Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o PÚBLICO
OUTUBRO 2017 | n.º 108 5.708 EXEMPLARES
www.issuu.com/postaldoalgarve d.r.
Missão Cultura:
foto: el legado andalusí
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30 anos de rotas culturais
p. 2
Espaço ALFA: d.r.
Fotografar de avião
365 Algarve:
Deixe-se envolver, experimente viver ps. 6 e 7
p. 5
Letras e leituras:
d.r.
foto: fernando dinis
Um Deus em Ruínas, Kate Atkinson p. 8 Da minha biblioteca: d.r.
Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie
p. 11
Quotidianos poéticos: Luís Ene p. 12
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20.10.2017
Cultura.Sul
Editorial
Missão Cultura
Surround cultural
30 anos de Rotas Culturais do Conselho da Europa e 20 anos das rotas do Legado Andalus foto: el legado andalusí
Ricardo Claro
Editor ricardoc.postal@gmail.com
AGENDAR
Não gosto de me repetir neste espaço editorial e procuro sempre temáticas diferentes que permitam ao Cultura.Sul aproximar-se dos leitores, dando destaque a determinadas questões que acreditamos estarem/merecerem ou deverem estar/merecer na ordem do dia em cada momento. Mas há razões para que me repita no destaque que pretendemos dar ao 365 Algarve e por isso ei-lo de novo a ocupar estas linhas. O 365 Algarve traz de novo e pela segunda vez à região um verdadeiro empuxo. Socorrendo-me da gíria aeronáutica o 365 é isso mesmo puro empuxo à cena cultural do Algarve e faz-se acompanhar das forças colaterais do peso de um cartaz de excelência, da sustentação de uma visão programática e do arrasto de um trabalho que gera terreiros que perduram para os públicos e fazedores de cultura. O 365 Algarve, que foi pensado sob o lema de 365 dias de cultura, vejo-o eu como um puro 365 graus, num verdadeiro e incontestável surround cultural. Era deste fenómeno envolvente e penetrante que necessitávamos e ei-lo criado para nos deslumbrar com a alta fidelidade de um programa pensado para ser o que deve ser, uma resposta aos públicos e à região que somos. 365 graus de som cultural que se faz de pureza clássica com a mesma destreza que se torna intenso beat, que tão depressa nos faz viajar como reencontrar-nos com o melhor da nossa tradição, que se apresenta genuíno e simultaneamente desafiador e que nos remete para a nossa reinvenção e para a beleza da tão nossa forma de estar secular que é a descoberta. Há mais e melhor Algarve entre Outubro e Maio. •
- fundación pública andaluza
O turismo é uma atividade global que se baseia numa descoberta de novos destinos e novas experiências. Estas rotas culturais têm dado um contributo fundamental para a alteração da relação que se estabelece ao longo de toda a Europa entre a cultura, o património e o turismo. Uma reflexão importante sobre a pressão e os efeitos nefastos do turismo tem sido acompanhada de um pensamento técnico e científico sobre a conservação e a preservação do património cultural. A procura dos benefí-
cios económicos e sociais do turismo junto das comunidades envolvidas, bem como, de uma maior disseminação por todo o território dos fluxos turísticos tem estado no centro destas rotas. Ainda que os países envolvidos possuam diferenças (culturais, religiosas, políticas, entre outras) há recursos e oportunidades partilhadas que estão a construir pontes para o seu desenvolvimento. O diálogo encetado tem sido profícuo e o Conselho da Europa aponta as rotas culturais como boas práticas de desenvolvimento sustentado. Existe ainda um processo em fase de implementação que necessita de maior união de esforços entre os agentes da cultura, do património e do turismo, do sector público, do privado e do terceiro sector, convocando e envolvendo a comunidade em geral. Este esforço conjunto trará a criação de novo valor e aumento de capacidade de atração das nossas regiões, pelo que, continuaremos neste processo e a trabalhar para a sua concretização, bem como, a partilhar e a implementar novos projectos. •
Na sua regular atividade desportiva, a coletividade tem cerca de 90 atletas federados, distribuídos pelas seguintes modalidades: Vela Ligeira, Canoagem e Pesca Desportiva. O Grupo Naval de Olhão organiza anualmente diversas provas de âmbito regional, nacional e para os associados: Prova de Vela ligeira, de âmbito regional; Prova de Vela/Catamarans, de âmbito nacional; Provas de Vela/IOM’S, de âmbito regional e nacional; Torneio de Snooker Inter-Sócios; Convívio de Pesca Desportiva Alto
Mar; Tertúlia aos Atuns. A nível de prémios destacamos: 2006 – Campeão do Mundo / Individual Pesca Desportiva Alto Mar; 2007/2008 – Campeão Nacional DART 18 / Catamarã; 2010 – Campeão Mundial de Pesca / Clubes. Em dezembro de 2016 foram eleitos os novos órgãos sociais do Clube para o triénio 2017/2019, sendo constituídos por 18 elementos, distribuídos pela Mesa da Assembleia Geral (3), Direção (12) e Conselho Fiscal (3). •
Direção Regional de Cultura do Algarve
Em 1987 o Conselho da Europa iniciou a programação de um conjunto de rotas culturais com o objetivo principal de demonstrar como as raízes da identidade europeia podem estar na base da fundação de uma visão de cidadania partilhada. Este programa tem hoje mais de 30 rotas certificadas que promovem a diversidade e a identidade cultural da Europa. No dia 5 de outubro a Fundação Pública Andaluza El legado Andalusi promoveu uma conferência internacional para comemorar este duplo aniversário na Madinat al-Zahra em Córdoba. A Direção Regional da Cultura do Algarve foi convidada a integrar uma mesa redonda sobre “Tourism Sustainability, future challenges”. No encontro participaram vários países parceiros da Fundação, como foi o caso de Itália, da Jordânia e do Líbano. Na cerimónia de abertura compareceu o Mi-
Imagem dos participantes da conferência internacional nistro do Turismo do Líbano, a Alcadeza de Córdoba e a reitoria da Universidade de Córdoba, e no encerramento esteve o Ministro Regional da Cultura da Andaluzia, um representante da Organização Mundial de Turismo e um Diretor Geral dos itinerários culturais do Conselho da Europa, expressando desta forma o seu apoio e a relevância da importância atribuída ao encontro e ao tema. Entre as rotas do Legado Andalusi está a rota Omíada, que foi apresentado e apontado como um caso de boas
práticas. São milhares de quilómetros que ligam países, locais, cidades e bens culturais (tangíveis e intangíveis) sob temas comuns. É uma rota internacional que une em torno da diversidade. Património e cultura comuns são base para um turismo sustentado? A resposta ficou clara: Sim. A criação de itinerários culturais está associada a vários benefícios na relação com o turismo.
Grupo Naval de Olhão
Jady Batista Coordenadora Editorial do J
O Grupo Naval de Olhão foi fundado há 78 anos, mais precisamente a 25 de Janeiro de 1939, por iniciativa de alguns olhanenses com uma grande paixão pelas atividades náuticas, com o objetivo
de dotar condignamente o concelho de Olhão de um clube de atividades desportivas diretamente ligadas ao mar, em geral, e à Ria Formosa, em particular, no sentido de proporcionar às camadas jovens uma prática desportiva saudável e educacional, bem como, oferecer à sua população em geral um pólo social de encontro e convívio, eis a realidade do Grupo Naval de Olhão ao longo de décadas. Contando atualmente com cerca de 1.500 sócios a quem são prestados uma série de
“CONCERTO COM VIVIANE” 26 OUT | 21.30 | Centro Cultural de Lagos Cantora, compositora e letrista faz um concerto envolvendo a comunidade onde toca, para isso a ideia é fazer o seu concerto com a participação de um coro juvenil do concelho de Lagos
serviços de apoio para as suas embarcações de recreio, o Grupo Naval de Olhão tem a sua sede social implantada num terreno concessionado pela Docapesca e situada na Avenida 5 de Outubro, junto ao Porto de Pesca de Olhão. A par desta realidade há a considerar as suas escolas de iniciação aos desportos náuticos para jovens, como são os casos da Vela e da Canoagem, para além de outras modalidades desportivas praticadas no clube, tais como a Pesca Desportiva.
