Cultura.Sul 117 20JUL2018

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Cultura.Sul

Quinzenalmente com o POSTAL em conjunto com o

JULHO 2018 | n.º 117 www.issuu.com/postaldoalgarve

11.203 EXEMPLARES

Editorial

Missão Cultura

Algarveaorubro

Imagem, memória e património imaterial d.r.

Maria Simiris Jornalista mariasimiris.postal@gmail.com

O Algarve não é apenas sinónimo de praias na época balnear. Prova disso são os inúmeros eventos que irão ocorrer um pouco por toda a região nos próximos dias. Dia 20 de Julho, sexta-feira, inicia o “Salir do Tempo”. Decorre até domingo, dia 22, e leva à vila serrana um mercado medieval, numa autêntica viagem ao passado do tempo das lutas entre Mouros e Cristãos. O Festival Internacional do Caracol, faz as delícias de Castro Marim entre os dias 20 e 23 de Julho, com concertos e animação de rua. Ainda no mesmo fim-de-semana, nos dias 22 e 23, a Feira da Serra de São Brás de Alportel apresenta a alfarroba e o chocolate da serra como destaques gastronómicos. Já no barlavento algarvio, na cidade de Portimão, decorre o Festival da Sardinha, entre os dias 1 e 5 de Agosto. Matias Damásio e Raquel Tavares são alguns dos artistas que sobem ao palco. Por fim, e já até ao dia 1 de Setembro, a cidade de Tavira apresenta um Verão recheado com concertos. O algarvio Diogo Piçarra será um dos convidados a animar a noite. l

Direção Regional de Cultura do Algarve

No Ano Europeu do Património Cultural, a Direção Regional de Cultura do Algarve (DRCAlg) tem mantido o seu mote, entre outros, na valorização, salvaguarda e inventariação do Património Cultural Imaterial (PCI) da região. Esta temática já deu origem, no início deste mesmo ano, à organização de um Curso Breve, assim como ao lançamento, em março último, da página Algarve Imaterial (https://algarveimaterial. wordpress.com/), um projeto desenvolvido pela Rede de Museus do Algarve, do qual esta DRCALg faz também parte. A adesão e o interesse demonstrados por estas iniciativas geraram a necessidade de se promoverem mais ações que despertem a participação de todos de uma forma alargada, para que em conjunto com a comunidade possamos ser efetivos promotores desta consciência cultural de valorização e salvaguarda da memória e da identidade, e a temática do Património Cultural Imaterial possa adquirir novas dinâmicas. Neste sentido, vai esta DRCAlg desenvolver no mês de Julho uma ação de sensibilização para dar a conhecer o modelo de gestão da informação que está em desenvolvimento no Museu do Traje de São Brás de Alportel e aprofundar o conhecimento do projeto “FMId - Fotografia, Memória e Identidade”, que ocorre naquele lugar todas as quintas-feiras, e que conta com a participação da comunidade local. O Museu do Traje de São Brás de Alportel organizará esta sessão em partilha com a Direção Regional de Cultura do Algarve. Caso deseje informação adicional contacte-nos pelo: geral@cultalg.gov.pt.

Museu do Traje tem uma base de dados que contém cerca de 50 mil imagens de famílias são-brasenses SOBRE O PROJETO: Projeto “Fotografia, Memória e Identidade” (FMId) Excerto de: Sujeitos do Património: Os Novos Horizontes da Museologia Social em São Brás de Alportel (Sancho Querol, 2014). Informação adicional: http://www. museu-sbras.com/docs.html Criado em 2009 como um exercício de arqueologia memorial em torno do território do concelho de São Brás, o projeto FMId permite descodificar outros segmentos do DNA patrimonial local, entre os quais se encontram: saberes tradicionais, história e memória local, usos equilibrados dos recursos locais, formas

de economia alternativas, de organização comunitária, etc. Neste processo, o Museu assume o papel de mediador junto da população local. Objetivo(s): Trabalhar as memórias visuais do território a partir dos arquivos de fotografias das famílias do concelho, visando a construção de um imenso álbum da comunidade capaz de descodificar cartografias culturais, sociais, rurais e urbanas, há muito tempo esquecidas e fundamentais para a compreensão/construção de um presente com vista para o futuro. Simultaneamente, foi criada uma base de dados que contém hoje cerca de 50 mil imagens representativas

de 400 famílias do concelho e zonas limítrofes. É por isso que Museu e comunidade confluem na ideia de terem conseguido criar, com o tempo, uma “conta corrente da memória” para cada uma das famílias locais. Na verdade, a tipologia da documentação integrada nos processos familiares tem vindo a diversificar-se, passando atualmente a integrar também correspondências, documentos legais, registos vídeo e áudio, etc., num processo muito dinâmico a que não são alheias as alterações familiares, por exemplo os nascimentos, casamentos e óbitos (cf.: www.museu-sbras. com/grupo-fotos.html). l

