Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o
SETEMBRO 2018 n.º 119 9.242 EXEMPLARES
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MISSÃO CULTURA •••
GENTES DO MERCADO – Sorrisos e Expressões proverbiais A pensar na Convenção de Faro… Fotos: vítor pina
No âmbito da VI Edição da Feira da Dieta Mediterrânica que aconteceu em Tavira, de 6 a 9 de setembro, a Direção Regional de Cultura do Algarve e a Associação Internacional de Paremiologia organizam “Gentes do Mercado - Sorrisos e Expressões proverbiais”, um projeto de dinamização sócio-cultural do Mercado Municipal de Tavira, lugar de encontro para a comunidade local que aqui chega para comprar os produtos frescos do dia ou para um dedo de conversa.
de verduras, frutas, peixe, carne e enchidos, queijos, mel, doçaria e ainda a “neve de Tavira”, a famosa flor de sal proveniente das Salinas existentes logo ali ao lado. Mas é mais do que isso, a somar aos produtos frescos e aos “saberes fazer” associados – por exemplo a empreita, o escalar do peixe, ou os segredos das estrelas de figo - existem os vendedores, os verdadeiros protagonistas deste projeto. “Gentes do Mercado” constituiu um processo dinâmico que contou com a participação dos vendedores, que foram integrados na sua génese e perceberam a ideias basilares do mesmo: proporcionar uma nova dinâmica cultural no mercado, promover os valores associados ao modus vivendi da Dieta Mediterrânica e acima de tudo dar destaque aos que “fazem o mercado”, através das suas relações,
O Mercado Municipal de Tavira integra um mercado retalhista e um mercado de produtores (grossista) e algumas lojas com diferentes áreas de actividade. Um mercado repleto
laços de convivialidade e sorrisos; devolvendo a estas pessoas um pouco do que estas dão a cada freguês que ali chega: uma ameixa, um figo ou um sorriso e uma palavra amável.
Direção Regional de Cultura do Algarve
Ficha técnica
Gentes do Mercado - Sorrisos e expressões proverbiais •
As pessoas, as suas relações e valores humanos foram colocados no cerne da proposta cultural. Iniciativa que integrou percursos orientados no mercado, pela Associação Internacional de Paremiologia, que consistiram em conversas informais com os vendedores e utilizadores, através de expressões proverbiais, essas “cápsulas de sabedoria”, de tradição oral, associadas a práticas culturais intemporais. Este é um projeto que contou com o enorme empenho e generosidade da Designer Alexandra dos Santos - responsável pela identidade visual dos materiais gráficos -, o apoio da Câmara Municipal de Tavira e colaboração do fotógrafo Vítor Pina. Gentes do Mercado é um projeto integrado no AEPC 2018 - Ano Europeu do Património Cultural – que pretende contribuir para destacar a importância das comunidades locais na valorização do património cultural, indo ao encontro dos princípios da Convenção de Faro, pois tenta reflectir e entender o património cultural como factor de aproximação, de diálogo, de coesão social e de uma
cidadania cada vez mais inclusiva. Este tratado assinado pelos Estados Membros do Conselho da Europa, em 2005, na então Capital Nacional da Cultura – Faro - apresenta-nos uma visão holística da noção de património, pois para além do património material e imaterial integra também os valores, significados e usos desse mesmo património pela sociedade. Com a Convenção de Faro, a tónica passa a ser a da preservação do património como um instrumento de promoção da qualidade de vida das pessoas e comunidades. Este é o espírito da convenção: a utilização do património para a criação de sociedades mais justas, mais fortes e democráticas. Este imenso património imaterial que integra o modus vivendi da Dieta Mediterrânica e do qual nós fazemos parte deve ser valorizado, pois só assim será transmitido às próximas gerações. O projeto “Gentes do Mercado” poderá ser visitado no Mercado Municipal de Tavira até ao dia 31 de dezembro de 2018. l
Henrique Dentinho mostra “Deambulações” no IPDJ de Faro A Galeria de Exposições da Direcção Regional do Algarve do IPDJ, I.P., na Rua da PSP, em Faro, acolhe, até 25 de Setembro, a exposição de Pintura e Escultura de Henrique Dentinho “Deambulações”. “Deambulações” ou “vida errante, deambulando até ao caminhar sem destino….” , reflectem a passagem do artista por Angola, Moçambique,
Brasil e por França, pois são estes países, as suas cores e as suas culturas que mais influenciam a obra de Henrique Dentinho. Henrique Dentinho nasceu em Faro em 1929. Formado na Escola Agrícola de Santarém, iniciou-se primeiramente na escultura, de onde faz renascer velhos pedaços de árvore que encontra no seu caminho. A pintura surge mais tarde, atra-
vés da sua filha Susana iniciou-se com o Mestre Martins Leal, nos “Pintores Olhanenses”. A sua obra é reconhecida por vários coleccionadores e encontra-se dispersa por Portugal e pela Europa. A pode ser visitada de segunda a sexta-feira, das 9 às 18 horas. l
Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ao Património: Isabel Soares • Filosofia dia-a-dia: Maria João Neves • Juventude, artes e ideias: Jady Batista • Letras e literatura: Paulo Serra • Missão Cultura: Direcção Regional de Cultura do Algarve • Reflexões sobre urbanismo: Teresa Correia Colaboradores desta edição: Dário Agostinho, Said el Hajji Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/ postaldoalgarve FB: www.facebook.com/ postaldoalgarve/ Tiragem: 9.242 exemplares
d.r.
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FILOSOFIA DIA-A-DIA •••
Pessoa e Democracia d.r.
