ao sabor do mercado, até porque há excesso de raparigas na altura, até ser vendida por duzentos e noventa e dois dólares. Três semanas mais tarde, quando Caesar lhe volta a falar num caminho de fuga Cora acaba por dizer que sim, e dessa vez sente que é a voz da mãe, Mabel, a falar por ela, a única escrava que terá conseguido fugir da plantação. Cora é uma personagem intrigante. Se ao início julgamos que é louca, como os restantes escravos a consideram, assistimos depois a um crescendo da personagem. Cora, aliás, percebe claramente a verdadeira razão por trás do convite de Caesar para o acompanhar na sua fuga: «- Achas que sou uma sortuda encantadora porque a Mabel fugiu. Mas não sou. Já me viste. Já viste aquilo que nos acontece quando temos ideias na cabeça.» (p. 64). Cora guarda rancor à mãe que para poder fugir a terá abandonado aos dez ou onze anos (pois todos sabem que os pretos não faziam anos, simplesmente escolhiam um dia
Romance de Colson Whitehead venceu o Prémio Pulitzer e o National Book Award para celebrar o seu aniversário) e procura agarrar-se à única coisa que tem: um pedaço de terra de três metros quadrados onde a avó cultivava nabos e inhames. Fuga a um destino imposto Mas as ideias são perigosas e infiltram-se, levando Cora a querer conhecer o mundo para lá da plantação. Essas ideias remetem
para um idealismo rebelde que a leva a impôr-se contra as injustiças e a crueldade da escravatura, enquanto os restantes escravos sabem que é inútil. Em dois momentos, ainda na plantação, Cora tem gestos de uma bravura desmesurada, aparentemente inexplicáveis, quando reivindica à machadada o seu terreno e quando defende uma criança com o próprio corpo.
Obra reconstrói um retrato da América no séc. XIX
A estrada subterrânea está dividida em doze partes, intituladas com nomes de personagens e de estados, numa alternância entre partes muito breves, de um só capítulo, onde o leitor toma contacto com personagens secundárias do romance que mais tocam a vida de Cora, e partes mais extensas, de vários capítulos, que narram a fuga de Cora ao longo de vários estados: Geórgia, Carolina do Sul, Carolina do Norte, Tennessee, Indiana e o Norte... Cora revelar-se-á uma mulher de força e de sentido prático, tanto que quando lê para ocupar os interregnos da sua fuga prefere os Almanaques aos romances. Contudo, não será por acaso que, além da Bíblia, um dos romances encontrados por Cora é As Viagens de Gulliver, como uma alusão à história mítica de um périplo arriscado por territórios desconhecidos, à semelhança desta jovem que vai fugindo do Sul para o Norte da América por um caminho de fuga que aqui se transfigura numa linha férrea subterrânea. São também, apesar de tudo, as histórias e fantasias que impelem Cora, numa viagem mais movida pela sobrevivência (e apesar do remorso, enquanto deixa atrás de si um rasto de sangue e morte) do que por um horizonte de esperança, apesar de achar improvável que exista um local onde os escravos pos-
sam ser verdadeiramente livres (o final em aberto é emblemático). Mesmo que enquanto isso o povo americano comece a recear as consequências da escravatura: «A América importara e criara tantos africanos que, em muitos estados, estes já eram mais numerosos do que os brancos.» (p. 153). Talvez por isso num estado onde até os escravos fugitivos pensam ter encontrado um porto seguro se começa a aventar a hipótese de esterilizar as mulheres. Colson Whitehead, nascido em 1969 em Nova Iorque, reconstrói através de uma escrita enganosamente simples um retrato da América no séc. XIX em que a história individual de Cora (onde confluem ainda as dos índios e emigrantes irlandeses) representa a condição do escravo e da sua luta pela liberdade e uma vida digna. Vencedor do Pulitzer e do National Book Award, este romance impossível de pousar surge como resposta necessária aos tempos incertos que se vivem na América e no mundo, onde o racismo ainda impera e os emigrantes são olhados com rancor: «E foi esta mistura enorme que veio para a América nos porões dos navios negreiros. (...) Os filhos e filhas deles apanharam tabaco, cultivaram algodão, trabalharam em propriedades gigantescas e em pequenas quintas. Somos artífices, parteiras, pregadores e vendedores ambulantes. Foram mãos negras que construíram a Casa Branca, a sede do Governo da nação. A palavra nós. Nós não somos um povo, mas muitos povos diferentes.» (p. 346). •
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Cultura.Sul
Artes visuais
A arte urbana tem uma duração limitada? fotos: d.r.
