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Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o

OUTUBRO 2019 n.º 131 8.888 EXEMPLARES

www.issuu.com/postaldoalgarve PATROCÍNADOR OFICIAL

MISSÃO CULTURA •••

Zonas Especiais de Proteção aos Imóveis Classificados

Ficha técnica Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus • Espaço ALFA: Raúl Grade |Coelho • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ao Património: Isabel Soares • Filosofia dia-a-dia: Maria João Neves • Letras e literatura: Paulo Serra • Missão Cultura: Direção Regional de Cultura do Algarve • Reflexões sobre urbanismo: Teresa Correia • Colaboradores desta edição: Rui Parreira Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/ postaldoalgarve FB: www.facebook.com/ postaldoalgarve/ Tiragem: 8.888 exemplares

fotos d.r.

Cacela Velha é uma reconhecida Zona Especial de Proteção •

O estabelecimento de uma Zona Especial de Proteção (ZEP) faz parte integrante do percurso do procedimento administrativo de classificação dos bens imóveis, previsto na Lei n.º 107/2001 de 8 de Setembro (Lei de Bases do Património Cultural), aquele começa com a abertura da classificação e culmina na elaboração do Plano de Pormenor de Salvaguarda. Um bem imóvel de interesse cultural está na dependência do espaço circundante para se manter, ou para se valorizar, e possui com o território envolvente uma relação interpretativa. O atual desenvolvimento urbano caracteriza-se por um aumento considerável na escala e na densidade das construções. Com frequência ocorre o risco de, quer a escala, quer a localização das novas construções alterarem o enquadramento dos bens imóveis classificados, falsificando a relação destes com o território. A legislação do património estabelece o enquadramento para que os bens classificados possam continuar a integrar-se harmoniosamente na envolvente.

A Lei de Bases do Património, no Artigo 2.º, precisa que a elaboração de uma ZEP deve basear-se na compreensão do significado cultural do lugar; e que deve ser estabelecida primordialmente na ótica do bem a proteger (seja aquele um monumento, um conjunto ou um sítio). A mesma Lei, no artigo 52.º, determina a necessidade de preservar a “perspetiva da contemplação” de e para o imóvel. Os mesmos princípios são ree-

quacionados pelo Decreto-Lei n.º 309/2009, de 23 de outubro. (estabelece o procedimento de classificação dos bens imóveis de interesse cultural, bem como o regime das zonas de proteção e do plano de pormenor de salvaguarda), no Artigo 43.º, que especifica que a ZEP deve assegurar o enquadramento paisagístico do bem imóvel e as perspetivas da sua contemplação, abrangendo os espaços relevantes para a defesa do contexto do imóvel classificado.

No espírito da Lei, uma ZEP corresponde a uma delimitação topográfica coerente que respeita corredores visuais, as grandes bacias de visão sobre o imóvel e equaciona, na malha urbana, a representatividade dos valores culturais presentes, nomeadamente: históricos arquitetónicos, urbanísticos, ou simplesmente da memória afetiva. Os critérios operacionais técnicos para a delimitação de uma ZEP balizam-se entre as seguintes coordenadas: a) Valorização do princípio essencial da reciprocidade entre tecido urbano, tipologia arquitetónica e território, com respeito pela integridade dos quarteirões e eixos viários relacionados com o bem imóvel classificado; b) Respeito pelos corredores visuais de aproximação ao bem patrimonial classificado, considerando a totalidade do enquadramento pai-

sagístico do monument o e as perspetivas da sua contemplação; c) Aplicação do critério de razoabilidade face aos valores patrimoniais, em defesa, para definir a dimensão final e o enquadramento da área proposta no âmbito da ZEP; d) Constituição de uma possível unidade autónoma de planeamento, que permita antecipar as virtualidades do plano de pormenor de salvaguarda, cuja iniciativa e elaboração compete aos municípios. É função da Direção Regional de Cultura zelar pelo estabelecimento das ZEP, que vão proporcionar aos visitantes a contemplação desafogada dos monumentos classificados. l Direção Regional de Cultura do Algarve


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ARTES VISUAIS •••

Pode a arte ajudar a proteger o ambiente?