Maria João Neves Ph.D
Consultora Filosófica
No seu livro Pessoa e Democracia a filósofa María Zambrano (1904-1991) define o regime democrático como “a sociedade na qual não só é permitido, senão que é exigido ser-se pessoa”. Exigir é uma palavra muito forte, quase opressiva... Que terá a filósofa em mente ao definir a democracia deste modo? Zambrano afirma que a sociedade é o lugar natural do homem e que o seu tempo é o tempo da convivência dando por adquirido que a convivência seria sempre uma convivência entre indivíduos. Contudo, nem sempre foi assim. Recorda-nos a filósofa que o tempo da solidão, aquele que corres-
ponde ao homem que “se sente e se sabe indivíduo” não existiu sempre. Actualmente, não sentimos o tempo da solidão como uma conquista. Nascemos numa época em que ele é dado como um direito. No entanto, este é um tempo de que, inicialmente, apenas os privilegiados - as classes que gozavam de um certo ócio - podiam desfrutar. É por este motivo que a Grécia aristocrática é considerada o berço da filosofia; somente nela surgiu o espaço de solidão homem-indivíduo favorável ao desenvolvimento do conhecimento desinteressado a que Aristóteles se refere. Desde então, a cultura ocidental progrediu no sentido de um individualismo cada vez mais acentuado. O indivíduo terá surgido na sociedade grega pela primeira vez quando aparece a classe dos cidadãos. Mas o indivíduo não é ainda pessoa... É Sócrates quem começa a cuidar esta dimensão do humano ao estabelecer como preocupação essencial o autoconhecimento: “a pessoa é algo mais que o indivíduo; é o indivíduo dotado de consciência, que se sabe e entende a si próprio” - Esta é a perigosa novidade socrática! A prescrição de se conhecer a si
próprio inclui o aparecimento da consciência individual, a consciência de que nascer humano é um valor, independentemente de se pertencer a uma certa classe social, de se exercer determinada função, de se ser o filho ou sobrinho de A ou B. A consciência de si próprio inaugura também um novo modo da forma-tempo: o tempo da solidão. Zambrano distingue a existência de diferentes tipos de tempo - o tempo da amizade, do amor, da solidão ou da convivência social - e considera que este último é o suporte do tempo histórico. Porém, o aumento do individualismo requer um aumento proporcional da responsabilidade, uma vez que a solidão cria as condições para pensar e agir com consciência. Torna-se uma exigência ética cuidar de si! Ser pessoa implica necessariamente um tempo de solidão que permita o autoconhecimento. Cada um de nós não se conhece a si próprio porque o ser humano é um ser indeterminado e aberto, em contínua formação. Pessoa não se é de uma vez, definitivamente; há que assumir essa tarefa, preocupar-se em conhecer-se a si mesmo, rejeitar ser um mero personagem. É por isso que Zambrano nos diz que a
ação mais humana entre todas é abrir caminho, isto é, ter um horizonte e uma meta rumo à qual caminhar. Só depois de ter indicado um objetivo, um alvo, é que surgem as pequenas tarefas que cobram sentido em relação a esse propósito final. A ética consiste então numa dupla fidelidade: ao absoluto, fora do tempo; e à relatividade, o discorrer do tempo. Parece contraditório, mas não é. A pessoa humana é caracterizada por querer algo absolutamente - a meta distante que há pouco referimos - mas caminha em direção a ela através de todas as pequenas e finitas coisas, - a contingência que o estar no tempo implica. Ser pessoa implica também perceber que somos necessariamente livres, ou seja, que temos de assumir a responsabilidade pelas escolhas feitas e envolver-nos na sociedade da qual fazemos parte. O regime democrático, pelo seu respeito pelas diferenças, a admissão de espaços de solidão e intimidade, a esperançosa abertura ao futuro e a possibilidade de coexistência de diversas formas-tempo simultaneamente é, no entender de Zambrano, o ambiente propício para o desenvolvimento da
Capa do livro de María Zambrano •
pessoa. Pessoa e democracia são, pois, palavras da mesma constelação: as suas órbitas não apenas se conjugam mas vitalizam-se mutuamente! l
Inscrições para o Café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com l
REFLEXÕES SOBRE URBANISMO •••
O litoral algarvio: desafios e potencialidades d.r.
Teresa Correia
Arquitecta / urbanista arq.teresa.correia@gmail.com
Litoral algarvio: um desafio ainda por superar Perante a qualidade de excelência do nosso litoral, o Algarve enche todos os anos, com uma vivência intensa, de turistas nacionais e estrangeiros, sobretudo nos três meses de verão. De facto, o Turismo resolve a vida económica de muita gente e proporciona investimentos importantes, agora também no Alojamento Local. A questão que se levanta é se o Estado tem feito a parte que lhe
compete, melhorando as infraestruturas, nomeadamente proporcionando adequadas vias rodoviárias, como a EN 125, ou as ligações ferroviárias, ou mesmo os acessos às praias. Nesta área, embora o litoral algarvio seja resiliente na captação de turistas, contempla fragilidades de infraestruturas gritantes, como seja, as áreas de estacionamento na retaguarda, os meios de transporte adequados, uma mobilidade integrada e coerente com o ambiente, zonas de equipamento acessíveis a pessoas com mobilidade condicionada, etc. Salvo raras exceções, o desafio de um Algarve moderno e infraestruturado ainda não está superado, embora em todas as regiões do país esse desiderato já tenha sido atingido e ultrapassado.