Juventude, artes e ideias

A animação volta à baixa de Olhão

Jady Batista

Marketing Digital

A animação volta à baixa de Olhão, depois do sucesso da II FLO - Feira do Livro de Olhão, que decorre no Jardim Patrão Joaquim Lopes, até este sábado, 21 de julho, pelo quarto ano consecutivo, Olhão volta a ser palco do Festival Pirata. De 31 de julho a 3 de agosto, a zona ribeirinha envolve-se no quotidiano pirata, povoado por personagens de época. Nesta IV edição, a organização vol-

ta a apostar num evento diferenciado, com animação, fogo, lutas, dramatizações, música e dança. O festival decorre entre as 17 e às 24 horas, com um mercado pirata frente aos Mercados de Olhão, animação por toda a baixa e, a terminar cada dia do evento, um espetáculo frente ao caíque Bom Sucesso. O Festival Pirata de Olhão é uma iniciativa da Câmara Municipal e da Empresa Municipal Fesnima, organizada em

parceria com a Companhia de Teatro Viv’arte. A entrada é livre. Para terminar o mês em grande, a IV Edição das Noites de Levante volta a trazer muita animação à baixa da cidade, de 23 a 25 de agosto. Durante os três dias do evento, o público é convidado a ser surpreendido com momentos de pura magia numa mistura de cor, som, luz e fogo. A animação começa às 18 horas,

na Avenida da República, e termina por volta da meia noite, junto aos Mercados. Com as Noites de Levante, a autarquia pretende dinamizar vários pontos da cidade, nomeadamente na zona ribeirinha, com atividades de caráter lúdico, sem esquecer a vertente cultural, ao mesmo tempo que convida a sair à rua residentes e turistas de férias na cidade cubista. l


18 20.07.2018 Ficha técnica: Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ao Património: Isabel Soares • Filosofia dia-a-dia: Maria João Neves • Juventude, artes e ideias: Jady Batista • Letras e literatura: Paulo Serra • Missão Cultura: Direcção Regional de Cultura do Algarve • Na Ágora: Adriana Nogueira • What ever happened to... Pedro Jubilot • Reflexões sobre urbanismo: Teresa Correia Colaboradores desta edição: Salomé Horta, Sara Navarro Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/ postaldoalgarve FB: www.facebook.com/ postaldoalgarve/ Tiragem: 11.203 exemplares

Cultura.Sul

Letras e leituras

Aqui estou, de Jonathan Safran Foer d.r.

Paulo Serra

Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

Nascido em Washington em 1977, este autor é uma das jovens vozes proeminentes da literatura norte-americana. Extremamente Alto e Incrivelmente Perto (2012) foi um sucesso inclusivamente adaptado ao cinema, apesar de abordar um tema delicado, pois trata de uma criança cujo pai foi vítima do 11 de Setembro. Sem querer entrar em comparações e superlativações, podem encontrar-se ecos na sua escrita de Jonathan Franzen e de um Philip Roth mais jovem. Neste Aqui Estou, o autor regressa à questão do judaísmo, como aconteceu em Está Tudo Iluminado, o seu primeiro romance, escrito aos 24 anos. O título Aqui Estou é enganosamente simples, como a certa altura se explica, em referência ao episódio bíblico de Abraão. Quando Deus testa Abraão e o chama, este responde: «Aqui estou.» «A maior parte das pessoas pensa que o teste é aquilo que se segue: Deus a pedir a Abraão que sacrifique o filho, Isaac. Mas acho que também podemos fazer a leitura de que o teste aconteceu quando Deus o chamou. Abraão não disse: «O que queres?»