conseguiremos alterar a situação se os líderes dos principais países não estiverem alinhados nesse sentido e contribuírem com medidas concretas que permitam uma real

ra não é valorizada, algum dia só poderá ser encontrada em espaços especialmente designados, como já é o caso dos animais no zoológico”. O artista inspirou-se num desenho feito em 1970 pelo arquiteto austríaco Max Peintner, que mostra árvores no meio de um estádio de futebol. Esta exposição decorre até 27 de outubro, sendo depois retiradas as árvores que serão replantadas em áreas próximas do estádio. Por seu turno, em Portugal, no passado dia 24 de agosto, mais de 400 pessoas concentraram-se na Serra da Estrela para uma manifestação artística contra a exploração de lítio. A mineração deste tipo ocorre principalmente a céu aberto e utiliza explosivos e agentes químicos com grande risco para o ambiente, como a contaminação da água e a poluição atmosférica. Os participantes distribuíram-se de forma a criarem uma imagem aérea em que surgia a árvore da vida ao centro, e um círculo à volta, sendo escrita a mensagem “Não às minas” e “Água é vida”. Desta forma, alertaram que há pedidos para concessão

diminuição da emissão de CO2, entre outros aspetos a ter em conta para a preservação do ambiente. Por exemplo, é essencial que o presidente dos EUA valorize a importância da descarbonização através duma indústria menos poluente e que o presidente do Brasil valorize a importância da floresta amazónica para a oxigenação do planeta. No sentido de alertar para a importância da floresta e para consciencializar a população sobre o desmatamento e as mudanças climáticas, recentemente o artista suíço Klaus Littmann concretizou o projeto “For Forest” (“Pela Floresta”), tendo sido plantadas 300 árvores, de 16 espécies, vindas da Itália, Alemanha e Bélgica, no estádio de futebol Wörthersee, na cidade de Klagenfur, na Áustria. No seu site, Klaus refere que “este projeto é um aviso de que a natureza, que ago-

de exploração mineira em cerca de 10% do território nacional, sendo isto incompatível com o objetivo da neutralidade carbónica. Neste âmbito, aproveitamos para referir que, até 20 de outubro estará presente, no MAR Shopping Algarve, uma exposição dedicada ao problema dos plásticos marinhos no Algarve, em que se distinguem duas partes: “Plásticos à Vista” e “8 Famílias, 8 Pegadas”. Esta exposição foi concebida pelo CCMAR, Centro de Investigação da UAlg, tendo contado com a colaboração de estudantes da Escola Secundária Tomás Cabreira de Faro e de crianças da I Secção do Corpo Nacional de Escuteiros do Algarve. Como tem referido a jovem Greta Thumberg, “ouçam os cientistas”; e, já agora, apreciem as produções artísticas e adotem comportamentos que contribuam para a preservação do ambiente! l

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Saul Neves de Jesus

Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; https://saul2017.wixsite.com/artes

As questões ambientais estão cada vez mais na ordem do dia, fazendo parte do discurso político e das preocupações das pessoas em geral. As expressões artísticas têm acompanhado estas preocupações, procurando alertar e contribuir para a tomada de consciência das pessoas relativamente às questões ambientais e para a importância da prevenção através de comportamentos mais adequados, enquadrados numa economia circular, assente nos 3R: Reduza, Reutilize e Recicle! Assim, já anteriormente alertámos para o problema da poluição e para a importância da descarbonização, fazendo referência ao trabalho do artista chinês Nut Brother que, em 2015, passou 100 dias a aspirar o ar das ruas de Pequim, durante cerca de 4 horas diárias, tendo no final fabricado um tijolo a partir da poluição aspirada, procurando consciencializar para o problema da poluição do ar em Pequim. Num outro artigo, alertámos para o problema do plástico no Oceano, constituindo cerca de 85 % do lixo encontrado nas zonas costeiras de todo o mundo. A dimensão deste problema é visível pelo facto da “ilha de plástico” flutuante no Pacífico Norte ocupar já 1,6 milhões de quilómetros quadrados, o que equivale a mais de

Imagem da instalação de Klaus Littmann, no estádio de futebol Wörthersee (Áustria) •

17 vezes o tamanho de Portugal. A maior parte do material que existe chega como detritos grandes, que se degrada ao longo do tempo em partículas nocivas cada vez mais pequenas, microplásticos que, além de contaminarem o ambiente, entram na cadeia alimentar, vindo a afetar a saúde humana. A este propósito fizemos referência à exposição “Over Flow”, da autoria do artista japonês Tadashi Kawamata, patente na Galeria Oval do MAAT, no início deste ano, bem como à exposição intitulada "Keep The Oceans Clean", da autoria dos artistas e surfistas João Parrinha (português), Xandi Kreuzeder (alemão) e Luis de Dios (espanhol), que ocorreu no Oceanário de Lisboa, reunindo nove instalações artísticas

feitas com lixo encontrado tanto em praias como no mar. A vastidão de área ardida com os recentes incêndios na Amazónia, cerca de 30 mil km2 só no mês de agosto, o equivalente a 4,2 milhões de campos de futebol, veio “reacender” o debate político e a preocupação em torno do estado e da sustentabilidade do nosso planeta e do rumo que estamos a ter. Esta é realmente uma preocupação da nova geração, sendo a jovem sueca Greta Thumberg, com apenas 16 anos de idade, o rosto com maior visibilidade mediática em torno das questões ambientais. Mas, mesmo com o contributo de todos através de comportamentos mais “amigos” do ambiente, não

Imagens da performance artística na Serra da Estrela contra a exploração de lítio •


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REFLEXÕES SOBRE URBANISMO •••

As cidades e os estudantes fotos d.r.

