Cultura.Sul 122 7DEZ2018

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Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o

DEZEMBRO 2018 n.º 122 6.802 EXEMPLARES

www.issuu.com/postaldoalgarve

MISSÃO CULTURA •••

II Jornadas da Rede de Museus do Algarve, Auditório do Parque Natural da Ria Formosa, Olhão

Ficha técnica

d.r.

Direção Regional de Cultura do Algarve

Museus para quem? A pergunta hoje já não é um museu para quê? Posicionando-nos do lado de lá, perguntamos – museus para quem? Resposta fácil: Para todos! Quer isto dizer que nos preocupamos com as audiências dos nossos museus? Conhecemos aqueles que nos visitam? E os que não nos visitam? Sabemos porquê? Quantas vezes nos detivemos a pensar se há espaço para todos nos nossos museus? Porque quereria alguém ir a um espaço ou lugar que não se importa com as suas origens, as suas motivações ou limitações? Os museus devem refletir a sociedade e são hoje assumidos publicamente como instrumentos principais de desenvolvimento. Uma ideia repetidamente afirmada, mas como está isso a acontecer? É interlocutor das preocupações da comunidade? É um disseminador de práticas? Entre muitas outras questões, podemos questionar por exemplo, se o multiculturalismo do nosso Algarve está refletido nas nossas ações? É de facto muito relevante termos

o material utilizado e recolhido seja avaliado e bem trabalhado. Há muitas questões que surgem nesta abordagem – quais são os benefícios gerados pela coleção, pela exposição e pelo museu para as suas comunidades? Como promover a interação? Sabemos como falta tempo para avaliar o que se faz, mas é hoje também fundamental integrar a investigação no dia a dia do museu. A operação diária dificulta esta integração, mas há Os museus devem refletir a sociedade • que a inserir nas prioridades. estas oportunidades de partilha e reflexão. Cabe-nos a cada um de nós Os museus não devem ser só colocar questões sobre as verdades espaços onde nos sentimos bem instituídas, chamar a atenção para os actuais desafios societais, evocar as Tal como refiro num texto acadévozes esquecidas. mico em vias de publicação, numa Há na actualidade um trabalho referência a Theresa McNichol de muito próximo das comunidades lo- 2005 - cada museu tem que estabecais e tem sido crescente o diálogo lecer a sua comunidade (em sentido com os públicos. lato) e tomar as decisões baseadas em Nestes processos gostava de cha- reciprocidade, convidando a um enmar a atenção para a comunicação volvimento participativo e construindo e para a educação como elementos assim o seu museu memorável1. críticos. É muito importante que todo Francesco Manacorda, Diretor Artís-

tico da Tate Liverpool, por exemplo, defende uma abordagem de co-autoria com as audiências da sua galeria e procura um aumento deliberado da cooperação com o público, desenhando e “escrevendo” exposições que encorajem os seus próprios públicos para uma relação de co-criação ou co-produção das exposições. Claramente diferenciadora esta abordagem daquela do autor e do intérprete, e apontando para uma pedagogia emancipatória, que recoloca o museu numa abordagem conduzida pela missão educativa. A produção do conhecimento faz-se assim ativamente com o público. Será que estamos neste postulado? Será que desejamos esta interação? Que estratégias se podem prosseguir neste sentido? Estas são algumas das discussões que foram agendadas nas II Jornadas dos Museus do Algarve. Verifica-se uma enorme abertura ao exterior, mas os museus não devem só ser espaços onde todos nos sentimos bem e devem assumir o seu papel, de protagonistas e agentes da mudança social, e de justiça. l 1 McNichol, T. (2005) “Creative marketing strategies in small museums: up close and

Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saúl de Jesus • Espaço ALFA: Raúl Grade |Coelho • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ao Património: Isabel Soares • Filosofia dia-a-dia: Maria João Neves • Letras e literatura: Paulo Serra • Missão Cultura: Direcção Regional de Cultura do Algarve • Reflexões sobre urbanismo: Teresa Correia Colaboradores desta edição: Carlos Alberto Osório Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/ postaldoalgarve FB: www.facebook.com/ postaldoalgarve/ Tiragem: 6.802 exemplares

innovative”. International Journal of Nonprofit&Voluntary sector, 10, pp-239-247.

Alexandra Rodrigues Gonçalves

Diretora Regional de Cultura do Algarve

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d.r.