Saul Neves de Jesus
Professor catedrático da UAlg; Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora
A arte acompanha o desenvolvimento da sociedade, sendo uma expressão desta, tanto que se considera que as obras artísticas devem procurar ser compreendidas no contexto histórico-social em que são produzidas. Numa época em que predomina uma atitude consumista e imediatista, em que quase tudo parece ser feito para consumir e descartar, surgem também formas de arte visual que se enquadram neste paradigma. Numa perspetiva de democratização da cultura, de permitir o acesso de todos às manifestações culturais, a arte tem “saído” dos museus e galerias, vindo para a rua, para junto das pessoas. A arte urbana ou “street art” traduz esta aproximação da arte às pessoas. Esta forma de expressão diz respeito a manifestações artísticas realizadas no espaço público, coletivo ou urbano, distinguindo-se das manifestações de caráter institucional ou do mero vandalismo. No penúltimo número fizemos referência a alguns trabalhos de Banksy, em grafite, e no último número analisámos alguns trabalhos de Bordalo II, a partir de “lixo urbano”, os quais podem ser encontrados em ruas,
Imagens de grafites em Olhão pontes e muros de cidades de todo o mundo, procurando expressar mensagens visuais de crítica política, ambiental e social. Os grafites são um exemplo de arte urbana, distinguindo-se do vandalismo dos riscos muitas vezes feitos nas paredes. A título de curiosidade, em Portugal não temos nenhuma expressão para distinguir os grafites dos riscos nas paredes, mas os brasileiros utilizam o termo “pichação” para designar estes últimos. Dizendo respeito às formas de arte encontradas em meios urbanos, para além dos grafites e instalações, a arte urbana integra as performances artísticas a que assistimos quando passeamos numa cidade, sejam as que impliquem mais movimento (por exemplo, músicos ou malabaristas), sejam as próprias estátuas vivas, tão em
moda na atualidade. Assim, a arte urbana tem vindo a tornar-se cada vez mais popular, havendo até algum aproveitamento turístico nalgumas das grandes cidades europeias, contribuindo para a animação e embelezamento das mesmas. Em Portugal, temos manifestações de arte urbana em muitas cidades, incluindo as de menor dimensão, como seja Olhão, em que podemos encontrar expressões artísticas nas fachadas de vários edifícios. No entanto, neste artigo gostaríamos de destacar o trabalho feito em Loures que se vem afirmando como uma referência nacional e internacional em termos de arte urbana. Tendo começado na Quinta do Mocho, uma zona da cidade ainda há poucos anos marginalizada, as manifestações artísticas propagaram-se a todo o concelho de Loures, havendo grafites em empenas de prédios, muros de escolas, paredes de viadutos, depósitos de água, postos de trans-
formação da EDP e autocarros. No verão de 2016, cerca de 100 artistas portugueses e estrangeiros participaram naquela que foi a primeira edição do “Loures Arte Pública”. Recentemente, em junho deste ano, realizou-se a segunda edição deste evento (festival de arte urbana “O Bairro i o Mundo”), tendo contado com a participação de um número ainda superior de artistas. Estes participam de forma voluntária, uma vez que não recebem qualquer vencimento, sendo a “residência artística” da responsabilidade da autarquia, que faculta o alojamento, as refeições e os equipamentos necessários para a realização dos trabalhos, sendo as tintas cedidas pela Robbialac. As pinturas abordam diferentes temas, geralmente relativos a questões sociais, como a discriminação racial, os direitos das crianças, a natureza, a multiculturalidade e a igualdade. Atualmente, quase que podemos falar de Loures como uma
galeria de arte a céu aberto, perspetivando-se aumentar o número de manifestações artísticas na cidade, procurando corresponder aos pedidos de entidades privadas e de representantes de instituições públicas, para que também os seus imóveis sejam intervencionados. Em relação à Quinta do Mocho, de destacar que, aquele que era considerado um dos bairros mais problemáticos do país, com situações de violência e tráfico de droga, escondendo os moradores o local de residência quando procuravam emprego e recusando-se os taxistas a entrar neste bairro, tornou-se num motivo de orgulho para os cerca de 2.800 residentes, com visitas guiadas para os visitantes. Desta forma, “mostrar o bairro ao mundo e trazer o mundo ao bairro” é o mote da Galeria de Arte Pública da Quinta do Mocho. A arte urbana começa a ser uma “marca” de Loures e esperamos que outros municípios
sigam este exemplo, ligando a arte à promoção artística das cidades, sugerindo a visita e descoberta das imagens através de um circuito pedonal. Em relação às obras produzidas, vão perdurar e contribuir para que Loures constitua, cada vez mais, um local de visita obrigatório para todos os apreciadores de arte urbana. Desta forma, a arte urbana não tem que ser descartável, podendo ser até fator de desenvolvimento e inclusão social. As obras produzidas em arte urbana não durarão certamente tanto como aquela intitulada “As long as possible” (“Tanto tempo quanto possível”), criada em GIF (imagens animadas, cuja duração costuma ser de apenas alguns segundos) por Juha van Ingen, um artista finlandês que refere que a mesma só terminará daqui a mais de 1.000 anos. Durante a animação, que começou em março deste ano, cada número permanece na tela durante dez minutos e o último, o número 48.140.288, só será exibido em 3037. De acordo com o artista, esta obra de arte é bastante otimista, uma vez que depende das gerações futuras para garantir que continua em funcionamento e consegue chegar ao fim. Para já, o Museu Kiasma de Arte Contemporânea, na Finlândia, adquiriu este GIF para o seu acervo. Mas embora não tenham essa durabilidade, as obras produzidas na Quinta do Mocho conseguiram aumentar o otimismo dos habitantes, mostrando que a arte também pode contribuir para aumentar o bem-estar dos residentes. Esperemos que dure… •
Imagens de grafites em Loures
Cultura.Sul
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Espaço AGECAL
Origem, evolução e desenvolvimento da gestão cultural em Espanha (2ª parte)
Rafael Morales Astola Doutor em Filologia Hispânica, gestor cultural, co-fundador e ex-presidente da GECA.