Não disse: «Sim?» Respondeu com uma afirmação: «Aqui estou.» Seja o que for que Deus queira ou precise, Abraão está inteiramente presente para ele, sem condições ou reservas ou necessidade de explicação.» (p. 134) É um livro cujo tamanho pode assustar mas que se lê com leveza e divertimento, escrito com sensibilidade, ironia e humor. Por vezes uma crítica corrosiva ao modo de vida americano: «os Chineses são suficientemente espertos para saber que os Americanos são suficientemente estúpidos para comprar seja o que for» (p. 246). Jonathan Safran Foer é um escritor americano, conhecido pelos seus romances Tragicomédia moderna, assente em parte numa revisão da por causa de umas mensagens porno- perante a rotina, a apatia, a insegurancultura judaica ou de como se pode gráficas encontradas num telemóvel ça de cada um, ou a traição, quando, continuar a ser judeu nos dias que que surge no chão da casa de banho, subitamente, um casamento pode correm, numa América ela própria onde um marido hipocondríaco e apa- tornar-se uma guerra civil: «Ao décimo dia, Jacob abriu a porta desamparada em termos de identida- rentemente recalcado se refugia todas da casa de banho e viu Julia a secarde, mesmo que não se entre em críticas as noites para enfiar supositórios. Os diálogos de família são abso- -se depois de ter tomado duche. Ela directas a Trump - apenas surge a referência a um «presidente saloio de lutamente caóticos, o que só retrata cobriu-se. Ele já a tinha visto sair de como tantas vezes a vida em família centenas de banhos, já tinha visto três cabeça gigante» (p. 256). Jacob é um escritor frustrado, re- é feita de conversas cruzadas, em bebés saírem do corpo dela. Tinha-a signado a escrever o guião de uma que todos falam em simultâneo e visto despir-se e vestir-se milhares e qualquer série de sucesso com dra- as falas encadeiam-se umas nas ou- milhares de vezes (…). Tinham feito gões, seguida por quatro milhões de tras, e de desentendimentos que nos amor em todas as posições, com todas as partes do corpo vistas de todas as pessoas, e Julia, uma arquitecta que aproximam. Este é também um livro sobre uma perspectivas possíveis. nunca viu um edifício desenhado por - Desculpa – disse ele, sem saber si construído, quarenta e três anos e crise de fé no casamento, pois a resposuma mãe de sucesso, com três filhos, ta «Aqui Estou» pode ser igualmente a que se referia a palavra, sabendo aliás, quatro, contando com o marido. aplicada a uma relação conjugal que é apenas que o seu pé carregara ao Até que após quase vinte anos de vida constantemente posta à prova e ainda de leve na espoleta de uma mina.» em conjunto tudo é posto em causa assim encontra forma de sobreviver, (pág. 168). l

Na Ágora

O que ver, na ágora

Adriana Nogueira

Classicista; Professora da Univ. do Algarve adriana.nogueira.cultura.sul@gmail.com

A passear pela ágora, reparo nas muitas atividades culturais que aqui se desenrolam. Não é só um espaço de mercado e de venda de produtos, há também muita oferta cultural… e gratuita! As autarquias e juntas de freguesia têm-se esmerado para que os seus residentes sintam que é bom viver

onde os outros apenas passam férias: para além do nosso excelente clima, não estamos culturalmente abandonados. Provavelmente estou a falar contra a maré: sim, não temos ópera com muita frequência, mas temos tanta oferta cultural! Assim de repente, sem ter que puxar muito pela cabeça, vêm-me à ideia três exposições que têm tudo para serem um sucesso: até 15 de setembro, na Associação 289 (no Solar das Pontes de Marchil, na saída de Faro para Loulé, de quarta-feira a domingo, das 17h às 21h), podemos ver obras de mais de sessenta artistas, num projeto do também artista Pedro Cabrita Reis; até 23 de setembro, no Museu Municipal de Faro, podemos ver (aos sábados e domingos) a exposição «A evolução do braço – Surrealismo na Coleção Millennium BCP e alguns ecos contemporâneos». Com curadoria de

Nuno Faria, estão presentes obras de Mário Cesariny, António Dacosta, Graça Morais, Paula Rego e Cruzeiro Seixas, bem como de uma geração de surrealistas, mais recente; e até 14 de outubro, em Tavira, no Museu Municipal de Tavira Palácio da Galeria (de terça a sábado, das 10h às 16.30h), podemos ver a exposição «Mulheres Modernas na Obra de José de Almada Negreiros», com curadoria de Mariana Pinto dos Santos, constituídas por obras, em grande parte, pertencentes à Fundação Calouste Gulbenkian. Não vamos a Lisboa? Lisboa vem até nós. E as Feiras do Livro? Há várias, por todo o Algarve, com mais ou menos autores, mais ou menos atividades paralelas e de animação, mas sempre com muitos livros. É uma boa ocasião para conhecer os seus autores preferidos e outros de que nunca ouviu falar, o que pode ser um belo momento de descoberta. Além

