CULTURA.SUL 112 9FEV2018

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Mensalmente com o POSTAL

FEVEREIRO 2018 | n.º 112 5.344 EXEMPLARES

www.issuu.com/postaldoalgarve

Juventude, artes e ideias d.r.

Hoje Não Há Teatro II

Pedro Jubilot:

O último artigo da rubrica Quotidianos Poéticos resume as últimas entrevistas p. 4 e 5

p. 2

Filosofia dia-a-dia

d.r.

d.r.

O Mistério Íntimo das Coisas

p. 3

Reflexões sobre urbanismo

Os Bairros Históricos

Fevereiro assinala 112 anos do nascimento de Agostinho da Silva p. 10

d.r.

ps. 6 e 7

Espaço ALFA d.r.

EDITORIAL: A colaboração regular do Professor Agostinho da Silva no POSTAL Poète maudit

p. 11

Trinta anos após ter sido primeira página no jornal POSTAL, com o título “Mais e

mais heterónimos...”, o Professor Agostinho da Silva volta a ter honras de primeira pági-

na. Desta vez, é capa no nosso Caderno de Artes & Letras CULTURA.SUL e é a personali-

dade focada na rubrica “Marca d’água”, da colaboradora e investigadora Maria Luísa Fran-

cisco [ler página 10]. (Continua na pág. seguinte)


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Cultura.Sul

Editorial

Missão Cultura

Agostinho da Silva no Postal

Portal da Sé de Silves DRCALG / C. FARIAS, 2018

Direção Regional de Cultura do Algarve

Henrique Freire

Editor geralcultura.sul@gmail.com

(Continuação da capa) Na edição de Abril de 1988 fiz referência no meu editorial que o POSTAL transcrevia parte da sua dissertação dada em Tavira, a que veio propositadamente apenas por algumas horas. Pessoa de poucas saídas e então já com 82 anos, o Professor Agostinho da Silva confessou-nos a sua particular atracção por Tavira. A sua intervenção na abertura do Encontro de Centros de Cultura da Província foi uma lição que soube tocar irreversivelmente quantos estiveram presentes. E, em boa hora, o nosso colaborador Jorge de Sousa (ex-director da Escola Secundária de Tavira) fez a transcrição da gravação feita num texto com muita mestria e que ocupou as páginas de três edições do POSTAL. E na nossa edição de Outubro de 1988, num suplemento cultural denominado Álvaro de Campos - 1890 Tavira 1990 - Agostinho da Silva escreveu uma crónica para os nossos leitores com o título "É a hora". No ano seguinte, em Janeiro de 1989, na rubrica "Perspectivas" assinada por Cristina Giro (actualmente magistrada judicial) e com o título "Vida e Morte de Génios", a autora fazia alusão ao recente falecimento de Salvador Dali e enaltecia a obra do filósofo português contemporâneo Agostinho da Silva. E é no ano seguinte, a partir da nossa edição de 18 de Maio de 1990, que Agostinho da Silva passa a manter uma colaboração regular com o POSTAL, assinando a sua primeira crónica com o título "Um soneto e um breve comentário". Seguiram-se títulos como "O mensageiro", Portugal", "Secretário com muita honra e gosto", "Talvez Portugal tivesse feito bem em não navegar..." e tantos outros, cuja colaboração se prolongou até 20 de Dezembro de 1991 e cujas últimas crónicas assinava como "George Agostinho, vosso irmão-servidor".

Um bom exemplo da interação de entidades da região, envolvidas na preservação do património edificado da região, foi a recuperação do portal da antiga Sé de Silves pela Direção Regional de Cultura do Algarve, que contou sempre com o acompanhamento interessado da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição e da Câmara Municipal de Silves. A intervenção, promovida no final de 2017 no portal principal, em pedra, da antiga Sé de Silves - Monumento Nacional -, permitiu a sua recuperação total. A empreitada realizada incluiu o portal, o varandim exterior e os pináculos, tendo sido efetuado o reposicionamento e consolidação das aduelas nas arquivoltas do portal (cuja instabilidade apresentava perigo para o património e para as pessoas), a limpeza de todas as pedras de silharia e juntas e o refechamento destas, para além da pintura das portas em madeira do acesso principal à igreja e do vão que comunicava o varandim exterior com o antigo coro alto. Os trabalhos decorreram em três fases, envolvendo estudos e trabalhos realizados por empresas especializadas nas diversas fases do projeto, sob encomenda da Direção Regional de Cultura do Algarve. Assim, foi primeiro realizado um estudo de diagnóstico no qual foram identificadas as patologias da pedra, nomeadamente colonização biológica, pátina, zonas com erosão, elementos a reintegrar, infestação de vegetação e patologias estruturais (desligamentos, fraturas, fissuras, fendas na estrutura e lacunas volumétricas); seguidamente

Imagem actual após intervenção

efetuou-se a caraterização dos sais que provocavam a erosão, a lascagem, a desagregação observadas na pedra do portal – calcários dolomíticos de Silves –, cujos resultados permitiram programar uma intervenção consciente e adequada, quer ao nível dos materiais, quer das técnicas a adotar; finalmente, na sequência do procedimento concursal, a execução das obras foi adjudicada a uma empresa especializada pelo valor de 52 mil e 635 euros, comparticipados a 60% pelo CRESC ALGARVE2020. A monitorização e controlo de todos estes trabalhos foi efetuada pela equipa técnica da Direção de Serviços dos Bens Culturais da DRCAlgarve. Simultaneamente, a Câmara Municipal de Silves promoveu a retificação das drenagens das águas pluviais do lado norte da antiga Sé, cujos defeitos eram a causa de muitas das patologias observadas na silharia do portal. Para além dos melhoramentos no imóvel e na segurança dos seus utentes, espera-se que esta intervenção contribua para o aumento das visitas ao monumento, que anualmente ultrapassam já as 45 mil, trazendo benefícios para a economia local e contribuindo para a sustentabilidade de uso da antiga Sé, um dos mais relevantes edifícios monumentais do Algarve, não só devido à sua plena compatibilidade com a fruição turística e religiosa mas também por se tratar de um edifício que – apesar das posteriores alterações e acrescentos, nomeadamente com interessantes exemplares de talha e imaginária – conserva a sua essência claramente gótica, que remonta maioritariamente ao século XV e é contemporânea da primeira globalização comercial da Época Moderna, tendo como particularidade os materiais utilizados na sua construção: o arenito vermelho e os calcários dolomíticos de Silves. 

Juventude, artes e ideias

Hoje Não Há Teatro II

Jady Batista Coordenadora Editorial do J

A Gorda volta a comemorar o Dia Mundial do Teatro, em casa, no Auditório Municipal de Olhão, com uma estreia. Este ano, a companhia leva à cena a peça Hoje Não Há Teatro II, em resultado do sucesso, no ano passado, da primeira peça da série e do apelo do público. A nova peça sintetiza a saga Bailarinas e Pezinhes

de Xumbe, produzida e apresentada entre os anos 2000 e 2010, em que um pretenso encenador procura sem sucesso levar à cena histórias da literatura tradicional, conhecidas de todos, tentando convencer o público de que são escritas por si, com base em factos verídicos passados em Olhão. O que é certo é que, chegado o dia da estreia, tudo falha e, na iminência de não haver espetáculo, o encenador desenvolve um estratagema para ludibriar o público. No ano passado, em Hoje Não Há Teatro, ficámos a conhecer a origem deste encenador, que era afinal o varredor da sala de teatro. Agora, chegou a hora de conhecer, ou relembrar, como evoluiu esta personagem que,

depois de fazer um curso rápido por correspondência, comprar um lenço e um cachimbo, se prepara para vol-

tar aos palcos, agora como diretor, encenador e cabeça de cartaz da sua própria companhia de teatro.  d.r.