Em 2011, a FEAGC - Federação Espanhola de Associações de GC conseguiu que o Ministério do Trabalho incluísse a categoria de “gestor cultural” na Classificação Nacional das Profissões, assim como o reconhecimento dos Graus de Gestão Cultural nas Universidades de Huelva e de Córdova. Ficou pendente da obtenção da epígrafe de “gestão cultural” na Classificação das Actividades Económicas para as empresas do sector. Hoje, a gestão cultural nas artes ocupa-se principalmente das artes cénicas, do cinema e
música. Em Outubro foram publicados os dados do Anuário SGAE 2016. O relatório sublinha a precarização do sector a par da sua elevada qualidade profissional, conteúdos e serviços. Em Espanha, a última crise foi um terramoto que retirou todos os programas e projectos culturais que obedeciam a outros paradigmas ou ao seu conjunto. A situação de emergência é a seguinte: - Gestores culturais públicos rodeados por assessores ou pára-quedistas que fazem de gestores culturais, sem código deontológico, sem experiência ou conhecimentos técnicos; - Empresas que dizem “pago-te metade do que te devo mas assinas um papel que diga que já não te devo nada ou levas-me para os tribunais”; - Instituições que concedem ajudas com fundos europeus e que colocam argumentos absurdos e papelada interminável
d.r.
Imagem da sede do Ministério da Educação, Cultura e Desporto espanhol em Madrid até deixar na ruína empresas ou dissuadir as pequenas administrações locais para que não empreendam projectos de envergadura; - Administrações públicas que não reconhecem trabalhos que lhes foram enco-
mendados por titulares com mandato terminado; - Entidades bancárias que pressionam até a corda quebrar-se e propõem “facilidades de pagamento”; - Promotores e agências culturais que tardam mais de um
ou dois anos a pagar; - Impostos com pagamento imediato, mas para receber convertem-se num bombardeio de petições de documentação e fazem esperar mais de seis meses para o pagamento, etc.; - Governos que retiram à cultura o IVA reduzido; - Empresas encobertas sob a fórmula jurídica de associação que fazem concorrência desleal às verdadeiras empresas e geram desconfiança no tecido associativo; - Associações chamadas para o intrusismo profissional para subsistência dos seus membros com a conivência das administrações; - Administrações públicas que, ano após ano, pedem o mesmo, pagando menos e empurrando para o precipício da autoexploração. A Gestão Cultural em Espanha move-se sobre placas tectónicas em choque e confluência. A pluralidade de territórios, de
instituições e de sectores complica - ou melhor rompe - toda a possibilidade de estabelecer categorias que sirvam para caracterizar uma gestão cultural sob um único olhar estatal: gestão cultural rural, urbana, pública, privada, de terceiro sector, de quarto sector, mista, generalista, específica (museus, património, artes cénicas, música, literatura, artes plásticas e visuais, audiovisual e cinema, artes emergentes, artesanato, etc.), comunitária, de pequena, media e grande cidade, de grande urbe, estatal, autonómica ou local, transversal (com saúde, educação, inclusão social, género, juventude, ciência, comunicação, turismo…), etc…., são realidades operativas e conceptuais que impedem indubitavelmente qualquer tentativa de caracterização general. Na próxima edição: Actualidade da gestão cultural em Espanha (conclusão)
Filosofia dia-a-dia
Isto (não) é para mim!