MARCA D'ÁGUA •••

Cultura e Santidade III: Clarice Lispector

Maria Luísa Francisco

Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

luisa.algarve@gmail.com

Clarice Lispector veio de um mistério e partiu para outro Carlos Drummond de Andrade Clarice Lispector nasceu a 10 de Dezembro de 1920 e morreu a 9 de Dezembro de 1977 na véspera de completar 57 anos, devido a doença oncológica. O seu país de origem é a Ucrânia e com um ano e dois meses foi com os pais para o Brasil, onde viveu a maior parte da vida. O seu corpo está sepultado no Cemitério Comunal Israelita do Rio de Janeiro. Deixou uma vasta obra com contos,

romances, novelas e crónicas em jornais. Escreveu em todas as fases da vida, mesmo nas mais dolorosas. Escolhi esta escritora não só pela coincidência da data do seu nascimento e morte se comemorar perto do dia da publicação desta crónica, mas principalmente porque na sequência das anteriores escritoras sobre as quais escrevi (Etty Hillesum e Edith Stein) Clarice também era judia e vítima de anti-semitismo. Os seus pais fugiram do anti-semitismo do leste europeu. Clarice Lispector é um dos maiores nomes da literatura brasileira. O escritor e historiador americano Benjamin Moser considera a obra de Clarice a maior autobiografia espiritual do século XX. Nos livros que li há sempre um enigma. Clarice mostra-nos uma vida em metamorfose constante. A sua literatura é um mergulho profundo nos mistérios da condição do ser. Não fiquei e creio que ninguém fica indiferente, porque Clarice mexe com o leitor, porque procura uma alternativa com dimensão mística e através da sua transformação interior, leva-nos a uma viagem até ao fundo da alma. Era isso que eu queria encontrar nela, porque gosto de descobrir a experiên-

cia mística, o que facilmente aconteceu nos textos das escritoras que referi nas crónicas anteriores, aliás, são claramente consideradas místicas. Vejo em Clarice Lispector alguém que fez do sofrimento uma iniciação ao mistério espiritual. No último livro que escreveu, já perto de morrer, intitulado A hora da estrela, diz: “Cada dia é um dia roubado da morte (…). Juro que este livro é feito sem palavras. É uma fotografia muda. Este livro é um silêncio”. Na contracapa dos seus livros publicados na Editora Rocco, pode ler-se: “Uma escritora decidida a desvendar as profundezas da alma. Essa é Clarice Lispector, que escolheu a literatura como bússola em sua busca pela essência humana”. Clarice Lispector constrói uma obra de carácter tão profundo quanto universal Há cerca de um ano, depois de ter apresentado uma comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro, percorri o calçadão de Copacabana até chegar à Praia do Leme. No muro dessa Praia está a estátua de bronze que representa Clarice Lispector, em tamanho

Maria Luísa Francisco junto à estátua de Clarice Lispector no Rio de Janeiro •

real. Sentei-me ao seu lado e fiquei no envolvente silêncio daquele fim de tarde. Anoiteceu, voltei a caminhar pensando nos passos e nas palavras de Clarice. O que mais me marcou no Rio de Janeiro, por estranho que pareça, foi o silêncio que vivi durante alguns dias. “Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite”, escreve Clarice em A hora da estrela. Livro adaptado ao cinema. Um outro livro, esse considerado místico, é A paixão segundo G.H., embora não seja evidente numa primeira leitura, a dimensão mística está lá. Refere nas primeiras linhas: “Este livro é como um livro qualquer, mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada”. Não foi fácil ler este inquietante li-

FILOSOFIA DIA-A-DIA •••

vro, em que a personagem principal tem um enigmático monólogo interior. Há tanto a interpretar nele, que já deu origem a teses de mestrado e doutoramento em várias universidades. Em Clarice há a procura do Divino, há incursões por temas bíblicos, há um questionar constante, “há claridade (de Clarice) e há espectro luminoso (de Lispector)”! A obra de Clarice tornou-se conhecida na Europa através da professora da Univ. de Paris VIII, Heléne Cixous, autora do ensaio A hora de Clarice Lispector. Esta autora refere que Clarice era o que Kafka teria sido se tivesse sido mulher. O espaço para escrever está aprisionado pelos caracteres, mas Clarice permanece livre no tempo! Deixo-vos uma das suas frases mais poderosas: "Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome". l

d.r.

Os Estóicos praticavam mindfulness ?

Maria João Neves Ph.D

Consultora Filosófica

No mês passado falámos de Tara, a face feminina de Buda, e a filosofia oriental exerceu o seu fascínio sobre aqueles que participaram tanto no Café Filosófico como no dia inteiro dedicado a Tara com yoga e meditação. Este mês proponho que recordemos as escolas filosóficas de que somos herdeiros no ocidente e que, talvez para espanto de muitos, também incluem exercícios espirituais. Os Estóicos, por exemplo, declararam explicitamente que filosofar é um exercício. A filosofia não se dedica a ensinar teorias abstractas e muito menos se esgota na exegese de textos. A filosofia consiste na arte de viver! Corresponde a uma atitude concreta

e a um estilo de vida determinado, nos quais se empenha toda a existência. O acto filosófico não é meramente cognitivo, exerce-se a nível do ser e do estar. É um caminho no sentido de nos tornarmos melhores pessoas e vivermos plenamente. Trata-se de uma espécie de conversão que vira a nossa vida do avesso! Eleva a pessoa de um estado de inautenticidade, obscurecido pela inconsciência e recheado de preocupações, para um estado de vida autêntico, no qual a pessoa está consciente de si própria, possui uma visão ajustada do mundo e, sobretudo, paz interior e liberdade. Aliciante, não é? Mas como fazer? Todas as escolas filosóficas, sejam elas helénicas ou romanas, concordam em que a principal causa de sofrimento, de desordem e de inconsciência da humanidade são as paixões. Entendam-se as paixões como desejos desregrados e medos exagerados. As pessoas acabam por não viver verdadeiramente por estarem dominadas pelas suas preocupações - soa-lhe, caro leitor? Para se livrar das paixões cada escola tinha o seu método terapêutico, mas todas elas almejavam uma trans-