Infraestruturas estruturantes: porquê o atraso? As infraestruturas estruturantes necessárias ao Algarve são de diversa ordem: o Hospital Central do Algarve,
as ligações ferroviárias, as estruturas de apoio em termos económicos, as interfaces que não existem, e a já tão afamada requalificação da EN 125. Sendo reclamado por todos os algarvios, qual a razão porque todos os Governos sucessivamente persistem em desvalorizar? Talvez porque nos falta a regionalização, ou porque o Algarve não tem um peso político fundamental para que possa ter significado na decisão governamental. O Algarve merece uma atenção justa sobre os seus projetos estruturantes, sobretudo em termos de saúde e de mobilidade, sob pena de prejudicar a coesão social e económica da região. Esta realidade irá mais cedo ou mais tarde entrar pelas portas de muitos portugueses, sejam estes residentes ou turistas na região. Tendências do Estado no nosso litoral As tendências do Estado são normalmente de duas ordens de grandeza: ou ausência no investimento,
O litoral continua a ser o local privilegiado dos algarvios •
ou exploração de recursos já pagos há longo tempo, como sejam as portagens da Via do Infante, entupindo ainda mais a EN 125, como se pôde verificar mais uma vez este Verão. Agora, parece existir uma outra tendência a nível nacional: a descentralização de competências, que no Algarve não existindo uma regionalização poderá trazer pressões
interessantes de estudar a longo prazo. O litoral continua a ser o local privilegiado dos algarvios para o desenvolvimento da sua atividade económica em todos os verões. Será fácil produzir resultados no Turismo, mas muito do que é fundamental para a vida dos cidadãos ainda está por concretizar. l
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LETRAS E LEITURAS •••
O prodigioso retorno de Lídia Jorge Paulo Serra
Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL
Estuário, de Lídia Jorge, foi publicado no dia 23 de Abril. No seu mais recente romance, a autora, nascida em Boliqueime em 1946, escreve, como sempre, sobre o que sobeja do real, focando-se agora no declínio de uma família e de um negócio familiar, de uma diáspora de filhos que com a crise conflui para a casa do pai. Ao fim de 38 anos de escrita (O Dia dos Prodígios, o seu romance de estreia, foi publicado em 1980), a autora distinguida com os mais diversos prémios nacionais, e conhecida e estudada internacionalmente, continua a agraciar-nos com uma escrita encantatória, lírica, que reflecte sobre o próprio processo de escrita, e imbuída de uma visão crítica, pois em simultâneo analisa o futuro da Humanidade e o estado do mundo. Este é o décimo segundo romance e pode representar uma nova fase na obra da escritora.
Se Os Memoráveis encerrava um ciclo, iniciado com a obra de estreia sobre a Revolução de Abril, O Dia dos Prodígios, e fechado com esse trabalho de reconstrução ou resgate da memória da Revolução em Os Memoráveis, então este Estuário pode bem marcar uma nova fase na escrita de Lídia Jorge, como se pode ler na passagem: «Então, alguém teria de escrever esse livro, um livro que fosse, ao mesmo tempo, o último do passado e o primeiro do futuro.» (p. 15) Essa é uma boa questão. Talvez Estuário também seja um regresso a O Dia dos Prodígios, mas visto de um outro ângulo. Um ângulo invisível mesmo para um leitor atento, como é o caso do Paulo Serra. Trata-se do impulso que o move. Escrevi este mais recente livro, como escrevi o primeiro, sem rede, apenas porque desejava escrever e, como já disse, usando aquele lema que estava inscrito na faca de Caravaggio - Nec spe nec metu. Onde não há esperança não há medo. Falo do ponto de vista do impacto que os livros podem ou não causar nos leitores. Coloquei-me fora dessa situação. Como noutros romances, existe novamente um primeiro relato introdutório que lança o mote. Mas ao contrário do habitual não temos aqui uma jovem mulher de olhar ingénuo que vê a sua visão do mundo ser desmontada, mas sim um jovem homem, cujo nome me parece marcadamente simbólico, Edmundo Galeano… Que me lembre é a primeira vez que temos um protagonista masculino… Tenho tido outros protagonistas masculinos, mas eles não coincidem com a personagem que conduz o fio narrativo. É o caso de Walter Dias de O Vale da Paixão, Antonino Mata de O Vento Assobiando nas Gruas, ou Osvaldo Campos de Combateremos a Sombra. São figuras protagonistas, mas não conduzem o olhar do leitor. Neste caso, Edmundo Galeano conduz a narrativa. Ele é o ouvido atento das palavras secretas proferidas pelas figuras da sua família. Ele mesmo conduz toda a narrativa, ainda que indirectamente.
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Fotos: João Pedro Marnoto
Estuário é o 12º romance de Lídia Jorge e pode representar uma nova fase na obra da escritora •
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Charlote, por outro lado, tem também muita importância, e pela sonoridade do nome estrangeiro, pela sua posição marginal em relação à família, coaduna-se mais com o seu leque de heroínas… Charlote é uma rapariga portuguesa do nosso tempo, mas poderia ser uma figura que caminhasse no solo de um outro país europeu, ou talvez mesmo em espaço mais vasto. Ela debate-se entre o instinto maternal, e outros que lhe andam ligados, em contraste flagrante com os princípios de independência e autonomia femininas próprias do nosso século. Ela não está resolvida, como muitas mulheres ocidentais não estão, ainda que se diga que sim. Estão em plena transição de estatuto. O nome que lhe atribuí pareceu-me adequado. É um dos nomes femininos mais fortes e universais. Charlote é uma figura nascida de um tempo próprio, muito preciso, mas numa geografia global.