Maria João Neves Ph.D Consultora Filosófica
Já alguma vez se viu naquela situação em que alguém conta algo e dá consigo a pensar “gosto muito mas não é para mim, não sou capaz!” Ou então: “Se pudesse até fazia, mas não tenho tempo!” O seu interlocutor falava de uma actividade desportiva, ou de uma certa forma de se alimentar ou de uma prática de meditação, ou de outra coisa qualquer. Algo que definitivamente lhe faria bem, disso não lhe restam dúvidas. Mas é então que a falta de auto-estima fala mais alto: “Fulano consegue porque é mais inteligente do que eu...”. A frase tem infinitas variantes: fulano é mais organizado, ou mais flexível, mais talentoso ou mais qualquer outra coisa, não importa o quê, fulano simplesmente é mais! Com estas
justificações, o leitor apazigua momentaneamente o seu estado de espírito que começava a inquietar-se, vira costas ao assunto, e não pensa mais nisso! Que alívio! Encontrou uma justificação perfeita para não ter de fazer nada! Sabia que na sua obra Bodhicaryavatara Shantideva, o grande sábio indiano classifica a falta de auto-confiança como preguiça? Esta obra está traduzida para Português com o título A Via do Bodhisattva, com um prefácio do XIV Dalai Lama. Sua Santidade afirma: “Se tenho alguma compreensão da compaixão e da via do Bodhisattva, é inteiramente com base neste texto que a possuo.” Trata-se de um longo poema que descreve o processo de iluminação desde o princípio até ao completo estado búdico, ao longo de 10 capítulos em verso. O texto é amplamente estudado na escola Mahayana - O Grande Veículo - do Budismo Tibetano. Voltando à preguiça, o leitor é capaz de estar neste momento a interrogar-se porque é que no entender do sábio Shanti-
deva duvidar de si próprio ou ter uma auto-estima baixa são sintomas de displicência. No capítulo IV, que versa sobre a Atenção, Shantideva está bem ciente desta armadilha mental: “Mas, oh, a minha mente é fraca. Sou indolente!” De acordo com a filosofia budista todos os seres sensíveis possuem natureza búdica, portanto, todos podem alcançar a iluminação completa. A preciosa vida humana não pode ser desperdiçada com complacências! Há que meter mãos à obra e desvelar essa natureza búdica que todos possuímos, com coragem para superar as adversidades. No capítulo VII, sobre a Diligência, Shantideva incita-nos: “Não te deprimas, mas dispõe em ordem todos os teus poderes;/ faz um esforço; sê o mestre de ti mesmo!” A iluminação é para todos, não apenas para uma elite... Mas claro que é necessário trabalhar para a conseguir! Esta é uma das tais coisas que ninguém pode fazer por nós. Ao contrário de uma gripe que se apanha facilmente por contágio, bastando-nos estar ao pé de alguém infec-
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tado, as qualidades da mente e do espírito não se desenvolvem senão por mérito próprio. Amigos virtuosos podem ajudar mas não bastam. Em primeiro lugar é necessário aplicar todos os esforços para eliminar a vagabundagem mental. Só assim se podem pôr em ordem todos os nossos talentos e potencialidades. Lembre-se: ter um enorme potencial e recusar-se a actualizá-lo é PREGUIÇA! Outro obstáculo consiste na pretensa falta de tempo. Vive-
-se a correr e Cronos é devorador. Realmente, não há tempo para tudo. Que fazer então? Há que hierarquizar prioridades. Isto faz parte do processo de se tornar mestre de si mesmo, de não se deixar levar pela maré, ou pelo que os outros pensam ou dizem, ou pelo facilitismo reinante. Agarrar as rédeas da própria vida é um acto de coragem. Os Tibetanos têm o seguinte ditado: “Não te deixes levar pelo nariz!”. Fazendo referência à anilha que o boi têm
no nariz e que serve para que o dono o conduza com uma corda. Quantas vezes nos desculpamos com os outros para não fazermos aquilo que verdadeiramente nos importa. Cedemos amiúde a chantagens emocionais. Achamos que estamos a ser altruístas e talvez estejamos a ser palermas. Aqui está algo que urge averiguar. Até porque se corre o risco de além de néscio se ser perdulário, ao esbanjar a preciosa vida humana, tão frágil e escassa. Ainda segundo Shantideva, se se está verdadeiramente interessado em progredir espiritualmente, é necessário consolidar a concentração e tal não se consegue sem uma severa redução do nosso envolvimento em assuntos mundanos. Claro que é preciso criar condições suficientes para suprir as nossas necessidades de sobrevivência. Porém, não é possível perseguir objectivos mundanos e ao mesmo tempo progredir espiritualmente. Simplesmente não há tempo! Há que treinar a renuncia. É uma questão de saber o que (não) se quer.
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Cultura.Sul
Marca d'água
Património Cultural Material e Imaterial no Meio Rural: potencialidades fotos: d.r.