Teresa Correia

Arquitecta / urbanista arq.teresa.correia@gmail.com

O fenómeno de alojamento de estudantes Com um mundo cada vez evoluído e global, o ir estudar para fora da sua terra é uma etapa normal, nos dias de hoje, em que as famílias unem-se nesse propósito. Segundo as notícias, cerca de 120.000 estudantes foram deslocados das suas casas para outras cidades, dentro de Portugal e apenas 13% tem direito a residências estudantis. O crescimento pessoal e profissional é uma ambição legítima de todos e é uma evolução geracional que o acesso às universidades esteja ao alcance de um maior número de pessoas. Acontece que nem sempre de forma justa no que diz respeito à ponderação excessiva de exames nacionais face às notas escolares, no entanto, o sistema funciona, com mais ou menos problemas. Com a colocação dos estudantes nas universidades, verifica-se uma corrida vertiginosa ao alojamento privado e social, pelos próprios ou pelas famílias, gerando um mercado completamente desregulado, com uma subida vertiginosa de preços, e ainda com a exploração de qualquer espaço indigno ou não, varandas, caves, entre outros, pelos senhorios mais especuladores. As nossas cidades pararam no tempo desde a época da crise do imobiliário. Desde 2008 e anos seguintes, não houve crescimento de fogos, nem aumento de alojamento, e a política mais corrente é que não existia qualquer necessidade no aumento de habitação. Pode-se dizer que em termos estatísticos temos mais habitações que famílias, mas não nas cidades com universidades e nas localizações onde estas são mais necessárias, próximo dos centros. O problema é tão crítico que chega a existir um sentimento de revolta e de desistência de estudar pela falta de condições económicas para pagar um alojamento. Os fenómenos sociais de estudantes e da sua mobilidade foram

As redes de transporte são reduzidas e a linha férrea inda não ligou todas as capitais de distrito •

completamente descurados do planeamento das nossas cidades e do investimento, tanto governamental como das autarquias. Do ponto de vista do privado, para além da reduzida dispersão dos quartos pelo tecido existente normalmente mais envolvente às universidades, não existiu uma visão adequada para esse negócio, uma vez que será sempre mais atrativo o Alojamento Local. O aumento do turismo provocou nos centros históricos alguma competição com o mercado dos quartos dos estudantes, perdendo este último, largamente. Que soluções para o problema de alojamento estudantil? Procura-se agora reabilitar o mais depressa possível imóveis do Estado que possam ser convertidos em residências de estudantes, existindo já medidas do Governo nesse sentido. Porém, esta medida embora positiva e meritória será algo insuficiente, devido ao gigantesco problema estrutural criado. As medidas para resultarem terão de ser combinadas e geradas também pela participação de parcerias, como sejam facilidades em termos de gestão urbanística na construção deste tipo de empreendimentos,

estímulos fiscais para alojamento estudantil e programas entre universidades e autarquias que consigam construir, por exemplo, em espaços destinados a equipamentos de utilização coletiva. Será de toda a vantagem uma cidade estruturada com boas condições de alojamento, redes viárias e transportes públicos de ligação entre esses espaços e o resto da cidade. Existem cidades que nem uma rede de transporte cole-

tivo possuem com a abrangência espacial e temporal adequada e o senhorio questiona se o estudante tem carro, porque vai ter de andar cerca de 30 minutos!!! O futuro das nossas gerações e o êxito dos nossos profissionais depende da nossa capacidade coletiva como sociedade de bem receber os estudantes, de nos organizarmos e de assim podermos evoluir como sociedade democrática e integradora. As redes de transporte entre as cidades são reduzidas e a linha férrea que antes era vista como um marco de evolução civilizacional, ainda não

ligou todas as capitais de distrito, o que revela o estado do nosso país. Quando os estudantes pretenderem ir a casa, alguns têm de fazer variantes de cidade em cidade para chegar ao destino, ou então comprar um carro como referia o dito senhorio. A construção de mais habitação para alojamento estudantil é uma necessidade imperiosa e um desígnio nacional. Os planos nacionais de alojamento estudantil devem ser mais reforçados e conseguidos pelo Governo, sob pena de criar injustiças sociais fortes naqueles que procuram e não tem capacidade para alcançar. l