disse, podemos ter acesso a edições que mas posso tentar: tem humor, história, andam arredadas dos circuitos mais anedotário olhanense, com figuras típicas comerciais, como as Livros de Bordo, (perfeitamente compreensível por quem Orfeu Negro, Licorne, Letra Livre, & Etc, não conheça, sequer, a cidade), tudo isto .. acompanhado por uma não edições, Pato Lógico cativante voz de narrador ou Frenesi (de algumas que entrelaça estas vidas não deve ter ouvido falar com a de Boris Skossyreff, muito, mas têm, em geral, uma personagem real que livros muito bons!). parece saída de um livro Nos escaparates vejo de fantasia, com drama, muitos livros, todos a violência e graça. Parece apelar-me a que os leia. uma estranha mistura, Pego num, que tem uma mas quando percebemos capa onde reconheço que Olhão é o centro do os cubos com janelas, mundo, tudo fica explicado. mirantes, escadas e açoteias: Um livro que não se é o mais recente livro de A capa do livro esquece facilmente e Ana Cristina Leonardo, que publicou, neste junho passado, o romance alimenta muitas conversas. Fico por aqui, desejando que «O centro do mundo». Agora que esta rubrica tem metade dos caracteres, aproveite o verão e tome muitos não é fácil falar de um livro como este, banhos de cultura. l dr


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Cultura.Sul

Reflexões sobre urbanismo

O ordenamento do território e a floresta Necessidade de ordenar a floresta

Teresa Correia

Arquitecta / urbanista arq.teresa.correia@gmail.com

Preparar a época dos fogos Após o desastre nacional dos fogos no último verão, com todas as consequências de perdas de vidas humanas, de perdas de património, o país inteiro cumpridor preparou-se para uma nova época. Foi com um enorme esforço financeiro, e de recursos, que se efetuaram limpezas de bermas de estradas e de árvores e arbustos à volta das habitações, num verdadeiro frenesim, um pouco descontrolado, sob a ameaça e a pressão das coimas. As autarquias foram chamadas

A prática de planeamento que possuo, na escala do PDM ou dos planos municipais mais de pormenor, como instrumentos de gestão territorial, não tem um foco no ordenamento florestal, mas sim, sobretudo no conceito de solo urbano/solo rural. Não se trata a floresta, ou a agricultura a nível municipal. Porém, nos últimos anos, as Câmaras Municipais tiveram de produzir os denominados Planos Municipais de Defesa da Floresta Contra Incêndio. Estes definiram de forma muito pouco sensível, na sua grande maioria, os graus de perigosidade no seu território, face ao risco de incêndio, variando entre a Muito Alta e a Muito Baixa. Destas manchas definidas, como resultado de uma aplicação de software especializado, sem grande tratamento aparente, sem continuidade, e sem escala, foi concretizada uma carta de um plano, carta de perigosidade de incêndio rural, que constitui uma verdadeira pulverização do território em pequenos fotos: d.r.

À custa dos fogos florestais temos medidas que escapam à lógica à responsabilidade de atuar face aos proprietários incumpridores, a contratar desenfreadamente privados que possam realizar a tarefa de corte e limpeza no espaço de dez metros dos caminhos, assim como a limpeza de terrenos identificados na envolvente das habitações e dos aglomerados. Apesar de toda esta atuação ser relevante e importante, a pressa é má conselheira e deu azo a comportamentos excessivos por um lado, e a desperdício de recursos financeiros face à dimensão herculiana da limpeza das florestas, por outro.

espaços entre o vermelho, laranja e amarelo. Esta carta serve agora de condicionante e não de plano no âmbito dos instrumentos de gestão territorial, com base na Lei n.º 76/2017 de 17 de agosto. Aplicação disfuncional de uma Lei da Defesa da Floresta De acordo com a nova Lei relativa ao Sistema Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios, fora das áreas edificadas consolidadas não é permitida a construção de novos edifícios nas áreas classificadas na cartografia de perigosidade de incêndio rural definida como

Os Passadiços de Paiva

de 'alta' e de 'muito alta' perigosidade. Todas as restantes terão de ter parecer vinculativo do ICNF, o qual baseia-se em matérias que ainda não foram regulamentadas devidamente. Sabe-se, assim, que tudo o que está em espaço rural, e que até aqui poderia ser resolvido com os PDM's e com os restantes Instrumentos de Gestão Territorial, agora são de forma pratica-

mente automática, e sem discussão pública, resolvidos com uma restrição ao direito privado, proibindo a construção de novas edificações, ou de ampliações de existentes. À custa dos fogos florestais, que é um assunto sério e complexo, temos agora medidas legislativas que afetam cidadãos, mais uns do que outros, mas que escapam à lógica estruturada e inteligí-

vel. Haja, pelo menos, a capacidade de planear bem e de ordenar, o qual não basta proibir cegamente a construção de edificações rurais, é algo mais do que isso. Os Passadiços de Paiva são um exemplo, bem-sucedido, da ligação perfeita entre a paisagem e a conceção artística da construção humana. Quando tal acontece, é uma valorização ímpar do nosso território. l pub


20 20.07.2018

Cultura.Sul

Espaço AGECAL

Espaço ALFA

Gestão cultural e museus Silêncio d.r.

