Cultura.Sul 126 12ABR2019

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Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o

ABRIL 2019 n.º 126 7.520 EXEMPLARES

www.issuu.com/postaldoalgarve

MISSÃO CULTURA •••

O apagar da chama fotos: d.r.

Ficha técnica Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus • Espaço ALFA: Raúl Grade |Coelho • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ao Património: Isabel Soares • Filosofia dia-a-dia: Maria João Neves • Letras e literatura: Paulo Serra • Missão Cultura: Direção Regional de Cultura do Algarve • Reflexões sobre urbanismo: Teresa Correia Colaboradores desta edição : Brígida Baptista, Sérgio Marques Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/ postaldoalgarve FB: www.facebook.com/ postaldoalgarve/ Tiragem: 7.520 exemplares

Direção Regional de Cultura do Algarve

Inaugurada há 75 anos, a Industrial Farense, L.da encerra o seu espaço na cidade de Faro para se transferir para os arredores. As novas instalações permitirão, a uma indústria quase centenária, fazer frente aos desafios do século XXI, numa região em que a palavra indústria se associa, sobretudo, ao Turismo. Refletir sobre o património industrial é o desafio lançado pela Direção Regional de Cultura do Algarve no mês em que a história desta indústria de transformação da semente de alfarroba se reformula. O progresso não pode ser interrompido, mas é necessário registar o legado de um passado ainda tão presente, valorizando a indústria como património, com os testemunhos dos modos de fazer tradicionais, ainda que industriais. O pouco distanciamento temporal faz com que estes espaços/edifícios estejam muito presentes no nosso dia-a-dia, impedindo-os de ganhar dimensão enquanto espaços de memória, sendo que a preocupação em proteger e estudar o património industrial é relativamente recente. Na maioria das vezes, ocupam edifícios de arquitetura funcional que dificulta um olhar crítico que os valorize enquanto património. No entanto, estes espaços são uma herança cultural que, no mínimo, vale a pena registar para mais tarde recordar: a arquitetura, o modo como o espaço se organiza, a simplicidade ou não da forma dando resposta a uma função, o saber fazer, os processos de produção, a maquinaria utilizada, a vivência do espaço, são testemunhos muito distantes da motivação generalizada de associar património a história (passado) ou beleza (arte). Importante, também, é salvaguardar as memórias da matéria-prima e da mão-de-obra que lhes dão vida: seria restritivo pensar estes edifícios como “casas” vazias. Para muitos representam, mesmo, o espaço onde passaram grande parte da sua vida, lugares de memórias.

Ilustração 1 – @ Lenea Andrade • O património material, imaterial e, mesmo, natural da Industrial Farense, L.da congrega todos estes olhares: material (construído, industrial), imaterial (o saber fazer e a própria

história da recolha da matéria prima) e o natural (todo o espaço em que a alfarrobeira se implanta na paisagem algarvia onde as culturas de sequeiro são ainda relevantes). l

Ilustração 3 - @ Cristina Fé Santos •


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LETRAS E LEITURAS •••

Uma Questão de Conveniência, de Sayaka Murata que é a loja, sinto a manhã fluir com normalidade. Do lado de fora dos vidros reluzentes e sem uma única dedada, vejo as pessoas caminharem apressadas. Mais um dia que começa. É esta a hora a que o mundo acorda e todas as suas engrenagens se põem a girar. Também eu estou em movimento, como uma dessas engrenagens. Sou uma peça no mecanismo do mundo, a rodar dentro desta manhã.» (p. 12)

Paulo Serra

Se na obra A Vegetariana, da autora coreana Han Kang, a personagem começa pelo vegetarianismo para depois passar a querer anular-se enquanto mulher ou ser humano e transformar-se numa árvore, numa fuga ao real e numa oposição aos valores da sociedade contemporânea, neste romance de Sayaka Murata, Uma Questão de Conveniência, a protagonista é vista como estranha, mediante os padrões da sociedade dita normal, por levar uma vida pacata, simples e regrada, como empregada de uma loja de conveniência. Keiko tem 36 anos de idade, trabalha nessa loja há 18 anos, há 157.800 horas desde a sua primeira manhã, quando a loja abriu ao público, e não aspira a mais nada, para grande desconcerto da família e dos amigos, que também nunca lhe conheceram um namorado. «Dentro da pequena caixa iluminada

fotos: d.r.

Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

Aquilo que em A Metamorfose, de Kafka, se prende com a diferença e com o desconcerto do mundo, é aqui vertido em desejo de ordem e normalidade. A loja de conveniência é como um aquário a partir do qual se avista o mundo exterior, mas sem nele se

fundir, onde tudo é fácil de gerir, em gestos de autómato, que pretendem servir o outro, e o consumismo, pois o outro é aqui um cliente, que apenas está de passagem, a comprar algum bem descartável para uma necessidade imediata, seja um chocolate, um bolinho de arroz, ou uma bebida em lata. «A campainha que avisa quando alguém entra na loja de conveniência ressoa nos meus ouvidos como o sino de uma igreja. É a certeza de que, sempre que eu abrir a porta, esta caixa envidraçada e iluminada estará à minha espera. Um mundo necessário, sólido e constante, que nunca para de funcionar. Tenho fé no mundo que há dentro desta caixa repleta de luz.» (p. 38) O romance ganha contornos de alegoria dos tempos modernos, de uma vida anódina, em que multidões se confundem num único indivíduo, e os estereótipos abolem a singularidade de cada um, numa escrita que ganhava mais, há que dizer, em ser menos autoexplicativa, enquanto aborda temas como o papel das mulheres na sociedade, a maternidade/paternidade, a assexualidade ou o celibato voluntário. «O padrão do mundo é rígido e os corpos estranhos são eliminados sem alarde. Os seres humanos fora do padrão acabam por ser ajustados e corrigidos.» (p. 83)

A vida é portanto feita de uma cadeia de expectativas a que temos de corresponder, sob risco de sermos alienados ou excluídos: «As pessoas continuam a meter-se nas nossas vidas mesmo depois de nos casarmos. Se não estivermos de algum modo a contribuir para a sociedade, mandam-nos procurar emprego. Se arranjamos emprego, querem que ganhemos bem. Se já estamos a ganhar bem, mandam-nos arranjar uma mulher e filhos... Somos toda a vida avaliados.» (p. 90)

A certa altura, Keiko aprende a defender-se, copiando os modelos das colegas, arrastando a voz, imitando-

-lhes a roupa e os acessórios, quase se confundindo com elas, mas não deixa de ser vista como alguém que vive de forma estranha. Até que ao conhecer um colega contestatário, inapto para funcionário da loja, e que passa a aproveitar-se de Keiko como um parasita, a jovem, na verdade já uma mulher, sente finalmente que a normalidade tão desejada pelos outros para si pode agora ser alcançada na sua vida, mesmo que isso implique abdicar daquilo que dá sentido à sua existência. Uma Questão de Conveniência, publicado pela Dom Quixote, venceu o prémio Akutagawa e foi traduzido em mais de vinte países. Publicado em 2016, a edição portuguesa foi adaptada a partir da tradução brasileira feita por Rita Kohl, tradutora do japonês formada em Letras pela Universidade de São Paulo, com mestrado em Literatura Comparada pela Universidade de Tóquio. Sayaka Murata nasceu em Inzai, no Japão, em 1979. É uma das vozes mais originais da ficção contemporânea japonesa, e uma das mais mediáticas romancistas da actualidade, escreveu para a revista Granta e foi nomeada Mulher do Ano pela revista Vogue japonesa em 2016. Trabalha a tempo parcial numa loja de conveniência, na cidade de Tóquio, alegando que a observação do quotidiano das pessoas que frequentam a loja é inspiradora para a sua obra.

Comportamento, A biologia humana no nosso melhor e pior, de Robert M. Sapolsky O livro Comportamento – A biologia humana no nosso melhor e pior não é propriamente recente, pois foi publicado em Outubro do ano passado, pela Temas e Debates, mas será certamente intemporal, até que algum estudo mais completo o possa complementar. Procurando responder à questão «Porque fazemos o que fazemos?», e recorrendo ao resultado de mais de uma década de trabalho, Robert Sapolsky tenta responder a esta pergunta centrando-se, sobretudo, no «conjunto confuso de sentimentos e pensamentos sobre violência, agressividade e competição» que a maioria dos seres humanos carrega (p. 10). «Pondo as coisas de forma mais óbvia, a nossa espécie tem problemas com a violência. Possuímos os meios para criar milhares de cogumelos atómicos; chuveiros e sistemas de