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LETRAS E LEITURAS •••

Persona, de Eduardo Pitta dizendo, de uma perspectiva outra. Tal como escritoras mulheres escreveram sobre a guerra colonial na sua perspectiva íntima, pois mesmo não tendo participado activamente na guerra, em pleno combate, nem por isso a vivenciaram menos. Uma das cenas mais memoráveis (também exemplarmente ilustrada na adaptação cinematográfica da obra) é o tiroteio gratuito aos flamingos em A Costa dos Murmúrios, de Lídia Jorge, que aliás viveu em Moçambique nesse tempo, praticado pelos dois militares, como se de um desporto se tratasse, na presença das suas mulheres, Eva Lopo e Helena de Tróia (e repare-se na força simbólica destes dois nomes, associados quer ao mito, quer à guerra, quer ao princípio dos tempos). Eduardo Pitta, dizíamos, escreve agora numa perspectiva queer (para fazer uso de uma palavra já em desuso, ligada aos estudos de literatura gay) sobre o que significou ser homossexual em tempos de guerra e de tirania, ao mesmo tempo que, conforme se percebe na última frase, se prenuncia já o final dos tempos de então, com a queda de um Estado normativo e policiado, o término de uma guerra sem sentido, e a subsequente descolonização e liberdade. l

fotos d.r.

Paulo Serra

Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

Esta pequena pérola constituiu a estreia do poeta e crítico literário Eduardo Pitta na ficção, em 2000, e é publicada agora pela Dom Quixote nesta 3.ª reedição, a partir da revisão feita à 2.ª edição em 2007. Persona é, como o título indica, uma revisitação da memória pessoal do autor, pois há uma certa quota de autobiografia, e é uma «versão moderna de uma educação sentimental». Classificado como uma «trilogia de contos morais», este livro é, na verdade, um pequeno romance em que cada micronarrativa corresponde a uma fase de vida da mesma personagem. Afonso Sacadura, primeiro aos 12, depois aos 18, e na terceira e mais longa narrativa, como uma curta novela, aos 22, vive o seu coming of age, em que, ironicamente, o evento que parece determinar o início da sua infância ou inocência é quase idêntico ao que ocorre de novo em jovem adulto. Em 1962, Afonso é punido por ter tido relações contranatura com um colega. Apesar de Tiago ser 10 meses mais velho, mas por ser um jogador de basquete, um belo rapaz louro naturalmente masculino, a culpa recai inteiramente sobre Afonso, mais efeminado, conforme apontado pelo médico que o chama para examinação quando lhe pergunta porque é que ele cruza as pernas, «atitude tão pouco masculina» (p. 18). Esse mesmo psiquiatra que despe as calças e leva a mão de Afonso à sua braguilha, de onde retira o seu pénis erecto e sugere a Afonso que pense nele como um sorvete que pode ir lambendo e mordiscando gentilmente, para se poder avaliar a sua «capacidade de resposta» (p. 21). Este evento de assédio e culpabilização, que é rapidamente narrado, numa linguagem que tem tanto de estilizada como de crua e directa, pode ser esquecido rapidamente conforme passamos para o segundo conto, em que Afonso viaja pelo Kalahari em 1967 com Ralph, um típico sul-africano branco com ar de jogador de râguebi. Mas em Pesadelo, o último conto da trilogia, com 50 páginas, enquanto os outros rondam a dezena de páginas, Afonso parece reviver o episódio de antes, mas agora nas devidas proporções, em que se vê como arguido num auto

Eduardo Pitta é um poeta, escritor e ensaísta português •

colectivo sobre homossexualidade nos três ramos das Forças Armadas, no Moçambique de 1971, onde há muitos «tubarões» (p. 49) envolvidos, incluíndo um tenente-coronel e um capelão. É aí que Afonso descobre o nojo, quando se torna vítima de uma investigação descabida, que aliás convirá esquecer como se nunca tivesse acontecido, dirigida exclusivamente a homossexuais «suspeitos de pouca simpatia pelo regime» (p. 80), pois ao contrário dos heteros são «facilmente manobráveis» (p. 59), além de que se a FRELIMO visse uma foto do sargento com a boca cheia isso iria comprometer seriamente a guerra. O que impressiona na escrita de Eduardo Pitta é que na vivência da sexualidade de Afonso, e dos que o rodeiam, não há cedência à vergonha nem ao pudor, até porque

Afonso move-se no contexto social da alta burguesia onde os podres são imensos, independentemente da orientação sexual de cada um, pois também temos homens que em menos de 24 horas despacham em viagem, como se fossem bagagem, mulher e filhos para aproveitar uma nova paixão, e mulheres sobejamente conhecidas pelo seu apetite insaciável por jovens bem constituídos de 20 anos. Inclusivamente num mundo de etiqueta onde é sabido que «um homem não bebe Sauternes» (p. 74), a homossexualidade de Afonso parece não chocar ninguém na família, embora o pai considere tal como «um desporto arriscado» (p. 82). Persona é uma narrativa ousada e corajosa em que se reconta os últimos anos da guerra colonial a partir da perspectiva de uma minoria, melhor


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Quando a Penumbra Vem, de Jaume Cabré