Maria Luísa Francisco Investigadora na área da Sociologia
luisa.algarve@gmail.com
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O património cultural do meio rural tem dimensões materiais e imateriais que coexistem e são observadas e analisadas de forma indissociável. Esta relação entre património tangível e património intangível e o seu papel na construção social da herança cultural e da memória colectiva não pode ser esquecida. As pesquisas realizadas no interior algarvio têm permitido encontrar locais ricos em património imaterial, como lendas, tradições, mezinhas, orações e saberes ancestrais que estão em risco de se perder. São muitos os lugares em acelerado processo de desertificação, tendo alguns apenas dois ou três habitantes e de idade avançada. Trata-se de locais onde ainda encontramos a paisagem preservada, a autenticidade das gentes, as vivências comunitárias, tais como a partilha do forno, da eira, do burro, de utensílios e de alfaias agrícolas. São espaços que podem permitir a experiência turística sustentável, valorizando as populações idosas e os seus saberes, reavivando imaginários que conseguem ir ao encontro de uma imagem idílica do rural. Pela observação no terreno, poderei afirmar existirem, ainda, no Algarve interior, vivências relativamente preservadas e que fazem sentir que parte da tradição ainda se mantém, com um importante cruzamento entre materialidade e imaterialidade. Este cruzamento permite variadíssimas abordagens multidisciplinares. Atravessando o Algarve interior de Aljezur a Alcoutim, é possível encontrar alguns exemplos de ligação entre património material e património imaterial, quase sempre em pequenos povoados ou montes. Os montes no Algarve são formados por um conjunto de casas, normalmente de diferentes proprietários, como se fosse uma “mini-aldeia”, ao contrário dos montes no Alentejo que são formados normalmente por uma só casa, por vezes com anexos, e relativamente isolada.
Forno comunitário com oratório na parede lateral Exemplo concreto da ligação entre património material e imaterial Nas duas imagens apresentadas podemos observar um forno comunitário no centro de um monte do Nordeste algarvio. O forno, para além da sua função de cozer pão, tem uma função de culto religioso, por ter na parede do próprio forno um nicho ou oratório de devoção mariana. Este nicho ou oratório tem pequenas particularidades que valorizam o património material e imaterial: a imagem da Virgem Maria está decorada com uma cercadura de pedrinhas recolhidas nas ribeiras; há um pano de linho que cobre a imagem e que é decorado com um pequeno bordado que representa o saber-fazer e as artes desta zona do Algarve. Há ainda um painel de seis azulejos com doze versos referentes à Virgem Maria e à fé desta gente. Tem ainda em destaque o ano em que foi adaptada a parte religiosa a uma das paredes laterais do forno. Os habitantes referem conhecer desde sempre este forno, no meio do monte, para uso de todos. Os doze versos dedicados a Nossa Senhora da Conceição fazem referência à devoção dos habitantes do monte e à sua localização, tal como a elementos naturais da zona como as ribeiras, a esteva e o alecrim:
Ficas aqui neste Monte Da Freguesia de Alcoutim Ficas entre duas ribeiras Onde só há estevas e alecrim Falei das caracteristicas deste forno ao Prof. Doutor Moisés Espírito Santo, que foi meu professor de Sociologia das Religiões na Universidade Nova de Lisboa, e referiu que não conhece mais nenhum caso deste género no país. Do mundo local aos desafios do mundo global O sociólogo Anthony Giddens refere que a tradição persiste com algumas reinvenções a cada geração, mas sem haver um corte profundo, ou descontinuidade absoluta entre o ontem, hoje e o amanhã. O referido sociólogo acrescenta ainda a ideia de que a tradição envolve o ritual e este constitui um meio prático
A devoção é tanta Que te damos um altar Para nos abençoares Nas horas de azar
de preservação. Nas sociedades ou comunidades que integram a tradição, os rituais são mecanismos de preservação da memória colectiva. O património material e imaterial mantém-se no meio rural porque existe identidade e grande proximidade entre os elementos da comunidade, quase sempre com um grau de parentesco entre eles. Esses laços reforçam o sentido de responsabilidade na preservação daquilo que lhes foi deixado pelos antepassados. É um legado que pesa na construção social da herança cultural e da memória colectiva e essa redescoberta da memória, da tradição e da identidade, tem uma autenticidade que facilita a criação de atractivos turísticos. Permitir a experiência turística, desde que de forma sustentável, valorizando a paisagem, as populações idosas e os seus saberes, reavivando imaginários, pode ser uma mais-valia para todas as partes: quem é visitado e quem visita. Segundo a Convenção Europeia da Paisagem, assinada por Portugal e pelos restantes membros do Conselho da Europa, em Outubro de 2000, a paisagem desempenha importantes funções de interesse público no âmbito cultural, ecológico, ambiental e social, e constitui claramente um recurso favorável à actividade económica. Ainda segundo a mesma Convenção, o património do mundo rural deve ser entendido e utilizado, tendo em conta todas as suas componentes (paisagem, edifícios, técnicas, instrumentos, saberes-fazer e o próprio homem rural) como um factor de desenvolvimento. De facto, todos estes elementos são um património vivo. Os diferentes actores do mundo rural, interligando-se