A sensação que tive nas primeiras linhas foi a de estar a ler um dos seus contos. Li, entretanto, que este é um romance que começou a escrever nos três anos seguintes à publicação de Os Memoráveis, em 2014, e ao qual voltou depois de alguns anos de pousio. Mas será possível que este tenha sido inicialmente um conto escrito como interregno e que acabou por ir crescendo? Foi um pouco diferente. Comecei a escrever este livro quando terminava Os Memoráveis, mas tive de interromper durante três anos. Depois regressei a este livro e, entretanto, muita coisa se tinha desactualizado do ponto de vista da sua construção, mas muita coisa também se tinha actualizado do ponto de vista da sua temática. Um dos casos mais curiosos é o que se reporta ao capítulo 26. Foi escrito dois anos antes de Bob Dylan ter recebido o Nobel da Literatura, mas parece ter sido escrito dois anos depois.
Parece-me que muitas vezes as frases se escrevem na negativa… Será mera coincidência ou tem a ver com algum descrédito que se sente pelo mundo actualmente? Não me apercebo da constante que menciona. Talvez seja assim. Mas, na verdade, o livro, segundo julgo, não dá conta de um descrédito, dá conta de um indício muito relevante de que a ameaça do perigo anda pelos ares. Edmundo lê muito a Ilíada, um livro que avisa sobre a natureza assassina da natureza dos homens, e dos próprios deuses que os incitam. Na narrativa atribuída a Homero, Heitor mata a Pátroclo, e Aquiles, por vingança, mata a Heitor. No mundo actual, num livro que fosse escrito como aviso, tal como desejava Edmundo, não haveria funerais de Heitor, feitos pelo seu pai, Príamo. Os últimos homens ficariam insepultos, porque não sobejaria ninguém. Mas, segundo Edmundo Galeano, esse livro ainda será escrito no futuro. Ele tem vinte sete anos, o que significa que em termos de escrita não passa de um adolescente. Ele mesmo descobrirá que tem muito que aprender pela frente.
Se em O Vale da Paixão, o sentimento era de diáspora, e havia uma casa abandonada assombrada pelos passos desiguais dos seus poucos ocupantes, em Estuário, apesar do título singular (sonoro, formado por uma só palavra) dar a entender que há um desaguar ou um fluir, do rio para esse «mar oceano», o sentimento é de retorno, pois os filhos do pai Galeano regressam a casa. É inclusivamente um romance de várias vozes, cujos capítulos alternam entre os vários filhos, cada um com a sua natureza e interesses próprios… Está bem observado. De facto, o movimento é oposto. Talvez o tempo tenha mudado e não só o tempo narrativo. Talvez também o tempo social. Num mundo em que tudo gira à velocidade vertiginosa do low cost, tanto se parte quanto se regressa. Neste caso, o regresso é forçado pela adversidade que se abate sobre todos, e serve para que se fale da luta pelo território original entre irmãos. É um tema dos nossos dias. A luta tribal, a luta dentro do clã. Mas a família Galeano é uma família portuguesa, com valores tradicionais, com noção de honra e de estoicismo. Por isso nenhum dos irmãos fala em voz alta do que lhe está a acontecer. Só Edmundo, que vive à escuta do que se passa em silêncio, se apercebe de todos os movimentos entre os irmãos, e no final, depois da confissão de Amadeu Lima, ele se sente apto a falar do caso da sua família próxima em oposição à sua família longínqua. De forma coral, cada um por sua vez, cada um com sua voz. Individualizados, tal como ele os escutou. Como mulher repartida entre duas cidades, que é convocada frequentemente a outros lugares, dentro e fora do país, o que representa para si a casa? A casa é um dos centros do centro da identidade. O caroço da pátria, o núcleo individual do mundo. Por alguma coisa se diz que a minha casa é o meu mundo. Mal, porém, de quem diz que o mundo é a sua casa. Aí seria um estádio de limitação insuportável. A casa é o nosso mundo apenas por metonímia. Tomando a parte como amostra do todo. O romance continua a ser um género literário indispensável precisamente porque coloca a nossa casa entre as casas dos outros, entre todas as outras casas do mundo, e pelo facto se faz um exercício de descentramento. Ajuda a sentirmos que somos parte de uma imensa Humanidade. Se o romance desparecesse, ou perdesse o espaço que ocupa, teríamos muito mais gente a dizer que a minha casa é o meu mundo. Ponto final. Talvez se inverta essa marcha egocêntrica. Talvez.
Este é um livro que como a «terceira parte» que, no final, Edmundo planeia começar a escrever, parece corresponder a um tempo futuro (2030 é o título que Edmundo idealiza para esse livro absoluto). Parece representar, por um lado, o retorno a outros livros de Lídia Jorge, ao mesmo tempo que se reflecte sobre o que escrever agora, da mesma forma que se questiona até que ponto fará sentido escrever quando o próprio futuro do mundo parece ameaçado. Não é um livro de desencanto, até porque termina em aberto, cheio de possibilidade, mas de questionamento, pois nele desaguam temas tão díspares como a fome em África, a imigração, os refugiados, missões humanitárias como a «CARE», que parece ser uma ONG, assim sugestivamente apelidada (CARE, do inglês «cuidar», «nutrir»), um mundo em crise que já não tem lugar neste tempo, como os barcos do negócio da família Galeano, o continente de plástico à deriva no oceano, o futuro do livro, quando os amigos de Edmundo o ridicularizam por querer escrever um livro, e dão muito mais importância à letra de músicas como as dos «Esmagando Abóboras» (Smashing Pumpkins) – o que lembra ainda a polémica com a atribuição do Nobel da Literatura ao músico e letrista Bob Dylan. Quem lê um livro é senhor da sua opinião sobre ele. Esse espaço de liberdade é sagrado. Se este livro parece conter desencanto a quem lê, é porque ele transmite noções de empobrecimento e de vários tipos de perda. De ordem pessoal, social, política, ontológica. Mas, pessoalmente, como sua autora, trata-se mais de um livro sobre a ameaça que paira sobre a nossa cabeça, sobretudo sobre a cabeça dos vindouros, do que sobre o dilúvio. Creio ter escrito mais um livro de desocultação da realidade do que de castigo. E sobre o papel da Arte, ela aparece na voz de Edmundo Galeano como uma forma de criar uma Arca de Noé onde a sobrevivência possível acontece. Uma metáfora da realidade desejada.
