Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o
OUTUBRO 2018 n.º 120 8.330 EXEMPLARES
www.issuu.com/postaldoalgarve
Ficha técnica
MISSÃO CULTURA •••
50 Livros, 50 Algarves… Ler Património d.r.
Direção Regional de Cultura do Algarve
O ano de 2018 é dedicado à comemoração da riqueza e da diversidade do património cultural, tanto a nível europeu, como a nível nacional, regional e local. A partir de um conjunto de ideias e de pessoas procurou-se criar no Algarve uma forma de celebração conjunta do Ano Europeu do Património Cultural, surgindo o desafio pela CCDRAlgarve e o seu Centro Europe Direct, para se desenvolver e apresentar uma exposição bibliográfica, patente em vários espaços parceiros na região. Uniram-se em torno do projeto, na Direção Regional de Cultura do Algarve, a CCDRAlgarve com o seu Centro Europe Direct, as Bibliotecas da Universidade do Algarve, o Arquivo Distrital de Faro, a Biblioteca e o Museu Municipal de Faro, a que se juntou de imediato o Seminário Episcopal de Faro, por sugestão da Diocese do Algarve. Pensar uma exposição onde os livros são os actores principais é uma forma de celebrar as memórias e o património do Algarve, de validar a
palavra escrita que se perpetua na leitura de cada um, fixando momentos e histórias para mais tarde recordar. Um pensamento conjunto entre diversas entidades de barlavento a sotavento (museus, bibliotecas e arquivos), na validação e reconhecimento do que são os seus acervos. “[…] Esta exposição bibliográfica, materializada em vários espaços, por diversos parceiros, procura ser representativa do património da região, mas também do olhar de figuras marcantes do Algarve sobre esse mesmo património. Olhares que percorrem várias épocas, da pré-história à atualidade e expressam diferentes perspetivas. Mais do que 50 obras, são acontecimentos, o sentir e o refletir em torno do património da região do Algarve,
desfiados nas palavras escritas ao longo de séculos. Uma ínfima parte de um tesouro guardado em livros”. Tem ganho força a ideia de que a versão em papel das publicações vai deixar de existir, de fazer sentido, contudo, muitos são os que continuam a insistir na perpetuação deste registo. Dar a conhecer obras guardadas em bibliotecas e arquivos oficiais, e particulares, muitas das quais pouco conhecidas, poderão ser o mote para novas edições sobre o património algarvio, em formato de papel ou digital. Nesta exposição é possível encontrar o Pentateuco (fac-simile nas suas duas edições), inegável registo da importância do Algarve/Faro na referência no mundo da edição, assim como primeiras edições, edições manuscritas,
edições mais actuais, numa versatilidade de temas que incluem o património construído, o literário, o musical e etnográfico ou o património individual que alguns quiseram registar. Até dia 31 de outubro poderão os interessados deslocar-se aos vários locais da exposição: CCDRAlgarve, Biblioteca de Gambelas da Universidade do Algarve, Biblioteca Municipal de Faro, Seminário Episcopal de Faro, Biblioteca Municipal de Lagoa, Biblioteca Municipal de Vila Real de Santo António e Biblioteca Municipal de São Brás de Alportel. Esta exposição bibliográfica será, por certo, ponto de partida para conversas, estudos ou investigações académicas para a perpetuação do nosso património. l
Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ao Património: Isabel Soares • Filosofia dia-a-dia: Maria João Neves • Juventude, artes e ideias: Jady Batista • Letras e literatura: Paulo Serra • Missão Cultura: Direcção Regional de Cultura do Algarve • Reflexões sobre urbanismo: Teresa Correia Colaboradores desta edição: Dário Agostinho, Susana Araújo Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/ postaldoalgarve FB: www.facebook.com/ postaldoalgarve/ Tiragem: 8.330 exemplares
ESPAÇO ALFA •••
A linha impossível
Dário Agostinho Membro da ALFA
Gosto de olhar para uma fotografia e pensar que estou perante uma interpretação da realidade - toda a fotografia é interpretação -, mas que a realidade que se ofereceu à câmera e ao fotógrafo se mantém, nessa imagem, intocada na sua essência. Por outro lado, tenho a tendência de encarar uma imagem substancialmente manipulada como algo que,