Do forno vem o alimento para o corpo e para o espírito
“MARROCOS - PAÍS DE ENCANTOS”
As escolhidas, Até 13 de OUT série | EMARP de 12,- Empresa 1994. Sépia Municipal s/ papel. Col. Centro de de Águas e Resíduos de Portimão Arte Contemporânea Graça Morais A ALFA - Associação Livre Fotógrafos do Algarve apresenta os momentos mais marcantes da expedição fotográfica realizada ao norte de Marrocos em Junho de 2016
com esses elementos, conferem-lhe um sentido e um valor para a colectividade e para o território. Existe uma ideia, quase generalizada, de que com o mundo globalizado, as tradições vão ficando esquecidas. No entanto, alguns autores são unânimes em afirmar que a era da globalização permitiu uma valorização do que é local e específico, na medida em que perante um mundo cada vez mais homogeneizado, aquilo que marque pela diferença e contenha ingredientes de genuinidade é procurado e valorizado. Aliás, as ferramentas que foram desenvolvidas no âmbito das novas tecnologias da informação, permitem que em minutos possamos visualizar através da Internet imagens, filmes ou documentários sobre as tradições de localidades remotas. Enquanto por um lado se resiste ao processo de globalização, por outro lado usam-se as ferramentas produzidas por esse processo para divulgar e manter a memória e as tradições. Reinventar o património O património ao longo do tempo vai sendo reinventado e vão-lhe sendo acrescentadas novas funções, que por vezes atraem pessoas de fora da comunidade. Estes novos utilizadores, muito provavelmente, procuram fruir o espaço através da vivência de novas experiências, tais como: amassar o pão, colocá-lo no forno, aprender as breves orações para bênção do pão, em que se faz o sinal da cruz dizendo: “Deus te acrescente e que seja para muita gente!” e, naturalmente, no final, degustá-lo juntamente com os produtos da região, como os enchidos, o presunto, o queijo, o mel e as azeitonas. Enfim, será a fruição desses saberes e sabores, enquanto parte do património imaterial, que enriquecem a vivência no mundo rural. Daí a referência a uma possível experiência turística sustentável, em que exista uma redescoberta e interpretação do território rural, com alternativas para o desenvolvimento dos territórios rurais. Em que os recursos sejam valorizados e que possam permitir que a pouca população existente se mantenha nos locais de origem e obtenha alguma rentabilidade na manutenção das suas tradições, e que também lhe permita manter um equilíbrio na sua relação com o passado, o presente e o futuro.
"CONCERTO POR SÉRGIO GODINHO E FILIPE RAPOSO” 16 SET | 21.30 | Auditório Municipal de Albufeira Sérgio Godinho vai interpretar os temas que marcam uma carreira com mais de 40 anos, acompanhado apenas ao piano por Filipe Raposo
Cultura.Sul
15.09.2017
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Da minha biblioteca
Se numa noite de inverno um viajante, de Italo Calvino Teoria e prática
Adriana Nogueira
Classicista; Professora da Univ. do Algarve adriana.nogueira.cultura.sul@gmail.com
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Há vários anos que este livro esperava na minha biblioteca para ser lido. Da autoria do italiano Italo Calvino (nascido em Cuba, mas cedo os pais o levaram para a sua terra natal), foi escrito em 1979, após um interregno de alguns anos, em que o autor nada publicou: «Com que então, viste num jornal que saiu Se numa noite de Inverno um viajante, novo livro de Italo Calvino, que já não publicava há vários anos. Passaste pela livraria e compraste o volume. Fizeste bem» (p.18). Estará o autor a quebrar alguma barreira ficcional e a dirigir-se a nós? Seremos nós o Leitor a quem o narrador se refere? A surpresa do leitor atual de Calvino (que somos nós) ao ver-se retratado no próprio livro não será a mesma, passados que foram 38 anos da sua publicação (ou 32 anos depois da edição portuguesa de 1985, pela Vega Editora, com um apêndice de Calvino e outro de José Manuel Vasconcelos, um dos responsáveis pela tradução. É esta a edição que cito. Posteriormente, em 2000, a Teorema publicou a mesma obra, com tradução de José Colaço Barreiros) e depois do muito que já se escreveu. Porém, cada um que passa pela experiência de leitura de Se numa noite de Inverno um viajante não deixa de perceber o estranho jogo que Calvino faz connosco, leitores reais, e a personagem Leitor que cria na sua ficção, pretendendo, em vários momentos, que nos (con)fundamos.