ventilação subterrânea já disseminaram gases venenosos, cartas levaram anthrax, aviões de passageiros foram transformados em armas; violações em massa podem constituir uma estratégia militar; bombas explodem em mercados, crianças com armas massacram outras crianças; há bairros onde todos, dos que entregam pizas aos bombeiros, temem pela sua segurança. E há as formas mais subtis de violência: digamos, uma infância inteira de abusos, ou as consequências para uma população minoritária quando os símbolos da maioria exalam dominação e ameaça. Estamos sempre à sombra do perigo de ter outros seres humanos a magoar-nos.» (p. 10-11) Mas o problema e o ponto central deste livro é que ao contrário de outros flagelos que a Humanidade procura erradicar do Mundo, como

doenças crónicas, ou aquecimento global, ou meteoros, a violência não parece preocupar ninguém: «Odiamos e tememos o tipo errado de violência, aquela que ocorre no contexto errado. Porque a violência no contexto certo é diferente. Pagamos bom dinheiro para vê-la num estádio, ensinamos os nossos filhos a responder-lhe e orgulhamo-nos quando, numa meia-idade já meio decrépita, conseguimos atingir o adversário com um desonesto golpe de cintura durante um jogo de básquete de fim de semana.» (p. 11) Com irreverência e sentido de humor, suficientes para amenizar uma leitura de um livro que se estende por quase 900 páginas, e daí o seu pedido recorrente ao leitor “para que não mude de canal”, Sapolsky procura contar a história do comportamento humano por etapas, recuando no tempo: «Um comportamento acaba de ocorrer. Porque ocorreu?» (p. 14) Neurobiólogo – aquele que estuda o cérebro – e primatologista – aquele que estuda macacos de todo o tipo –,

o autor começa por analisar o que se passou no cérebro da pessoa um segundo antes de o comportamento se manifestar, recuando consecutivamente: segundos a minutos antes, horas a dias antes, dias a meses antes, recua à adolescência do sujeito, ao berço, ao útero, ao óvulo fertilizado, até chegar aos séculos e milénios antes que testemunharam o início da espécie humana e o nosso legado evolucionista. A primeira categoria de explicação é neurobiológica mas Sapolsky adopta uma visão holística, multidisciplinar, consciente de que não é possível explicar o comportamento humano sem ir além da neurobiologia e da endocrinologia. «Portanto, algumas vezes, o desafio intelectual é compreender o quanto somos semelhantes a animais de outras espécies. Noutros casos, o desafio é reconhecer como, apesar de a fisiologia humana manter semelhanças com a de outras espécies, nós a utilizamos de maneiras diferentes.» (p. 19) Explora-se neste livro a biologia da violência, da agressividade e da

competição, analisando os comportamentos e os impulsos que as motivam, mas este é também um tratado de psicologia sobre como as pessoas são ainda capazes de cooperação, afiliação, reconciliação, empatia e altruísmo: «procuraremos entender o virtuosismo com que nós, seres humanos, nos agredimos ou cuidamos uns dos outros, e o quão interligada é a biologia de ambos.» (p. 21) Diz ainda o autor na Introdução que «às vezes a única forma de entender a condição humana é levar em conta apenas os seres humanos, pois as coisas que fazemos são únicas. Enquanto poucas outras espécies pratiquem o sexo não reprodutivo, nós somos os únicos que depois conversamos sobre como foi.» (p. 19) Robert M. Sapolsky é autor de várias obras de não-ficção, como A Primate’s Memoir, The Trouble with Testosterone e Why Zebras Don’t Get Ulcers. É professor de Biologia e Neurologia na Universidade de Stanford e foi premiado pela MacArthur Foundation. l


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ARTES VISUAIS •••

Pode a arte contribuir para a paz? fotos: d.r.

Saul Neves de Jesus

Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; https://saul2017.wixsite.com/artes

Obra “PAZ é o caminho (Homenagem a Gandhi)”, de Saul de Jesus (2018) • Vivemos numa sociedade cada vez mais caracterizada pela violência, entre países, entre gerações, entre géneros, etc. Há quem diga que sempre houve violência ou guerras na história da humanidade, pelo poder, pela conquista de espaço, pelo desejo de posse, mas o problema adicional é que os meios usados são cada vez mais mortíferos, atingindo muitos inocentes. Esta é uma questão central quando pensamos o futuro da humanidade.