A peça volta a ser protagonizada por João Evaristo


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Filosofia dia-a-dia

O Mistério Íntimo das Coisas

Maria João Neves Ph.D Consultora Filosófica

'A Filosofia, logo no seu começo, foi a ruptura do mistério'. María Zambrano, A Metáfora do Coração

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Se formos passear para os lados de Marim, entre pinheiros, caravanas e alguma gaivota mais afoita, encontraremos numa curva do caminho um edifício inaudito! Com quatro frentes orientadas aos pontos cardeais, em escadarias que representam cada uma delas um instrumento musical diferente, ergue-se o palacete modernista, hoje Ecoteca de Olhão. O chalé é quase tão desconhecido quanto o seu excelente dono. Como pode a Lusitânia ignorar João Lúcio Pousão Pereira (1880-1918), poeta olhanence de tão elevado estalão? António Cândido Franco lança algumas luzes sobre este desafortunado esquecimento: “A situação - invulgar num grupo em geral coeso e solidário - deve-se decerto ao afastamento físico do poeta dos centros onde a Renascença Portuguesa se manteve viva, exilado que sempre viveu na ponta sul do País, e ao seu precoce desaparecimento numa situação de calamidade pública, a pneumónica de 1918, que levou à dispersão do seu espólio, ao desinteresse quase generalizado pelo destino póstumo da sua obra e finalmente ao apagamento do seu rasto na sempre tão disputada República das Letras”. João Lúcio faleceu precocemente mas deixou-nos quatro livros de uma riqueza e sensibilidade extremas: Descendo (1901), O Meu Algarve (1903), Na Asa do Sonho (1913) e Espalhando Fantasmas (póstumo 1921). Escassas homenagens lhe fizeram, entre elas destaco a do compositor Ivo Cruz que a João Lúcio dedicou Aguarelas nº 3: Canto de Luar. Hoje em dia peça obrigatória do exame de quinto grau de piano. Esperemos que assim continue, contribuindo para

a memória deste talento que urge perdurar. Para mim, João Lúcio não é apenas poeta, ele é também filósofo. Está nele bem expressa a vontade de saber: “Eu queria poder ver, mas ver com precisão,/ As coisas, e não só a superfície delas.” (Descendo) Tal como María Zambrano (19041991), João Lúcio decidiu escrever contra-corrente. Em plena modernidade, com a razão elevada ao seu máximo esplendor devido às suas virtudes de universalidade e trans-

Também pouco ajudou à popularidade de João Lúcio a sua contemporaneidade com Pessoa (18881935), que tão modernamente dizia na voz do heterónimo Alberto Caeiro, como que respondendo ao poeta olhanense: “O mistério das coisas, onde está ele?/ Onde está ele que não aparece/ Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?/(...) Porque o único sentido oculto das coisas/ É elas não terem sentido oculto nenhum.” (O Guardador de Rebanhos,1925).

da ou um dom momentâneo, pelo contrário, é o resultado de um longo esforço racional que não se compadece com a escuridão inerente aos sentimentos que contêm em si uma centelha de mistério. A questão essencial não reside na imediatez, mas sim nesta escolha entre claridade e obscuridade. Se o que orienta a procura filosófica é a clareza e a distinção, então, não há lugar para horizontes de sombra, para os territórios obscuros onde o coração nos guia. Contudo, diz-nos Zambrano, somend.r.

Chalé João Lúcio, Pinheiros de Marim, Olhão parência, num meio em que prevalecia a severa convicção de que apenas é passível de conhecimento aquilo que pode ser reduzido ao que se crê ser a sua essência - consciência e razão -, Zambrano e Lúcio erguem-se em paladinos das zonas sombrias de mistério e sentimento. “Pela escada que desce ao fundo mist'rioso das coisas/ de tudo aquilo que a vista não alcança/ (...) pela escada que vai para o - Desconhecido -,/ para tudo o que vive estranho ao nosso olhar: Para aquilo que não afecta o nosso ouvido,/ para tudo o que nós não podemos palpar: Por essa escada irei (...). Nesta treva sem fim do mundo mist’rioso, / Em que procuro achar também a claridade...”. (Descendo)

Costumando o olhar à treva do mistério, Até que a treva seja uma luz para mim João Lúcio, Descendo O filósofo rege-se por um imperativo de claridade com que regula os seus esforços de conhecimento de todas as coisas. Descartes (15961650) estableceu-o no seu Discurso do Método ao determinar como critério de verdade a clareza e a distinção. Por seu lado Ortega y Gasset (1883-1955) afirma que a filosofia é “uma vontade de meio-dia, de uma claridade de sol a pino”. Ao contrário da poesia, a filosofia nunca é obra de uma graça recebi-

“MALTA VB” Até 15 FEV | 21.30 | Pavilhão Multiusos da Raposeira – Vila do Bispo Exposição de fatos de Carnaval que foram usados no desfile de Carnaval de Sagres, nos anos de 2012 a 2017, por um grupo de amigos de Vila do Bispo.

te nesses territórios mais carentes de luz, nessas zonas de penumbra, se poderá, talvez, aceder àquilo que verdadeiramente importa. O padecer quando se experimenta nos seus momentos mais álgidos, quando as entranhas se encontram em carne viva, torna-se indizível. E desta indizibilidade, deste silêncio, deste mistério, não se compadece a palavra que define, enuncia e declara, da reluzente filosofia. Em A Reforma do Entendimento Zambrano esboça este propósito de atender à especificidade do humano, em particular às suas zonas ocultas, ou territórios de sombra, bem como o método para levar a cabo este afazer, de acordo com o qual, a razão terá de assumir um dinamismo que lhe permita captar o

fluir do tempo. Se o pensamento apenas pode aceder ao que “é”, apenas pode pensar a actualidade, capta o ser mas deixa de fora o que ainda não é mas está em vias de ser, bem como aquilo que foi, ou ainda é mas está em vias de deixar de ser, enfim, despreza tudo o que está em meio caminho. E é coerente que assim seja uma vez que este reino da realidade sem ser não se unifica sob o princípio de não contradição. Este reino descontínuo e não mensurável não se deixa captar através da razão, estritamente. A luz do pensamento unifica quando ilumina, tornando visível não somente o objecto sobre o qual recai mas também toda uma rede de inter-conexões em que este está inserido, assim, é trazido à visão um troço de realidade em toda sua contextura. Mas o reino da realidade sem ser está rodeado por um misterioso abismo que a razão não consegue anular. Em consonância João Lúcio não apenas acolhe as trevas, mas dá-se conta do desconhecimento que padecemos no seio da própria luz: “Saber metade só, ver só meia verdade: Pra que foi que nasceu, Senhor, a luz do dia/ Se não podemos ver com essa claridade?!” É preciso coragem e uma sensibilidade aguda para ousar questionar desta maneira: “Quero sentir bater o coração da luz,/ Dessa luz que talvez seja noite para alguém: Eu quero adivinhar aquilo que a produz, Como foi que nasceu e de onde é que ela vem!/ (...) Oh Luz encarcerada, ao longe, nas estrelas:/ Eu quero adivinhar a tua proveniência,/ Saber como nasceste, oh grande criadora./ (...) A que obedece a tua vida estranha?/ Porque é esse teu voo superficial e estreito?/ Porque não rasgas tu o ventre da montanha?/ Porque não mostras tu o fundo ao coração,/ E não vens revelar o segredo das loisas?/ Porque é, oh luz, porque é que a tua doce mão/ Toca apenas de leve, a superfície às coisas/ E não as vás sondar, e não vás desfibrá-las,/ Para que a gente saiba o que há dentro delas?/ Tu que tens, pra falar, os lábios das estrelas?” Desafiam-nos, Zambrano e Lúcio, para lá do nosso habitual modo de intelecção! Inscrições para o Café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com 

“TRANSMUTAÇÕES GENERATIVAS” Até 16 MAR | Galeria Trem - Faro A exposição de Pedro Alves da Veiga incluirá duas instalações do autor: Alchimia e Ommandala, que convidam à interacção e à descoberta a partir do som ou da imagem


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Cultura.Sul

Quotidianos poéticos

Os nossos poetas em discurso directo, o resumo das últimas entrevistas* Pedro Jubilot

pedromalves2014@hotmail.com canalsonora.blogs.sapo.pt

Quotidianos Poéticos terminou mais uma temporada. Ficam excertos das entrevistas a cada um dos poetas participantes. As entrevistas completas podem ser lidas no blogue: quotidianospoeticos. blogs.sapo.pt

É um quotidiano em que a poesia é cada vez menos procurada, ao contrário de há uns anos em que havia claramente mais entusiasmo pelos segredos da escrita. Tornei-me um ser mais cerebral e creio que isso se reflecte na minha poesia, que é muito mais fria do que antes. Busco explorar ideias. Ao leitor caberá encontrar a poesia que mais gosta no meio dessas palavras. Gosto de escrever à medida que vou lendo outros autores. Preciso de ir buscar inspiração aos outros. É lá que encontro a motivação certa. Não tenho horários para a escrita. Neste momento escrevo quando tenho um projecto em mãos. Quando é assim, posso escrever durante o dia, entre tarefas profissionais. De preferência ao ar livre, com uma chávena de café. A ouvir música. Uso papel e caneta. Depois dá-se processo de reescrita, que é no computador.