inevitavelmente, se afastou do que é a fotografia. O facto de uma imagem ter por base a técnica fotográfica faz dela, sempre e incondicionalmente, uma fotografia? A manipulação fotográfica existe desde que a fotografia existe porque a arte pictórica, até aí, era uma arte de idealização. Num quadro, o pintor sempre colocou o que quis e sempre excluiu o que não queria incluir. Deste racional, absolutamente arreigado no nosso subconsciente estético coletivo, deriva o gosto, nem sempre muito saudável, das imagens belas, perfeitas, idealizadas, ideal este que, bem ou mal, positiva ou negativamente, contamina inelutavelmente a fotografia. A realidade, por sua vez, não obstante o filtro da objetiva que, apesar de tudo, segue a tradição pictórica
renascentista da perspetiva, contraria a fantasia. Deste modo, a fotografia realista – o fotojornalismo essencialmente – vive, tal como Dâmocles com a espada, com o fantasma da manipulação fotográfica sobre a cabeça. É, pois, facílimo ficarmos divididos relativamente a esta questão. O mais difícil é termos respostas claras sobre a mesma sem cairmos no mais fácil, que são os extremos. Esta dificuldade advém do facto de que entrámos, sem querer, no domínio do subjetivo, do gosto, da opinião. Não é possível traçar linhas limite. Nunca será. Resta-nos assim o mais universal dos princípios: o bom senso. E o prazer. O prazer de admirar uma imagem bem construída, que fala connosco, “que te faz ir mais além, que habita em ti...” l
d.r.
14
CULTURA • SUL
12 de Outubro de 2018
ARTES VISUAIS •••
Pode ser criada arte a partir da poluição? nut brother
Saul Neves de Jesus
Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora https://saul2017.wixsite.com/artes
A arte pode estar em “quase” todo o lado e ser criada a partir de “quase” tudo, aproximando-se do Princípío de Lavoiser, “nada se perde, tudo se transforma”. Defendemos esta perspetiva no artigo “Pode a arte emergir a partir do “lixo”?“, apresentando exemplos de criações de alguns artistas que utilizam “lixo” e/ou “desperdício” para contruir obras/instalações/ composições com uma consciência ambiental, criando imagens a partir do aproveitamento daquilo que outros desperdiçam.
Ao criarem imagens com aquilo que destrói a natureza, que a vai degradando, pretendem chamar a atenção para a sustentabilidade do planeta e a gestão dos recursos naturais. Por exemplo, tem sido usado plástico por muito artistas, procurando chamar a atenção para a quantidade de plástico existente nos oceanos, formando já “ilhas” e destruindo o ecossistema. O plástico constitui cerca de 85 % do lixo encontrado nas zonas costeiras de todo o mundo. Só os europeus geram, anualmente, 25 milhões de toneladas de resíduos de plástico, das quais apenas 30 % são reciclados. Se tudo continuar como está, as previsões indicam que em 2050 haverá mais plástico do que peixe nos oceanos, estando já presentes estes resíduos de plástico nos variadíssimos recursos marinhos que consumimos diariamente. Estas pequenas partículas de plástico (microplásticos) estão presentes não só nos alimentos, mas também na água e no ar. A poluição existente é outro tema que preocupa muitos artistas, tendo inclusivamente sido fabricado um tijolo a partir da poluição do ar em Pequim. Esta é conhecida como a ci-
dade mais poluída do mundo, sendo habitual ver pessoas nas ruas com máscaras de proteção contra a poluição ambiental. Há dados que apontam para a ocorrência de cerca de 4 mil mortes diárias por causa da poluição do ar em Pequim, com níveis recorde de quantidade de micropartículas em suspensão, chegando a ultrapassar em 35 vezes o limite recomendado pela Organização Mundial de Saúde. Este grave problema da poluição que afeta a capital da China, levou o artista Nut Brother a passar 100 dias a aspirar as ruas de Pequim, durante cerca de 4 horas diárias, com um aspirador industrial de 1000 watts. O artista intitulou este projeto da seguinte forma: "No dia que esgotarmos todos os recurso da Terra, vamos transformar-nos em pó”. No fim do projeto, obteve uma mistura de pó e nevoeiro que pesava cerca de 100 gramas. Juntou isto a argila, tendo produzido um tijolo, o qual foi depois doado a uma empresa de construção para que faça parte de um novo edifício em Pequim. Com este projeto, apresentado no final de 2015, o artista quis alertar a sociedade para os problemas am-
bientais e levar as pessoas a pensar na relação entre a natureza e o homem. Mais recentemente, Nut Brother realizou uma exposição visando conscientizar para a poluição da água na China. Este país tem 20% da população mundial, mas apenas 7% dos seus recursos hídricos, acrescendo que a água considerada potável está poluída, apresentando elevados níveis de metais pesados. Nesse sentido, encheu mil garrafas com água e colocou-as expostas. No entanto, depois de estar em exibição por apenas alguns dias, a água engarrafada foi removida das prateleiras da galeria.