Tal como as questões ambientais, as questões ligadas à paz, em particular, são fundamentais para podermos pensar na vida no nosso planeta a médio/longo prazo. Foi nesse pressuposto que o “Conselho Português para a Paz e Cooperação” fez uma petição “pela assinatura por parte de Portugal do tratado de proibição de armas nucleares – Pela paz, pela segurança, pelo futuro da humanidade!”. De entre as várias iniciativas que tem vindo a realizar, este Conselho, em colaboração com a “Peace and Art Society”, desde final de 2018, tem organizado várias exposições no Algarve, intituladas “Artistas pela Paz”. Tendo sido convidado a participar, realizei a obra “PAZ é o caminho (Homenagem a Gandhi)” (2018). Na tela fiz um desenho que pode ser percebido como uma pomba, símbolo da paz, ou como uma mão, sendo colocados os dois dedos numa expressão de vitória. Desta forma procurei salientar a importância da vitória da PAZ para a sobrevivência da espécie humana. Na tela também aparece escrita a palavra PAZ, a qual liga duas hipóteses: a de sobrevivência e a de não sobrevivência, em função do caminho que for seguido no futuro. A hipótese de não sobrevivência é ilustrada na parte de baixo da tela, através da imagem de uma obra que realizei anteriormente (“O império das formigas que aprenderam a falar chinês”; 2011), em que é expressa a possibilidade da espécie humana poder ser extinta, nomeadamente devido a uma guerra nuclear, sendo colocada a hipótese de as formigas virem a ser a espécie mais desenvolvida do planeta. Para que tal não aconteça e a espécie humana sobreviva será então fundamental a PAZ, pelo que aparece na parte de cima da tela uma adaptação da afirmação de Mahatma Gandhi: “Não há um caminho para a paz. A paz é o caminho”. Gandhi liderou o movimento da independência da Índia através do princípio da não agressão ou forma não violenta de protesto (Satyagraha), sendo um dos melhores exemplos, na história da humanidade, de uma vida em prol da paz. Este é um assunto que me tem preocupado nos últimos anos, tendo em 2010 realizado uma outra obra intitulada “Grito de sangue em atentado

terrorista” (2010), com as dimensões de 4,00m x 2,10m. Considero que a arte visual talvez possa ajudar a parar no tempo e a refletir, de forma a que não se repitam no futuro os erros do passado. A história é feita de acontecimentos marcantes, uns bons e outros maus, podendo a arte visual ajudar a manter vivas no presente as memórias do passado, ajudando a construir os caminhos do futuro. As guerras destacam-se de entre os acontecimentos marcantes na história de qualquer povo, havendo obras de arte que ajudam a compreender o que aconteceu em determinados períodos da história. Uma das obras de arte mais conhecidas que procura expressar o horror da guerra é a pintura “Guernica”, de Picasso, com a dimensão de 3,49m x 7,77m, exposta no Museu Reina Sofia, em Madrid. Esta é uma das principais obras de Picasso, constituindo uma “declaração de guerra contra a guerra e um manifesto contra a violência”, segundo alguns autores. Esta obra foi feita em 1937, sobre a Guerra Civil de Espanha, tendo ou-

Imagem da exposição “Artistas pela Paz” (Vila Real de Santo António, 2019) •

Aviões negros”, de Horacio Ferrer, e “Aidez l’Espagne” (“Ajudem a Espanha”), de Miró. Na atualidade, destaco os trabalhos de Banksy em graffitis que podemos encontrar em ruas, pontes e muros de diversas cidades do mundo. Em particular, há um ano e meio, Banksy abriu o Hotel Wa l l e d - O f f, considerado aquele com “pior vista do mundo”, pois situa-se em frente ao muro de Israel na Cisjordânia, que constitui uma das materializações mais emblemáticas do conflito entre israelenses e palestinos. E este muro é a vista que os nove quartos deste hotel possuem. Além disso, a deLogo das exposições “Artistas pela Paz” • coração dos quartos alertros artistas realizado, no mesmo ano, ta para este conflito, havendo, por obras que expressam a necessidade exemplo, por cima de uma das camas, de acabar com a guerra e de promover um graffiti de uma guerra de travesa paz. Por exemplo, “Madrid 1937 seiros entre um soldado israelense e