Isabel Victor

Museóloga

Há uma inteligibilidade dos territórios a evidenciar. Essa cartografia pressupõe levantamento de pontos e pontes, unidos em rede a partir de marcos de referência reconhecidos e reconhecíveis. Essa ligação à rede é fundamental para colocar no mapa a cultura. Conhecer e (re) conhecer pontos de evidência, operações básicas, exige participação e discussão porque desse processo nasce o desenho identitário e o mapa cultural. A Sociomuseologia, campo multidisciplinar e pensamento museológico orientado para os territórios e as pessoas, para uma visão crítica das práticas e usos da cultura, tem um papel relevante na construção da malha identitária. Neste varrimento de campo, a mira é a escala e o museu o teodolito, a sofisticada estação que nos vai possibilitando o desenho do terreno.

Em todas estas operações estão as pessoas, os cartógrafos da memória, os artífices do esquecimento – as duas faces da mesma moeda e o modos operandi do sistema de dados da cultura. Alguém afirmava que fora da História nada existe, a esta redundância teórica, podemos acrescentar que tudo o que diz respeito às pessoas diz respeito à cultura e que os museus existem porque existem pessoas e que só têm sentido se servirem para a vida, porque como afirma Mário Chagas (o poeta museólogo) “Museus que não servem para a vida não servem para nada". Há sempre trabalho a fazer nesta extraordinária construção inacabada que são os museus. Para além da permanente actualização das cartografias, representações humanizadas das erosões e mutações do terreno, os pontos essenciais que a metáfora contempla, precisamos, como enfaticamente afirmou Fernando Mora Ramos, de “reinventar o presencial”. A Gestão Cultural reforça-se com a Gestão colaborativa e o trabalho em rede. Redes horizontais, rizomáticas, a-centradas e multiperspectivadas. Resumindo: precisamos de redes, malhas que são simul-

taneamente instrumentos de gestão estratégica e grelhas de análise dos territórios. Precisamos de ter uma visão de conjunto mas também de conseguir segmentar para planear com eficácia, precisamos de políticas públicas e de formar políticos para a Cultura (não chega formar públicos se não tivermos acesso, oferta qualificada e educação), precisamos de observatórios independentes, bons diagnósticos multiperspectivados que deem ferramentas de análise e orientem a acção e programação cultural em rede (estamos sempre a trabalhar por impulso e modas, esgotamos recursos comuns numa “eventologia" frenética que responde a calendários e agendas políticas de ocasião), precisamos de criar mecanismos efectivos de participação, canais de proximidade, projectos efectivos de inclusão que tragam para o centro as margens ou multipliquem e/ou diversifiquem os centros numa lógica rizomática e horizontal de redes da cultura. Reinventar o PRESENCIAL e o trabalho em rede é a revolução de que precisamos. Em tempos da “Modernidade líquida" Zygmuntiana, o presencial é a constante na equação da Gestão Cultural e Museus. l

Dário Agostinho

Membro da ALFA

Em 1952 John Cage criou uma das peças “musicais” mais surpreendentes de todos os tempos. Quando 4’33” é executada os músicos permanecem simplesmente diante dos instrumentos sem os tocar. Por este motivo a peça é sistematicamente, e erroneamente, identificada como sendo quatro minutos e meio de silêncio. 4’33” é sobre muitas outras coisas para além de silêncio. Com efeito, não precisamos de ouvir vozes dentro da nossa cabeça para sabermos que o silêncio é, mais do que uma possibilidade, uma ideia. Logo que nascemos começamos a ouvir o mundo mesmo antes de o vermos, pelo menos com alguma nitidez. Costumamos também dizer que é importante escutar a nossa própria voz, não significando isso que devemos pensar em voz alta. A nossa própria voz é audível mas somente dentro de nós.

Uma fotografia é um objeto mudo Analogamente uma fotografia – quer material porque impressa, quer desmaterializada e vista num ecrã – é, por si só, um objeto mudo. Não traz, por norma, nenhum som agregado. Mas, tal como a peça de Cage, uma fotografia é tudo menos um objecto sem voz mesmo que não articule nenhum som. A nível simplificado podemos, a partir de uma imagem estática, imaginar o som do martelo batendo na peça de cobre que nasce das mãos de um caldeireiro ou o rugir da tempestade no momento em que se formou o Neptuno do Faial.