Enfim... Não obstante ser um percurso difícil, com muitos interesses económicos instituídos que resistem à mudança, esperemos que a arte possa ajudar a que as pessoas tomem consciência da importância do seu comportamento para a preservação do ambiente. As novas gerações vão viver no mundo que ajudarmos a criar e, por muitas diferenças que haja entre as pessoas, as culturas e os países, o planeta terra é a Casa de todos nós, sendo fundamental ajudar a preservá-lo! l
ler, à noite, depois de deitada e de ter escrito o meu diário, descobri que escreveu, nos anos 40, algumas frases praticamente iguais às do meu. Foi arrepiante e nas primeiras noites quando lia o seu livro, intitulado Diário, ficava muito emocionada. Era quase como se estivesse a reler-me. Vi nela a minha alma gémea e nunca tinha tido uma experiência de leitura tão profunda e arrebatadora. A questão de Deus, o aperfeiçoamento interior, as paixões, tudo estava ali com as mesmas interrogações, arrebatamentos espirituais e anseios no processo de escrita. Ficam alguns trechos de Etty: “Vivo a vida até ao fundo, mas tenho a sensação cada vez mais intensa de que entretanto começo a ter obrigações em relação àquilo que eu gostaria de apelidar de meus talentos. Mas por onde começar? Meu Deus há tanta coisa… eu disperso-me e divi-
do-me nos muitos envolvimentos e impressões e pessoas e emoções que vêm ao meu encontro… Já não basta só viver tudo, é preciso que algo mais apareça”.b “Chego a casa e tenho a certeza que vivi coisas extremamente fantásticas, e quero ainda rapidamente enunciar algo imortal sobre elas. Não anotar por palavras simples (…) na realidade um diário é para isso, mas a . . partir das experiências mais simples quero sobretudo escrever logo aforismos e extrair as sapiências imortais.” O diário espiritual de Etty é poderoso. Quando vai a caminho de Auschwitz escreve isto: “Não existe um poeta dentro de mim, há sim um pedaço de Deus em mim que poderia desenvolver-se até se tornar poeta. Num campo assim tem de haver contudo um poeta que experiencie a vida lá, lá também, e que como poeta a possa cantar.”
No meio do sofrimento que a irá exterminar, há um sentir poético. É desconcertante esta frase já no final do diário e da vida: “E num momento inesperado, abandonada a mim própria, encontro-me de repente encostada ao peito nu da Vida e os braços dela são muito macios e envolvem-me, e nem sequer consigo descrever o bater do seu coração…” Edith Stein e Etty Hillesum, duas das intelectuais mais interessantes do século XX, que para além de serem judias foram mortas em Auschwitz, deixaram textos extraordinários. Duas mulheres com o coração cheio de infinito, inspiradoras com os seus diferentes modos de santidade, embora só a primeira tenha sido canonizada. De professora universitária ateia a santa padroeira da Europa. São grandes caminhadas na fé e no conhecimento. Outra escritora que viveu em tempos difíceis, também judia, foi Simone Weil, que tal como Etty Helissum morreu em 1943, na aventura espiritual da procura interior e na dialética entre cultura e santidade. l
MARCA D'ÁGUA •••
Cultura e Santidade - I
Maria Luísa Francisco Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
luisa.algarve@gmail.com
“A minha biblioteca é um arquivo de anseios” Susan Sontag (1933-2004)
Para além dos livros académicos, os temas principais das minhas estantes são Cultura/Poesia e Religião/Diálogo Inter-religioso. O autor português que mais reúne estes temas que me agradam é o teólogo e poeta José Tolentino de Mendonça. As suas obras revelam a forma como a Igreja e o mundo da cultura se relacionam, tal como os seus novos diálogos. A sua poesia é pro-
fundamente tocante e entra pelo território da experiência religiosa e aí a linguagem ganha outra dimensão. Considero os seus ensaios um alimento para a alma, fazendo valorizar a mística de cada instante e saciando a sede de Deus. Quando encontro um escritor com esta abrangência e profundidade e que conhece a obra de algumas escritoras que marcam a minha vida, isso gera uma enorme empatia intelectual. Ter tido a possibilidade de falar com o padre e poeta Tolentino de Mendonça sobre Etty Hillesum, Edith Stein e Clarice Lispector, brevemente e em diferentes momentos e mais recentemente por e-mail, fez-me sentir literária e espiritualmente compreendida e mais acompanhada. Tolentino de Mendonça conhece o âmago das palavras destas três escritoras, três místicas, todas na procura de Deus, nenhuma delas de raiz católica.