um manifestante palestino. Desta forma, a arte contribui como instrumento de crítica social e política, procurando influenciar valores sociais e decisões políticas. A arte pode inserir-se num movimento de “educação para a paz”, nesta sociedade em que é cada vez mais importante educar para princípios éticos universais e para valores humanistas, como sejam a honestidade e o respeito pelos outros. PAZ é a palavra que mais vezes aparece nos dias a comemorar ao longo do ano. Assim, temos o Dia Mundial da Paz (1 de janeiro), o Dia Escolar da Não Violência e da Paz (30 de janeiro), o Dia Internacional do Desporto ao Serviço do Desenvolvimento e da Paz (6 de abril), o Dia Internacional dos Soldados da Paz das Nações Unidas (29 de maio), o Dia Internacional da Paz (21 de setembro), o Dia dos Jornalistas Pela Paz (27 de outubro) e o Dia Mundial da Ciência pela Paz e pelo Desenvolvimento (10 de novembro). Mas, para além de todas estas manifestações a favor da paz, considero importante destacar uma outra faceta neste processo que diz respeito à paz consigo próprio, ao desenvolvimento da espiritualidade, pois só em paz consigo mesmo é que o ser humano consegue estar em paz com os outros. A paz está em cada um de nós e é fundamental que cada um de nós a encontre com equilíbrio, serenidade e alegria! Já agora, a arte pode ajudar... l

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REFLEXÕES SOBRE URBANISMO •••

O ordenamento do território e a energia d.r.

Tudo isto são recursos já conhecidos, mas pouco implementados, o que nos leva a questionar sobre qual o propósito do investimento público, que não existe ou escasseia.

Ações simbólicas Teresa Correia

Arquitecta / urbanista arq.teresa.correia@gmail.com

Preparar os territórios para uma crise energética O consumo de energia eléctrica em Portugal cresce de dia para dia, acompanhando o mundo dito civilizado. A produção interna, sendo inferior ao consumo, torna o país dependente do seu exterior no fornecimento da mesma. Em termos agrícolas ou até industriais, o produto energético mais utilizado ainda se baseia nos combustíveis fósseis por serem mais acessíveis ou até mais cómodos na sua utilização. Quais os desígnios que temos para melhorar a nossa independência energética, e quais os impactos ambientais que realmente temos capacidade ou queremos suportar? Os governos, embora possam es-

O sol é uma fonte inesgotável de energia que no Algarve poderia ser aproveitada a uma escala muito superior •

tar estimulados para o carro eléctrico, não criaram o estímulo à produção de micro-instalações locais, com uma proximidade entre o produtor e o consumidor, melhorando os seus incentivos para a sustentabilidade energética. Seria assim de integrar as instalações de painéis fotovoltaicos nos edifícios habitacionais, criando um espaço mais amigável à conexão com a rede geral de electricidade. Mas os interesses eventualmente das grandes poderosas da energia, nomeadamente da sua distribuição, poderão não aconselhar tal independência. Esses gigantes, que neste

momento já estão nas mãos de entidades estrangeiras, com objetivos um pouco mais afastados que os interesses nacionais.

Os recursos naturais ao nosso dispor Escusado será referir que o sol é uma fonte inesgotável de energia, a qual no país e no Algarve, em especial, poderia ser aproveitada a uma escala muito superior. A energia solar é a mais natural das nossas fontes energéticas, pelo que a experiência piloto em zonas mais isoladas, como

a Ilha da Culatra, faz todo o sentido. Para além desta, temos também os nossos rios e ribeiras, que poderão ser também utilizados como fonte energética pela construção de barragens que em tempos de seca ou de extremos climáticos constituem reservas importantíssimas. O mar e a Universidade do Algarve, com essa imensidão de energia, seria uma ótima aliança no campo das energias, faltando apenas o impulso e o investimento para dar o passo em frente na concretização da produção de energia elétrica a partir do movimento das ondas.