formação do indivíduo, do seu modo de ser e de ver o mundo. Para os Estóicos, de quem falamos hoje, o grande problema da humanidade é o desejo de posse. Gastamos todo o tempo a trabalhar para adquirir coisas, e outro tanto para as tentarmos manter. Com a agravante de que podemos falhar nesta luta por tentar obter o que quer que seja, ou, uma vez alcançado o que se deseja, pode perder-se. A tarefa da filosofia consistiria então em educar as pessoas para desejarem apenas bens que se podem obter, e absterem-se de todo o mal evitável. Para que um bem seja sempre alcançável e um mal evitável eles têm que depender da liberdade humana. Ora, quais sãos os bens e os males que dependem exclusivamente de nós? Apenas o bem e o mal entendidos eticamente se subordinam a nós. Tudo o resto está fora do nosso controle. E tudo aquilo que não depende exclusivamente de nós devia ser-nos indiferente; pertence ao domínio da natureza que nós não controlamos. Os Estóicos propõem, portanto, uma inversão do nosso modo habitual de olhar o mundo: passar da nossa

Para os Estóicos o grande problema da humanidade é o desejo de posse •

visão humana da realidade, dependente das paixões e desejos, para uma visão natural das coisas numa perspectiva universal. Esta transformação do ponto de vista não é fácil, e é precisamente aqui que os exercícios espirituais tomam lugar. Passo a passo eles ajudam-nos à metamorfose necessária do nosso eu interior. Um dos principais exercícios consiste em treinar a atenção (prosoche). Desenvolve-se uma vigilância continua e presença da mente, uma auto-consciência que nunca dorme, uma tensão constante do espírito. Graças a esta atitude o filósofo exerce a sua vontade com total consciência, realmente quer cada acto que pratica. Graças também à vigilância espiritual, o Estóico tem sempre à mão a principal regra da vida: a distinção entre

o que depende e não depende de si. Esta atitude pode ser traduzida como atenção plena ao momento presente. Ela é a chave de todos os exercícios espirituais! Liberta-nos das paixões que são sempre causadas pelo passado ou pelo futuro - duas áreas que não dependem de nós! O exercício de atenção plena ao momento presente encoraja a concentração em cada instante. Ora o instante, pela sua exiguidade, é sempre suportável. Por outro lado, permite-nos aceder à consciência cósmica ao dar-nos conta do infinito valor de cada momento, enseja a desfrutar de cada átimo da nossa existência no seio do cosmos. l Café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com


CULTURA • SUL

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LETRAS E LEITURAS •••

O centro do mundo, de Ana Cristina Leonardo

Paulo Serra

Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

Ana Cristina Leonardo nasceu em Olhão em 1959. Estudou Filosofia e colabora semanalmente com o Expresso, onde publica uma crónica regular e também faz crítica literária. O centro do mundo é o seu primeiro romance e esperemos que outros lhe sucedam. O centro do mundo não é biografia ficcionada nem romance histórico, mas sim uma narrativa pós-moderna que conta as desventuras de um herói pícaro em pano de fundo àquela que parece ser a verdadeira heroína do romance, essa vila cubista do Sul da Europa, de seu nome Olhão, onde Boris chega no dia 18 de Maio de 1935, e que será aqui narrada sem lastro nem verniz. O primeiro capítulo é um dos mais

magistrais exemplos de um romance que se assume logo de início como pós-moderno e que procura escapar a qualquer catalogação ou definição. As primeiras linhas têm um pendor fortemente descritivo, contudo o que se poderia confundir com um guião cinematográfico rapidamente sofre intrusões claramente literárias: «Da floresta chega uma vibração cava e marcial. A cidade, que desperta sob a sua cadência, sabe que a mortandade está próxima.» (p. 11) As sensações são sobretudo auditivas, à medida que nos aproximamos de Vilnius e da certeza de que algo iminente está para acontecer. Linhas depois, a escrita parece começar a transformar-se e nela incorrem vocábulos mais oralizantes ou populares, como «derribar» ou «pachorrenta». Quando chegamos à passagem em que se refere como nasce o nosso herói, o registo parece finalmente o de um romance histórico, não fosse o humor e ironia da narradora: «A jovem Elisabeth vomitou toda noite e jurou que nunca teria filhos. Faltou à promessa. Em 1896 vinha ao mundo Boris Michailowitsch Skossyrev» (p. 14) As próximas duas páginas mantêm um registo próximo do que se espera

Fotos d.r.