Adão Contreiras A poesia exige disponibilidade, embora estados de tensão, não esquecer, também levem à produção; mas liberdade e tensão emocional não são contraditórios, digamos mesmo que, juntas, formam um quadro propício à produção; costumamos designar esses momentos por inspiração. No meu caso a tensão é um dado resultante do pensamento, pensar o concreto, os problemas que o ser pessoa enfrenta: sociais, filosóficos ou procura do sentido, indagação subjectiva, a nossa relação com ou a presença da Natureza e do outro, em nós. Para mim, as palavras são uma espécie de cascabulho que a imagética tem que trabalhar em contexto emocional, criando entidades semânticas renovadas; isto é o acto poético, cuja materialidade-imaterial fornece prazer, enquanto culturalmente, produz sentido ao ser humano. A poesia pode ser material, como a fome, por isso se diz que, - nem só de pão vive o homem!

Tiago Nené

Gabriela Rocha Martins Não ,não sou .nem o princípio nem o fim .não estou nem no aqui ,nem no agora .estou e digo .falo .escrevo .brinco com as palavras e com os leitores com quem estabeleço jogos de fuga ou persuasão .como o faço ,diariamente ,comigo e com os outros .não gosto de compromissos .gosto do Ser-em como premissa de uma vagamunda da palavra .é com ela e só com elas que me assumo .liberta .tudo o mais é voragem , até porque o meu livro de horas há muito que se fechou sou ,por natureza e vocação ,uma amante do belo .o visual tem imensa importância no meu delírio escrevente .por isso ,não pontuo ,ou quando o faço ,por uma questão estética ,arrumo a vírgula e o ponto final à palavra que ,cúmplice ,se avizinha .não uso maiúsculas ,porque o computador é a minha tela e sou “uma senhora muito bem educada .não berro ,escrevo” ( exige-se uma gargalhada no fim desta frase ) .desconstruo e construo palavras ,naquele jogo que estabeleço com a Língua e o leitor .pergunto-vos? como se abraça? com os braços ,não? então o hífen ,também meu companheiro ,ajudar-me-á a juntar os braços ,afim de a-braçar ,porque o a-braçar traduz uma acção contínua .contrário ao hífen que junta ,o ponto final separa .se eu permitir ao leitor duas leituras ,por-

que ficar-me ,apenas ,numa? Assim ,desconstruindo palavras que vou pintando na tela/ecrán do meu computador ,único meio de poetar .por fim

Vítor Gil Cardeira Sou um observador de tudo o que mexe e do que está parado. Posso ficar longos tempos num café, na praia, a uma janela, a ver a fauna que passa. E isso, de vez em quando, dá-me bons motivos para escrever: um cão que passou com o dono, um tipo alto com chapéu estranho, uma mulher da Serra que transporta um cesto, uma mota barulhenta, enfim, coisas sem aparente interesse que despoletam em mim qualquer química que me leva à escrita. Como se vê, não tenho quotidiano de poeta. Infelizmente, quase só escrevo no Inverno. Preciso de chuva, frio, de dias sombrios e, mesmo, de tempestade para escrever. Ando a ver se me aventuro nos dias mais claros, mas a coisa não tem sido fácil. Talvez por isso a minha escrita seja tão agreste, rude, triste e sombria. Andar sempre com um bloco de apontamentos para tirar notas. Meter “buchas” no texto já preexistente: escrevo, escrevo, escrevo e, depois de uma narrativa já estruturada e consistente, vou introduzindo pequenas frases nesse texto como que a dar-lhe espaço, textura, respiração. Às vezes mudando mesmo o sentido do texto original. Uma espécie de enxertia no tronco genético. Já a poda, o deitar fora e cortar, me custa muito.

Miguel Godinho Não existe uma fronteira entre o eu poético e o eu do quotidiano. A poesia acontece a toda a hora, em qualquer lugar. A poesia existe em todas as coisas; tão depressa sou um ser burocráti-

co, quanto um ser sensível/emocional, atento às coisas fundamentais do mundo. Nunca deixo de pensar e de descontextualizar e/ou de inverter a ordem das coisas. A poesia - e a arte, em geral - passa muito por aí: por trocar a ordem das coisas, virá-las ao contrário, senti-las de todas as formas possíveis. Como disse, a «magia poética» acontece a qualquer hora, em qualquer lugar, em qualquer contexto. Não há horas para as coisas e para a vida se revelar, temos é de estar atentos. O facto de qualquer coisa ser, digamos -- existir -- ou acontecer já acarreta em si uma dose de poesia enorme. A vida é em si mesma um mistério enorme. Escrevo muito sobre qualquer coisa - ou tendo por base qualquer coisa: uma notícia de jornal, uma ideia de um livro, uma deixa popular, um aforismo. acredito imenso na ideia de que nada se inventa, tudo se transforma.

Luis Ene No outro dia, um amigo, que é poeta, dizia-me que enquanto ele era poeta apenas quando escrevia, eu, por outro lado, era sempre poeta. Num país em que se insultam as pessoas dizendo-lhes que são uns grandes artistas – estejam com atenção em momentos de maior aperto rodoviário – não sei se ser sempre poeta será um elogio, no entanto acredito que existe poesia fora do poema e estou sempre disposto a encontrá-la no meu quotidiano. Não sei o que é a poesia, mas talvez seja esse mistério indefinível que existe no quotidiano e a que muitos poemas tão bem conseguem dar forma. Como a minha escrita é habitualmente breve, privilegio a escrita com caneta e papel, e confesso que me sinto mais próximo de mim e da minha verdade quando o faço. A escrita assim realizada está mais próxima do corpo e da respiração, sensação que em mim de outra forma se perde. A mão que escreve faz mais sentido assim. Quando escrevo, quando estou mesmo a escrever, estou-me nas tintas para o dia, hora ou estação do ano, ainda que goste sobretudo de escrever muito cedo, desde a alvorada, e tenho pouco tempo no meu dia-a-dia, pelo menos mental, para escrever. Julgo que a brevidade se instalou na minha escrita por

esse motivo, ainda que um texto breve possa exigir mais tempo do que parece e solicita muitas vezes a experiência de toda uma vida.

Marco Mackaaij Não costumo ter ataques de poesia nos sítios apropriados (em frente ao mar - almejando lá voltar depois das marés da morte -, em cima de cordilheiras líricas - para ser mais alto -, em camas ofegantes de cortesãs com línguas de mel e corações de pedra, em gaiolas intelectuais para rouxinóis urbano-depressivos, ou em becos malditos, mal iluminados e altamente recomendáveis para jovens poetas de boas famílias em decadência). As ideias menos banais assaltam-me na cozinha, a descascar batatas ou a arrumar loiça, ou algures num sítio surpreendente entre o leite do dia e as pizzas congeladas do Continente. Tudo muito pouco adequado, mesmo para a carreira de um poeta menor, sem tempo para grandes epifanias. Enfim, as ideias que sobrevi vêm desde o pagamento na caixa até ao silêncio crítico da madrugada seguinte, sozinhas e abandonadas, sem pingo de poesia, no subconsciente reservado para o efeito, entrego-as aos dedos e à sabedoria do teclado.

Mariano Alejandro Ribeiro A poesia vem por momentos. Podem passar dias, semanas em que não escrevo nem penso em escrever, e depois dou por mim em alturas de muita produção, em que qualquer circunstância, frase, cheiro são o ponto de partida para criar alguma coisa. Acho que a poesia está latente


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Quotidianos poéticos em tudo, enquanto componente do nosso quotidiano, mas depende muito mais do estado de espírito do poeta, se se deixa (ou não) influenciar pelo entorno e ainda se tem convicção de que determinado verso ou poema vale a pena ser passado ao papel. Quando me ocorre algum verso que me parece interessante aponto-o no telemóvel, às vezes pode chegar a ser um poema inteiro, mas a maior parte das vezes é só um verso ou palavras que na altura me soam bem. De resto, escrevo sempre, sempre no computador, nunca com caneta e papel. Sempre e só de manhã. Também não escrevo em público.

foto s: d. r.

Fernando Cabrita Escrevo sem agenda prévia. Ou a poesia surge e impõe-se-me, ou não ando aí pelos cantos à procura dela, à cata de “inspirações”. Não escolho horas nem locais. Na verdade, sinto que quando a poesia surge, é ela que escolhe. O que me cabe é estar aberto, intelectual e sentimentalmente, para não me opor a isso; nem querer estabelecer horários ou rituais para que se faça poesia a horas certas, como uma obrigação, ou uma agenda, ou um Borda d'Água. Não sei se serei a melhor pessoa para falar de vícios ou manias na minha escrita. Penso que cabe a quem leia detectá-los, se os houver, e expô-los. É esse, aliás, um dos papéis do leitor, figura que tantos escritores alegadamente desprezam ao declarar que não escrevem para ninguém, que escrevem para si próprios ou para o futuro ou lá para o que quer que seja, sob a alegação de que os leitores actuais os não merecem. Ora, a poesia faz-se também para os leitores, como a outra face do processo criativo. 