A um nível mais complexo, é por entre o mutismo de uma imagem fotográfica que surge a voz que aguarda dentro da mesma com uma estranha paciência e que um dia, quando finalmente nos confrontamos com essa imagem, inicia uma prodigiosa conversa connosco. Da mesma forma que Cage nos ensinou de um modo simples mas brilhante a importância do silêncio na música, podemos agora pensar em diálogo e deixar de ver uma fotografia como uma simples imagem. Todas as conversas se traduzem em som. E existem sons dentro e fora do silêncio. Vamos escutá-los. l

Filosofia dia-a-dia

Os gostos discutem-se ou não? d.r.

Maria João Neves Ph.D Consultora Filosófica

Costuma dizer-se que “gostos não se discutem!” A afirmação baseia-se em ser o gosto algo muito pessoal. Alguém não gostar de chocolate, por exemplo, poderia deixar a maioria de nós surpreendidos, mas ninguém ousaria intrometer-se com as predilecções do paladar alheio. Admitimos facilmente que o prazer que o chocolate nos proporciona é privado e não universal.

Porém, serão todos os prazeres igualmente privados? Que tipos de prazer existem? Grosso modo, podemos afirmar que existem pelo menos três tipos de prazer distintos: o prazer do agrado, este que o chocolate nos propicia; o prazer moral que se instala ao praticar uma boa acção, ou com a boa sensação do dever cumprido; e existe ainda o prazer estético que experimentamos, por exemplo, na contemplação de um quadro. Clarifiquemos: um bolo de chocolate enorme, feito para entrar no Guiness não é necessariamente uma obra de arte. O prazer do agradável é muito diferente do prazer da contemplação artística. O filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), na terceira crítica intitulada Crítica da Faculdade do Juízo, dedicou-se ao estudo

Immanuel Kant (1724-1804) destas questões: o belo da arte e o sublime da natureza. Chegou à conclusão de que quando nos relacionamos com algo do ponto de vista da contemplação nestas duas acepções, a qualidade desse juízo é estética. A palavra estética vem do grego aisthesis, que significa sensação. Precisamente, estético designa aquilo que é intuitivo e que, por con-

seguinte, se relaciona directamente com a sensibilidade. No domínio das artes, estético designa o sentimento de prazer ou desprazer que acompanha o juízo de contemplação artística. Ora, quanto às artes os gostos discutem-se ou não? Também aqui é muito frequente que se considere que cada um tem direito à sua opinião e que ninguém poderá ter razão. Se se tratasse de um juízo de conhecimento a situação seria diferente. Se alguém disser, por exemplo, “esta mesa é quadrada”, basta comparar o formato da mesa com a figura geométrica do quadrado para se se saber se a afirmação é ou não verdadeira. O intuitivo da sensibilidade distingue-se do discursivo do entendimento que se rege pela exposição lógica mediante con-

ceitos. Com os juízos de gosto não possuímos nenhum conceito que nos ajude a validar a nossa opinião. É por esta razão que Kant afirma que quanto aos juízos de gosto é possível discutir mas não disputar... O que torna, então, a discussão sobre o gosto possível? Embora o domínio da sensibilidade estética se refira apenas àquilo que nas nossas representações é meramente subjectivo, isto é, aquilo que numa dada representação se refere meramente ao sujeito - o seu sentimento de prazer ou desprazer - e não entra, de modo algum, na determinação do objecto com vista ao conhecimento deste, é possível discutir. Esta possibilidade assenta no facto de o estético do juízo de gosto não ser o privado da mera sensação de agrado que

se sente ao comer um chocolate, por exemplo. O juízo estético é um juízo subjectivo, sim, mas não é privado e, embora não lógico, tem pretensão de universalidade! Como é isto possível?! O juízo estético assenta sobre o nosso sentimento de prazer ou desprazer, que é colocado como fundamento, não como privado mas como um sentimento comunitário!Somente sob a pressuposição de que exista um sentido comum, o juízo de gosto pode ser proferido. Quem declara algo belo sugere que qualquer um deva aprovar o objecto em apreço e igualmente declará-lo belo. Daqui decorre a pretensão de universalidade com que é proclamado. Inscrições para o Café Filosófico:

filosofiamjn@gmail.com l


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20.07.2018  23

Cultura.Sul

Espaço ao Património

Escultura, arqueologia e museus

Sara Navarro

Investigadora de pós-doutoramento; Universidade de Lisboa; Faculdade de Belas-Artes; Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes (CIEBA) www.saranavarro.pt