“O PROCESSO” Até 30 OUT | Casa André Pilarte - Tavira A obra apresentada por Margarida Santos revela uma profusão simbólica complexa resultante de um olhar reflexivo e reinterpretativo sobre a obra do multifacetado artista Rafael Bordalo Pinheiro
Cultura.Sul
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Filosofia dia-a-dia
A Voz da Sereia
Maria João Neves Ph.D Consultora Filosófica
Maravilhosas ou terríveis, sempre belas e sedutoras as sereias preenchem o imaginário dos povos marítimos. Na mitologia grega as sereias supõem-se filhas de Aqueloo - deus do rio homónimo, um dos mais antigos e poderosos espíritos da água na Grécia e da ninfa Calíope. Em grego Calíope significa “a da bela voz”. Ela foi a primeira das nove musas filhas de Zeus e de Mnemósine, deusa da memória. Com o poder encantatório da voz, herdado da mãe, e tendo a memória por avó, não admira que, nos seus ardis, as sereias façam com que os homens esqueçam quem são. Em inúmeras lendas o seu canto irresistível atrai os marinheiros levando-os a fazer naufragar os navios contra as rochas ou recifes onde habitam, produzindo o afogamento de toda a tripulação. De acordo com o mitologista espanhol Juan Eduardo Cirlot as sereias são também símbolos do desejo no seu aspecto mais doloroso que leva à autodestruição. O seu corpo não pode satisfazer os anseios que o seu canto e a beleza do seu rosto e busto despertam. Se entendermos a vida como uma navegação, as sereias podem também simbolizar tentações dispostas ao longo do caminho para impedir a evolução do espírito detendo-o em alguma ilha mágica ou morte prematura. Mas serão as sereias sempre tão malévolas? As Sereias de Platão No livro X da República Platão explica como está organizado o firmamento, de acordo com um sistema complexo em que da extremidade de uma coluna de luz “muito semelhante ao arco-íris mas mais brilhante e mais pura” pendia “o fuso da Necessidade, por cuja acção giravam as esferas”. Descrevem-se oito órbitas em torno do fuso “que girava nos joelhos da Necessidade”. Na mitologia grega a deusa Ne-
foto: íris mestre
cessidade Anánkê cuja origem etimológica enuncia força, restrição e inevitabilidade, é a mãe das Moiras e personificação do destino. Na narrativa platónica, no cimo de cada um dos referidos círculos “andava uma sereia que com ele girava, e que emitia um único som, uma única nota musical; e de todas elas que eram oito, resultava um acorde de uma única escala”. Aqui temos a origem da harmonia das esferas, cujo som não ouvimos por ser omnipresente. Por sua vez, as três Moiras, filhas da Necessidade, estavam “sentadas em círculo, a distâncias iguais, cada uma em seu trono, vestidas de branco, com grinaldas na cabeça e cantavam ao som da melodia das Sereias: Láquesis o passado, Cloto, o presente, e Átropos o futuro”. O canto das sereias tem em Platão um sentido muito mais profundo que o da habitual sensualidade mórbida. As sereias entoam o som que os planetas produzem na sua órbita criando a harmonia sobre a qual cada Moira cantará a melodia que entretece o passado, presente e futuro dos mundos. As Sereias de Camões Nos Lusíadas as sereias ou sirenas ajudam os navegantes ou enaltecem os feitos heróicos dos Portugueses. A sua voz mágica adormece malfeitores na esteira de Circe, uma feiticeira especialista em venenos; e Polifemo, o poderoso ciclope filho de Poseidon que devora marinheiros de dois em dois, quando Odisseu e os seus companheiros invadem inadvertidamente a sua caverna em busca de mantimentos. “Cantem, louvem e escrevam sempre extremos/Desses seus Semideuses e encareçam,/Fingindo magas, Circes, Polifemos,/Sirenas que co canto os adormeçam"; (Lusíadas V, 88) Há também, neste canto, uma referencia à musa Caliope, mãe das Sereias, quando Camões exorta Vasco da Gama a agradecer às musas, pois o desprezo pelas artes e a falta de cultura do povo português impera. Alerta o excelso poeta para a urgência de se alterar este panorama de pobreza cultural. O autor da epopeia enfatiza como é importante
Painel de azulejo de Carmo Saúde deixar um registo escrito das façanhas e glórias do povo português, corajoso, mas infelizmente rude e inculto. “Às Musas agradeça o nosso Gama/ O muito amor da pátria, que as obriga/A dar aos seus, na lira, nome e fama/De toda a ilustre e bélica fatiga;/ Que ele nem quem na estirpe seu se chama,/Caliope não tem por tão amiga/Nem as ninfas do Tejo que deixassem/ As telas d’ouro fino e que o cantassem”. (Lusíadas V, 99). Mais adiante na epopeia, festeja-se com grandes manjares e muita
música, “Cua voz de uma angélica Sirena” (Lusíadas X, 5) entoando panegíricos: “Mais estanças cantara esta Sirena/ Em louvor do ilustríssimo Albuquerque” (Lusíadas X, 45). A Sereia de Álvaro de Campos O heterónimo pessoano Álvaro de Campos, nascido em Tavira, estudará engenharia naval em Glascow e regressará à pátria onde permanece desempregado: “Pertenço a um género de portuguêses/Que
depois de estar a Índia descoberta/Ficaram sem trabalho. A morte é certa”. (Álvaro de Campos, Opiário) O desemprego, como a tantos de nós, suscita-lhe o desespero: “Caio no ópio por força. Lá querer/ Que eu leve a limpo uma vida destas/ Não se pode exigir”. (Ibid.) Álvaro de Campos é, tal como o próprio Pessoa afirma numa carta a Adolfo Casais Monteiro, “o mais histericamente histérico de mim”. É este homem de sensibilidade à flor da pele, que um dia “sózinho, no cais deserto” con-
templando o Indefinido ouvirá a voz de uma Sereia: “Subitamente abrangendo todo o horizonte marítimo/Úmido e sombrio marulho humano noturno,/Voz de sereia longínqua chorando, chamando,/Vem do fundo do Longe, do fundo do Mar, da alma dos Abismos,/ (...)” (Álvaro de Campos, Ode Marítima) O canto da Sereia, neta de Menemósine, desperta-lhe a memória: “E a minha infância feliz acorda, como uma lágrima, em mim./O meu passado ressurge, como se esse grito marítimo/Fosse um aroma, uma voz, o eco duma canção/ Que fosse chamar ao meu passado/Por aquela felicidade que nunca mais tornarei a ter”. (Ibid.) É a nostalgia da recordação de uma felicidade infantil que jamais voltará e da qual talvez não se tenha apercebido no momento. Uma felicidade vivida de forma provavelmente inconsciente, portanto, não sentida, e que agora está para sempre perdida. O desespero agrava-se, mas a Sereia não desiste: “Mas estupendamente vinda de além da aparência das coisas,/A Voz surda e remota tornada A Voz Absoluta, a Voz Sem Boca,/ Vinda de sobre e de dentro da solidão noturna dos mares,/ Chama por mim, chama por mim, chama por mim.../Vem surdamente, como se fosse suprimida e se ouvisse,/Longinquamente, como se estivesse soando noutro lugar e aqui não se pudesse ouvir,/Como um soluço abafado, uma luz que se apaga, um hálito silencioso./De nenhum lado do espaço, de nenhum local no tempo,/O grito eterno e noturno, o sopro fundo e confuso:/Ahô-ô-õ-õ-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô - yyy... (...)/Tremo com frio da alma repassando-me o corpo/E abro de repente os olhos, que não tinha fechado./Ah, que alegria a de sair dos sonhos de vez!/Eis outra vez o mundo real, tão bondoso para os nervos!(...)” (Ibid.) A Sereia acorda o poeta que desperta para uma impassibilidade tecnológica que alivia: “Maravilhosa vida marítima moderna,/Toda limpeza, máquinas e saúde!” (Ibid.) Mas ai de nós que exaustos estamos da era da técnica! Não haverá outra solução? Urge o teu canto, ó Sereia do Gilão! Café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com •
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Cultura.Sul
Artes visuais
Pode a arte emergir da natureza?