* Título da responsabilidade da redacção


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Reflexões sobre urbanismo

Os bairros históricos: uma pausa tímida para viver na cidade fotos: d.r.

Teresa Correia

Arquitecta / urbanista arq.teresa.correia@gmail.com

A cidade e a sua identidade patrimonial As cidades passam ao longo dos séculos por diversas dinâmicas de crescimento, sendo que normalmente no Algarve inicia-se com um centro marcado pelo poder religioso, a sua praça envolvente e uma zona muralhada para proteção dos seus habitantes. Com o passar do tempo, as extensões das áreas ribeirinhas ocupadas por edificações percorrem o território, acompanhando vias, criando núcleos vividos por populações com caraterísticas comuns de atividades, pescadores e artesãos, assim como comerciantes. Nestes espaços já fora das muralhas, em Faro, consegue-se identificar alguns monumentos: como por exemplo a Alfandega para cobrança de impostos, o antigo Hospital da Misericórdia, as Igrejas de devoção, os Palácios, etc. Estes monumentos são na realidade valores de expressão coletiva, que importa preservar, como elementos primários da nossa identidade. A classificação deste valor patrimonial, o seu estudo e a preservação são uma prioridade incontornável da Administração Local ou Central, que nem sempre tem sido possível cumprir face ao desígnio das prioridades de investimento público um tanto paupérrimas no Algarve. Neste propósito, em Faro procurou-se salientar este tema, criando um valor de cultura e informação, com uma exposição no Museu Municipal, ao qual se designou: Faro: Marcos de Urbanismo, tendo sido produzido um registo em catálogo acessível ao público. Esta exposição permite acreditar que mesmo sem grandes meios, quando os serviços camarários se envolvem e são suportados por uma vontade política, sobressai a entrega forte à causa, e um valor produtivo de cultura de grande qualidade.

Bairro São Francisco em Faro formada por bairros e por ruas, ou seja, por malhas urbanísticas que permanecem ao longo do tempo, e que apesar de todas as dinâmicas, são facilmente reconhecíveis. Estes Bairros apresentam uma harmonia

própria na relação entre espaços públicos e privados, formados por um conjunto de quarteirões, com uma tipologia de lote, e por vezes também com uma linguagem arquitetónica comum. Associado a

estes quarteirões, existe algo mais importante, a vivência das suas populações. Concebe-se, assim, a imagem da cidade, não só por um elemento externo, mas pela relação social estabelecida entre as pessoas

Os Bairros: conjuntos urbanos a valorizar Para além dos monumentos, a paisagem urbana é essencialmente

Largo da Sé

e os edifícios. Esta identidade sociológica da cidade, associada a uma harmonia arquitetónica de bairro é um valor inestimável e até agora sobremaneira desvalorizado. Em geral, são nos Bairros que as pessoas vivem de forma mais tranquila, criam relações de vizinhança, por vezes, as crianças ainda brincam na rua e fazem amizades para a vida, assim como, desfrutam de um momento único de pausa, quando tomam o café na esquina. Fui criada num Bairro assim, o de S. Luis em Faro, e parece-me que embora ainda esteja lá, tímido e resistente, ele está ameaçado. Pela pressão urbanística, porque não existe nenhuma regra que evite a destruição das edificações tão caraterísticas, assim como pela facilidade no crescimento em altura, e pela apropriação do estacionamento por veículos de não residentes que escalam a cidade face aos parquímetros. Para além deste Bairro em Faro, temos, pelo menos identificados, mais quatro: o Bairro do Alto Rodes, o Bairro de S. Francisco, o Bairro dos Centenários, o Bairro das Casas Económicas no Bom João. Em todos eles é muito fácil identificar a sua tipologia, a morfologia de lote, a sua arquitetura, e a relação difícil com o estacionamento. O Bairro de S. Francisco é um dos mais antigos e provém de um plano de urbanização apresentado pelos proprietários em 1919, tendo sido


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somente concretizado em 1930. O Bairro de S. Luis surge após a elaboração do Plano Geral de Urbanização do João Aguiar em 1945. Duma maneira geral, estes bairros foram criados numa lógica de planeamento dos anos 40 e 50 do séc. XX, com um enorme respeito pelo desenho de fachada e pelo projeto. Foram transpostos para as regras urbanísticas, esse mesmo desenho, revelando um grande detalhe de composição, e um importante valor de conjunto. Cidade viva: conservação / evolução, que ordenamento queremos Como já referia Aldo Rossi, no seu livro: “A Arquitetura da Cidade”: “As cidades normalmente têm um ciclo ininterrupto de desenvolvimento; os problemas das cidades mortas só tangencialmente dizem respeito à ciência urbana, elas são relativas sobretudo ao historiador e ao arqueólogo… A forma da cidade é sempre a forma de um tempo da cidade". Assim, a dinâmica da evolução de uma cidade viva é importante, mas a sua tendência natural não é a de conservação, o que poderá gerar atuações boas ou más face aos interesses coletivos. Estará assim, sobretudo no papel da Administração Pública, gerir o processo de planeamento e do correto ordenamento do território de forma antecipada, identificando os elementos que nos caraterizam e que

Rua de Vila-A-Dentro são importantes preservar. A revisão do PDM de Faro, hoje já publicamente exposto, foi gerada com estas preocupações subjacentes, e daí contemplar uma forte componente de

inventariação patrimonial, nas quais os Bairros estão identificados, caraterizados e regrados urbanisticamente. Este aspeto fundamental da estratégia de ordenamento é um cunho político que pub

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me orgulho de ter participado, mas que obriga à restrição do direito privado eventualmente. Será certamente um caso de estudo a analisar no futuro, se as regras criadas foram suficientes, ou

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se mais tarde se concluem que afinal não tinham sido tão densificadas que tivessem evitado o pior. A vivência nos bairros é o que de mais humano nos carateriza, e esse facto urbano permite-nos uma pausa saudável no reboliço das cidades, dos centros comerciais, ou dos edifícios de escritórios. Esta pausa não pode ser tímida nem intimidada, seja pela pressão urbanística, pelo trânsito ou até pelo ruído, nalguns casos. O problema da ocupação por estabelecimentos de bebidas que utilizam espaços históricos é complexo, porque, por um lado, criam economia, por outro, passam a criar um conflito potencial com quem lá pretende residir. O controlo sonoro por sistemas de tecnologia mais evoluída dos produtores de som, igual para todos, associado a uma rotina de permanência de elementos da PSP que possam vigiar e dar mais segurança às ruas, criava um clima pouco propício ao conflito, mas exige muita ação da parte das Autoridades Locais. A população e as suas vivências dentro dos Bairros são um elemento fundamental à atratividade das nossas cidades, devendo para tal ser cuidadosamente promovidas, com regulação, com proximidade e com conhecimento profundo das suas realidades. Os nossos filhos merecem viver em bairros saudáveis, com uma pausa para construir os seus momentos de felicidade.  pub


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09.02.2018

Cultura.Sul

Letras e leituras

Os Loucos da Rua Mazur, de João Pinto Coelho

Paulo Serra

Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

O autor, nascido em Londres em 1967, arquitecto e professor de Artes Visuais, foi finalista do Prémio Leya em 2014 com Perguntem a Sarah Gross, livro que foi depois publicado pela Leya (como tem acontecido com as obras finalistas) e escolhido como Melhor Livro de Ficção Narrativa de 2015 pela Sociedade Portuguesa de Autores. Neste segundo romance, vencedor do Prémio Leya de 2017, João Pinto Coelho regressa à Polónia, país onde integrou já duas acções do Conselho da Europa em Auschwitz, trabalhou proximamente com vários investigadores do Holocausto e realizou intervenções públicas sobre essa matéria. No Nordeste da Polónia, «numa certa cidade em forma de medalha perdida na floresta» (p. 303), igualmente descrita por vezes como «círculo perfeito» (p. 287) existe um shtetl, termo iídiche para uma pequena cidade do Leste da

Europa cuja população é constituída maioritariamente por judeus (p. 29). Este espaço circular, nunca nomeado, surge como alegoria de um lugar que por mais fechado e por muito apartado da civilização sempre resulta como cenário à revelação, esperemos nós, não da verdadeira natureza do homem mas do seu lado mais obscuro e selvagem, num acto fugidio de loucura (para a qual aponta o título) que o tempo não apaga. À luz do que se tem lido ultimamente, e que o autor refere na «Nota do autor», a Polónia parece querer reescrever a sua história de modo a não dar conta da participação polaca nos crimes perpetrados contra concidadãos judeus durante o período da ocupação pela Alemanha nazi. Esta localidade em forma de disco pode representar assim Jedwabne, pequena cidade do nordeste da Polónia, ou, mais livremente, a circularidade da História e de como tantas vezes se cometem os mesmos erros. A acção tem início em Paris em 2001, quando dois velhos amigos, apesar de os separar agora as largas décadas em que ficaram sem se ver, se reencontram. Yankel é um livreiro cego, que foi belo como um deus, continua bonito, e parece imortal como o tempo, vivendo aliás rodeado de relógios, cuja maior companhia são os romances, e ocasionalmente alguns contos, lidos em voz alta por mulheres que vão ficando «entre as páginas e os lençóis» (p. 10) – a

d.r.