Olhando em retrospetiva, foi em 2006 que tive o meu primeiro contacto profissional com a arqueologia. No âmbito do meu estágio, na Oficina Educativa do Museu de Portimão, fui encarregue da realização de uma réplica arqueológica com finalidade pedagógica. Deste episódio, recordo vivamente o momento em que tive oportunidade de segurar nas minhas mãos um cilindro de calcário branco polido, com dois olhos circulares, pestanas e sobrancelhas radiais incisas na superfície da pedra. Esta peça, pertencente ao espólio do monumento nove da Necrópole Megalítica de Alcalar, pode, atualmente, ser vista na secção “Origem e destino de uma comunida-

de - Alcalar: a ocupação Milenar de um Território” da exposição de referência do Museu de Portimão. Considero hoje que esta oportunidade marcou todo o meu percurso subsequente. Manipular um objeto proporciona uma forma de conhecimento particular, mais próxima e muito mais profunda do que a decorrente da sua visualização através da vitrine de um museu. Esta experiência espoletou o meu interesse pela arqueologia, que veio a nortear o meu atual trabalho de investigação: análise e definição do potencial papel da escultura contemporânea na comunicação de arqueologia em contexto museológico. Ao longo das últimas duas décadas, as dinâmicas entre escultura e arqueologia têm-se vindo a transformar, passando das mais tradicionais relações baseadas na analogia formal e na inspiração recíproca, para outras – na minha opinião muito mais interessantes – que maximizam e exploram o potencial de projetos de investigação conjuntos, levados a cabo por equipas interdisciplinares, compostas por artistas e por arqueólogos. Estes projetos geram interações muito mais complexas, em que ambas as disciplinas tratam os mesmos temas e partilham os seus métodos de trabalho.

A arqueologia procura comunicar com um público cada vez mais alargado A arqueologia (tal como as demais ciências humanas ou exatas) procura comunicar com um público cada vez mais alargado e menos especializado. Os museus e as paisagens arqueológicas - enquanto espaços privilegiados de diálogo entre a disciplina e a sociedade - devem propiciar ativas e significativas vivências do património. No entanto, parece-me que os tradicionais métodos expositivos nem sempre estão à altura deste desafio, acabando por criar atmosferas redutoras que não estimulam o pensamento individual. Novas abordagens criativas no programa expositivo podem incrementar positivamente a experiência da arqueologia por parte do público, ao mesmo tempo que contribuem para uma nova forma de salvaguarda do património. Neste sentido, e de acordo com experiências anteriores, defendo que a exposição de escultura contemporânea em sítios arqueológicos pode ser, para além de boa-de-olhar, boa-para-pensar, na medida em que transforma o lugar e desafia o observador, redirecionando-o para uma nova posição de

compromisso entre o contemporâneo e a envolvência arqueológica do espaço. ricardo soares

Peça cilíndrica decorada do Monumento 9 do Núcleo Oriental da Necrópole Megalítica de Alcalar. Calcário branco polido; 9 cms de altura e 6 cms de diâmetro; 905 g de peso As obras de arte tridimensionais (escultura/instalação contemporâneas), pela ímpar experiência visual que criam e pela forma como ocupam o espaço expositivo, induzem a uma forte interação física com o público. Trazem, assim, vitalidade à experiência museológica e po-

dem levar os visitantes a interpretações mais ativas, mais livres e mais subjetivas. A escultura facilita o envolvimento físico do observador, confrontando-o com a sua presença e levando-o à descoberta da sua forma, da sua materialidade, do seu detalhe. Estes aspetos podem cativar e suster a atenção do público, encorajando-o a uma exploração independente dos significados da obra e, como que por contágio, do contexto arqueológico em que esta se vê integrada. Por ter a importante capacidade de colocar dúvidas (não dando respostas), a escultura contemporânea “dá trabalho” ao observador. Desencadeando originais diálogos entre o observador e os vestígios materiais do passado, a escultura contemporânea pode, por exemplo, alertar os visitantes para importantes temas, conceitos ou materiais que normalmente estão adormecidos no espaço do museu ou da paisagem arqueológica. Ao aspirar a uma resposta ativa por parte do observador, a exposição de escultura contemporânea em espaços de natureza arqueológica pode contribuir para um discurso inclusivo no âmbito das práticas ligadas ao património, um discurso que procura a equivalência de pensamento entre o público geral e os especialistas. l

O poder de uma boa história na visita a um museu d.r.