Creio ter escrito mais um livro de desocultação da realidade do que de castigo.
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Quando refiro que parece haver um retorno a outros livros de Lídia Jorge, refiro-me a episódios ou passagens que claramente me invocaram outras obras suas, como o protagonista que ginastica a mão, para voltar a escrever, um pouco como a jovem escritora de O Jardim sem Limites, onde também havia um mimo que se puxou até ao limite; ou como o caso do cavalo Imortal que parte à desfilada, como a mula Menina em O Dia dos Prodígios; ou quando Charlote parece aprender a conduzir, acompanhada de perto por Amadeu Lima noutro carro, como a jovem que aprende a pedalar em A Instrumentalina. Percebe-se que entende os temas que me são sedutores, figuras e actos que aparecem e reaparecem. Representam para mim mesma imagens-luz que passam de uns livros para os outros. Mas não sei se os interprete como formas de enriquecimento da narrativa, se essas repetições serão sinais de fraqueza. Pessoalmente, não prometo não repetir a fuga dos cavalos e dos muares, ou o exercício das mãos diante dos instrumentos de escrita. São actos que me conduzem a revelações que eu imagino importantes, quando estou a escrever. Depois, são o que são. Por fim, e por palavras da própria autora, que nos explicam um pouco das referências e citações que atravessam o livro, não posso deixar de salientar como a Ilíada é uma das obras apontadas como influência ou inspiração, se bem que com a devida ressalva de constituir um dos livros fundadores da cultura ocidental, mas temos também a referência de O Livro do Riso e do Esquecimento, de Milan Kundera, autor que lhe é querido, e que numa entrevista no Cultura.Sul aquando da publicação de Os Memoráveis eu já tinha apontado parecer ser uma inspiração implícita a essa revisão do 25 de Abril. Milan Kundera é um dos meus escritores favoritos, injustamente banido das listas do Nobel pela intriga checa. Cada país tem a sua intriga, os seus elogiados em demasia, e os seus perseguidos em demasia. Custa ver à distância que o tempo passe e não se reconheça o valor de um autor fundamental da segunda metade do século XX. Ele ensinou a escrever sobre as ditaduras, lá onde elas matam sem se ver. Continua actual e premonitório. Os seus detractores falam de que o tema das ditaduras do Leste está ultrapassado, e que o caso da invasão de Praga já foi há muito. Há sempre quem não aprecie que se fale dos momentos em que as sociedades colocam a utopia acima do real, o que acontece quando o real se tornou insuportável. Isto para contrapor a uma fórmula de Ortega y Gasset, que não entendeu a
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dinâmica das revoluções, ainda que tenha entendido quase tudo sobre o seu tempo e até o futuro. Servir-lhe-á a Ode Marítima, em contrapartida, para mostrar que além do respeito pela tradição está ainda assim em busca de uma linguagem nova para cantar um novo mundo? A Ode Marítima é hoje um poema popular entre nós. Os alunos do secundário lêem-na e comentam-na. Tornou-se um espaço comum na cultura portuguesa. O recurso ao texto de Pessoa serve para localizar o imaginário ainda adolescente de Edmundo Galeano, cujas referências literárias são apesar de tudo limitadas. Ele apoia-se no ritmo grandioso da ode porque é um jovem que ainda busca o estatuto do herói da proeza. Procura um ritmo que o estimule, e encontra esse longo poema no baú das suas memórias mais frescas. Edmundo escreve com a mão direita, mão essa que tem apenas dois dedos pois os restantes foram decepados num acidente ao salvar um bebé. Edmundo copia a Ilíada e procura depois outras obras como forma de encontrar a sua própria voz. Edmundo vive fascinado pela visão de uma esfera azul que parece representar o livro perfeito que almeja escrever. Há um carácter fortemente metaficcional nos elementos reunidos em torno desta personagem, como aliás acontece noutros romances seus, como O Jardim sem Limites. Será que está aqui de alguma forma a repensar o seu processo de escrita? Edmundo Galeano faz a experiência da perda porque lhe amputam parte da mão direita. Não acredito num escritor, ou num criador, que crie e escreva em profundidade sem ter feito a experiência da perda. Se projectar essa minha convicção sobre a criação literária, neste caso, é entrar pelo mundo metaficcional, então sim, a resposta é afirmativa. Edmundo Galeano, nessa medida, sou eu enquanto penso Edmundo Galeano.