Romance valeu a João Pinto Coelho o Prémio Leya 2017 literatura de alcova ganha aqui outro sentido. O melhor da narrativa é a forma como o romance parece escrever-se dentro do próprio romance, e os diálogos entre os dois velhos amigos, quando em 2001 Eryk tenta convencer Yankel a ser o seu “co-autor”, até porque as memórias que pretende deixar escritas não se fizeram sozinhas. Eryk, agora conhecido como Paul Lestrange, tornou-se um escritor famoso e, doente, decide regressar às suas memórias para escrever definitivamente a sua última obra, que o tem acompanhado desde há muito. Vivienne é a editora de Eryk há mais de quarenta anos e a sua mulher, a rasurar a história e a sugerir

caminhos. Estabelece-se assim um triângulo amoroso, que alterna com o de há cerca de 70 anos, quando Shionka, a filha da bruxa, toma de assalto a amizade de Eryk, cristão, e Yankel, judeu. É irónico que Paul Lestrange seja o pseudónimo tomado por Eryk quando começa a escrever, pois é ele quem vê de fora a relação de amizade que resulta em sexo e eventualmente amor de Yankel, cego, e de Shionka, a rapariga muda e quase primitiva. É ainda irónico que Eryk seja assumido como o escritor que decide revisitar a sua infância e reescrever a sua história, quando é Yankel, o cego, que lhe ilumina os recessos da memória, que pode ou não

corroborar a sua versão dos factos – sendo que Yankel claramente não viu tudo o que então se passou e não sabe o que Eryk sentiu ou fez – e é ainda a voz de Yankel que podemos ouvir/ler em diversos momentos da narrativa, na primeira pessoa, e surgindo grafada no texto em itálico, numa clara distinção face à tessitura narrativa na terceira pessoa. É essa voz narrativa omnisciente que pretende dar conta de um vasto número de personagens, o que a certa altura pode ser desafiante para o leitor. A complexidade narrativa, repartida por uma pluralidade de vozes e de pontos de vista, chega mesmo, a certa altura, a oferecer-nos a perspectiva de um cão. O que aliás pode fazer todo o sentido, pois nesta narrativa o autor tem a coragem de revelar como a condição humana pode descer ao mais abjecto, quer pelos actos cometidos, quer pela forma como é maltratado e humilhado pelo seu congénere. Os judeus são em diversos momentos, ainda antes do final, encarados e tratados como animais, sendo que um cão pode obter mais simpatia por parte de um cristão do que um judeu 

La Belle Sauvage (O Livro do Pó - volume um), de Philip Pullman d.r.

Phillip Pullman volta ao mundo da trilogia 'Mundos Parlelos' Philip Pullman nasceu em Inglaterra em 1947, foi professor em Oxford e começou a escrever em 1985, alcançando sucesso uma década depois com a trilogia Mundos Paralelos (His Dark Materials), amplamente premiada, traduzida em mais de 40 línguas e com mais de 18 milhões de exemplares vendidos. O primeiro volume da saga foi adapta-

do ao cinema, com o título «A Bússola Dourada», e com Nicole Kidman num dos principais papéis. Quinze anos depois de Os Reinos do Norte ter sido publicado em Portugal, o autor regressa ao mundo encantado de Lyra, sob a chancela da Editorial Presença que tem publicado todos os livros na colecção infanto-juvenil Via

Láctea e aproveitou, aliás, este novo livro para reeditar, com novas capas, os volumes anteriores: Os Reinos do Norte, A Torre dos Anjos e O Telescópio de Âmbar. O Livro do Pó aparenta ser um retomar da trilogia, fazendo-nos recuar no tempo, mas o autor revelou em entrevistas que a acção é paralela. A história da trilogia anterior ficou encerrada, mas ainda há muito a dizer sobre a misteriosa matéria do Pó, e faz reviver a sua jovem heroína, Lyra Belacqua, começando por contar como ela em bebé passa a viver em Oxford, para depois avançar 10 anos em relação à conclusão de Mundos Paralelos. Numa Inglaterra entre o clássico e

o fantástico, o herói da história é agora Malcolm, um jovem aplicado, trabalhador, amigo e sensível, que vive com os pais, a quem ajuda com a sua estalagem, A Truta. Extremamente inquisitivo, quase sempre na companhia dos mais velhos, e sempre mantendo as mãos ocupadas, ajudando como pode nas mais variadas tarefas, Malcolm depara-se com uma surpresa. Numa das suas visitas ao priorado, descobre que as freiras têm a seu cargo uma misteriosa criança. Lyra é apenas um bebé mas Malcolm fica rendido aos seus encantos e torna-se no seu maior protector. Mais tarde, o nosso jovem herói é avisado de que haverá uma enorme inundação que colocará a região em perigo. A obra tem um ritmo que, apesar de pretender acelerar com os desenlaces, parece resultar mais lento. No entanto, o universo fantástico está lá: feiticeiras, demónios, engenhos entre o mecânico e o mágico, deuses do rio, e os fantásticos génios com forma de animal que acompanham os humanos e parecem formar um só com eles, como se representassem a sua alma. É neste porme-

nor que reside a maior originalidade deste mundo encantado imaginado pelo autor. Estes génios acompanham permanentemente os humanos, muitas vezes pousados no seu ombro, com quem formam um par, como se fossem um só, capazes de adquirir formas de animais que se revelam úteis embora tenham uma forma que é normalmente aquela que preferem adoptar e que revela um pouco da sua verdadeira natureza. Asta, o génio de Malcolm, é muitas vezes uma ave. Não se pense que esta obra é exclusivamente destinada ao público mais jovem. Dado o rigor na recriação de um ambiente histórico, passagens onde se aludem a actos sexuais que não parecem muito adequados aos mais novos, e por vezes alguma linguagem mais gráfica, o autor revela-se muito mais entretido com o acto de contar uma história à criança em nós que queremos manter desperta e interessada. Aparentemente o segundo volume já se encontra escrito e o terceiro em vias de ser concluído, pelo que é possível que não tenhamos de aguardar muito tempo pelo desenlace da história. 


Cultura.Sul

09.02.2018

Espaço ao Património

Ficha técnica:

O gene petisqueiro

Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural fotos: ana sofia rodrigues

Emídio Freire

Cozinheiro no Restaurante Faina emidiofreire@gmail.com

Nada como irmos directos ao assunto e comermos um pouco de património. Sugiro uns ovos com tomate bombardeados com polvo seco assado, aquele da feira, e salpicado com coentros e malagueta (estes dois são defeito profissional). De seguida umas papas de milho cozidas no caldo de carnes, couves e enchidos. Espalhar as couves num prato, derramar as papas de milho (não mui-

Ovos com tomate e lascas de polvo da feira

Corte Tataki to líquidas) e finalizar com as carnes e enchidos cortados em cubos não muito elegantes. Podíamos ficar por aqui que estava tudo dito em relação a património gastronómico. Sentimos história a passar pelas papilas e cheiros ancestrais que nos enchem de vontade de atravessar oceanos e trocar patrimónios com outros povos. Esta atitude de partilhar e experimentar coisas novas, que ainda nos caracteriza, é o nosso maior património. Quando me pediram para escrever um artigo sobre património e gastronomia vieram-me duas coisas à cabeça. A primeira foi, eu perdido em corredores infindáveis de enormes vitrinas com variadíssimos exemplares da gastronomia portuguesa, tipo Museu da História Natural versão Bacalhau à Brás mumificado. A segunda foi uma teoria que estudei em biologia há um século atrás. A teoria da re-

capitulação, que diz que a ontogenia recapitula a filogenia. Calma, não parem de ler. A teoria, e não passa disso mesmo, diz que o desenvolvimento do embrião de uma determinada espécie mostra-nos as fases evolutivas da espécie em questão. Atenção que esta teoria não está provada e muito dificilmente o será, mas é bastante tentadora. Teríamos a possibilidade de revermos toda a evolução da nossa espécie em nove meses. Agrada-me a ideia de existir algo que, de uma forma simples, revele um segredo que sempre quisemos saber, ou mesmo alguma coisa importante que desconhecíamos. Como o ADN que através da sua descodificação poderá revelar quem foram os nossos antepassados ou pelos menos de onde eram ou por onde andaram. E no nosso ADN está de certeza algures gravado que somos uns petisqueiros natos. Associo muito a palavra patrimó-