Diário Etty Hillesum tocou-me muito porque quando há anos a comecei a
dr
CULTURA • SUL
Foto d.r.
d.r.
ESPAÇO AO PATRIMÓNIO •••
Um Mar de Filmes
Luísa Baptista
Programadora Cultural Independente / Rizoma Lab – Associação Cultural
Quando o programa DiVaM 2018 (Dinamização e Valorização dos Monumentos) anunciou como tema deste ano a permissa Património – que Futuro? imediatamente a questão me levou a pensar que sem património imaterial não pode haver património material – parte tudo das pessoas, da sua existência, da fixação de grupos em determinado território e da sua relação com este e com a comunidade, na qual se inserem e que desenvolvem. Parecendo isto óbvio, nem sempre tomamos o tempo para observar as flutuações do que está e é, do que se transforma e do que se extingue. A mentalidade, crenças e tradições de determinado grupo manifesta-se em
certo espaço temporal, deixando marcas edificadas, no caso de património arquitectónico, mas também noutras formas: música, gastronomia, contos, escrita, tradições e modos de fazer e de viver. Neste sentido, há sempre uma janela de tempo e espaço que se abre quando um realizador resolve documentar um local, uma comunidade, um saber - nestes documentários, que podemos designar quase como arqueologia contemporânea, pela sua ligação simbiótica à vida das pessoas e regiões podemos realmente colocar a questão: Património – que futuro? Não é fácil responder, dadas as circunstâncias actuais, mas podemos tentar através da visão destes realizadores, que trabalham com pessoas vivas, com o presente que ainda subsiste, com ligações ao passado mas com vivências contemporâneas. São documentários contemplativos, artísticos e com pouca interferência dos realizadores que assumem o papel do observador, deixando as situações e pessoas entregues ao seu próprio ritmo, como uma janela aberta para a vida real. Um Mar de Filmes tem como inspiração no nome a expressão popular “um mar de gente”, porque de pessoas se trata nesta mostra, mas também o
A adesão do público à primeira mostra de cinema superou as expectativas •
facto de agregar na sua programação uma ligação ao elemento mais forte que a todos nos envolve de uma forma ou de outra: O Mar – património ambiental da Humanidade, património de subsistência desta região, património e atracção turística, e agora mais do que nunca, como todos sabemos, património em risco. Esta mostra de cinema documental português e de cariz etnográfico, partiu também da vontade de se recuperar a experiência do cinema ao ar livre para a comunidade, sendo que o Algarve oferece condições climáticas, paisagísticas, e históricas mais do que propícias. Além disso, a escassez de oferta de mostras e festivais na área do audiovisual/cinema na região, cria uma distância em relação à criação nacional contemporânea sobre temas portugueses ou de proximidade ideológica e situacional de jovens rea-
lizadores, que acabam por circular em festivais internacionais, muitos deles premiados, sem terem visibilidade dentro do próprio país, que é do que afinal, fala o seu trabalho - no fundo são trabalhos sobre a nossa memória, e sem memória não há futuro. A programação da mostra Mar de Filmes contou com cinco exibições distribuídas por Fortaleza de Sagres, Ermida de Nossa Senhora de Guadalupe e Monumentos Megalíticos de Alcalar, com os filmes Mar de Sines, de Diogo Vilhena; É na Terra não é na Lua, de Gonçalo Tocha; Pedra e Cal, de Catarina Alves Costa; A Mãe e o Mar, de Gonçalo Tocha; e no encerramento Medronho Todos os Dias, de Sílvia Coelho e Paulo Raposo, filmado na Serra de Monchique. Os locais escolhidos são de uma riqueza histórica e patrimonial importante, privilegiando a sua valorização e actuando como um
elo que interliga os outros elementos: o artístico com a comunidade, transformando-se em lugares vivos e onde o diálogo se continua a exercer, em permanência numa ligação estreita com elementos locais e regionais. A adesão do público foi excelente, superando em alguns casos as expectativas e conquistando espectadores habituais que se deslocaram às várias sessões nos diferentes locais. Este projecto foi possível graças à Rizoma Lab – Asscociação Cultural de Lagos e ao apoio e enquadramento do programa DiVaM da Direcção Regional de Cultural do Algarve com a participação de autarquias e outros patrocínios. Esperemos que seja um ano zero de uma mostra necessária e complementar a outro tipo de eventos culturais que o Algarve já tem vindo a desenvolver e que cada vez conquista com mais expressão e afirmação. l
REFLEXÕES SOBRE URBANISMO ••• d.r.