Na sua escrita, acho possível encontrar um “estilo” próprio, pois a sua prosa, que define como «litúrgica», feita de repetições e de uma certa musicalidade, um barroco que apesar de tudo é próximo da oralidade. Este romance, ao contrário de outros, foi aliás possível ler de uma rajada, foi difícil pousá-lo. Será mito pensar que também foi escrito assim? Sim, foi um livro escrito em velocidade. Ficou durante três anos parado, e quando regressei talvez já o tivesse escrito várias vezes em imaginação. Foi sentar-me à secretária e escrevê-lo, como disse, sem horizonte outro que não fosse escrevê-lo, e por isso, sem receio da página seguinte, nem do seu final, nem do seu princípio. A esfera azul (que também parece representar o planeta no seu estado puro) pode ser interpretada como uma alegoria do desejo que todo o escritor tem de escrever uma obra perfeita, mas também como essa vontade utópica que Edmundo tem de salvar o mundo? Sim, representa, sobretudo, a forma primitiva dos planetas que faz rodar todas as coisas em torno das suas órbitas, e de que o desejo de criação que é imperioso para quem o experimenta retira, neste caso, a forma esférica. O desejo de criar, que é alguma coisa que é interna, para Edmundo ganha uma expressão externa, visual, pois de outro modo não se representaria a seus próprios olhos. Sim, nessa forma esférica perfeita também está encerrada a forma utópica de salvar o mundo.
O espaço é ambíguo. Se há momentos em que parecemos estar no Algarve, cenário de romances como O Dia dos Prodígios, O Cais das Merendas, O Vento Assobiando nas Gruas, mediante a referência à «Ria», assim em maiúsculas, como entidade viva, há por outro lado espaços designados de forma ambígua, como Praça do Mar, o que significa que podiam localizar-se em qualquer lugar, ou referências como a «ponte» ou o rio que nos remetem para a capital. Gosto dos espaços com água. Rias são espaços aquáticos férteis. Estuários são espaços de criação de vida porque neles se cruzam dois ambientes húmidos, o da água doce e o da água salgada. Fauna e flora explodem em variedades e abundância. São por isso locais de metáfora onde as coisas acontecem, as peripécias podem suceder-se, as figuras retiram as máscaras e mostram a pele do rosto. Mas não gosto de precisar demasiado. Prefiro que as geografias sejam imprecisas porque mais vastas. O espaço do sonho não abusa dos nomes concretos, nem de tempos precisos. Só às vezes, para que a fantasia tenha assento na terra. E se são precisos, devem estar suficientemente transfigurados. Para o oposto, existe o jornalismo que, em termos de referências concretas, o faz com muito mais eficácia. Nos livros de ficção, se a água entra nos livros, os rios não podem parar só no mar, sempre desaguam em outros lugares mais vastos.
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Neste Estuário parece haver um retorno ao seu mundo mágico, pois há laivos de maravilhoso que subtilmente colorem o romance… O maravilhoso habita em nós. O maravilhoso é realista. Todos nós sabemos que a alegria faz as cadeiras onde nos sentamos voarem pelo ar, e os comboios atravessam paisagens de neve sem limites quando nos sentamos numa carruagem ronceira que vai de bairro a bairro. Morreríamos se não vivêssemos desse sonho. De vez em quando, os livros falam dessa i-realidade salvadora. Em Estuário, isso acontece em algumas páginas. Nunca deixei de me socorrer dessas proezas que nos habitam e que nós escondemos da luz pública para sermos pessoas correctas. A Literatura habita esses campos, esses espaços de incorrecção onde o maravilhoso está sempre a acontecer. l
Todos nós sabemos que a alegria faz as cadeiras onde nos sentamos voarem pelo ar
A escritora já foi distinguida com diversos prémios nacionais e internacionais •
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MARCA D'ÁGUA •••
O Brasil entre as cinzas da memória... d.r.
Maria Luísa Francisco
Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
luisa.algarve@gmail.com
Depois da crónica do mês passado sobre o incêndio em Monchique, não pensava voltar a escrever sobre um incêndio, mas quem é que fica indiferente ao desaparecimento de um património riquíssimo, que implicou a perda de 200 anos de história comum e um espólio com cerca de 20 milhões de peças? Quando a história, a ciência e a cultura ardem, seja em que país for ficamos todos mais pobres. Ao ver na televisão as impressionantes imagens do Museu Nacional do Brasil a arder, senti uma enorme tristeza, não só por não ter visitado aquele que se tornou no maior museu de História Natural e Antropologia da América Latina, quando há alguns meses estive no Rio de Janeiro, mas principalmente por perceber que se perdeu uma parte da história de Portugal no Brasil.