de um romance histórico, não fosse a romancista tomar rapidamente as rédeas da narrativa: «E embora em nenhum documento conhecido Boris Skossyreff o tenha incluído na sua genealogia, não há regra romanesca que nos impeça de invocar a favor de tal hipótese as leis de Mendel. Se, como as ervilhas, os homens não escapam à genética nem à geografia, acrescente-se-lhes a ficção e faça-se jurisprudência.» (p. 16) Instituída com toda a autoridade a voz narratorial, a narradora não resiste a ir piscando o olho ao leitor ao longo de todo o romance: «Suprimidos a benefício do leitor os lances aborrecidos e chegado Boris Skossyreff aos anos de juventude, atalhe-se-lhe um carácter temerário e grande pendor para as línguas.» (p. 16) Conhecido como Russo de Andorra ou Mano-Rei, de Vilnius, na Lituânia, passando por Inglaterra, Holanda, e Canárias, preso em Andorra, expulso de Espanha, Boris, de passagem para Marrocos, chega a uma povoação piscatória no sul de Portugal que se distingue pelo cheiro e pelas açoteias: «Apesar da «Nobre indiferença muçulmana pelo autoclismo, o esgoto, a árvore frondosa e a ânsia de ar das

ruas novas» de que falava Aquilino dando razão a Boris, e da falta de pergaminhos que já em 1758 era notada pelo prior Sebastião de Sousa, Olhão mantém um lastro de glória. Industriais, pescadores e vates contrabandistas continuam a partilhar o desrespeito pela lei e o culto do Senhor dos Aflitos, numa vila pródiga em dândis e espanholas, estrangeiros e aventureiros, sardinhas e anarquistas, operários e fedor. Tresanda, resume Raul Brandão. Não exagera o simbolista. Ao peixe que apodrece sob o calor africano junta-se a matéria fecal que escorre a céu aberto, húmus pestilento que Captain Zorra nunca conseguiu olvidar, memória primeva que nos conduz, um pouco abruptamente, é certo, a Marilyn Monroe, actriz que nunca veio a Olhão.» (p. 27) Boris cruza-se com personagens igualmente excêntricas, enquanto numa narrativa paralela que conta a história de Olhão se continua, quase em regime de associação livre, a discorrer sobre outras figuras literárias e históricas, criando ligações por vezes declaradamente remotas ou completamente inexistentes, enquanto se traça um retrato de Olhão no centro

Olhão é a verdadeira heroína do romance •

O Natal representa actualmente o pico anual de vendas, as estatísticas mostram que em 2017 representou em Portugal 50% do consumo total anual no ramo alimentar. Com quase mil anos de existência autónoma, ruralizado até há poucas décadas, Portugal guarda ainda tesouros das expressões natalícias ancestrais. Desde logo os principais símbolos, o fogo, o presépio e a árvore. Para os romanos o Natal era o dia do sol e acendiam fogueiras, as “saturninas” ocorriam entre 17 e 23 de Dezembro. A luz e o fogo estiveram durante muitos séculos nas aldeias portuguesas representados pelo madeiro comunitário, que ardia na véspera de Natal no adro da Igreja até ao Dia de Reis. O galo, ave ligada ao nascer do sol, deu origem à designação “missa do galo” e à ceia subsequente, a Consoada, que se relaciona com o culto dos ausentes. Foi no seculo passado substituído pelos enfeites industriais eletrificados, colocados nas praças e ruas das cidades e pelo fogo-de-artifício da passagem do ano. A descoberta da electricidade e o argumento ecológico

acabaram por se tornar aliados desta transformação, evitando o corte de milhares de árvores, mas padronizando comportamentos e introduzindo outras formas de desperdício. O presépio, simbolicamente o nascimento do Messias na nova religião, foi atribuído a iniciativa em 1223 de São Francisco de Assis em Itália. Muito divulgado pelos franciscanos proliferou durante a Idade Média acompanhado pelos autos de Natal, teatralização popular da Natividade com intervenção de “presépios vivos”. Tem vindo a perder importância nas simbologias natalícias. No Algarve, os Bombeiros de Tavira e a autarquia de Vila Real de Santo António são bons exemplos de preservação deste património. No Algarve, como no resto do País, sobrevivem várias tradições populares como a do “altarinho” de Natal com “searinhas”, muito ligadas à actividade agrícola e aos votos de boas sementeiras e colheitas no Ano Novo. Armar o Deus-Menino num “trono”, dias antes do Natal, com a germinação das sementes, cercando-o de searinhas, frutos secos, alfarroba, laranjas,… A árvore de Natal como tradição

natalícia tem origem no Norte da Europa, por razões climáticas e o tipo de floresta de abetos. O formato triangular da árvore remete para a Santíssima Trindade. Em Portugal foi introduzida em meados do séc. XIX por D. Fernando II, de nacionalidade alemã, esposo da rainha de Portugal D.Maria II. São Nicolau ou o Pai Natal, promovido pelos países industrializados da Europa do Norte e Estados Unidos da América, foi um bispo de Mirna na Turquia que gostava de ofertar os bens herdados a crianças e adultos. Para os americanos vive no Polo Norte e para os ingleses na Lapónia. É o principal “promotor de vendas” nesta época do ano… Sobre a gastronomia algarvia de Natal há um universo fantástico de saborosas atracções: pastéis de batata-doce, papas mouras, carnes de porco e aves, doçaria de figos, amêndoas e ovos,… Estudar, reabilitar e promover os valores genuínos das culturas natalícias portuguesas é uma atitude humanista, necessária e benéfica para o País. Como é tradição positiva e esperançosa, desejamos a todos um Bom Natal e Feliz 2019! l