Jaume Cabré é um dos mais premiados romancistas europeus da atualidade •

Um livro que se compõe de 13 histórias, o que atendendo ao epílogo do autor pode até não ser uma coincidência, pois, como se anuncia na contracapa, a Morte é o denominador comum destas micronarrativas (para simplificar toda a simbologia do 13, limito-me a referir que a carta XIII do Tarot é a Morte). Refere ainda a contracapa do livro que todos os pro-

cos e televisivos, declara numa nota final ao livro que por vezes no meio da escrita de um romance escreve um conto, «como quem para descansar atraca numa ilha desconhecida» (p. 243), impelido pelo projecto narrativo em curso ou justamente para dele se afastar, como quem procura nova perspectiva. Os 13 contos são relativamente breves, à excepção de «Os

Escritor é um autor consagrado de guiões cinematográficos e televisivos •

tagonistas «infames» destas histórias «estão condenados a um único desenlace, sem redenção possível nem lugar no paraíso». Permitimo-nos discordar, como se lerá mais adiante, pois nem todos os contos são de facto sobre a morte e alguns deles interligam-se de forma magistral. Jaume Cabré, um dos mais premiados escritores europeus da actualidade, nascido em Barcelona em 1947, autor de guiões cinematográfi-

homens não choram» e «Ponto de Fuga». Não sei se é por isso mesmo que é com este conto que abre o livro, mas «Os homens não choram» é uma das histórias a destacar. É essa verdade universal que o pai profere ao seu filho quando o deixa num orfanato, poucos dias depois de a sua mãe se ter suicidado, prometendo que o visitará no domingo. Mas o pai nunca vem. E o protagonista desta narrativa opressiva e desesperan-

çada, um rapaz sem nome, terá de aprender a conviver com os outros jovens, cada um com as suas taras e problemas, enquanto tem de evitar o Henricus, que gosta de os tocar e apalpar, a frieza distante das freiras que vogam como pássaros. E este rapaz sem nome, apenas conhecido como «Tu» vive de tal forma imerso na penumbra que congemina, como salvação, o plano de matar Henricus com outros 3 amigos, para que não acabe por ser sodomizado como aconteceu com Tomàs. A narrativa oscila entre um eu e um ele, como se Tu se tivesse dissociado em dois, como estratégia de sobrevivência à vida no orfanato até ao dia em que atinge a maioridade e sai. Apenas para se deixar enredar numa nova prisão, quando assolado por um desejo de vingança Tu acaba por matar. Apenas para voltar a matar. No último conto do livro, «O Ebro», acontece o inverso. Numa viagem de carro, dá-se um diálogo desencontrado entre pai e filho, ao longo de 11 páginas. Enquanto o filho interpela e conversa directamente com o pai, procurando atender às suas necessidades imediatas, como urinar, mantê-lo confortável, comprar-lhe os croissants de que gosta pois sabe que o pai é guloso, mostrando-se sempre solícito e paciente, o pai discorre num discurso ininterrupto que evidencia claramente que está preso aos acontecimentos que viveu na batalha do Ebro (deduzimos nós pelo título do conto) que recorda de forma tão vívida que teme o aparecimento do Sargento Mayo para lhe dar um tiro, apesar de ele ter morrido à sua frente nas

margens do Ebro, possivelmente às suas mãos. Cedo compreenderemos que, a fechar o livro, temos agora um filho a deixar o pai num lar. Embora o pai não chegue a viver um dia nessa nova casa, pois morre às mãos do monstro do Paraíso, o mesmo pedófilo que assassinou 5 crianças no conto «Paraíso», pois foi ele o juiz que condenara o criminoso a prisão perpétua: «Naquele momento, não teve discernimento suficiente para se perguntar por que motivo as histórias da vida acabam sempre com a morte, como se não houvesse mais nenhum final possível para todas as coisas.» (p. 242) Todas as restantes histórias são igualmente atravessadas pela temática da morte, mas sempre de forma violenta. Praticada como vingança, ou como um negócio, no caso de assassinos a soldo, ou ainda como acto de criação, como é o caso do protagonista de «As mãos de Mauk» que leva mais longe o acto de criar e aniquilar as personagens das suas histórias: «se ele era o deus que governava as personagens que criava, porque não podia ser o deus das pessoas que o cercavam? Quando escreveu a história do jardim zoológico, não decidiu só porque sim que Irene devia morrer? Decidiu-o porque sim, não por uma qualquer razão narrati-