Saul Neves de Jesus
Professor catedrático da UAlg; Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora
Nos últimos artigos abordámos aspetos relativos à relação entre a arte e o meio urbano, através da arte urbana ou “street art,” sendo analisada em particular a produção artística feita a partir de “lixo”. Os artistas que se enquadram neste movimento apresentam em geral preocupações ambientais e ecológicas, nomeadamente ligadas à preservação do ambiente e à reciclagem ou reutilização de materiais. Desta vez, pretendemos aprofundar a relação da produção artística com o meio ambiente natural, em particular a “land art”. A “Land Art” (“Earth Art” ou “Earthwork”; pode traduzir-se como “arte da terra” ou “arte sobre a paisagem”) foi um movimento artístico que surgiu no final da década de 60 nos Estados Unidos e na Europa, expressando a interligação e integração entre a natureza e a arte, em que a natureza além de suporte, faz parte da própria criação artística. Assente na perspetiva de que na natureza nada se perde, pois tudo se transforma, a principal característica seria a utilização de recursos provenientes da própria natureza para o desenvolvimento do produto artístico, com o intuito de chamar atenção para a grandiosidade da natureza como local central de experimentação artística. Ao contrário da arte exposta nos museus, galerias ou ateliers, a “land art” propõe ultrapassar as limitações do espaço tradicional, sendo a arte realizada e exposta em vastos espaços, como praias, mares, lagos, lagoas, desertos, montanhas, canyons, campos, planícies, planaltos, dentre outros. Não se trata de representar a paisagem, mas criar nela, dentro dela e a partir dela, fundindo-se a arte com a natureza. Os produtos artísticos assim realizados não poderiam ser adquiridos, nem ter cotação, pelo que este movimento tam-
bém representou uma crítica à sociedade economicista e consumista, em que a arte seria para ser consumida como mera decoração. Além disso, sendo a arte expressão das mudanças sociais, este movimento representou também um aumento do interesse pelas questões ambientais e ecológicas. Ao serem na sua grande maioria efémeras, destruídas mais ou menos rapidamente por ação do tempo e dos agentes naturais, apenas persistindo no tempo através de meios de registo como o vídeo ou a fotografia, as criações em “land art” alertam para a precariedade de recursos naturais e para a necessidade em investir no planeta. O trabalho mais conhecido é provavelmente a “Plataforma Espiral” (“Spiral Jetty”),
fotos: d.r.
Trabalho em land art 'Plataforma Espiral' (Robert Smithson, 1970) obra veio posteriormente a ser destruída pela própria água. Uma manifestação de pro-
cional de Esculturas em Areia) é dedicado ao tema das artes. Nesta “cidade de areia” encon-
Imagem de trabalho ('Guernica', de Picasso) realizado no FIESA que Robert Smithson realizou em 1970, no Great Salt Lake, em Utah, nos EUA. Construída com terra e pedra sobre a água, numa extensão superior a quatrocentos metros, esta
dução artística a partir da natureza ocorre todos os anos em Armação de Pêra, no Algarve, durante o verão. Contando já com 15 edições, este ano o FIESA (Festival Interna-
tram-se esculpidas dezenas de esculturas a partir de 45 mil toneladas de areia. Este ano, até 31 de outubro, podemos encontrar esculpidas cenas de quadros de Picasso,
Imagem de trabalho realizado por Vhils
Dali ou Miguel Ângelo. Vale a pena visitar… Ao falarmos de escultura,
soas com menos de 30 anos, na categoria de Art & Style, e recentemente convidado pela banda U2 a produzir o vídeo de uma das músicas do último álbum, Raised by Wolves. Já em 2014, Vhils havia sido um dos nomes que constava na lista dos melhores murais executados em todo o mundo, com um mural realizado em Lodz, na Polónia. Este artista cresceu no Seixal, onde começou por pintar paredes e comboios com grafite, aos 13 anos, antes de ir para Londres estudar Belas Artes. Conta com criações em vários países, como Tailândia, Malásia, Hong Kong, Itália, Estados Unidos, Ucrânia e Brasil. Conhecido internacionalmente por esculpir rostos em paredes, criou este ano uma obra em Beja, no âmbito do segundo Festival Beja na
Foto de obra 'Concha com cérebro: Readymade do mar' (Jesus, 2012) gostaríamos de abordar neste artigo o trabalho de Vhils. As suas obras são realizadas e encontram-se expostas ao ar livre, consistindo em esculturas em paredes. Nos últimos artigos, para cada uma das questões que colocámos, procurámos aprofundar o trabalho de artistas plásticos que realizam o seu trabalho ao ar livre, em manifestações de arte urbana. Assim, foram analisados aspetos particulares dos trabalhos artísticos desenvolvidos por Banksy, no artigo “Qual o “peso” de se saber quem é o autor da obra?”, e por Bordalo II, no artigo “Pode a arte emergir a partir do “lixo?”. Desta vez, pretendemos analisar o trabalho artístico de Vhils (nome artístico de Alexandre Farto), mencionado pela revista Forbes na sua lista de histórias de sucesso de pes-
Rua. Este verão decorreu também uma exposição sua em Pequim, intitulada “Imprint”, constituída por 70 retratos esculpidos em baixo relevo. A preocupação com questões sociais está presente nos seus trabalhos. Por exemplo, homenageou os moradores de um bairro que estava em processo de despejo, esculpindo-os nas ruínas, para lembrar que, segundo as suas próprias palavras, “quando se destroem as paredes sem dar alternativa, é a vida da pessoa que se destrói também”. Terminamos este artigo com a referência a um trabalho que selecionámos, o qual ilustra que a natureza em si mesma é arte, pois trata-se dum “ready made” da própria natureza. Foi um coral encontrado na praia, com a forma de cérebro, que intitulámos “Concha com cérebro: Ready made do mar”. •
Cultura.Sul
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Espaço ALFA
Um outro olhar: o fascínio de fotografar de avião
Raúl Grade Coelho Membro da ALFA
Na fotografia tudo é permitido. Fotografar de um avião é algo de fascinante, pois permite-nos captar o sítio onde sempre vivemos mas visto por outros olhos. Dá-nos um enquadramento diferente da forma como observamos o mundo. Uma vez tive a oportunidade de fotografar do alto
dos céus a partir do nosso Aeroporto de Faro. É magnífico observar toda a Ria Formosa e ver todas as pessoas que por lá passam. Umas de férias, outras a caminho de mais um dia de trabalho. E nós, com a nossa máquina fotográfica, capturamos toda esta vida e labuta. Há formas diferentes de captar estes momentos do nosso céu. Há muitas objetivas que nos permitem gravar momentos únicos a partir do avião onde viajamos e nos leva para os mais diversos lugares. Eu fiquei pela nossa vizinha Espanha. É um país também bonito e com muitas paisagens que
nos permitem tirar fotografias sem fim daquele espaço. Aconselho a quem tiver oportunidade de se deslocar por cima de nós a não se esquecer da máquina fotográfica para gravar os momentos únicos que nos dão uma visão diferente do pequeno mundo em que habitamos. Há, no entanto, de se precaver e se informar antes de levantar voo se é permitido o uso de máquinas fotográficas, pois algumas companhias aéreas não o permitem. É só perguntar antes de iniciar viagem. •
Espaço AGECAL
Origem, evolução e desenvolvimento da gestão cultural em Espanha (conclusão) d.r.
Rafael Morales Astola Doutor em Filologia Hispânica, gestor cultural, co-fundador e ex-presidente da GECA
Urgem, portanto e antes de mais medidas de resgate: - Salvaguardar as práticas que reforcem a ideia da cultura como recurso que deve estar supeditado sempre com a ideia de cultura como elemento constituinte da condição humana; - Aumentar o orçamento público da cultura para 3%. Este aumento repercutir-se-ia integralmente na programação de actividades; - Estabelecer, de maneira institucionalizada, fiscalizada, avaliável e identificável, um conjunto de serviços culturais que possam beneficiar
As conclusões de Rafael Morales Astola sobre a prática da gestão cultural em Espanha de um IVA cultural; - Aprovar o IVA cultural nos 5%; - Criar um catálogo de actividades culturais de taxa reduzida, que não inclua so-
mente as entradas o os livros. As actividades de gestão cultural têm por vezes orçamentos muito reduzidos para programas culturais pontuais em zonas rurais ou afastadas, o
que raia a desertificação cultural. Não falamos aqui de cultura como recurso. Trata-se de necessidades dessas populações no seu direito à cultura. Por exemplo, programas
de teatro de rua numa aldeia não será nunca um negócio, porque necessário e justo. Há que encontrar a fórmula para reduzir o IVA por motivos sociais e culturais.
Trata-se de um acto de responsabilidade política e social regular a economia empresarial da cultura (por justiça, respeito e consideração pela quantidade de empregados, autónomos e microempresas), assim como articular a partir da administração pública um plano estatal inter-autonómico de resgate coordenado com as comunidades autónomas e municípios, com as organizações profissionais e empresariais e da sociedade civil organizada através de órgãos de representação institucional. O Pacto para a Cultura de 2010 e a sua actualização em 2015, promovidos ambos pela FEAGC e rubricados por numerosas organizações profissionais e empresas do sector, constituem uma possível meta de trabalho colectivo para uma política cultural de futuro, com atenção ao presente que reclama compreensão e sobretudo acção. •
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Cultura.Sul
Panorâmica
365 Algarve: a consolidação depois do 'milagre' É este o rosto que sem um único gabar fez da ideia da Região de Turismo uma realidade com a prata da casa e que apresenta agora a consolidação do 'milagre' que foi a primeira edição deste programa.