de uma conturbada Europa ao longo do século XX, num modo de narrar que é irreverente e único, com um humor negro muito particular. Depois de terminado o romance, contado em três partes, e onde não faltam diversas fotografias a ilustrar a narrativa, nas últimas 50 páginas joga-se ainda com a ideia da veracidade da biografia imaginada deste herói pícaro, através de cinco depoimentos em que a autora regista os testemunhos individuais de olhanenses que se cruzaram com Boris. l

ESPAÇO AGECAL •••

Culturas natalícias

Jorge Queiroz Sociólogo

Sócio da AGECAL

O não-lugar é o contrário da utopia: existe e não alberga sociedade orgânica alguma. De dia para dia, acolhe cada vez mais pessoas… O espaço do não-lugar não cria nem identidade singular, nem relação, mas solidão e semelhança Marc Augé, Antropólogo francês As identidades são construções/ reconstruções culturais determinadas por necessidades, conjunturas, influências, ideias e valores que as comunidades utilizam, modificam ou preservam.

Estas expressões culturais reconfiguradas são determinantes nos comportamentos sociais e individuais a que chamamos Cultura. É o caso do Natal. Os rituais pagãos, há mais de dois mil anos cristianizados, seguiam os movimentos astrais, os ciclos naturais, agrários e sociais, estão na origem das festividades existentes por quase todo o mundo, extraordinária riqueza cultural. O hemisfério norte assumiu nos últimos séculos supremacia económica e acabou por tentar definir comportamentos culturais “globais” relacionando-os com o mercado. Estes valores são fundamentais, dado que, usando simbologias da cultura herdada, promovem produtos, alterando as formas originais e conteúdos do relacionamento. As tradições e festividades foram e continuam a ser mercantilizadas. O próprio gosto é construído através dos media e da publicidade, as “indústrias culturais” e de lazer favorecem a adopção massiva de determinadas preferências e excluem a diversidade de culturas.


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AS DEZ RESPOSTAS DE SAÚL NEVES DE JESUS •••

“Acredito que, em conjunto,

iremos conseguir “deixar obra”

Por Henrique Dias Freire Ter sido o professor doutorado mais jovem da universidade do algarve fez de si um professor diferente?

Penso que não. Consegui chegar ao topo da carreira universitária com 36 anos de idade, mas acredito que tenho mantido sempre as principais características que me costumam ser atribuídas por quem me conhece, como sejam a humildade, o respeito pelos outros e o esforço para fazer sempre o melhor que sei e que posso. Aliás, desde criança que uma das minhas características é fazer desde logo o que tem que ser feito, não deixando para mais tarde. Por exemplo, na escola primária fazia durante a primeira semana de férias todos os “trabalhos de casa” (TPC) que a professora indicava para serem feitos durante todo o Verão.

A psicologia é uma ciência de reconhecida utilidade nas sociedades modernas. Ainda é uma profissão à procura de identidade?

Penso que a Psicologia conseguiu já o reconhecimento dos seus benefícios por parte da maioria das pessoas na nossa sociedade. Em todo o caso, por vezes ainda se pensa que a Psicologia só serve quando as pessoas estão em situação de doença mental ou em situações negativas da sua vida, mas atualmente predomina a Psicologia Positiva, podendo ser sempre otimizado o funcionamento de qualquer pessoa em relação a qualquer competência, desde que o próprio esteja motivado nesse sentido. É quase como correr 100 metros. Todos conseguimos faze-lo, mas mesmo os que correm mais depressa poderão vir a correr ainda mais rapidamente se treinarem adequadamente nesse sentido.

Que conselho do seu pai lhe alicerçou a vida?

Destacaria dois conselhos: nada se consegue sem esforço e também saber valorizar a amizade, quase no sentido de que se queremos fazer depressa podemos fazer sozinhos, mas se queremos chegar mais longe, temos que fazer com os outros.

Das homenagens e distinções que recebeu, qual foi a que mais o sensibilizou?

Felizmente já tive muitas manifestações formais e informais de reconhecimento ao longo do meu percurso. Mas talvez aquela que mais me sensibilizou tenha sido ter ganho o Prémio Rui Grácio em 1996. Este Prémio era atribuído anualmente pela Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação, com o alto patrocínio da Fundação Calouste Gulbenkian, e traduziu o reconhecimento do livro intitulado “A motivação dos professores”, escrito com base na minha tese de doutoramento.