va. Escreveu aquilo e Irene palmou, sem sequer ter o direito de reclamar, porque eu sou Deus.» (p. 210) Escreve o autor, voltando ao epílogo, que nesta colectânea, publicada pela Tinta-da-china, há contos resgatados à gaveta, outros já publicados em antologias, mas há ainda uns quantos que nasceram quando trabalhava na actual compilação: «A dinâmica do livro em construção desperta em mim o desejo de contar novas histórias que, sem grandes melindres, se colocam lado a lado com outras narrativas que esperavam há anos pela oportunidade de enfiarem o nariz de fora.» (p. 245) Parece ser esse o caso destas histórias que ressaltam e quase se impõem como narrativas autónomas numa galeria de personagens «sem redenção possível nem lugar no paraíso». Contudo, esse paraíso parece ser vislumbrado em alguns dos contos, a começar por «Claudi» onde um homem entra num quadro como quem muda para outra dimensão – quadro esse que volta a surgir em «Nunc dimittis» e depois em «Ponto de Fuga» –, onde o tempo se esvanece, não há sentimentos nem obrigações, e se vive uma imensa liberdade, caminhando rumo ao sol nascente pela mão de uma camponesa. l


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MARCA D'ÁGUA •••

Em defesa do Algarve Maria Luísa Francisco Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa luisa.algarve@gmail.com

“Os povos afirmam-se através da sua cultura e da sua história, do orgulho nas belezas da sua terra e dos seus monumentos, das suas proezas sociais e artísticas”. Fernando Silva Grade (1955-2019)

O Algarve tal como o destruímos foi o título dado por Fernando Silva Grade ao livro no qual em 2014 reuniu os seus textos e reflexões, num exercício de cidadania na defesa do património e do ambiente de Faro e do Algarve. O autor, biólogo de formação e pintor por vocação, referia que se expressava sobretudo através de imagens, e que durante muitos anos escreveu visualmente o Algarve. O seu livro foi o resultado dessa escrita visual, desse sentir e reagir ao que via na região onde nasceu. Nos seus artigos, no blog, em posts e no referido livro, Fernando

Silva Grade era muito pragmático e apresentava soluções. Valorizava profundamente a natureza e um modo de vida com menos desperdício. Considerava o turismo de natureza e o turismo cultural como alavancas para o futuro, sendo para isso importante preservar o património, a paisagem e as raízes culturais. Indignava-se contra a facilidade da “betonização” do Algarve, considerava-se um lutador pela preservação da identidade algarvia e incluía-se, como refere no início do livro, na “geração de charneira que ainda vivenciou o Algarve impoluto, pleno de extasiantes e indescritíveis sortilégios”. Percebia-se que era genuíno, uma pessoa de sorriso sincero, mas também aguerrido, inquieto e inconformado: “aquilo que os meus olhos vêem todos os dias, condenou-me ao desassossego permanente”. Refere a sua batalha contra a iniquidade do “genocídio cultural em curso no Algarve”, citando no livro esta expressão do historiador algarvio António Rosa Mendes (1954-2013). Fernando Silva Grade recebeu em Setembro de 2018, um ano antes da sua morte, a Medalha de Mérito Grau Ouro da Câmara Municipal de Faro, principalmente devido aos seus esforços pela defesa do património e do ambiente. Defendeu entusiasticamente o património arquitectónico, tendo

passou também pela escrita de vários artigos em jornais regionais e nacionais e por várias entrevistas

na televisão e na rádio. Enquanto artista plástico, pintou principalmente os temas do património e da natureza algarvia. Participou em várias exposições desde 1988, tanto a nível individual como colectivo, no país e no estrangeiro. Em 2016 visitei a sua exposição antológica, Trajectos na Galeria Arco, em Faro, que muito apreciei pela riqueza dos pormenores em cada quadro e pelos contrastes de luz e sombra com que retratou paisagens da região. Ao voltar a pegar no livro O Algarve tal como o destruímos, que apresentei no Sotavento e no Barlavento, em 2014, ano em que foi publicado pela Escritório Editora, encontrei esta anotação manuscrita: “Fernando Silva Grade sonha com um Algarve onde as casas no meio rural ainda possam continuar a ser caiadas e com a brancura a contrastar com a pedra, em vez do uso de tinta plástica. Casas onde as portas e janelas de madeira não sejam substituídas pela caixilharia de alumínio”. Tinha uma sensibilidade artística e ambiental que o tornaram um dinamizador de várias iniciativas contra a descaracterização da região e a favor de um Algarve mais genuíno. Acredito que essas iniciativas terão continuidade, porque temos neste território gente atenta e empenhada em construir um Algarve tal como o idealizamos! l

progressivo apagamento dos castelos como dispositivos de guerra. Sinal de prestígio político e de domínio territorial, as muralhas dos castelos confundem-se por vezes com as muralhas das medinas, ou dos pequenos povoados fortificados muçulmanos – como Salir ou Aljezur –, ou das cercas vilãs portuguesas da baixa Idade Média – como o recinto de Castro Marim, que abarca nele a vila velha (hoje abandonada como área residencial) e o alcácer, conforme bem ilustram os desenhos de Duarte d’Armas incluídos no «Livro das Fortalezas do Reino», de cerca de 1509 (um levantamento exaustivo do estado das fortalezas fronteiriças, do Minho ao Algarve, ordenado pelo rei D. Manuel, que, no extremo Sul, inclui também a vila de Alcoutim). Do total dos castelos edificados no Algarve entre a pré-história e a bai-