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nio a esta capacidade de nos revelar algo, de nos contar uma história. Podermos olhar para um determinado edifício e vermos para além das suas paredes, vermos como foi construído, quem o construiu, em que condições, será que ouviam música e já agora o que comiam. Podemos percorrer as ruas de uma cidade que conseguiu manter o seu património em pé e sentir a sua história. Podemos olhar para um prato de comida e vermos muitas histórias. No prato de papas de milho que comemos logo no início do artigo vemos as histórias dos nossos pais e avós que se reinventavam todos os dias para dar de comer à família. Podemos até afirmar, depois de conversarmos com os mais velhos, que grande parte do nosso país sobreviveu à base das papas de milho. As receitas são muitas e são pau para toda a obra. São entra-

da, prato principal e sobremesa. E de manhã são ainda pequeno-almoço com um peixinho frito. Munidos de todo este conhecimento e cientes da nossa ignorância, partimos para uma viagem a um passado recente mas que nos parece longínquo. Estávamos a preparar a abertura do Restaurante Faina (inserido no contexto museológico do Museu de Portimão, que por sua vez está instalado na antiga fábrica de conservas Feu) e achámos que seria interessante recuperar alguns sabores antigos e inseri-los no Menu. Assim, acompanhados pela antropóloga do Museu de Portimão (Ana Ramos), que foi registando o desenrolar dos acontecimentos, percorremos o concelho de Portimão (Portimão, Mexilhoeira Grande e Alvor) à procura de antigas trabalhadoras da indústria conserveira que estivessem dispostas a partilhar histórias sobre os tempos duros do trabalho fabril e que nos pudessem servir de inspiração para o Menu. Falámos de assuntos importantes, capazes de resolver a maioria dos problemas mundiais. Falámos do que comiam e mais ainda do que não comiam. Peixe seco, a matança do porco, as hortaliças e muita, muita papa de milho. Tentaram também ensinar a técnica ninja de tirar a cabeça, tripas e espinha da sardinha de uma só vez. Os tempos eram duros e a comida era uma tarefa criativa que durava todos os dias do ano. Alguns meses depois, já com o Restaurante Faina aberto, convidámos todas as intervenientes para um almoço que pretendia resumir todas as conversas que tivemos na expedição em pratos típicos revisitados. Encarei o acontecimento como um exame a toda a matéria dada. Chumbei a milhos de Monchique. 

Editor: Henrique Dias Freire Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ao Património: Isabel Soares • Filosofia dia-a-dia: Maria João Neves • Juventude, artes e ideias: Jady Batista • Letras e literatura: Paulo Serra • Missão Cultura: Direcção Regional de Cultura do Algarve • Na Ágora: Adriana Nogueira • Quotidianos poéticos Pedro Jubilot • Reflexões sobre urbanismo: Teresa Correia Colaboradores desta edição: Dário Agostinho, Emídio Freire Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com on-line em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve

facebook: https://pt-pt.facebook.com/postaldoalgarve/ Tiragem: 5.344 exemplares

Torta de alfarroba com curd de limão


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Cultura.Sul

Marca d'água

Agostinho da Silva, pensador, poeta e filósofo com raízes algarvias segue esse espírito, mas adaptado ao século XXI. Agostinho da Silva e Fernando Pessoa Maria Luísa Francisco Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

luisa.algarve@gmail.com

Algumas das mais relevantes figuras da nossa Cultura, como Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão, Raul Proença, Leonardo Coimbra, António Sérgio, Agostinho da Silva e Fernando Pessoa colaboraram na Revista Águia. Esta publicação funcionou como

Agostinho da Silva tinha 29 anos quando Fernando Pessoa morreu. Este poeta marcou significativamente Agostinho da Silva, tanto que lhe dedicou duas obras: Um Fernando Pessoa, Porto Alegre, Instituto Estadual do Livro, 1959, e também Do Agostinho em torno do Pessoa, Lisboa, Ulmeiro, 1990 e 1997 (2ª edição). A única obra de Fernando Pessoa publicada em vida foi a Mensagem, que está dividida em três partes: Brazão, Mar Português e O Encoberto. Ao longo

ainda não terá cumprido o seu destino de difundir uma cultura espiritual. A dimensão profética de Portugal como divulgador do império da fé cristã está presente em toda a epopeia dos Descobrimentos. Refere o historiador Jaime Cortesão, que foi durante os séculos XIV e XV que o culto do Espírito Santo, ligado à festa do Império, ganhou maior desenvolvimento em Portugal, celebrando-se d.r.

"O homem não nasce para trabalhar, nasce para criar, para ser o tal poeta à solta" Agostinho da Silva

AGENDAR

Por se comemorar no próximo dia 13 de Fevereiro os 112 anos do nascimento de Agostinho da Silva, gostaria de assinalar esta efeméride partilhando a sua ligação ao Algarve e um pouco do seu interessante percurso. Agostinho da Silva, cujo nome completo é George Agostinho Baptista da Silva, nasceu no Porto em 1906, sendo o primeiro filho de um casal natural de Lisboa: Francisco José Agostinho da Silva, 3.º Aspirante da Alfândega do Porto e de Georgina do Carmo Baptista da Silva, doméstica. Os seus avós maternos eram do Algarve, concretamente da Fuzeta (Olhão). No ano passado, em comemoração desta data, fui convidada a fazer uma palestra sobre Agostinho da Silva, precisamente em Olhão. O importante não foi o que eu disse, mas sim o facto de entre o público se encontrarem pessoas que conheceram familiares da mãe de Agostinho da Silva e estarem presentes algumas pessoas que conviveram com ele pessoalmente. Estes testemunhos são sempre relevantes e valiosos. O outro palestrante dessa tarde, Renato Epifânio, é um dos maiores conhecedores do pensamento e obra de Agostinho da Silva, autor de importantes estudos académicos e com obra publicada sobre Agostinho da Silva. Conjuntamente com Renato Epifânio integro a direcção da Revista Nova Águia. Esta revista surgiu em 2008 procurando recriar o “espírito” da Revista Águia que nasceu em 1910, sendo publicada até 1932. Foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal, e a Revista Nova Águia,

no Japão como bolseiro, onde ensinou português. No Brasil, Argentina e Uruguai teve um papel importante no ensino. Agostinho da Silva consegue, ainda hoje, 24 anos após a sua morte, congregar pessoas das mais diversas proveniências geográficas, filosóficas, religiosas e ideológicas, etc. Considerado por muitos um filósofo demasiado optimista e demasiado ingénuo, principalmente pela imagem que transpareceu nas suas imensas intervenções televisivas, sobretudo na série “Conversas Vadias” na RTP1, alcançou uma notoriedade incomum entre filósofos e que lhe trouxe alguns desgostos. Agostinho da Silva viveu o que propôs. Praticou o despojamento o que é uma verdadeira “atitude franciscana”. Foi conselheiro do presidente do Brasil, professor e poeta, pediu uma barraca para viver em vez do apartamento luxuoso que lhe quiseram dar. Recusou direitos de autor e distribuiu o ordenado de professor universitário por alunos e funcionários necessitados. Não foi uma utopia. Realizou aquilo em que acreditava, como refere Paulo Borges. Agostinho da Silva colaborador do Jornal Postal do Algarve

Agostinho da Silva alcançou uma notoriedade incomum entre filósofos órgão oficial de comunicação do Movimento da Renascença Portuguesa. Agostinho da Silva foi um colaborador muito regular da revista entre 1926 e 1929. Altura em que frequentava o ensino superior. Teve um percurso académico notável, de 1924 a 1928, frequentou Filologia Clássica na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, tendo concluído a licenciatura com 20 valores. Continuou a estudar e defendeu a sua tese de doutoramento “O Sentido Histórico das Civilizações Clássicas”, doutorando-se “com louvor” na mesma Faculdade. Nos anos 30 parte para Paris, como bolseiro, e estuda na Sorbonne e no Collége de France. Fernando Pessoa publicou os seus primeiros textos nesta revista em 1912, ou seja, pode dizer-se que Fernando Pessoa nasceu na Águia.