Ricardo Claro
Jornalista / Editor ricardoc.postal@gmail.com
O que se pode esperar de uma segunda edição do 365 Algarve? A resposta é antes de mais "um reforço da qualidade". As palavras são da comissária do programa cultural que a Região de Turismo do Algarve, liderada por Desidério Silva, conseguiu implementar na região com mestria numa união de turismo, economia e cultura. Dália Paulo é muito mais do que uma gestora de um orça-
As apostas O 365 Algarve aposta agora em Festivais - e há-os para todos os gostos - e em eventos âncora capazes de fidelizar públicos naquilo que se quer a construção contínua de um público de amantes deste verdadeiro périplo pela cultura. "Queremos que mais pessoas se encontrem com o 365 Algarve e com a actividade cultural numa relação de proximidade. Que sejam a grande comunidade do 365 Algarve e que passem pelo nosso site da internet como
o turismo traz ao Algarve. Nem tudo foi perfeito, nem o será certamente, mas o 365 Algarve aprendeu e prova-o Uma das falhas da primeira edição do programa foi definitivamente a comunicação. A cultura gerida com esta dimensão não se compadece da lonjura face aos públicos no que toca a divulgação e a comunicação é mais do que as notícias é um discurso cuja narrativa tem de ser global e multifacetada. Desta feita, o 365 Algarve conta com cerca de 170 mil euros para comunicação, que dão origem a uma nova abordagem nos materiais de comunicação e nos canais utilizados. Desde logo no site da internet onde convivem actualmente quatro línguas estrangeiras a par do português . A festa dos sentidos
Desidério Silva, presidente da RTA mento de 1,5 milhões de euros a despender numa programação que se estende deste mês de Outubro até Maio. É acima de tudo a obreira de uma aventura que poucos teriam ao início tido a coragem de abraçar quando aceitou criar de raiz um programa regional de oferta cultural pensado para derrubar tudo e mais alguma coisa, nomeadamente a sazonalidade da procura turística num tempo recorde e sem rede, como só faz quem realmente sabe do mister que abraça como profissão.
quem procura num amigo uma proposta cultural para uma jornada por bons momentos", diz. A programação procura também consolidar oferta cultural herdada da programação do ano passado e que importa manter neste que "foi e é um desafio de coesão territorial assente na cultura". Depois, as novidades compõem um arranjo que se deseja desafiador e inovador ao mesmo tempo que apostado no que é nosso e que pretende ser cativador para a multiplicidade de públicos que a região tem e que
fotos: d.r.
É este programa que constitui uma desafiante paleta de propostas que celebra um Algarve e um país virados para a interculturalidade que mostra três patrimónios imateriais a quem nos visita e os revisita para os que cá vivem. Unidos estarão o fado e a dieta mediterrânica de mãos dadas com o flamenco, numa celebração da cultura como património inalienável da existência dos povos. Numa chamada a rebate para a verdadeira festa dos sentidos o 365 Algarve está aí e, uma vez mais, irrepetível em cada edição, Assim, perder este apelo é deixar um pouquinho de viver, saia de casa e experimente esta ode à arte de sentir. •
Dália Paulo, comissária do 365 Algarve
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Panorâmica
Gastronomia
Uma mão cheia de propostas imperdíveis é o que propõe o 365 Algarve no que toca a festivais. Há os para todos os públicos e para todos os gostos ao longo da extensa programação. Destaque do Cultura.Sul para o LUZA, Festival Internacional de Luz do Algarve (24 a 26 de Novembro, Loulé); Festival do Contrabando (23 a 25 de Março, Alcoutim); Festival Algarve Jazz Gourmet Moments (25 a 27 a Maio, Lagos). Mas há mais, muito mais para viver neste colectivo de imersão cultural, a Festa dos Sentidos (Outubro e Novembro, Lagos); o Festival Verão Azul (17 a 28 de Outubro, Faro e Lagos) e o Festival Internacional de Piano do Algarve (Janeiro a Abril, Portimão), prometem. Ao mesmo tempo o FIMA - Festival Internacional de Música do Algarve (Março a Maio por todo o Algarve) e o imperdível VIDEO LUCEM (Outubro a Maio, Faro, Lagoa, Tavira, Loulé, VRSA, Aljezur e Silves), são outras das chamadas de atenção. Vemo-nos por estas andanças num palco perto de si e disfrutemos desta aventura que é a cultura feita multidão.
O que é o Algarve sem uma boa mesa e que melhor maneira de celebrarmos a tão nossa Dieta Mediterrânica do que vivê-la. A gastronomia é dona e senhora de um lugar de destaque no 365 Algarve e promete não deixar por mãos alheias o que lhe compete: juntar-nos a todos e fazer-nos comensais de mais do que de primores da arte culinária, levando-nos ao banquete da cultura. Não se faça rogado que a mesa é farta com CataPlay (Dezembro a Maio, Faro, VRAS, Loulé e Vila do Bispo); numa verdadeira ode à celebrada cataplana algarvia. Mas a interculturalidade também entra nos convites com Pasta e Basta Um Mambo Italiano. Lembra-se de Sophia Loren, a voluptuosa Smargiassa, pois a pasta italiana apresenta-se também ela recheada de volúpia e é a estrela do teatro culinário que propõe uma experiência única (Novembro, Rogil, Aljezur e Monchique). A festa continua com o Terras de Maio num desafio a passar pelo Azinhal em Castro Marim e deixar-se levar pelos segredos que a serra conserva na arte de bem-fazer no que toca à gastronomia. Não deixe de marcar na sua agenda porque o 365 Algarve convida a lambuzar-se.
Enche-nos a alma e à parte do que já tem de presença no campo dos festivais, o 365 tem várias propostas no que respeita à música. A Gala do Acordeão promete arrebatar os amantes deste instrumento em Faro, a 4 de Novembro, numa homenagem a Hermenegildo Guerreiro, o grande mestre. Conchorta é a proposta para Monchique e Aljezur, também em Novembro, num apelo à vida de hortelão pela mão de Biagio Biagini e de Luigi Carlone que prometem enlevar-nos nesta horta onde crescem canções pop, rock e modernas que contam as histórias das beringelas, dos pimentos e das courgettes. Já o Jazz nas Adegas é a incontornável chamada entre Janeiro e Março num brinde que junta os vinhos regionais e a excelência do género musical. Os espaços das quintas e vinhedos do Algarve feitos palco de mil sons é o fascínio proposto neste encontro de todo improvável e, antes, mais do que provável entre os etílicos dos dois mundos. Venha daí e deixe-se embalar pelas notas e melodias deste 365 Algarve que promete dar o tom de uma invernia bem mais cultural.
... e muito mais
Música
Festivais
(Re)Visite todo o Algarve num périplo pela Cultura de Outubro até Maio
Destacámos muito do que pode ver, ouvir, sentir e viver no 365 Algarve, que abraça a segunda edição a partir de agora. Mas o muito mais do programa cultural regional de Inverno estende-se pelas exposições, espraia-se pelo teatro, espreguiça-se na animação do património, enrola-se no circo contemporâneo e cobre-se também com a sétima arte. Tudo para que não fique nem na cama, nem no sofá, que a vida faz-se vivendo e a cultura é mais do que razão para que abandone o aconchego de casa e se deixe aquecer pelo muito que há para viver. Há dias assim e o 365 Algarve quere-os todos plenos de emoção, devaneio e ilusão. Pode saber tudo sobre o que acontece por estes dias e até Maio no site do 365 Algarve e agora que já sabe, o que faz ainda aí?! •
Toda a programação em 365algarve.pt
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20.10.2017
Cultura.Sul
Letras e leituras
A Queda de um Homem: Um Deus em Ruínas, Kate Atkinson fotos: d.r.