xa Idade Média, apenas uma escassa dezena se encontra patrimonializada (isto é, reconhecida oficialmente como herança cultural da nação portuguesa ou das comunidades municipais). Os castelos constituem porém uma marca da identidade regional (alimentando mesmo o mito de que são algarvios aqueles castelos que passaram a figurar na bandeira nacional após a conquista da região por D. Afonso III). A sua diversidade (como atrás se sublinhou), relativa proximidade (possibilitando a visitação de uma rota regional dos castelos) e fácil acessibilidade, fazem deles um apetecível ativo cultural, social e económico: um convite a um maior investimento estatal na sua reabilitação ao serviço da comunidade, para educação, deleite e desenvolvimento económico, e fonte de criação de emprego. l

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Fernando Grade indignava-se contra a facilidade da “betonização” do Algarve •

protestado contra a demolição de vários edifícios, tanto em Olhão como em Faro. O seu activismo

ESPAÇO AGECAL •••

Castelos há muitos Rui Parreira

Arqueólogo, Sócio da AGECAL

Toda a paisagem algarvia se encontra salpicada de lugares a que o povo chama Castelo. Esta designação aplica-se, em regra, a lugares situados num local elevado em relação aos terrenos circundantes e que se julga, por isso, estarem naturalmente protegidos, e onde se encontram vestígios de muralhas antigas, mais ou menos arruinadas, ou onde é tradicional voz corrente estas terem existido – mesmo que de elas já se não apreciem indícios. Esta denominação comum é,

contudo, aplicada a realidades muito distintas: recintos pré-históricos delimitados por muralhas – como o Castelo de Santa Justa (Alcoutim), o Castelo de Corte João Marques (Loulé) ou Alcalar (Portimão), topónimo derivado do árabe ‘Qalat’, que significa castelo –; assentamentos fortificados da época romana – como o Castelinho dos Mouros (Alcoutim), um edifício residencial da primeira fase da ocupação romana do Algarve, anterior à fundação da província da Lusitânia –; recintos fortificados da época islâmica – sejam eles alcáçovas (que albergam áreas palatinas e militares) de cidades (medinas), como os castelos de Silves (da ‘madinat Xilb’), de Tavira (da ‘madinat Tabira’), de Loulé (da ‘madinat al’Uliã’) e de Faro (da ‘madinat Ukxunuba’), sejam eles fortalezas apartadas que albergam áreas residenciais, como o

Castelo de Paderne, o Castelo Velho de Alcoutim, ou o Castelo Belinho (Portimão) – que testemunham conjunturas históricas variáveis de um tempo longo que se estende do Emirato de Córdova no século VIII à conquista portuguesa em meados do século XIII; fortalezas da época medieval cristã – com frequência reocupando e modificando as antigas muralhas dos castelos islâmicos ou edificando de raiz cidadelas em povoações doadas pela coroa portuguesa, como o Castelo de Lagos. No século XVI, a introdução em Portugal, e no Algarve, das armas de fogo na defesa e ataque dos recintos fortificados teve como consequência uma profunda alteração na arquitetura militar, com a introdução dos bastiões, o rebaixamento das torres e a concentração das defesas ativas em pontos estratégicos – e ditou o


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FILOSOFIA DIA-A-DIA •••

Bernardo Soares visita Álvaro de Campos foto d.r.

Maria João Neves Ph.D Consultora Filosófica

De acordo com a especialista Teresa Rita Lopes, de entre as personalidades em que se desmultiplica Fernando Pessoa poder-se-ía colocar num extremo Álvaro de Campos, um Pessoa “em combustão viva” e, nos antípodas, Bernardo Soares, um Pessoa em “combustão lenta”. Se Álvaro de Campos é um Pessoa em “mais interessante”, num “desenrolar-se para fora”, Bernardo Soares será um Pessoa “mais apagado”, um “enrolado para dentro”. Que poderia, então, esta criação tão menor, Bernardo Soares, ter para dizer à criação expandida, Álvaro de Campos, quando o visitasse? De que falariam? Permitam-me imaginar... «Foi numa rara tarde cinzenta que Bernardo Soares visitou Álvaro de Campos em Tavira. Sentaram-se numa cafetaria da Praça da República, abrigados da chuva pelos grandes guarda-sóis da esplanada e pediram um chá para dois. - Que o traz por cá?, inquiriu o famoso heterónimo. Bernardo Soares encolheu-se na cadeira, parecia querer desaparecer entre as gotas de chuva. Como dizer ao autor das grandiosas odes que pretendia chamar a sua atenção para as coisas “mínimas extraordinárias”... - Vim para consigo “saborear duma chávena de chá, a volúpia extrema que o homem normal só pode encontrar nas grandes alegrias”. Álvaro de Campos levantou o sobrolho. Aquele homem minúsculo trouxe-lhe à memória Proust, e os sete volumes de Em busca do Tempo Perdido que nascem, precisamente, da análise das sensações que provoca o mergulhar de uma madalena no chá. pub