Escolhas da Minha Vida! O Filme: “O Clube dos Poetas Mortos” A Obra de arte: “Sonho causado pelo voo de uma abelha ao redor de uma romã um segundo antes de acordar” (Salvador Dali, 1944) O Prato: Sushi A Localidade: Ilha da Armona A Frase: “O caminho faz-se caminhando”, do poeta espanhol António Caetano, à qual acrescentaria “Onde há vontade há um caminho”, de Albert Einstein. A paixão: Animais de estimação Político(a): Barack Obama

Em cada edição do jornal POSTAL, damos a conhecer o lado mais pessoal e intimista de uma Personalidade que faz mais e melhor na Região do Algarve. Na primeira entrevista da série “As dez respostas de...”, ouvimos Saúl Neves de Jesus, vice-reitor da Universidade do Algarve. Como se cativa o estudante para a cultura quando as necessidades são de outra ordem?

ser esteticamente belas, ou emocionalmente profundas. Nesta perspetiva, a arte deve ser apreciada, não só olhando, mas procurando compreender o sentido e o contexto da sua realização. É a história ou o percurso de cada artista, a persistência e a consistência do seu trabalho, que pode permitir inferir a sua identidade e a dimensão artística daquilo que realiza.

Parece-me que os jovens apreciam cultura, pois gostam de música e de espetáculos de uma forma geral; podem é os produtos culturais que eles apreciam não coincidir com aqueles que a minha geração aprecia. O importante é sabemos aproximar-nos daquilo que os jovens gostam e depois fazer as pontes, estabelecer as relações com aquilo que gostávamos que eles também apreciassem. Esta parece-me ser a abordagem mais adequada e que até permite resolver muitas das situações do designado “conflito de gerações”. Em todo o caso, nunca há apenas uma forma de motivar, pois a motivação é sempre muito pessoal e aquilo que resulta com uns pode não resultar com outros.

O homem é orientado para o futuro, pelo que a criação de algo, seja nas artes visuais, seja na ciência, seja noutras facetas da vida, é um processo em constante emergência. A satisfação com as realizações concretizadas costuma ser apenas de curto prazo, sendo a curiosidade e a criatividade sustentadas pela motivação intrínseca, que podem permitir uma satisfação mais consistente e duradoura.

A arte não tem necessariamente de questionar?

Que balanço faz do seu primeiro ano como Vice-Reitor para a Educação e Cultura?

Nas artes visuais, eu aprecio a arte que questiona ou que nos ajuda a questionar, fazendo uso do poder da imagem. No entanto, a arte pode ser apreciada e fruída sem ter necessariamente que questionar. Tudo depende se é mais dirigida à dimensão cognitiva ou à dimensão emocional de quem a aprecia.

Um artista é a soma das suas circunstâncias ou a arte pode ser uma mentira? Entendo a arte sobretudo como uma forma de comunicação, não tendo as obras de arte que

Encontra saciedade na criação?

Faço um balanço bastante positivo pois, não obstante o elevado volume de trabalho que tenho tido, tem sido uma experiência muito rica. Além disso, sinto que estou a contribuir para o desenvolvimento da Universidade do Algarve, em particular ao nível das relações com a comunidade, da inovação pedagógica dos professores, da integração e do sucesso académico dos estudantes, bem como na construção duma UAlg cada vez mais saudável.

Quais são as suas perspetivas durante o seu mandato? Há e haverá sempre muito para fazer, novos objetivos para concretizar, mas com elevada motivação, espírito de missão, otimismo realista e empenho constante, procurarei continuar a trabalhar e a servir a UAlg, tentando fazer sempre cada vez mais e melhor, ouvindo os colegas, os estudantes e a comunidade. Com a liderança do atual Reitor e com a equipa reitoral coesa, acredito que, em conjunto, iremos conseguir “deixar obra”.

A Pergunta ao entrevistador Saúl Neves de Jesus: De que forma é que a

Universidade do Algarve e o Cultura.Sul poderiam colaborar mais para a promoção da cultura na região?

Henrique Dias Freire: Pelo papel intrínseco de cada um, parece-me um passo natural estabelecer parcerias entre ambas as entidades de forma a potenciar e criar “pontes” para a promoção da cultura na região. Acredito que a vontade seja recíproca. Como primeiro passo, parece-me recomendável identificar e nomear o interlocutor directo de ambas as partes e prosseguir com um plano de acção. Da parte do Cultura.Sul estou pessoalmente disponível. l


CULTURA • SUL

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ESPAÇO AO PATRIMÓNIO •••

Uma “Algarviana Fotográfica” ou o que fazer com as imagens digitais?

Fotos d.r.

A fotografia está morta?