O livro é constituído por 12 capítulos com uma história que serve de esteio para as 12 outras histórias que se intercalam com ela e que só têm começos. Isto é, a personagem Leitor começa a ler um livro, mas não consegue acabar, porque as páginas se repetem. Quando vai à livraria para trocar, traz um outro livro. A ida à editora não melhora a situação, pois o livro que traz é um outro ainda. Entretanto, dá-se o encontro com uma Leitora a quem acontece o mesmo. Entre a busca por um autor cujos livros estão a ser falsificados ou a procura do tradutor-falsificador, vão sendo lidos princípios de livros que nunca se conseguem terminar. E nós, leitores (com letra pequena), vamos acumulando histórias que gostaríamos (ou não) de ver concluídas, ao mesmo tempo que somos arrastados pela insanidade das personagens que se cruzam nesta demanda fantástica: além da Leitora, há a sua estranha irmã, há professores de línguas inexistentes, há um amigo que desaprendeu a
fotos: d.r.
ler, há bizarras polícias secretas que censuram livros… Nas palavras da personagem Flannery, o escritor que tem muitos livros falsos em circulação, lemos a génese e o resumo do próprio livro que estamos a ler e já reconhecemos nesta citação tudo o que já sabemos (estre trecho aparece a 1/3 do fim, na p.181-2): «Surgiu-me a ideia de escrever um livro feito apenas de começos de romance. O protagonista podia ser um Leitor que é continuamente interrompido. O Leitor adquire o romance A do autor Z. Mas é um exemplar defeituoso e não consegue ir além do princípio… Volta à livraria para que lhe troquem o volume… Poderia escrevê-lo todo na segunda pessoa: tu, Leitor… Poderia também fazer entrar nele uma Leitora, um tradutor falsário, um velho escritor que mantém um diário como este diário…». Leitores (e leituras), há muitos Por todo o livro vamos lendo reflexões sobre o próprio
Italo Calvino, representado em desenho processo de escrita e, principalmente, de leitura. Flannery
Obra foi publicada na Itália em 1979 por Italo Calvino “ROSÁCEAS” Até 28 OUT | Galeria de Arte do Convento Espírito Santo - Loulé Manuela Castro Martins apresenta um trabalho executado e elaborado com uma mestria ímpar, quase como se de um retiro espiritual se tratasse
diz ao Leitor: «a mim acontece-me cada vez mais frequentemente pegar num romance que acaba de sair e encontrar-me a ler o mesmo livro que já li cem vezes». Depois, já no seu diário, escreve: «A mim sucede-me isso ao escrever: há uns tempos que cada romance que me ponho a escrever se esgota pouco depois do início como se nele já tivesse dito tudo o que tinha para dizer». (p.181). No penúltimo capítulo (o último só tem 6 linhas e serve como epílogo), o Leitor encontra 7 outros leitores numa grande biblioteca a que se tinha dirigi-
do em busca dos livros que nunca conseguiu terminar (pp.230-235). Cada um destes leitores tem uma forma diferente de abordar a leitura e é muito interessante como nos identificamos com algumas delas ou conhecemos alguém assim, ou já nos aconteceu fazermos de todas aquelas maneiras, com livros diferentes, como se cada livro condicionasse a leitura e esta não fosse condicionada pelo tipo de leitor. Todas são válidas. Por exemplo, o primeiro leitor que o interpelou diz que «Se um livro me interessa verdadeiramente, não consigo segui-lo para além de umas linhas sem que a minha mente, captado um pensamento que o texto lhe propõe, ou um sentimento, ou uma interrogação, ou uma imagem, não saia pela tangente e salte de pensamento em pensamento, de imagem em imagem, num itinerário de raciocínios e fantasias que sente necessidade de percorrer até ao fundo, afastando-se do livro até perdê-lo de vista». Já o segundo leitor, por razões idênticas, faz o oposto: «Por isso a minha atenção, ao contrário do que dizia, senhor, não pode separar-se das linhas escritas nem por um instante. Não devo distrair-me se não quero descurar nenhum indício precioso». Um outro diz que «em cada releitura parece-me ler pela primeira vez um livro novo. Serei eu que continuo a mudar e vejo coisas de que antes não me tinha apercebido? Ou a leitura é uma construção que toma forma pondo em conjunto um grande número de variáveis e não se pode repetir duas vezes segundo o mesmo desenho?» Termino com uma frase do sétimo leitor: «O sentido último para que remetem todas as narrativas tem duas faces: a continuidade da vida e a inevitabilidade da morte». Que boas conversas se podem ter à volta deste livro!
“ALBUFEIRA E EU” Até 27 OUT | Galeria Municipal João Bailote - Albufeira Joaquim Pargana transpõe para a sua pintura vários temas, desde o mar e as suas gentes a paisagens diversas
Última Quotidianos poéticos
Miguel Godinho fotos: d.r.
-- ou acontecer já acarreta em si uma dose de poesia enorme. A vida é em si mesma um mistério enorme.