Num domingo à noite (a tempo das más "notícias" mediáticas de segunda-feira), no início da semana em que se celebra a proclamação da independência nacional e em tempo de campanha eleitoral…o sucedido impõe-se-nos como um reflexo incontornável do Brasil actual! Há informação sobre a existência de alguma tecnologia de ponta no Brasil, no entanto ocorreram nos últimos anos pelo menos oito grandes incêndios (como refere a agência brasileira Globo) que consumiram prédios que guardavam acervo com valor artístico, histórico e científico. Não se trata de um pequeno museu, mas de um grande museu do Estado Brasileiro. E mesmo que fosse um pequeno museu, o património tem de ser conservado como um legado para as gerações futuras e não deixado ao abandono. Certamente todos esperamos que os governantes tirem ilações e que não voltem a acontecer tragédias destas. Segundo regras de segurança gerais, edifícios desta importância devem estar apetrechados com segurança adequada e nos locais onde estejam armazenadas obras ou peças de interesse para o património histórico e cultural, deve ser assegurada protecção adicional. Será que o Estado Brasileiro não consegue ter sistemas automáticos de detecção e extinção de incêndio, em particular com extintores adequados à preservação do património? Será que
O Museu Nacional abrigava um vasto acervo com mais de 20 milhões de itens •
não consegue ter sistemas de controlo de fumo, bocas de incêndio e portas resistentes ao fogo? A história recente e actual do Brasil não parece tanto a de um país em desenvolvimento com Ordem e Progresso, mas antes a de um Museu em chamas! A forma como um país cuida das crianças, dos velhos, dos animais, da natureza e do passado diz tudo sobre esse país. Ocorreu-me uma frase de origem indígena que refere que “quando morre um velho, é como se morresse
uma floresta”, neste caso não morreu a floresta, o parque nacional da Boa Vista, que rodeia o Museu, não foi danificado, mas morreu o velho que é como se fosse o Museu e todo o arquivo histórico. O Museu Nacional do Rio de Janeiro preservava a memória viva da estreita relação entre o Brasil e Portugal. E porque Portugal é um país solidário irá certamente empenhar-se, através dos Museus Portugueses e do Ministério da Cultura, na ajuda à reconstrução desse Museu. Várias entidades referiram publi-
camente a possibilidade de oferta de peças que representem a relação entre Portugal e o Brasil. Acredito que noutros museus do Brasil, como em Portugal, há peças para oferecer, muitas talvez não estejam expostas ou estejam em depósito. O futuro fica comprometido quando o passado é esquecido ou destruído. O futuro é feito da memória, do respeito pela herança e raízes comuns e pela salvaguarda do património cultural. Estas premissas têm de estar presentes em qualquer país que se queira considerar civilizado! l
ESPAÇO AGECAL •••
Ksar el Kbir: uma cidade que contribuiu para a história do mundo RESUMO - Conferência Internacional sobre Gestão Cultural organizada pela AGECAL em Tavira a 4 de Maio de 2018.
Said el Hajji
Historiador marroquino
Construída sob as ruinas da urbe romana de Opidum Novum, a cidade de Ksar el Kbir é uma das mais antigas de Marrocos setentrional. Conheceu um grande desenvolvimento urbano entre os séc. XIII e séc. XVI durante a época almóada e merinidia com a edificação das muralhas, da grande
mesquita e outros edificios públicos. O seu papel comercial continuou durante os reinados dos Watassidas e Saadianos. No século XVI nas proximidades ocorreu um acontecimento de importancia mundial, a batalha do Wad el Makhazin, um dos afluentes do Loukus, a meio caminho entre Larache e Ksar el Kbir, a 4 de agosto de 1578, teatro da ”última cruzada cristã Mediterrânica” para usar a expressão de Fernand Braudel. A batalha de Wad el Makhazin, para a historiografia marroquina, de Alcácer Quibir ou dos Três Reis para a historiografia europeia foi considerada o maior desastre da história portuguesa e um dos sucessos militares mais brilhantes da história de Marrocos. Esta batalha teve um efeito glacial
na grandeza de Portugal e na sua independência, permitiu a Marrocos uma reputação e apresentar-se como uma potência regional durante um curto período. No final do seculo XV até ao início de seculo XVII, a cidade foi capital do Sheik Al Khadir Ghailan que se dedicou à “djihad” contra a dominação estrangeira. Nos séculos XVIII e XIX converteu-se num grande centro artesanal e comercial. Muitas famílias andaluzas nela se instalaram após a queda de Granada. No século XX, a cidade de Ksar el Kbir teve grandes transformações urbanísticas que afectaram o seu património arquitectónico para favorecer o dinamismo do tecido urbano da medina.
A história da cidade: datas cronológicas Séc. I a IV: assentamento romano de Opidum Novum Séc. VII: Souk Kettama ou Ksar Kettama. Séc. X: desaparecimento da cidade de Al Bacera. Séc. XII: construção da mesquita de Aâdam e das muralhas de Yacoub El Mansour. Chegada de Moulay Ali Bou Ghaleb, vindo da Andaluzia. Séc. XIII a XIV: a família do Beni Chkayloule, vindos da Andaluzia, dirigem Ksar el Kbir. Séc. XV: Djihad contra os portugueses instalados na costa. 1578: Batalha do Oued El Makha-
zin ou dos Três Reis contra os portugueses. Séc. XVII: Abou Al-Abbas Al-Khadir Ghailan lança a “djihad” contra as cidades costeiras ocupadas. 1673: Morte de Ghailan e destruição parcial das muralhas por Moulay Ismail, nomeação dos Caïds do Rif como Omar Ben Haddou e seu irmão Ahmed; 1742: Fim do poder dos caïds do Rif por Moulay Abdellah (1728-57). 1845: Guerra fratricida entre os Khlots e os Tligs. Séc. XIX: Comércio do porto de Larache para a Europa. 1912 : Protectorado espanhol. l
CULTURA • SUL
14 de Setembro de 2018
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ARTES VISUAIS •••
A dimensão das obras de arte altera a sua perceção? os observadores a entrarem no domínio da própria peça”, para a poderem experienciar na sua totalidade, refletindo o local onde está exposta, numa espécie de trazer “o céu à terra”.
permite alterar a sua perceção e o efeito emocional que estes podem ter sobre o espetador. A perceção tem sido um domínio estudado pela Psicologia há mais de fotos: d.r.