da obra poética está presente a ideia de que Portugal tem um destino espiritual por cumprir. No poema “O Infante”, o primeiro poema da segunda parte da Mensagem, há um apelo ao cumprimento desse destino de Portugal: uma missão espiritual, o apelo a um novo sonho, sempre de cariz espiritual, ou seja, que Portugal se cumpra como pátria e entidade nacional: “Quem te sagrou criou-te português. Do mar e nós em ti nos deu sinal. Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez. Senhor, falta cumprir-se Portugal! As mensagens, quer de Fernando Pessoa, quer de Agostinho da Silva, partem da ideia de que Portugal

“VIAGEM INTERIOR”

As escolhidas, Até 30 MAR série | Casade do12, Sal 1994. – Castro Sépia Marim s/ papel. Col. Centro de Fotos de Telma Veríssimo mostram os impactos dasGraça Morais Arte Contemporânea alterações climatéricas na fauna e na flora da serra algarvia

a bordo das naus e espalhando-se pela África portuguesa, a Índia e, principalmente, os arquipélagos da Madeira e dos Açores, tendo passado mais tarde, em grande parte por empenho dos açorianos, ao Brasil e à América do Norte. A simbologia do culto do Espírito Santo virá a ser retomada por Fernando Pessoa, Agostinho da Silva e Natália Correia, entre outros pensadores, poetas ou filósofos portugueses. Na dimensão ético-metafísica do seu pensamento, Agostinho da Silva mostra que a plenitude humana só se cumpre na medida em que o homem se cumpre espiritualmente. Era um espírito livre, um homem com uma visão muito à frente do seu tempo. Agostinho da Silva viajou por variadíssimos países, tendo estado

Há cerca de 25 anos Agostinho da Silva fez uma palestra em Tavira, cidade onde está sediado o Jornal Postal do Algarve. Este jornal publicou nessa altura a palestra do Professor Agostinho da Silva, que por ser um texto extenso, foi publicado em duas edições. Agostinho da Silva recebeu o jornal e passou a enviar crónicas para o Postal do Algarve. Agostinho da Silva viveu na Praia da Rocha em Portimão, após ter estado preso no Aljube em 1943. Depois de libertado foi-lhe imposta a pena de residência fixa que cumpriu no Algarve, na Praia da Rocha. Publicou ensaios filosóficos mas a situação era insustentável. Em 1944 partiu com a mulher e os filhos para o exílio, na América latina. Na toponímia do Algarve existem três ruas dedicadas a Agostinho da Silva: Albufeira, Portimão e Praia da Luz. Fica a sugestão para eventualmente ser dedicada uma rua a Agostinho da Silva em Olhão ou Fuzeta. 

“AR” Até 8 ABR | Museu Municipal de Faro Esta mostra, de Isabel Baraona, Thierry Simões e Tiago Baptista, é um desenho de desenhos, unidos por um “ar” de coisa viva, em transição, inacabada, aberta e disponível


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Cultura.Sul

Espaço AGECAL

Gestão cultural do património: o caso de Tavira (I) d.r.

Jorge Queiroz Sociólogo - AGECAL

jorge.queiroz1@gmail.com

O reencontro do Algarve com a sua história e património é tarefa cada vez mais necessária. Alguns passos importantes foram dados nos últimos anos mas insuficientes. A região começou a desenvolver a sua rede museológica após o ano 2000. Este atraso no estudo da herança cultural explica a visão deturpada de região “sem história” ou monumentos significativos, mas excelente local de férias e lazer, com “muita animação”… O Algarve possui um conjunto de cidades, constituídas em épocas e contextos históricos diferentes, as quais em complementaridade dariam um projecto cultural excepcional. A verdade é que a região não teve um museu nacional e foi até 2013 a única região do país sem inscrição nas listas da UNESCO. A Ria Formosa, o mais extraordinário ecossistema lagunar do País, porque nunca foi candidatada a Património Mundial? A cultura é o elemento de afirmação mais relevante que Portugal possui num contexto de globalização, elemento menos valorizado mas central no desenvolvimento regional. Com

Tavira é uma das três cidades patrimonialmente mais ricas e diversas do sul de Portugal um plano estratégico bem estruturado, o Algarve ficará mais qualificado também do ponto de vista turístico. O que “vende” não são “produtos” mas o que precede, valores espirituais, paisagens, paz, ambiente, herança cultural... Referirei neste texto o caso de Tavira, mas outras cidades poderíamos também abordar. Tavira é uma das três cidades patrimonialmente mais ricas e diversas do sul de Portugal, não apenas pela elevada densidade de ocorrências monumentais, 21 igrejas em 66 hectares do centro histórico, castelo, fortalezas, conventos, quartel pombalino, arquiteturas de todas as épocas, telhados de tesouro, armações, salinas, telheiros, mas também pelo património imaterial reconhecido pela UNESCO em 2013 com a inscrição da dieta mediterrânica na lista do PCI da Humanidade.

Na 2ª metade do seculo XIX, Estácio da Veiga, natural de Tavira, pioneiro da arqueologia portuguesa, descobriu Balsa romana e outras estruturas arqueológicas, sonhou e pugnou, sem sucesso, para que o Algarve tivesse uma unidade museológica dedicada à sua história e património. Certamente terá pensado na sua própria cidade… O Museu Municipal de Tavira nascido em 2002, editou em 2013 um catálogo da exposição “Memória e futuro – património, colecções e a construção de um museu para Tavira”, no qual se fundamenta as opções da sua criação que correspondem a aspirações de décadas e percepção da riqueza patrimonial e de um percurso milenar com origem no seculo VIII a. C. confirmada pelos vestígios de um povoamento fenício na “colina genética”. Em “Geografia e Civilização”, Orlando Ribeiro, referência incontornável da geografia humana, chamou a aten-

ção para a forte presença no Algarve das culturas mediterrânicas da Antiguidade e dedicou um extenso capítulo a Tavira, “cidade-estuário” e porto mais importante da região desde o início da nacionalidade. Descreve que em 1282 o rei D. Dinis concedeu aos marinheiros do porto de Tavira privilégios iguais aos de Lisboa “por ser o de maior movimento para o estrangeiro”. D. João I esteve na cidade no regresso da tomada de Ceuta em 1415 e armou os filhos cavaleiros na Igreja de Santa Maria, D. João II viveu na cidade com a corte para organizar a armada que foi construir a fortaleza de Larache. Era a cidade portuguesa mais próxima do norte de África, dela partia e chegava gente das praças marroquinas envolvida na construção de fortificações e nos abastecimentos. Segundo fontes históricas citadas em 1508, concentraram-se em Tavira, em apenas cinco dias, 20 mil homens para

acudir a Arzila cercada. Hoje seria um número excepcional,… Frei João de São José na “Corografia do Reino do Algarve” (1577), considerada por Romero de Magalhães “a mais notável corografia do Renascimento em Portugal”, escreveu que Tavira “sem alguma dúvida é, ao presente, e sempre foi a principal do Reino do Algarve”… Esta riqueza patrimonial interroga de forma crescente um determinado discurso histórico. Obviamente Tavira esteve ligada desde os primórdios às Descobertas Portuguesas do século XV e XVI, o seu esquecimento ou apagamento é injustificável do ponto de vista científico. O fenómeno do “henriquinismo” modelado pelo Infante e o seu cronista Zurara, já após a morte do pai e irmãos, construiu uma versão da história das descobertas que continua influente. No âmbito da gestão dos recursos culturais, o Museu Municipal de Tavira é um dos instrumentos mais importantes na tarefa de valorizar a herança cultural desta cidade portuguesa, um trabalho que deu frutos com as exposições e catálogos de “Tavira, patrimónios do mar” (2008), “Cidade e Mundos Rurais” (2010), “ A I Republica em Tavira “ (2010), “Fotografar” (2011), “Memória e Futuro” (2013), “Dieta Mediterrânica – património cultural milenar” (2013), também a exposição no Museu Nacional de Arqueologia (2001). O País e o Algarve devem investir recursos na investigação e nos seus museus. 