Pedro Jubilot
pedromalves2014@hotmail.com canalsonora.blogs.sapo.pt
Nasceu em Faro, em 1979, mas reside em Vila Real de Santo António desde 2005, onde trabalha, actualmente como Coordenador da Divisão de Cultura e Património Histórico da Câmara Municipal de Vila Real de Santo António. Tem pós-graduação em História do Algarve e é licenciado em Património Cultural, pela Universidade do Algarve, sendo autor de vários trabalhos de investigação já publicados sobre variados temas relacionados com o património cultural algarvio. Colabora frequentemente em alguns jornais com artigos de opinião, crónicas, ensaios. Publicou os livros de poesia: “Os nossos dias seguido de Os lugares antigos”, pela Ed. 4 Águas (2009) “Poemário prostibular”, ed. de autor. (2012) “O tempo por entre as fendas”, Ed. 4Águas (2013) “Vertigem”, Ed. 4 Águas (2015) A sua poesia pode encontrar-se ainda nas antologias: “Algarve: 12 poetas a sul do séc.XXI”; “Os dias do Amor” ; “Alquimia de la tierra – Antología heterogénea de poesia, prosa poética y microrrelato”; ‘’Sizígia’’. Como é o teu quotidiano como poeta, como entra a poesia na tua vida? Não existe uma fronteira entre o eu poético e o eu do quotidiano. A poesia acontece a toda a hora, em qualquer lugar. A poesia existe em todas as coisas; tão depressa sou um ser burocrático, quanto um ser sensível/emocional, atento às coisas fundamentais do mundo. Nunca deixo de pensar e de descontextualizar e/ou de inverter a ordem das coisas. A poesia - e a arte, em geral - passa muito por aí: por trocar a ordem das coisas, virá-las ao contrário, senti-las de todas as formas possíveis. Como disse, a “magia poética” acontece a qualquer hora, em qualquer lugar, em qualquer contexto. Não há horas para as coisas e para a vida se revelar, temos é de estar atentos. O facto de qualquer coisa ser, digamos -- existir
Revela-nos autores, livros, poemas que consideres relevantes para ti. Tenho dois autores essenciais: Jorge de Sousa Braga e Raymond Carver. O primeiro escreve com poucas palavras. O segundo conta histórias carregadas de poesia. O meu poema favorito é um poema de duas linhas: “quanto mais me dispo, menos nu me sinto”. É um poema filosófico, é uma escolha de vida, é um lema que me ajuda nas escolhas que faço e na minha maneira de ser e de escrever, visto que também me orienta em termos literários e na minha própria maneira de escrever: não faz sentido dizer muito quando se pode dizer pouco, qualquer coisa como: quando mais um poema se despe, mais autêntico ele se torna. Algo que possas dizer que te inspira a escrever? Muito do que me inspira a escrever nem sequer vem do mundo literário. O mundo musical, por exemplo, inspira-me imenso. No fundo, era o que o outro dizia: isto anda tudo ligado. Já ninguém usa caneta e papel, quanto mais máquina de escrever, que material usas para escrever, como é o processo material da tua escrita? Não tenho processo de escrita. Uso papel, caneta, computador, telemóvel, e tudo o que tiver à mão. Sim, tudo é válido para registar. E o lugar desde onde se escreve... Os lugares são extremamente impor-
Miguel Godinho já publicou vários livros de poesia tantes. O John Berger exprime muito bem isso num livro que me marcou imenso “Aqui nos encontramos” -- o primeiro conto do livro, que por sinal até se passa em Lisboa, é absolutamente revelador. Na minha escrita, os meus lugares, o meu território, o meu Algarve, é fundamental. Quando (dia, hora, estação do ano) mais escreves ? Não tenho ‘momentos’ para escrever. Escrevo quando e onde tem de ser: à noite, a meio de uma reunião, entre despachos, numa toalha de restaurante, na página 5 de um livro, no bloco de notas do telemóvel... Escrevo muito sobre qualquer coi-
Poeta inspira-se no mundo musical para escrever
sa - ou tendo por base qualquer coisa: uma notícia de jornal, uma ideia de um livro, uma deixa popular, um aforismo. acredito imenso na ideia de que nada se inventa, tudo se transforma. Tens participado como autor e como organizador em eventos literários como ‘Poesia na Rua’, Sinónimos de Leitura’ e ‘Palavra Ibérica’... São três das iniciativas mais relevantes na região, em termos de promoção literária. Com muito pouco conseguem fazer muito: sobretudo promover os autores e as relações entre eles. São - e pretendem ser - sobretudo momentos de partilha. De um modo geral como analisas a actividade cultural a nível local, nos nossos dias, a que tens estado ligado profissionalmente… Gosto imenso do que faço, mas acho muito difícil trabalhar-se no/ com o meio cultural. Há demasiados egos, pouca formação pessoal e profissional, decisores muito pouco habilitados, aposta-se pouco na formação (técnica, de públicos), são demasiados os arrivistas, apoiados pelo poder político, convencidos que não é necessária experiência nem escolaridade na área. Estamos mal, portanto. Mas vai-se fazendo o que se pode. Que livro de poesia estás a ler ou leste recentemente? Comprei (finalmente) e reli o livro
do Lawrence Ferlinghetti: “A Poesia como arte insurgente”. Estou também a meio de “O céu que nos protege”, de Paul Bowles. Um poema de Miguel Godinho dou por mim a olhar para o poema como quem olha para a vida: à espera que qualquer coisa aconteça