Saul Neves de Jesus
Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora https://saul2017.wixsite.com/artes
Até ao dia 6 de janeiro de 2019, pode ser visitada no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto, a exposição “Anish Kapoor: Obras, Pensamentos, Experiências”. A obra escultórica criada por Kapoor tem sido concebida a uma escala de grandes dimensões, em ambientes urbanos, como sejam Londres ou Nova Iorque, ou em jardins formais, como sejam os Jardins de Kensington, em Inglaterra, ou o Palácio de Versalhes, em França. No caso da exposição em Serralves, foram selecionados trabalhos representativos da linguagem escultórica de Kapoor, para a qual a materialidade, a escala, o relacionamento com a arquitetura, a paisagem e o observador são fatores constitutivos. Uma das obras expostas, “Sky Mirror” (“Espelho do céu”), é constituída por um espelho côncavo de aço inoxidável que, segundo Kapoor, “obriga
te passam despercebidos ao mundo da perceção artística, mas que Joana Vasconcelos integra em grandes quantidades, dando-lhes um sentido simbólico e permitindo que “o todo seja mais do que a mera soma das partes”. Neste momento, está a decorrer a exposição “I’m your mirror” de Joana Vasconcelos, no Museu Guggenheim, em Bilbao. Nesta exposição, são apresentadas 35 obras de Joana Vasconcelos, sendo 14 novas e as restantes obras produzidas pela artista desde 1997, ano em que também foi inaugurado o Museu Guggenheim, em Bilbao.
com panelas, Joana Vasconcelos apresenta também várias novas criações. Nomeadamente, a obra que dá o título a esta exposição, “I’m your mirror” (“Sou o teu espelho”), uma enorme máscara veneziana, feita com 231 molduras em bronze e duplo espelho, com um peso aproximado de 2,5 toneladas. O título desta exposição remete precisamente para a importância da perceção subjetiva do espetador no presente ao apreciar obras de arte. Joana Vasconcelos é provavelmente a artista portuguesa com maior reconhecimento internacional, tendo em 2013 representado oficialmente Portugal na Bienal de Arte de Veneza.
Obra “Sky Mirror”, de Anish Kapoor, no Museu Serralves (Porto) •
As obras de grande dimensão expostas nos jardins de Serralves, contrastam com as 56 maquetas de projetos que se encontram no interior do Museu. Estes projetos foram concebidos por Kapoor nos últimos quarenta anos, alguns não executados, remetendo para a escala íntima do ateliê do artista, como espaço de pensamento e de experimentação. Este artista considera a grande dimensão que têm as suas obras como “parte da linguagem da escultura, essencial para envolver fisicamente o espetador”. A dimensão da obra produzida implica sair da “zona de conforto” em termos percetivos, repensando os objetos e a sua relação com o mundo. Efetivamente, a mudança de escala dos objetos artísticos é um fator que
100 anos, desde as experiências de Werteimer em 1912. Aspetos como o movimento dos objetos ou a forma como se relacionam no espaço têm influência sobre a perceção dos mesmos pelo espetador. Isto, porque a perceção é subjetiva e dinâmica, reconstruindo ela própria os objetos percecionados pelo sujeito. A dimensão é assim uma variável que pode ser explorada na produção artística para aferir o impacto percetivo e emocional das obras de artes visuais. O aproveitamento do impacto da obra criada pela dimensão da mesma tem sido usado por vários artistas contemporâneos. É o caso de Joana Vasconcelos, conhecida internacionalmente pelas suas obras em grande dimensão, feitas com objetos da vida quotidiana. Objetos que habitualmen-
fotograma único, conceito que obviamente não existia na altura, era, a par da irreprodutibilidade, uma inapelável idiossincrasia do meio. Com a invenção do negativo este libertou-se da primeira limitação. De seguida, o cinema, descendente direto da fotografia, aboliu, fruto da sua própria essência, o fotograma único. No entanto, durante toda a sua história, a criação de imagens fotográficas uma a uma foi, e tem sido, um paradigma que só recentemente começa a deixar de o ser. Justamente, um dos argumentos dos fabricantes para vender equipamentos de gamas mais altas tem sido o número de fotogramas por segundo que são capazes de captar. Mas, o que dizer de câmeras que começam a fotografar antes da fotografia e terminam depois desta?
Pode parecer maravilhoso, mas não é. Tão-só, o aparelho substitui-se ao fotógrafo naquilo que ele sempre fez: antecipar e isolar um momento ínfimo, congelando-o, de um determinado segmento de tempo. É, de certa forma, como escolher um único fotograma de um filme. De que serve então podermos continuar a fotografar fotograma a fotograma inserindo a falibilidade humana cada vez que o obturador é acionado, o momento errado, o movimento indesejado, o atraso irrecuperável, a antecipação incontrolada? Quase que não vale a pena continuar... Parece que está tudo dito. O valor do objeto artesanal, único, irreprodutível, transferiu-se para a ideia da arte por si só. O valor da singularidade da decisão e visão
Obra “I'll Be You Mirror”, de Joana Vasconcelos, no Museu Guggenheim (Bilbao) •
Assim, para além das peças mais icónicas como “A Noiva”, um candelabro feito com tampões, ou “Marilyn”, um par de sapatos de salto alto feito
A exposição “I’m your mirror” de Joana Vasconcelos ficará patente em Bilbau até ao dia 11 de novembro. l
dos fotógrafos começa agora a ser transferido para algoritmos que buscam uma temporalidade e perfeição
hiper-humanas. Quando tal acontecer podemos simplesmente parar o relógio. O tempo do homem terminou. l
ESPAÇO ALFA •••
Tempo
Dário Agostinho Membro da ALFA
A fotografia, apesar de ser filha da Revolução Industrial, nasceu com um handicap intrinsecamente artesanal: na sua fase inicial não era reprodutível. Para além disso, o
d.r.
A criação de imagens fotográficas tem sido um paradigma •