No seu conjunto, estas etapas sintetizam o processo do que se deve Sebastião Salgado numa entrevista entender hoje por preservação digiem 2016 afirmava: "A fotografia está tal. Compreende-se, assim, que não é acabando porque o que vemos no garantida somente fazendo backups, celular não é a fotografia. A fotograjá que guardar apenas pouco resolfia precisa se materializar, precisa ser ve, se não houver acesso agilizado. É impressa, vista, tocada, como quando necessário, portanto, preparar a sua os pais faziam antes com os álbuns de divulgação. Os arquivos de imagens Carlos Alberto Osório Docente do Ensino Secundário fotos de seus filhos (...)."Estamos em digitais depois da sua catalogação Mestre em Produção, Edição um processo de eliminação da fotodevem ser disponibilizados em sise Comunicação de Conteúdos grafia. Hoje temos imagens, mas não temas de bancos de imagens online fotografias". para consulta e utilização controlaPor sua vez, Grant Romer, Diretor da. Apenas este procedimento dará Apesar das imagens originalmendos Programas de Conservação da sentido e vida às coleções fotográfite digitais compostas por “zeros” e George Eastman House, reconhece cas e será a razão para a sua própria “uns”, interpretadas por programas que a história da fotografia mosmanutenção, ampliação e divulgação. e equipamentos informáticos e que tra que a sua evolução se tem feito Caso contrário, todos os arquivos paspodem ser vistas instantaneamente através do abandono de velhos prosam a uma não-existência pública, e em monitores/visores e multiplicacessos e a introdução de novos, mas que tornará ainda mais complicado das infinitamente à velocidade da luz não deixa de considerar que este é o encontrar formas de financiamento e de estarem simultaneamente em último capítulo desse progresso, inpara a manutenção desses jazigos de qualquer lugar, criando assim um novo troduzindo o conceito de “photality” imagens. paradigma de produção, reprodução, (ou “fotalidade”): “A fresher, more Do conjunto de instruções, destadivulgação da imagem que veio alexpressive neologism, itself, may caria a última ação sobre a impressão terar de forma radical os sistemas someday replace the word “photoem papel como forma de preservação. Da mesma forma que encontramos cópias em acervos fotográficos, e na maioria dos casos não temos os negativos/vidros que lhes deram origem, também aumentam as possiblidades de manter os arquivos quando são impressos em suportes estáveis que possam ser guardados em espaços igualmente conNo passado recente, a fotografia analógica era menos vulnerável ao desaparecimento • trolados quanto à temperatura e analógicos, são estas imagens que graph”, in the not too distant future. humidade. Por outro lado, a publicorrem mais riscos de desaparecer. Somehow “photality” now seems cação de livros parece ser uma das No passado recente a fotografia appropriate - part light - part morformas mais eficientes de consolidar dita analógica, por oposição à digital, tality”(2010). ou perpetuar a existência de milhares era na sua materialidade singular meNo Guide to Digital Photography de imagens. Ainda que a impressão nos vulnerável ao desaparecimento. and Conservation Documentation não pode por si só substituir a preserDesde o betume da judeia, à película, (2011) editado pelo Instituto Americavação das fotografias digitais, é sim passando pelo daguerreótipo, calótino de Conservação, pode ler-se num um complemento a esta preservação. po, albumina e pelo vidro, a luz fixada dos capítulos sobre as cinco etapas Assim, não devemos transformar os parecia quase permanente e pensavafundamentais para a preservação de arquivos em cápsulas do tempo fecha-se que podia ser eterna se, de novo, fotografias digitais: usar formatos de das, intocáveis e impermeáveis para que a luz contínua não a destruísse. Nos arquivos sustentáveis; organizar os possam ser apenas encontradas pelas negativos, ou ampliadas em papel, dados digitais e inserir metadados; fagerações futuras. Parece começar a ser as imagens puderam e podem, passazer os backups e migração dos dados; tarde investir na criação de territórios do mais de um século ser apreciadas recorrer a processos contínuos de vepara as nossas imagens preciosas para sem intermediação eletrónica ou inrificação da integridade dos arquivos; que sejam preservadas, vistas e valoriformática. Apenas o olho humano é imprimir material selecionado/editado zadas pelas gerações atuais e futuras. necessário para a sua leitura óptica. em processos mais permanentes.

A evolução da fotografia tem-se feito através do abandono de velhos processos •

A Algarviana Nós, de atalaia ao Sul, temos vindo a tentar desvendar os percursos dos pioneiros da fotografia, dos excursionistas, das casas fotográficas, dos modernos estúdios, dos editores de postais ilustrados das coleções particulares, dos álbuns de família e, à semelhança de Mário Lyster Franco, personalidade cimeira da cultura e da alma regionalista algarvia, que deu o primeiro grande passo para a fixação da primeira Algarviana – Subsídios para uma bibliografia do Algarve e dos autores algarvios (infelizmente não terminada por falta de apoios), parece-nos necessário que na nova era digital se garanta não apenas a preservação das imagens produzidas nesta região, mas sobretudo dar-lhes visibi-

lidade, fomentar o debate e a reflexão, agilizar o acesso público e interoperar com os múltiplos acervos fotográficos digitalizados ou em processo de desmaterizalização existentes no país. Aquilo que poder-se-ia chamar de “Algarviana Fotográfica”, um portal que permitisse o acesso aos acervos de imagens fotográficas e respetivos metadados que revelassem uma parcela da história do Algarve através das evidências fotográficas, dos últimos 140 anos. Talvez um pouco mais do que concretizar alguns dos princípios enunciados na Carta da UNESCO para a conservação do património digital (2003), ou tão-só seguir os mais recentes exemplos que são a “Brasiliana Fotográfica” ou a “Europeana Collections-Photography”. l


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CULTURA • SUL

7 de Dezembro de 2018

REFLEXÕES SOBRE URBANISMO •••

Urbanismo e edifícios devolutos Fotos d.r.