A mobilidade e o Algarve
Teresa Correia
Arquitecta / urbanista arq.teresa.correia@gmail.com
O estado da arte na mobilidade no Algarve Quem ainda se lembra do isolamento do nosso Algarve, da viagem de dia inteiro para chegar a Lisboa, e o quanto era difícil atravessar a serra do Caldeirão? De facto, estamos destinados a ser uma região propositadamente periférica e sem investimento substancial na melhoria das infraestruturas de transporte. O sistema ferroviário, muitas vezes desconexo com os centros urbanos, possui material circulante antigo e degradado, com falhas constantes
de horário. A população que não tem alternativa e necessita de transporte para vir a Faro, sacrifica-se todos os dias, pela falta de conforto e ainda pela incerteza do sucesso da sua viagem. No que diz respeito às infraestruturas rodoviárias, fica-se com a sensação da promessa incumprida, da injusta política de falta de coesão nacional. Continua-se com a falta das circulares à EN 125 nalguns dos principais aglomerados, como Olhão, para além das já famosas portagens da Via do Infante, que atrofiam a nossa economia e concentram o tráfego na EN 125. Quem pode solicitar aos munícipes que aliviem o uso do veículo automóvel, se não temos metros, nem comboios, nem sequer espaços canais de autocarros que permitam criar a alternativa? A ligação da ferrovia ou algo semelhante do tipo metro ao aeroporto, sendo uma decisão fundamentada pela sua importância numa região turística, parece sempre uma opção distante, e julga-se que afinal até não seria necessária!
As questões da mobilidade estão diretamente relacionadas com a melhoria da qualidade de vida das cidades •
Ligação ao ordenamento do território O Algarve possui um povoamento disperso e pouco concentrado, a aglomeração polinucleada, o que propicia o transporte individual, sendo ainda mais pela pouca alternativa em transporte público. Os Planos de Mobilidade do nosso Algarve, PMUS ou PMT tiveram o mérito de colocar a população a discutir estas matérias, e ainda pela condensação de informação, criando um instrumento de planeamento nestas áreas de grande valia. As questões da mobilidade, hoje estão diretamente relacionadas com a melhoria da qualidade de vida das
cidades e da inclusão como sociedade. É, portanto, lógico que este saber e conhecimento seja utilizado em função do ordenamento do território e vice-versa, ou seja, que este seja também influenciado pela mobilidade. O Algarve poderá ter necessidade de tomar as rédeas do seu desenvolvimento, criando ligações entre as autarquias e entendimentos que não dependam do Governo Central, e assim criar as soluções alternativas que a região carece.
Espaços de fronteira O Algarve possui um caráter importante de internacionalização, pelo que,
será relevante dignificar os espaços de fronteira, seja esta aeroportuária (importante obra já realizada), como pela Via do Infante, como entrada terrestre, ou de comboio, praticamente inexistente. Uma entrada digna é sempre uma boa receção, e ela deverá ser aprimorada, ainda por cima de uma região que depende do turismo. Os espaços intermodais são também pontos de fronteira, mas de diversos modos de transporte. Porém, quantos centros ou pontos temos no Algarve desta natureza? Poucos e sem grandes conexões. O Algarve como região económica e com forte identidade, não poderá ficar à margem destas decisões. l
16
CULTURA • SUL
12 de Outubro de 2018
FILOSOFIA DIA-A-DIA •••
Álvaro de Campos à chuva... Oblíqua! d.r.