Espaço ALFA

Poète maudit

Dário Agostinho

Membro da ALFA - Associação Livre Fotógrafos do Algarve

Poète maudit... existe um inexorável romantismo nestas palavras. Quem consegue resistir-lhe? Facilmente a nossa mente viaja para terras distantes e surgem nomes como Rimbaud, Van Gogh, Genet... Nem todos foram poetas mas todos foram, à sua maneira, grandes artistas. O cimento que os une é o de vidas corrosivas e autodestrutivas à margem de uma sociedade

encarada como alienante. E fotógrafos? Quem são os fotógrafos malditos? Entremos, sem receio, numa categoria hermética e empírica e deixemos o contributo de alguns nomes. Sally Mann: entre 1984 e 1991 Sally fotografou os seus três filhos de uma forma desconcertante, bela e, para alguns, obscena. Uma marca indelével num grande artista é não ser consensual. “Immediate Family” é tudo menos consensual. Pode, e talvez deva, ser visto como um trabalho magistral sobre a beleza e o mistério do transitório. Diane Arbus: Arbus seguiu um conceito pela primeira vez explorado por Jacob Riis em 1880. Ver e mostrar “o outro lado”. Enquanto Riis fotografou os miseráveis, Diane entrou na intimidade dos “inadaptados”. Volátil, tímida e susceptível a epi-

sódios de depressão, que acabariam por conduzi-la ao suicídio, atingiu a maioridade artística na década de 60 com trabalhos, hoje absolutamente icónicos, sobre os marginalizados ou simplesmente “diferentes”. Masahisa Fukase: Fukase é menos conhecido do que as anteriores. Muitas vezes um único trabalho define um artista, e os fotógrafos não são exceção. “Corvos” (ou “A Solidão dos Corvos”), de 1986, puxa-nos até aos limites do isolamento enquanto explora novos níveis de abstração. Fukase disse sobre este livro: “Estou a desejar poder parar o mundo. Este ato [o da fotografia] pode representar o meu próprio exercício de vingança contra a vida e talvez seja isso o que eu mais gosto”. No final do projeto escreveu “tornei-me um corvo”. 

d.r.

Muitas vezes um único trabalho define um artista


Última Na Ágora

Sagrados e profanos portância que tem por cá, entre a devoção do povo. Aliás, para nós, não há casamenteiro como Santo António ou São Gonçalo (também chamado de casa-

ritual de passagem da adolescência para juventude, realizado de noite, no monte Liceu, em honra de Zeus, mas que se veio a confundir com festas a

ve as da alta sociedade, iam ter com eles e punham-se no seu caminho, para serem tocadas e apanharam suaves chicotadas, convencidas de que isso lhes sefotos: d.r.

Adriana Nogueira

estiver a correr. António! ANTÓNIO: César, meu senhor? CÉSAR: Não te esqueças, António, durante a corrida, de tocar em Calpúrnia; pois os nossos mais velhos dizem que as inférteis, quando são tocadas nesta perseguição sagrada, livram-se da maldição da esterilidade.

Classicista;

Februarius

Professora da Univ. do Algarve adriana.nogueira.cultura.sul@gmail.com

É raro o mês (ou o dia) em que não haja a comemoração disto ou daquilo. Atenção, que não me estou a queixar, porque não sou nada contra as comemorações. Há várias que são fundamentais, para que a memória não se perca. Porém, tento resistir àquelas que apelam ao consumismo sem muito sentido. Uma dessas, que está quase a chegar, é o Dia dos Namorados. Quando eu era mais nova, felizmente, essa data não se celebrava, pelo que não ter namorado não incomodava ninguém nesta altura mais do que em qualquer outra. Quando a moda pegou por cá, já eu não tinha idade para me ralar com isso, nem tinha amigas a questionarem: «Então? O que recebeste? O que é que ele te deu?», perguntas que amiúde ouvia, entre os alunos, nesta época do ano. O curioso é que não me lembro de ouvir os rapazes a perguntarem uns aos outros sobre o que teriam recebido… enfim, mas isso é outra história.

Festa das Lupercais, por Domenico Beccafumi (séc. XVI). Florença menteiro das velhas). Há quem diga que esta data cristã se veio sobrepor a uma outra, muito amada pelos romanos, em que se celebravam as Lupercais. Lupercais Plutarco, um autor grego da

Pã. Terão sido estas que foram para Roma e que deram origem às Lupercais. Pode não parecer, mas ambas as palavras estão relacionadas, pois quer lupus (de onde vem lupercal) quer lykaios (de onde vem liceu) significam lobo. Plutarco diz que muitos jovens bem-nascidos, e até magistrados, corriam de um

ria benéfico: as grávidas teriam um bom parto, e as sem filhos engravidariam mais facilmente. Plutarco diz, ainda, que César assistia, sentado num trono dourado, enquanto Marco António era um dos participantes da corrida sagrada. Foi talvez esta obra que inspirou Shakespeare para escrever a cena II do

As Lupercais eram festejadas a 15 de fevereiro e estavam também relacionadas com rituais de purificação. Aliás, o nome do nosso mês de fevereiro vem do latim Februarius, cuja etimologia o escritor latino Ovídio (séc. I a.C.-I d.C.), numa obra intitulada Fastos, explica: «Os nossos antepassados romanos chamaram februa aos instrumentos de purificação (…). Enfim, o que quer que fosse usado para purificar os nossos corpos tinha esse nome no tempo dos nossos avós (…). O mês é chamado assim, porque os Luperci limpam todo o chão com tiras de pele e têm instrumentos de purificação» (2, 19; 29-32). Este mês não existia no primitivo calendário latino, que tinha apenas 10 meses, iniciando-se o ano em março (daí que os nossos setembro, outubro, novembro e dezembro tenham os mesmos radicais de sete, oito, nove e dez,

São Valentim Parece que a popularização do envio de postais (e das subsequentes prendinhas), nesta data, começou no séc. XIX, nos EUA. Também a lenda que conta como, na Roma do séc. III d.C., o bispo Valentim continuou a casar os jovens, à revelia da ordem do imperador que os queria livres para a guerra, tendo sido decapitado num 14 de fevereiro, remonta à época do escritor inglês Chaucer, do séc. XIV. Em Portugal – e consultei a lista dos santos padroeiros –, não encontrei nenhuma localidade que o tivesse como protetor, o que revela a pouco im-

You all did see that on the Lupercal/ I thrice presented him a kingly crown,/ Which he did thrice refuse época romana (viveu nos séc. I-II d.C.), escreveu, em César, sobre as festas das Lupercais, considerando que se relacionavam com uma festividade que os gregos tinham, as Liceias: um

lado para o outro, pela cidade, nus, golpeando quem lhes aparecesse à frente, com peles em tiras (tipo chicote, mas macias, talvez em lã), brincando e rindo. E que muitas senhoras, inclusi-

Um pouco daqui, um pouco dali... 1º ato da peça Júlio César que diz respeito, precisamente, a esta festa: CÉSAR: Calpúrnia! CALPÚRNIA: Aqui, meu senhor. CÉSAR: Põe-te diretamente no caminho de António, quando ele

apesar de, para nós, serem os meses 9, 10, 11 e 12). Depois, talvez por influência grega, cujo calendário tinha 12 meses, Numa Pompílio (o segundo rei de Roma), ainda no séc. VIII a.C. acrescentou os meses Ianuarius

e Februarius. Assim, a razão da purificação acontecer em fevereiro resultava do facto de este ser (isto é, ter sido) o último mês do ano, e essa época de fronteira, de mudança, ser propícia a rituais catárticos, em que os erros podiam ser expiados, purificados, para se começar um novo ciclo, sem mácula. Ovídio dá alguns exemplos de personagens da mitologia grega que tiveram de passar por esse processo, como o caso de Peleu (pai de Aquiles), que, depois de matar um meio-irmão, foi expulso da sua cidade e teve de procurar quem o purificasse. O rei Acasto, de uma terra bem longe da sua, aceita, e o ritual é cumprido nas águas da Tessália. Sagrados e profanos Desde o séc. IV que o Natal se passou a comemorar a 25 de dezembro, sendo 2 de fevereiro (quarenta dias depois) a data escolhida para a celebração da Apresentação de Jesus no Templo. Nesse dia celebra-se também a Purificação da Virgem Maria. Por várias razões, também se festeja, nessa data, Nossa Senhora da Luz ou Candelária (porque tem candeias acesas). A Igreja e alguns estudiosos dizem que não, que o papa Gelásio, que condenou, por escrito, as Lupercais (de alguma maneira, como visto acima, ligadas tanto à fertilidade como à purificação), no séc. V, não teve nada a ver com a introdução desta festa mariana que veio da igreja cristã do oriente para ocidente, pela mesma época. Parece que o manuscrito que a ele foi atribuído, onde a celebração da Purificação da Virgem aparece mencionada pela primeira vez, não é da sua autoria. Também afirmam que o facto de ele ter introduzido São Valentim no calendário dos santos, a 14 de fevereiro, também não teve nada a ver com aquela festa que queria banir do hábito dos romanos. Seja como for: hoje não temos como fugir à data já instalada nos nossos hábitos. Quanto a mim, vou tratar de reservar uma mesa num restaurante para o próximo dia 14. 


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