Paulo Serra
Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL
Kate Atkinson, nascida em York (Grã-Bretanha) em 1951, conseguiu a proeza de ganhar o Prémio Costa pela terceira vez com esta obra que é um complemento, não uma sequela, segundo palavras da própria autora, de Vida após Vida, o seu romance anterior, igualmente premiado com o Costa e publicado pela Relógio d’Água. A autora teve ainda duas outras obras publicadas em Portugal. Retratos de Família, o seu romance de estreia e vencedor do Costa, com o título original de Behind the Scenes at the Museum, data de 1995 e foi publicado uns anos depois pela Planeta Editora, que também traduziu e publicou Croquete Humano. Vida após Vida, publicado pela Relógio d’Água em 2014, assenta numa ideia original. Na contracapa do livro pode ler-se: «Em 1910, durante uma tempestade de neve em Inglaterra, um bebé nasce e morre sem que tenha tempo de respirar. Em 1910, durante uma tempestade de neve em Inglaterra, o mesmo bebé nasce e vive para poder contar a aventura.». Ou, dito de outra forma, para poder contar a História. A história de Vida após Vida, como o título indica, é uma sucessão de desfechos alternativos, mas se ao início esses desfechos alternativos parecem cingir-se àquilo que aconteceria se Ursula sobrevivesse às várias mortes por que passa, depois começam a estar mais amplamente relacionados com o próprio livre arbítrio da personagem e das decisões que toma. A vida de Ursula desdobra-se numa míriade de vidas possíveis, até que, no fecho do primeiro capítulo, localizado temporalmente em Novembro de 1930, quando Ursula entra num café e dispara sobre Hitler, se pressente que a ideia central ao romance é não só a eterna questão de “E se eu tivesse decidido assim ou optado por ali” mas sim a de “E se fosse possível prever o futuro e reescrever a História?”. Nas palavras da própria heroína: «Uma vez ouvi alguém dizer que a presciência era uma coisa maravilhosa, que com ela não haveria história.» (pág. 428). Piloto de guerra Em Um Deus em Ruínas, publicado em Setembro de 2017, a autora centra-se agora em Teddy, Edward Todd, o irmão mais novo de Ursula e piloto do Comando de Bombardei-
Kate Atkinson já ganhou três prémios Costa ros. Ursula Todd, numa das suas várias vidas, é uma presença constante, até porque é a irmã preferida, e provavelmente a amizade mais sólida, de Teddy. A sua presença é contudo quase sempre indirecta, quase fantasmática, através de à partes que são relembrados por Teddy. W. G. Sebald, em História Natural da Destruição, referia que há muito pouca literatura sobre a guerra aérea que devastou a Alemanha. Pois, neste romance Kate Atkinson centra-se justamente no Blitz de Londres e na campanha de bombardeamentos estratégicos contra a Alemanha. Há uma aturada pesquisa histórica, que, aliás, perpassa na escrita, nunca de forma enfadonha, nas descrições pormenorizadas dos voos e dos pormenores associados à guerra, sendo que os episódios narrados são sempre baseados em factos reais. Existem momentos em que podemos mesmo visualizar vividamente as cenas. Mas este não é apenas um romance sobre a Segunda Guerra Mundial. É sobretudo um romance sobre a vida e as várias guerras que combatemos ao longo da vida, como a doença, a velhice, as relações familiares, ou tão simplesmente o esquecimento. Não é um romance em que se entre de ânimo leve. Levamos tempo a entrar na história, até porque temos de nos adaptar aos constantes saltos narrativos e ao desajuste cronológico na narração. Afinal, se tivéssemos de arriscar um motivo pelo qual este livro arrecadou o prémio Costa seria pelo tratamento do tempo. Não pelas prolepses ou analepses, que são constantes, nem ao facto de os capítulos, todos eles datados com um ano (entre 1925 e 2012), serem desordenados cronologicamente. Mas sim porque em poucas linhas os planos temporais enovelam-se
e quase perdemos o fio à meada, não fosse a perícia com que a autora tece o fio do tempo. Usar a metáfora de que ler este romance é como nos perdermos num labirinto seria incorrecto. Aqui andamos numa sala de espelhos, em que o passado faz luz sobre o futuro e o futuro se projecta no passado, à medida que um homem, num século que não é mais o seu, se apercebe de como a vida vai ruíndo apesar da sua bondade e da sua integridade. São características marcadas na escrita da autora o forte sentido de humor, capaz de arrancar pequenas gargalhadas, muitas vezes através de pequenos à partes que pontuam a narrativa, e uma prosa elegante, polvilhada de humor e ironia. Um humor tipicamente britânico, que aliás caracteriza fortemente Fox Corner, o espaço da juventude de Teddy e de Ursula, que convida a um certo distanciamento e olhar crítico sobre a realidade. Escreve a própria autora, na sua nota pessoal, que se lhe perguntassem do que trata este romance ela responderia «que é um romance sobre a ficção literária (e a necessidade de imaginar aquilo que não podemos conhecer) e sobre a Queda (do Homem)» (p. 387), sendo que proliferam no romance referências literárias alusivas a isso mesmo (há constantes citações e alusões literárias no romance, indicadas em notas finais). Este Deus em ruínas de que fala o título é também a fragilidade da condição humana, mesmo quando o Homem se arroga a ser Deus, é uma Europa que se perdeu e um passado irrecuperável, simbolizado pelo idílio de Fox Corner, a morada da inocência de Teddy: «A guerra fora um abismo aterrador e não havia forma de regressar ao outro lado, às
vidas que haviam tido antes, àqueles que tinham sido antes da guerra. Isto valia tanto para eles como para o resto da Europa, pobre e em ruínas.» (p. 75) E o que existe para lá da guerra? Mas não se pense que este romance trata apenas de guerra, pois findas as batalhas aéreas travadas por Teddy e vencida a guerra pelos Aliados, uma boa parte dos capítulos posteriores a esse período tratam da difícil relação de Teddy com a sua filha Viola, bem como da relação desta com os seus filhos, Sun Edward Todd (Sunny) e Moon Roberta (Bertie). É curioso como os netos de Teddy, este pólo Sol-Lua, parecem configurar uma sobrevivência da personagem do avô e da sua irmã Ursula. No caso de Sunny através do nome de Edward Todd que este herda do avô e no caso de Bertie porque é ela quem tem a relação mais forte com Teddy, e muitas vezes surgem reminiscências dos seus à partes de que Teddy nos dá conta conforme os recorda, tal como antes acontecia com Ursula, enquanto esta era viva. Existe a certa altura surpresa por parte de alguém em relação à pacatez da vida de Teddy, tendo ele sido um sobrevivente e um herói medalhado da guerra. Mas encontraremos depois uma explicação possível: «Tinha feito uma promessa, uma promessa secreta ao mundo, nas suas longas vigílias noturnas: se sobrevivesse, no grande futuro que depois viria, tentaria ser amável e levar uma vida digna e tranquila. Como Cândido, cultivaria o seu jardim. Discretamente. E seria essa a sua redenção. Ainda que só pudesse acrescentar uma pena ao prato da balança, seria a sua forma
de restituição por ter sido poupado. No fim de tudo, quando chegasse a altura de ajustar contas, talvez essa pena lhe pudesse valer.» (p. 337). Esta pena é símbolo (e não será por acaso que aparece como motivo da belíssima e enigmática capa do livro) da queda que se segue ao voo, pois se as aves são uma constante, a começar pelo canto da cotovia e a terminar nos pombos caçados pelos falcões, a pena simboliza aqui a efemeridade, a queda fatal após a ascensão, as vidas que se perderam no prato da balança da guerra e da injustiça humana. Correndo o risco de desvendar o final ou a grande surpresa, este livro joga ainda de forma muito original com a questão da ficção, da literatura como fantasia e criação de um real alternativo, de um mundo possível. A autora defende-se, na nota final, de que não tenta escrever pósmodernices. E se pensarmos na realidade da guerra que serve de fundo a esta história em torno da vida de Teddy percebemos que é de facto quase inverosímil acreditar neste piloto como um felizardo que sobreviveu a todas as suas missões, quando na verdade os soldados eram usados como carne para canhão e morriam: «Todos eles na flor da idade.» (p. 339). Tinham também um conhecimento deturpado do efeito das suas campanhas: «Cinquenta e cinco mil, quinhentos e setenta e três mortos no Comando de bombardeiros. Sete milhões de alemães mortos, dos quais quinhentos mil mortos pela campanha de bombardeamento dos Aliados. No total, a Segunda Guerra Mundial custou a vida a sessenta milhões, incluindo os onze milhões assassinados no Holocausto.» (p. 374). •
Cultura.Sul
Ficha técnica: Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Ricardo Claro
20.10.2017
Espaço ao Património
Práticas de animação teatral no património museológico
Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus • Da minha biblioteca: Adriana Nogueira • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Espaço ao Património: Isabel Soares • Filosofia dia-a-dia: Maria João Neves • Juventude, artes e ideias: Jady Batista • Letras e literatura: Paulo Serra • Missão Cultura: Direcção Regional de Cultura do Algarve • Panorâmica: Ricardo Claro • Quotidianos poéticos Pedro Jubilot Colaboradores desta edição: Mário Rui Filipe, Rafael Morales Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com on-line em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve
facebook: Cultura.Sul Tiragem: 5.708 exemplares
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foto: beatriz frazão
Mário Rui Filipe
Professor e director do Curso Profissional de Artes do Espectáculo da Escola da Bemposta - Portimão
A prática da animação teatral e performativa no Museu de Portimão insere-se num plano contínuo de trabalho que põe em relevo questões como a identidade local, a representação fictícia de um passado pré-histórico, criando com isso imagens na memória colectiva do público, traçando um imaginário que nos aproxima dessa era. No fundo, a animação teatral que os alunos do Curso Profissional de Artes do Espectáculo da Escola da Bemposta em Portimão fazem, é sobretudo, de rigor na sua performance, pois têm objectivos essenciais como: foco no público; trabalhar a presença em cena; utilizar o corpo como ferramenta de atenção e memória; comunicar com o público, seja por palavras, gestos, provocação, riso. Desde há três anos que colaboramos activamente com o Museu de Portimão em vários eventos ao longo do ano, sobretudo no Dia da Pré-História, em Alcalar; nas Noites do Museu, quando se comemora o aniversário do Museu de Portimão e nas apresentações da Maratona Fotográfica, entre outras colaborações. Além do Teatro, alunos de Música Clássica e Jazz da mesma escola têm participado. O que é interessante revelar é como esta parceria tem feito crescer ambos os lados desta ponte. Nós, pois além de podermos fora da escola exercitar todas as técnicas, dá-nos visibilidade institucional, bem como aos actores que nela participam, que podem dar largas à sua criatividade e intuição sensível perante o público. Além de que um espaço como o Museu de Portimão, sendo um edifício de múltiplos cenários, permite em cada um deles realizar um trabalho de “Site Specific” deveras interessante. Em Alcalar, todo aquele imenso espaço aberto ao ar livre, permite outras valências criativas, como a exploração de imagens em grande formato,
O Xamã de Alcalar utilizando o corpo, os gestos e os objectos como matérias palpáveis dessa visibilidade. Além disso, os rituais xamãnicos da morte, trazem surpresa e uma atenção que aproxima o público dos actores. Sendo um espaço na paisagem, a voz, o eco e todas as sensações sonoras, como tocar um instrumento, aumentam essa percepção de envolvimento total naquele espaço, o que cria uma verdade perante a ficção histórica que estamos a assistir. O teatro tem este poder de congregar uma visibilidade nos locais onde decorre o espectáculo, a animação, a performance. A arte tem sempre este poder
de dar a conhecer e mostrar, de um modo ficcionado e por vezes catártico, não só uma história, mas sobretudo os locais, o que faz com que esse local produza novas linguagens na memória do espectador. Quantas vezes não acontece alguém ir ver um espectáculo, por exemplo numa igreja ou num museu e depois ter vontade de lá regressar, noutro contexto, para desbravar outras imagens e memórias que lhe foram dadas de um modo diferente por esse espectáculo. Portanto, tenho sempre presente esta ideia de que o teatro pode efectivamente congregar e reunir pessoas numa comu-
nhão de afectos e sensibilidades, de memórias e de histórias, proporcionadas pelos actores e pelas estórias que os mesmos recriam. Considero que os Museus e todos os espaços patrimoniais têm muito a ganhar com cada vez mais colocarem as artes de palco no meio deles. Porque traz novas pessoas, porque as sensibiliza para descobrirem novos detalhes de um espaço ínfimo no Museu, na Igreja, nas ruínas. Ou seja, os Museus e todo o património edificado são potenciais cenários para a criação de mundos ficcionais. E enquanto os cidadãos não tomarem em conta a importância da arte e
das ficções para as nossas vidas, não se produzirá a necessária mudança de mentalidades, de gestos e atitudes perante a realidade. Porque a arte ajuda a sensibilizar, a respeitar as diferenças, a redescobrir o outro e a si próprio, confrontando-o com os seus ideias e utopias, permitindo criar novos mundos, porventura mais justos, mais criativos e apaixonantes. A vida não pode ser apenas economia e finanças. São-nos úteis, mas o que nos completa como seres sociais e culturais é a arte, a verdadeira arte que desperta sentidos e emoções escondidas no âmago da nossa alma. •
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Cultura.Sul
Marca d'água
Um mar que nos une… Cultura Brasileira - Uma semana inteira
“O que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós”.
fotos: d.r.
Maria Luísa Francisco Investigadora na área da Sociologia; Vice-directora da Revista Nova Águia
luisa.algarve@gmail.com
A Semana do Brasil no Algarve é um evento cultural que decorreu pelo segundo ano consecutivo nesta região, criando pontes entre o Brasil e Portugal, através de participantes de ambos os países, não esquecendo o contexto ibérico, com participação de poetas do país vizinho. O Consulado-Geral do Brasil em Faro promoveu a iniciativa e apresentou uma ampla oferta cultural, entre 8 e 15 de Outubro, com eventos em Sagres e Faro. Enquanto coordenadora no Sul do Movimento Internacional Lusófono (MIL) congratulo-me com esta iniciativa e parceria, que incluiu a apresentação do 20º número da Revista Nova Águia, revista de cultura, ensaio e poesia, que é o órgão de comunicação deste Movimento, tal como no início do Séc. XX, a Revista Águia foi o órgão de comunicação do Movimento da Renascença Portuguesa. Poderá ser lido na Revista um artigo intitulado Literatura e Diplomacia: algumas reflexões, da autoria do vice-cônsul do Consulado-Geral do Brasil em Faro, Cláudio Guimarães dos Santos, grande impulsionador da Semana do Brasil. Clarice Lispector e os seus fascinantes horizontes poéticos
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Quando penso em literatura brasileira ocorrem-me alguns nomes marcantes, mas gostaria de referir Clarice Lispector pelo fascínio da sua obra literária e dos seus horizontes poéticos. A minha intervenção na mesa-redonda intitulada “Poesia Brasileira: um olhar estrangeiro”, não permitiu alongar-me muito, uma vez que eramos seis poetas a intervir. Aqui ficam algumas das palavras sobre
Análise de parecenças de algarvios com personalidades da literatura internacional, da autoria de Adília César Clarice Lispector e o estímulo à leitura de uma incontornável escritora brasileira. Clarice Lispector nasceu na Ucrânia em 1920 e foi para o Brasil ainda criança de colo, naturalizando-se mais tarde como brasileira. Os seus ensaios, crónicas, contos e textos, sejam mais ou menos poéticos, falam de realidades do dia-a-dia, de forma intensa e ao mesmo tempo com uma subtileza que não deixa o leitor indiferente. Quando se começa a ler Clarice Lispector, quer saber-se mais e compreender esta mulher enigmática, tal como as subtilezas do seu universo discursivo. O Prof. Doutor Carlos Mendes de Sousa, professor de literatura brasileira na Universidade do Minho, que escreveu a sua tese de doutoramento sobre Clarice Lispector, tem dois livros que ajudam a compreender melhor a escritora. Um deles intitulado Clarice Lispector - Figuras da Escrita (2000), obra com a qual conquistou o Grande Prémio de Ensaio da Associação Portuguesa de Escritores (APE) e outro Clarice Lispector - pinturas (2013). Neste mais recente livro apresenta as artes plásticas como uma parte relevante na vida de Clarice, e como a pintura foi fundamental para a sua criação literária. O livro apresenta várias das obras plásticas da artista, num género de “abstra-
cionismo naïf”. O professor da Universidade do Minho refere que a pintura era “um modo de se interrogar no interior do ato criativo, algo mais próximo de trazer paz e catarse do que a investigação das sombras da sua literatura. Era, então, a sua forma mais pura de se expressar”. Carlos Mendes de Sousa referiu na Feira do Livro do Porto que “a novidade de Clarice advém em grande medida da assunção do seu lugar a partir de um estranhamento projectado na afirmação de um território-língua (…). A sua biografia revela-nos o fascinante encontro consigo mesma”. 'Não se esmaguem com palavras as entrelinhas' Quando lemos Clarice Lispector sentimos a sua angústia, essa procura e insatisfação que ela transmite. Intui-se que há mistério, começamos a vislumbrar as entrelinhas, a entrar no indizível. Ela tanto é irónica e dura no que escreve, como é delicada e fluída numa fascinante prosa poética. “Já que se há-de escrever, que pelo menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas”. (Clarice Lispector) Quem escreve sabe o que é sentir-se de mãos vazias, sabe o que é escrever e sentir que ainda não é o tempo de partilhar, conhece a