Maria João Neves Ph.D Consultora Filosófica
Era uma vez uma cidade em que um aniversário demora dois meses ― Outubro e Novembro ― e se celebra de muitas e diferentes maneiras. Era uma vez um aniversariante que nunca existiu mas teve direito a carta astrológica e deu nome a uma biblioteca. Era uma vez uma Partilha Alternativa para a qual todos contribuímos, o conhecimento numa mão, a criatividade na outra numa coreografia inédita. Acontece a Sul, na encantadora Tavira onde todos nos unimos para participar na Festa dos Anos de Álvaro de Campos, essa ideia tão profícua quanto desafiante de Tela Leão. Para pensar o tema deste ano ―
O Modernismo do nosso passado ― escolhi o poema Chuva Oblíqua de Fernando Pessoa ortónimo. É um poema de verso live, dividido em seis partes de estrutura irregular. Este exemplar magnífico do interseccionismo literário, dizem os entendidos que traz para a literatura o processo de sobreposições dinâmicas que caracteriza a pintura futurista. Vejamos: “Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito/ E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios/ Que largam do cais arrastando nas águas por sombra/Os vultos ao sol daquelas árvores antigas.../ O porto que sonho é sombrio e pálido/ E esta paisagem é cheia de sol deste lado.../ Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio/ E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol.../ Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo.../O vulto do cais é a estrada nítida e calma/ Que se levanta e se ergue como um muro,/ E os navios passam por dentro dos troncos das árvores/ Com uma horizontalidade vertical,/E deixam cair amarras na água pelas
folhas uma a uma dentro.../ Não sei quem me sonho...”. Em consciente ousadia filosófica permito-me dizer que este poema é uma exaltação das sinergias na esteira de Correspondances de Baudelaire. Mas aquilo que Baudelaire apenas enuncia ou aponta para, Pessoa faz acontecer. Identidade e diferença esbatem-se no enraizamento no uno universal que se sente latir por trás das palavras. O real perde solidez e já quase não o distinguimos da consistência do sonho. Contudo, não existe aqui a desmesura ou o extravasar emotivo de uma Ode Naval. É um esbater de contornos numa estética fina e precisa, as palavras tornam-se transparentes, vemo-las umas através das outras numa claridade de vidro lavado. Apenas esse elemento cristalino separa as entidades. Em Diferença e Repetição publicado em 1968 Gilles Deleuze diz-nos: “Na verdade, a distinção do mesmo e do idêntico só é proveitosa se se levar o Mesmo a submeter-se a uma conversão que o refira ao diferente, ao mesmo tempo que as coisas e os
seres que se distinguem no diferente sofrem de modo correspondente uma destruição radical da sua identidade.” José Gil, no prefácio, acrescentará que “a torção em virtude da qual a negação da identidade se dissolve, fazendo emergir a afirmação da diferença, é o próprio movimento do eterno retorno”. Em continuada ousadia permito-me pensar que o esbatimento de identidade e diferença só pode acontecer com um terceiro vértice: a equanimidade. Através dela consegue suspender-se a capacidade de julgar sempre tão diferenciadora. Então, as metáforas florescem neste solo fértil. A filosofia treina a expansão da men-
te, a possibilidade de experimentar pontos de vista alternativos, alguns consentâneos, outros irreconciliáveis. Através da viagem ao futurismo do nosso passado este Café Filosófico propõe exactamente o exercício de sair de si, das opiniões e hábitos enraizados, para experimentar um ver-se e sentir-se de tantas diferentes e alternativas maneiras. Venha daí dia 26 de Outubro até ao Nó de Gosto tomar um Café Filosófico à Chuva Oblíqua das 18:30! Inscrições para o Café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com l
ESPAÇO AGECAL •••
Jornal local, um instrumento de aproximação das comunidades ao património cultural
Susana Araújo
Socióloga, técnica do Património; Sócia da AGECAL
A importância atribuída ao Património Cultural Imaterial (PCI) ganha folgo a partir do séc. XXI, abrindo os horizontes do que até então era considerado património. A Convenção para a Salvaguarda do PCI da UNESCO (2003) e a consequente legislação de cada país marcam um novo percurso na investigação, inventariação e valorização do património. O foco torna-se mais alargado e também de maior complexidade por estar centrado nas pessoas e nas comunidades locais. É um património dinâmico, em constante transformação e, por isso, mais difícil de inventariar e salvaguardar.