O Livro do Desassossego tem como autor Bernardo Soares •

Pela primeira vez olhou com atenção para o vulto apagado de Bernardo Soares, e com um gesto instigou-o a continuar. Então, o semi-heterónimo, agradecido pela oportunidade, começou a expor o seu método de Educação Sentimental: - O primeiro passo consiste em sentir as coisas mínimas extraordinárias, “desmedidamente". Claro que a desmedida pode ter consequências gravosas pois “sentir excessivamente, se por vezes é gozar em excesso, é outras sofrer com prolixidade”. Se

“o criar uma uma agudeza e uma complexidade imediata às sensações mais simples” pode conduzir a “aumentar imoderadamente o gozo que sentir dá”, pode também “elevar com despropósito o sofrimento que vem de sentir”. - Pretende-se evitar o sofrimento? - Nesta aprendizagem consistiria o segundo passo do sonhador na sua “ascensão para si próprio”. Não deverá distanciar-se do sofrimento, de maneira estóica, porque nesse caso “endureceria” tanto para o prazer

como para a dor. O que há a fazer é: “ir buscar à dor o prazer, e passar em seguida a educar-se a sentir a dor falsamente, isto é, a ter, ao sentir a dor, um prazer qualquer”. Álvaro de Campos pigarreou e Bernardo Soares apressou-se a explicar que existem vários caminhos para esta atitude: - O primeiro consiste em aplicar-se “exageradamente” a analisar a dor. Quando se tratar de prazer, não analisar mas sentir apenas. A instrução sobre o prazer, acolheu-a Álvaro de Campos sem dificuldade, quanto à dor, contudo, solicitou-lhe que elaborasse. Retraindo-se na cadeira, como que pedindo desculpa, Bernardo Soares esclareceu: - “A análise acrescenta à dor o prazer de a analisar. Exagerado o poder e o instinto de analisar, breve o seu exercício absorve tudo e da dor fica apenas uma matéria indefinida para a análise”. Alvaro de Campos assentiu, mas o seu semblante permanecia inquieto, dubitativo, pelo que Bernardo Soares se apressou a dizer que existia outro método mais subtil, contudo mais difícil. O grandioso heterónimo rogou-lhe que continuasse. - O outro método consiste em “criar um outro Eu que seja o encarregado de sofrer em nós, de sofrer o que sofremos. Criar depois um sadismo interior, masoquista todo, que goze o seu sofrimento como se fosse de outrem.” Não será fácil, concluiu Álvaro de Campos, ao que Bernardo Soares anuiu, salvaguardando, contudo, tratar-se de um método “eminentemente realizável”, sobretudo para os “industriados na mentira interior.” Álvaro de Campos deixou escapar um sorriso! Descruzando e voltando a cruzar as pernas perguntou se haveria mais algum método. Quase confiante Bernardo Soares confirmou que sim:

- Existe ainda um terceiro método “para subtilizar em prazeres as dores e fazer das dúvidas e das inquietações um mole leito.” Álvaro de Campos rejubilou na expectativa da resposta, que não se fez esperar. - O terceiro método consiste em “dar às angústias e aos sofrimentos, por uma aplicação irritada da atenção, uma intensidade tão grande que pelo próprio excesso tragam o prazer do excesso”. E para que não restassem dúvidas sobre o poder transformador da intensidade da atenção, Bernardo Soares frisou: - Existe “o prazer que dói porque é muito prazer, e o gozo que sabe a sangue porque feriu.” Álvaro de Campos estava pasmado perante a inteligência e sensibilidade daquela insignificância de homem que ali tinha mal sentado, encolhido, numa cadeira à sua frente. Acalorado exclamou: - Eis um requintador! Então, com um brilho no olhar, o pequeno homem ergueu-se e falou. O seu olhar parecia acariciar cada gota de chuva, e dos lábios suaves a voz surgiu: - “Quando, como em mim — requintador que sou de requintes falsos, arquitecto que me construo de sensações subtilizadas através da inteligência, da abdicação da vida, da análise e da própria dor — todos os três métodos são empregados conjuntamente, quando uma dor, sentida imediatamente, e sem demoras para estratégia íntima, é analisada até à secura, colocada num Eu exterior até à tirania, e enterrada em mim até ao auge de ser dor, então verdadeiramente eu me sinto o triunfador e o herói. Então me pára a vida, e a arte se me roja aos pés.” l Inscrições para o Café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com pub


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