Pedro Pereira

Co-fundador da byAR www.byar.pt

Albert Einstein dizia “A mente que se abre a uma nova ideia, jamais volta ao seu estado inicial”, eu apenas troco a palavra ideia por história. Porque razão gostamos tanto de uma boa história? E o que é que define uma boa história? Todas as histórias podem ser boas, só depende da forma como as contamos. Uma boa história tem emoção, suspense, ritmo e gera interrogações ao espetador. A razão é química, uma vez que o nosso cérebro associa emoções a memórias para tornar o processo de gravação mais rápido e consistente. Quanto mais forte for a emoção, mais forte será a memória. Por esta razão temos dificuldade em decorar listas de coisas, fatos ou ações, mas não temos dificuldade em memorizar uma boa história. Não acredita? Recorde um evento memorável da sua vida, por exemplo, o nascimento de um filho ou o primeiro

beijo. Veja a quantidade de pormenores que vêm à cabeça. Agora experimente fazer o mesmo com a lista de supermercado. Veja o quanto é emocionante recordar a lista de supermercado versus o primeiro beijo. Quantos itens da lista de supermercado se lembra? Entende agora porque gostamos tanto de uma boa história? Acredito que a visita a um Museu, pequeno ou grande, pode ser uma visita emocionante, memorável e única desde que conte uma boa história/narrativa. Foi com esta crença que desenhámos e produzimos o ambiente digital do Mercado de Escravos em Lagos; renovámos a exposição da Casa do Administrador de Ourém; produzimos Postais com Experiências Imersivas 360º para Lagoa (do Algarve); estamos a finalizar o BispoGo para Vila do Bispo, o qual contará com uma personagem ternurenta que nos vai guiar pelo território e, nos últimos meses, temos estado a trabalhar em conjunto com a equipa do Museu de Portimão na renovação do Ambiente Digital do percurso expositivo. O convite surgiu com a necessidade de acrescentar novos conteúdos, adicionar mais idiomas e tornar a exposição facilmente entendível à maioria dos visitantes. Para cumprir estes objetivos optou-se por criar uma App para smartphone, através da qual adicionámos

uma camada digital de conteúdos ao percurso expositivo existente. Com esta App e recorrendo à realidade aumentada, o visitante só necessita de apontar o smartphone em direção às imagens assinaladas ao longo do percurso para ativar os conteúdos. Em cada ponto de interação o visitante tem acesso a imagens, vídeos e principalmente a um áudio-guia que explica o tema tratado naquela parte do percurso. Do ponto de vista técnico, estaríamos em linha com os objetivos do projeto, mas seria um projeto sem emoção, suspense e poucas interrogações por isso decidimos adicionar alguns “pós mágicos” de emoção e curiosidade: assim que o visitante inicia a visita ouve pela primeira vez a voz da Mónica (a locutora) com um discurso sempre na primeira pessoa, como se a Mónica fosse alguém que habita naquele espaço e o convida a descobrir as origens e a evolução da comunidade de Portimão. Convidámos duas antigas trabalhadoras da fábrica de conservas a regressar ao local onde hoje é o Museu e ali, no meio de manequins sem vida, estas explicam o processo de descabeço e embalamento, num discurso directo, simples e sem preparação prévia, de modo a captar a genuinidade do momento. Também “convidámos” Manuel Teixeira Gomes para nos contar a sua história de vida. Estamos ainda a produzir um barco romano,

BispoGo, Vila do Bispo uma vila romana e uma casa islâmica, para permitir ao visitante conhecer os “Porta Contentores e respetivos contentores” daquela época, ver como viviam os romanos ou ver como era uma casa agrícola islâmica. A Mónica (a voz) marca o ritmo da visita. As antigas operárias e Manuel Teixeira Gomes geram emoção. Misturámos conteúdos interactivos 3D e criamos a surpresa. Confesso que gostava de ter ido mais longe, não só ter a Voz da Mónica, mas também a própria Mónica; dar vida aos manequins e criar textos por forma a voz da Mónica criar outro ritmo. No entanto, por um lado foi a própria exposição que definiu o Ambiente Digital a criar e por outro lado, a margem para ficcionar a verdade fatual é limitada. Para entenderem melhor a

diferença entre verdade fatual e verdade ficcionada, convido-o a relembrar o filme Titanic e um documentário sobre o mesmo naufrágio. O filme tem duas histórias: a história de amor que agarra o espetador e a história do naufrágio; um documentário sobre o tema vale pela informação histórica que expõe, mas não agarra milhões de espetadores. Visitar um museu, não é o mesmo que ir ao cinema, mas a história contada ao longo do percurso expositivo pode ter emoção, suspense, ritmo, interrogações, conflitos e finais emocionantes que nos fazem voltar, recomendar e reviver memórias. É através de emoções que criamos memórias duradouras. Então porque não ir a um Museu para viver, interagir e experienciar uma boa história? l


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