“PRAIA”
As escolhidas, Até 3 DEZ | Museu série de Municipal 12, 1994. deSépia Faro s/ papel. Col. Centro de Arte Contemporânea Ana André reúne nesta exposição um conjuntoGraça Morais de trabalhos que retratam a memória dos tempos em que passava os verões da sua infância na Praia de Faro
solidão de escrever, o refúgio na palavra, essa matéria viva! Por isso gostei deste trecho de A paixão segundo G.H.: “A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la - e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas - volto com o indizível”. Já conhecia alguns textos “clariceanos”, mas passei a interessar-me mais quando há cerca de dois anos a escritora Adília César publicou no seu Facebook um jogo de parecenças entre pessoas do meio cultural algarvio com personalidades da literatura internacional. Achei curioso e procurei saber se também haveria parecenças ao nível do sentir a palavra. Pensei que Clarice fosse também uma mulher escorpião, é muito intensa. Afinal é uma sagitariana, daquelas escritoras que não têm medo de “sentir demais”. A sua escrita é tocante e a sua história de vida é cheia de sofrimento, com a perda da mãe aos oito anos de idade. Num excerto de uma crónica sua, li um parágrafo sobre a vida e a escrita: “Adestrei-me desde os sete anos de idade para que um dia eu tivesse a língua em meu poder. E, no entanto, cada vez que vou es-
Clarice Lispector (1920-1977)
crever, é como se fosse a primeira vez. Essa capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que eu chamo de viver e escrever”. Há quem considere Clarice Lispector um Fernando Pessoa no feminino, pelo desassossego que provoca e porque os dois partilham um amor assumido pela língua portuguesa. Ambos escritores lusófonos, com um mar intenso de palavras que os une… A autora prende o leitor com o mistério e o jogo de palavras. Refere sobre si própria: “Sou tão misteriosa que nem eu me entendo”. Ao mesmo tempo há nela transparência: “Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro dos nossos pensamentos”. Clarice Lispector morreu em 1977 no Rio de Janeiro, vítima de doença oncológica. Deixou mais de 20 obras publicadas, sendo as principais: Perto do Coração Selvagem, Sopro de vida, O lustre, Laços de Família, A descoberta do Mundo – crónicas, Felicidade Clandestina, A Paixão segundo G. H., Água Viva entre outras. As últimas palavras, já no hospital, foram: “Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita. Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de uma saudade. Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. E a lágrima que não se chorou. Tem o imaterial peso da solidão no meio de outros”. Bibliografia: Lispector, C. (2013). A descoberta do Mundo - crónicas. Lisboa: Relógio d'Água. Lispector, C. (2000). A paixão segundo GH. Lisboa: Relógio d'Água. Sousa, Carlos Mendes de. (2000). Clarice Lispector - Figuras da Escrita. Braga: Universidade do Minho. Sousa, Carlos Mendes de. (2013). Clarice Lispector - Pinturas. Curitiba Brasil: Rocco. https://www.escritas.org/pt/clarice-lispector •
“TALEGUINHO – COSTURAR CANTIGAS E HISTÓRIAS” 22 OUT | 21.30 | Cine-Teatro Louletano Performance proporciona uma experiência de contacto com o património imaterial tradicional, permitindo às crianças, pais e educadores o alargamento dos conhecimentos sobre a música tradicional
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Cultura.Sul
Da minha biblioteca
Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie fotos: d.r.
Adriana Nogueira
Classicista; Professora da Univ. do Algarve adriana.nogueira.cultura.sul@gmail.com
Li recentemente um livro que me surpreendeu. Recomendado por uma amiga, venci a inércia que as suas 712 páginas me tinham inicialmente imposto e em boa hora o fiz: refiro-me a Americanah, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie (nascida em 1977). De que trata o livro?
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«Porque é que as pessoas perguntavam “Sobre que é?” como se um romance tivesse de ser só sobre uma coisa?» (p.291). Este livro é assim mesmo, sobre muita coisa. A mim, o tema que mais me tocou foi a questão da cor da pele, como pano de fundo, associada à emigração: assuntos como racismo, uso de palavras como preto ou negro; a integração numa sociedade nova; o retorno ao país de origem. O romance começa com uma mulher nigeriana, Ifemelu, que vive na América e vai a uma cabeleira especializada em cabelos africanos, para entrançar o cabelo. Prepara-se para voltar à Nigéria, depois de 13 anos (e já com nacionalidade americana) nos EUA. Logo nas primeiras páginas resume-se o que se vai passar no final (a partir da p.575) «Tu vais fechar o teu blogue e vender o teu apartamento para voltar para Lagos e trabalhar para uma revista que não paga assim tão bem como isso – tinha dito a tia Uju, e voltara a repetir, como se para fazer Ifemelu ver a gravidade da sua asneira. Só a sua velha amiga em Lagos, Ranyinudo, fizera o seu regresso parecer normal. “Lagos está agora cheia de retornados americanos, por isso é melhor
Livro de Chimamanda Ngozi Adichie faz reflectir sobre o racismo tu voltares e juntares-te a eles. Todos os dias se veem muitos deles com uma garrafa de água na mão, como se morressem de calor se não bebessem água a toda a hora”» (p.28) O blogue de uma Negra Não Americana Alguns dos passos mais interessantes do livro são aqueles que citam o blogue de Ifemelu, salpicados ao longo desta obra. São momentos de reflexão numa linguagem descontraída, normalmente com humor, mas, nem por isso, menos séria. Ifemelu mantém-se anónima, para ter mais liberdade e «representar» mais povos que não apenas o seu, assinando os textos como Negra Não Americana. As entradas do blogue são extensas, porém, vou tentar deixar aqui alguns excertos: «Caros Negros Não Americanos, quando optam por vir para a América, tornam-se negros. Deixem de argumentar. Deixem de dizer «Sou jamaicano» ou «Sou do Gana». A América não quer saber. Que interessa que não fossem “negros” no vosso país? Agora estão na América. Todos nós temos o nosso momento de iniciação à Sociedade de Ex-
-Negros. A minha foi numa aula na faculdade, quando me pediram que apresentasse a perspetiva de uma negra, só que eu não fazia ideia do que isso fosse. Por isso, inventei qualquer coisa. […] Quando é noticiado um crime, rezem para que não tenha sido cometido por um negro e, se tiver sido cometido por um negro, mantenham-se longe do local do crime durante semanas ou correrão o risco de serem mandados parar por corresponderem ao perfil do criminoso» (pp.337-339). «Um Agradecimento a Michelle Obama e o Cabelo como Metáfora da Raça» Este livro fez-me olhar para mim e ver quão longe eu estava de situações tão básicas que se passarão também aqui, ao nosso lado, e que eu nem sabia que poderiam ser um problema: o modo de apresentar o cabelo. Para conseguir um emprego, aconselharam Ifemelu a alisar o cabelo. Ao fim de um tempo, decidiu mantê-lo natural. «Na cafetaria, Miss Margaret, a afro-americana de peito grande que presidia ao balcão – e que, para além de dois seguranças,
“GRUPO ART VISION” 31 OUT | 21.00 | Centro Cultural de Lagos O repertório do grupo engloba composições originais e danças dramáticas coreografadas por Ileana Citaristi, uma devota discípula do Guru Kelucharan Mohapatra
era a única outra negra da empresa […]. Alguns anos depois, no dia em que Ifemelu se demitiu, foi à cafetaria para um último almoço. – Vai-se embora? – perguntou Miss Margaret, abatida. – Lamento, minha jóia. Eles precisam de tratar melhor as pessoas cá. Acha que o seu cabelo foi parte do problema?» (pp. 324-5). No blogue, escreve uma entrada com o título em epígrafe: «Uma amiga branca e eu somos fãs da Michelle Obama. Então, no outro dia, eu digo-lhe: “Pergunto-me se a Michelle Obama tem extensões, o cabelo dela parece ter mais volume e aquele calor do secador todos os dias deve estragá-lo.” E ela diz-me: “Queres dizer que o cabelo dela não cresce assim?” Então, serei só eu a achar ou não será isso a perfeita metáfora da raça na América, ali mesmo? O cabelo. Já alguma vez repararam, naqueles programas de transformação do aspeto de uma pessoa, em como uma mulher negra aparece com cabelo natural (áspero, encrespado, com quebras ou encaracolado) na imagem feia “antes” e na bonita fotografia “depois” alguém lhe foi com um metal em brasa e lhe chamuscou o cabelo até
lho alisar? […] Quando se tem de facto o cabelo natural de negra, as pessoas pensam que se “fez” alguma coisa ao cabelo. Na realidade, as pessoas com penteados afro e com rastas são as que não “fizeram” nada ao cabelo» (pp.450-451).