Teresa Correia

Arquitecta / urbanista arq.teresa.correia@gmail.com

Os núcleos históricos e os devolutos Os edifícios devolutos são um problema social e urbanístico que exige atenção e o tratamento adequado por parte do Estado e Autarquias. Este tema tem sido muitas vezes tratado com aplicação de penalizações de IMI, ao triplo, que neste momento está a alargar a um conceito de aplicação por regra e de forma indiscriminada. Os núcleos históricos e as ARU's deixaram de ter uma importância como foco de atenção desta medida, para vir a ser considerada a sua aplicação tendencial a todo um município. A questão que está por detrás deste pensamento será a de aplicar a igualdade de tratamento, para situações iguais, no entanto, revela-se, na minha opinião, um pouco excessiva, a aplicação desta medida em espaços peri-urbanas, ou em casos de espaço rural, por exemplo. O urbanismo por definição olha para o território e cria visões, escalas e intencionalidades. A atitude de um urbanista é possuída sempre de um propósito, ou seja, sempre que é aplicada uma medida, deverá existir um interesse público forte, como seja, uma vontade de reabilitar ou regenerar os nossos centros históricos. Estender uma medida de penalização a todos os devolutos de um município, de forma ampla, generalizada, parece ser despido de intencionalidade, porque não hierarquiza, ou não distingue os territórios nas suas diferentes funções e usos. A aplicação de penalidades deverá ser equilibrada por um diálogo frutuoso entre as famílias e os particulares e as autarquias, numa ótica de encontrar soluções financeiras ou mesmo de projeto, por forma a resolver questões particulares afetas a cada caso. Nesta ótica, o Estado deu um passo importante, mas que no Algarve tem sido pouco utilizado, o recurso ao IFFRU, com base em Fundos Europeus específicos para Reabilitação, que é um instrumento importante para o financiamento destas ope-

O urbanismo olha para o território e cria visões, escalas e intencionalidades •

rações. É vantajoso, em juros e no procedimento, mas ainda assim, talvez por falta de informação ou de esclarecimento, parece ser de difícil aplicação no Algarve. Os devolutos ao longo do tempo Os devolutos são edifícios ou frações que estão em estado de abandono, ou fechadas, sem consumos de água ou electricidade, e sem qualquer arrendamento, há mais de um ano. Estes indícios poderão ser enganadores, sendo importante, na fase de identificação dos mesmos, realizar vistorias, ou entender quais os motivos que levaram a esta situação. A adequação da realidade de cada caso ao espírito da legislação exige sensibilidade e rigor na verificação. As razões que estão por detrás deste fenómeno das cidades, os devolutos, iniciou-se com base na política de congelamento das rendas, o qual tornou praticamente inexistente a entrada de novas habitações para o arrendamento. Nos anos 80 e 90, com a vantagem do crédito bancário e a possibilidade

de aquisição de habitação própria, a solução de uma família no que diz respeito à habitação era a compra. Com a crise do setor de construção, tudo deprimiu, incluindo a reabilitação urbana. Tudo parou significativamente. Com o retomar de alguns sinais de vitalidade da economia, com o aumento do Turismo, e a virtude do Alojamento Local desburocratizado, a reabilitação urbana renasce. Bem ou mal executadas, as obras nos Centros Históricos proliferam, sobretudo em edifícios que se encontravam vazios, sem ocupação. Em Faro, parte dos devolutos nas ARU´s deixaram de existir, pelo grande potencial económico que estes locais representam. Esta nova economia é importante para os pequenos empresários, e para acolher os turistas que procuram alojamento a preços razoáveis. A habitação como uma necessidade imperiosa Hoje, coloca-se um desafio importante: criar disponibilidade de habitação permanente nos nossos núcleos históricos, decorrente de reabilitação

dos edifícios devolutos. Para tal, o empresário é inteligente e se existir mais rentabilidade noutras atividades, será preferível ir para outros setores. Importa, assim, o Estado ou as Autarquias perceberem a lógica, e atribuírem as vantagens fiscais e os estímulos que façam balançar de forma favorável o mercado para a criação de mais habitações. Este grande desafio que é a criação de habitação para as pessoas que vivam ou trabalham na cidade, é fundamental para a sociedade no seu todo, sendo que a intervenção do Estado tarda ou é escassa. A sua vocação centra-se na habitação social ou a custos controlados, não tendo grande intervenção no global do mercado de habitação.

O urbanismo é uma arte que poderá atribuir o papel de reforço de áreas residenciais a determinadas zonas e de outras de regeneração urbana de usos mistos, criando vantagens para a habitação, caso haja uma vontade estratégica de dinamizar este setor. l


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