A orientação metodológica para a inventariação destas expressões patrimoniais passa inevitavelmente por recorrer a metodologias participativas, onde os actores sociais detentores das práticas e representações a inventariar e salvaguardar assumem um papel primordial. O discurso jurídico, político e científico apela a uma aproximação às comunidades detentoras deste património, o chamado “envolvimento da comunidade”. No entanto, factores como a desertificação humana das zonas rurais, a primazia dada aos núcleos urbanos em detrimento das comunidades rurais, o envelhecimento destas e o progressivo abandono do mundo rural têm-se traduzido num sentimento de exclusão, falta de esperança, com repercussões na auto-estima e no sentimento de pertença das pessoas. Esta conjuntura, agravada por se tratar de comunidades que têm vindo a perder a população mais jovem, mais dinâmica e activa, cria condições para que estas comunidades vão desvalorizando a importância do seu real valor,
enquanto pessoas detentoras de saberes-fazeres e com tradições que fazem parte da nossa história, memória, identidade colectiva e património. E sem esta consciência, não há envolvimento, não há acção, não há participação, nem valorização dos seus conhecimentos, dos seus saberes, das suas tradições. O Centro de Investigação e Informação do Património de Cacela (CIIPC/ CMVRSA) desenvolve a sua actividade na área do património há 13 anos, na antiga Escola Primária da Aldeia de Santa Rita (Município de Vila Real de Santo António). Com a grande vantagem de trabalhar geograficamente no seio da comunidade de Cacela, tem vindo a sentir, ao longo do seu percurso, a necessidade cada vez maior de criar um relacionamento, um envolvimento mais profundo com as pessoas desta comunidade, as verdadeiras detentoras do conhecimento sobre o seu património imaterial. Com este propósito, tem desenvolvido algumas actividades que visam precisamente esta aproximação, envolvimento, participação. Um dos projectos desenvolvidos
foi a criação de um jornal local. Um boletim informativo feito com e para a comunidade que se assume como uma ferramenta de comunicação muito presente na vida das comunidades rurais. Para além de divulgar actividades, acontecimentos e dinâmicas comunitárias, estimula a memória colectiva da comunidade, dando a conhecer a cultura por ela produzida. “O Tomilho” nasceu em 2016 precisamente com estes propósitos: por um lado, dar a conhecer à comunidade projectos e actividades realizadas pelo CIIPC, desmontando conceitos teóricos ligados ao património através de uma linguagem simples e divulgando património local (material ou imaterial) ligado a esta comunidade (escavações arqueológicas em Cacela Velha, os astros e o ciclo agrário, túmulo megalítico de Santa Rita, etc.). Por outro lado, apelar à participação da comunidade em três rubricas distintas: partilha de memórias e saberes ligados a uma tradição, festividade, ofício, a partir de uma fotografia antiga; contar a história associada a um objecto
antigo de uso quotidiano (mó manual, balança de vara, etc.) e a partilha de uma receita culinária caseira (lebre com feijão, sopas de tomate). Nestas rubricas, os participantes recordam o passado através de uma fotografia ou de um objecto seu que funciona como estimulador na narração das suas memórias. Estas memórias são escritas e partilhadas com todos os leitores do Tomilho, enriquecendo a memória colectiva, o sentimento de pertença e reforçando a identidade social desta comunidade, o que, em última instância, contribui para aumentar a auto-estima e consolidar a tal consciência colectiva, premissas fundamentais para um efectivo envolvimento e participação dessa comunidade. Com este instrumento pretende-se também, a par de outras actividades realizadas com a comunidade, que o trabalho de investigação e divulgação do património, se torne progressivamente mais compreendido e valorizado pela comunidade que se revê nos conteúdos trabalhados pelos projectos e actividades do Centro. l