Tratar, em menos de 7000 caracteres as mais de 700 páginas do livro é muito difícil. De fora ficaram temas tão profundos, e com os quais também tive de lidar e perceber os meus preconceitos, como a exploração dos emigrantes ilegais em Inglaterra (nos capítulos dedicados à experiência de Obinze naquele país), a aculturação, a resistência a isso (como a recusa de Ifemelu em aderir à pronúncia americana), ou o choque do regresso a casa. E também ficou de fora a vida na Nigéria, antes e depois da guerra e das ditaduras, assim como a história amorosa dos protagonistas, Ifemelu e Obinze. Um livro que pôs a nu a minha ignorância. A ler mais desta autora, sem dúvida. •
Preto ou negro e o privilégio branco Quando Ifemelu fala aos pais do namorado americano, dá-se esta conversa: «– Um preto americano? – perguntou o seu pai, soando perplexo. Ifemelu desatou a rir. – Papá, já ninguém diz preto. – Mas porquê um preto? Há uma escassez substancial de nigerianos aí?» (p. 476). A questão da raça colocou-se apenas porque, na América, ser negro é estar no fim de tudo: de uma escala social e, supostamente económica (mesmo quando não é verdade). Associada, está a questão do privilégio. Como se diz numa das entradas no blogue, «É uma Chatice Ser Pobre e Branco, Mas Experimentem Lá Ser Pobre e Não Branco» (p. 523).
A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie “A NOVA HISTÓRIA DO COELHINHO BRANCO” 21 OUT | Teatro das Figuras - Faro Trata-se de um espectáculo de teatro com uma actriz e com amigos bonecos convidados. Juntos levarão as crianças por uma nova aventura cheia de peripécias divertidas
Última Quotidianos poéticos
Luís Ene mo a escrever, estou-me nas tintas para o dia, hora ou estação do ano, ainda que goste sobretudo de escrever muito cedo, desde a alvorada, e tenho pouco tempo no meu dia-a-dia, pelo menos mental, para escrever. Julgo que a brevidade se instalou na minha escrita por esse motivo, ainda que um texto breve possa exigir mais tempo do que parece e solicita muitas vezes a experiência de toda uma vida.
Pedro Jubilot
pedromalves2014@hotmail.com canalsonora.blogs.sapo.pt
Luís Nogueira, que assina o que escreve como Luís Ene, tinha 16 anos em 25 de Abril de 1974 e reside actualmente em Faro, onde passou grande parte da sua infância e a adolescência. O seu livro mais recente – "Guru de Algibeira" (Sílabas&Desafios, 2017) - é um pequeno grande livro de conselhos e de epifanias que leva a escrita breve aos limites entre a vulgaridade mais óbvia e a sabedoria mais profunda. Uma escrita cheia de paradoxos, como a vida. E de ironias. Em 2002, foi vencedor da 1ª edição do concurso Novos Talentos com o romance "A Justa Medida", publicado pela Porto Editora. Criou o blog Mil e Uma Pequenas Histórias, fazendo em simultâneo a sua entrada no mundo dos blogs e na arte da micro-narrativa. Manteve vários blogs e publicou os livros: "Blogs" (em colaboração com Paulo Querido); "Mil e uma pequenas histórias" (Leiturascomnet, 2005); "Muchas vezes me sucede olvidar quien soy" ( colecção Palavra Ibérica, 2006); "Saudade de água : memórias de Faro" (Cão Danado, 2011) e "Escrever é dobrar e desdobrar palavras à procura de um sentido" (Lua de Marfim, 2016). Está representado em diversas antologias de poesia e conto. Foi fundador e co-editor da Minguante, revista de micro-narrativas on line. Manteve durante dois anos um programa semanal dedicado à literatura na Rádio Universitária do Algarve. Esteve na origem dos grupos literários Sulscrito e Texto-al. Mantém actualmente o blogue Ene Coisas (em http://luis-ene. blogspot.com). É membro da associação Literatura Reunida. Detesta notas auto-biográficas. Como é o quotidiano do teu poeta ou eu poético? Como vives com a poesia da/na tua vida? No outro dia, um amigo, que é poeta, dizia-me que enquanto ele era poeta apenas quando escrevia, eu, por outro lado, era sempre poeta. Num país em que se insultam as pessoas dizendo-lhes que são uns grandes artistas
fotos: fernando dinis
/ d.r.
forma de a divulgar. O blogue ainda está acessível no seguinte endereço: http://1000euma.blogspot.pt/. Como então dizia, a concluir, “Foi uma estrada longa, uma lição de paciente e teimosa persistência que espero nunca esquecer.” Autores que gostas ou que possas dizer te inspiram a escrever? Se quiser indicar os livros que mais influenciaram a escrita breve que tenho sobretudo escrito, terei de indicar os ‘Contos do Gin-Tónic’, de Mário Henrique Leiria e as ‘Tisanas’ (as últimas são 463) da Ana Hatherly. O primeiro pela surpresa da sua escrita libertária, o segundo pela experimentação e disciplina poética. Mas depois disso li muito e gostaria de continuar a ler cada vez mais e melhor.
Luís Ene considera a escrita o seu maior vício – estejam com atenção em momentos de maior aperto rodoviário – não sei se ser sempre poeta será um elogio, no entanto acredito que existe poesia fora do poema e estou sempre disposto a encontrá-la no meu quotidiano. Não sei o que é a poesia, mas talvez seja esse mistério indefinível que existe no quotidiano e a que muitos poemas tão bem conseguem dar forma. Devo começar por confessar que não me sinto um poeta, ainda que aceite que a minha escrita tem muito de poesia. Foi sem dúvida o meu gosto pela concisão que me aproximou da poesia e se é verdade que escrevo sobretudo prosa, não é menos verdade que há muito existem poemas em prosa. A minha prosa, como alguém já disse, tem todas as virtudes da poesia, e eis algo com que eu posso viver e que gostaria de acreditar, todavia prefiro considerar-me um escritor a um poeta, ainda
que não enjeite ou despreze esse título. Consegues escolher o livro de tua autoria teu preferido? O mais relevante? O meu livro preferido é sempre o que estou a escrever e infelizmente neste momento não estou a escrever livro nenhum. O meu projeto preferido, e poderia chamá-lo livro, ainda que nunca tenha verdadeiramente sido publicado integralmente, foi o Mil e Uma Pequenas Histórias, com que me aventurei no mundo da escrita breve e em que experimentei quase tudo o que podia escrever nesse formato. Decidi escrever e publicar num blogue com o mesmo nome, mil e uma pequenas histórias, em formato de diário, alimentado todos os dias e que, começado em 2012, terminei em 2015. Esta experiência marcou profundamente a minha escrita bem como a
Já ninguém usa caneta e papel, quanto mais máquina de escrever, que material usas para escrever? Como a minha escrita é habitualmente breve, privilegio a escrita com caneta e papel, e confesso que me sinto mais próximo de mim e da minha verdade quando o faço. A escrita assim realizada está mais próxima do corpo e da respiração, sensação que em mim de outra forma se perde. A mão que escreve faz mais sentido assim. E onde? Sou, como dizia certo artista plástico, um rapaz de cafés, e gosto de escrever em cafés, ainda que, da forma como os concebo, estejam praticamente em vias de extinção. Gosto de observar as pessoas, de as ouvir, de as surpreender, e o café é ainda o melhor lugar para isso, em que podes estar presente e no entanto quase invisível. Quando (dia, hora, estação do ano) escreves? Quando escrevo, quando estou mes-
Vícios, manias e segredos relacionados com a tua escrita … Não consigo separar a minha escrita da minha vida, e esse talvez seja o meu maior vício, pelo menos vícios que possa e queira aqui revelar. A escrita é vício suficiente, que sinto a maior parte do tempo ficar aquém de satisfazer. Que livro de poesia estás a ler, leste recentemente? Estou a ler ‘Todas as Palavras’, poesia reunida, de Manuel António Pina. Tenho várias antologias de vários poetas, de consulta constante, e esta foi a última que comprei. Não te limitas a escrever, participas activamente na vida cultural. És membro de associações, e organizas festivais, eventos, tertúlias ou recitais e performances…. Tenho tentado não só não confundir literatura com livro como aproximá-la o mais possível da vida de todos os dias e toda a minha atividade vai nesse sentido. Ainda há pouco me perguntavam se queria planear leituras no mercado municipal e eu respondi que era uma boa ideia e ia pensar nisso. Continuo a acreditar que a literatura toca-nos no que temos de mais humano e é preciso aproximá-la das pessoas, surpreendendo-as nos locais onde menos estariam à espera. A microficção surgiu-me muitas vezes, pela sua breve profundidade, como uma forma eficaz de chamar leitores à literatura. Sinto-me inspirado pela afirmação de José Saramago de que somos todos escritores, só que alguns escrevem e outros não. •
Um poema inédito de Luís Ene…
Bem feitas as contas o pouco que fica do muito que se perde é tudo o que somos O resto é nada