Remete-se, pois, para o simbólico, como a Hora do Planeta, na qual no meu tempo de executivo se desligaram algumas praças e monumentos, numa forma de chamada de atenção para o problema energético. Esta semana, mais uma vez, ocorreu por todas as cidades do mundo, existindo um cada vez maior número de aderentes. Outra ação simbólica, foi a colocação de um veículo eléctrico de transporte de passageiros na Rede Próximo, em Faro, o que é apenas mais um sinal positivo. Porém, seria ainda mais positivo passarmos a construir consciências mais abertas e criarmos políticas assertivas de ambiente, sem meras retóricas, construtivas do ponto de vista até fiscal, para a criação de melhorias nas nossas habitações. As questões energéticas são vitais para o funcionamento de um país, não devendo ser apenas reparos pontuais, mas objeto de uma discussão séria e madura. l

ESPAÇO AGECAL •••

A arqueologia fluvial e marítima do Algarve

Brígida Baptista

Arqueológa náutica e subaquática

A posição privilegiada da costa algarvia virada ao Atlântico, proporcionou desde a Antiguidade condições ideais à implantação de povos, que a partir do litoral se expandiram pelo território. A sua distinta paisagem cultural marítima, com um barlavento de arribas recortadas e um sotavento de ilhas-barreiras, deu ao Algarve um papel crucial como zona de passagem e confluência de povos numa ligação entre o Atlântico e o Mediterrâneo. Ao longo da costa implantaram-se, desde a Pré-História, povos que construíram importantes complexos portuários, marítimos e fluviais, dan-

do origem a algumas das importantes vilas e cidades, tanto do barlavento algarvio, como Sagres/Vila do Bispo, Lagos, Portimão e Silves, como do sotavento, de que são exemplo Loulé, Quarteira, Faro, Olhão, Tavira, Cacela, Vila Real de Santo António, Castro Marim e Alcoutim. A arqueologia em meio terrestre tem contribuído para o conhecimento da história destas cidades, porém exclui-se muitas vezes a ligação destes espaços com a sua envolvente marítima e no papel que as “estradas líquidas” tiveram no desenvolvimento destes territórios. O contributo da arqueologia náutica e subaquática é neste sentido crucial para este conhecimento. Contudo, é ainda reduzido o número de estudos e de investigadores debruçados sobre a história marítima e fluvial do Algarve. Os primeiros trabalhos de arqueologia náutica e subaquática no Algarve iniciaram-se na década de 80 do século XX, com uma equipa do Museu Nacional de Arqueologia, em Salema, Vila do Bispo, com as primeiras intervenções no sítio de

naufrágio do L’Ocean, um navio-almirante francês naufragado em 1759. Em 1993, foi criado neste mesmo sítio o primeiro Itinerário Arqueológico Subaquático português que permitiu o usufruto pela visita dos mergulhadores desportivos ao local. Já ao nível da identificação de sítios arqueológicos, a partir de 1995 o IPPC e o Museu Nacional de Arqueologia iniciam a constituição do primeiro esboço da Carta Arqueológica Subaquática portuguesa (1999) com a criação do Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática (CNANS), fazendo aumentar o número de sítios identificados ao longo de toda a costa algarvia. Esse número ascende hoje a cerca de duas centenas de registos de vestígios, entre naufrágios, achados fortuitos, espólio e referências históricas. Porém, existe uma significativa discrepância entre os sítios identificados na região do sotavento e os identificados a barlavento, este último com um número superior de vestígios identificados. Destacando-se assim os concelhos de Vila do

Bispo, Lagos e Portimão. O rio Arade, a barlavento, é uma das zonas mais estudadas, com grande destaque para o seu antigo complexo portuário do Algarve. A investigação e os trabalhos arqueológicos subaquáticos nesta zona têm sido quase em contínuo desde as primeiras ocorrências arqueológicas registadas na década de 70 do século XX até aos dias de hoje. É neste estuário que decorre o único projeto de investigação registado de arqueologia náutica e subaquática no Algarve pelo CHAM (Centro de Humanidades) da Universidade Nova de Lisboa intitulado "Um complexo portuário milenar no Barlavento Algarvio: a arqueologia do estuário do rio Arade". Outros importantes exemplos são o de Quarteira Submersa (1999) e a Carta Arqueológica Subaquática do Concelho de Lagos (2006-2010). No sotavento, esta arqueologia traduz-se em achados fortuitos recolhidos a grandes profundidades por pescadores, estando os trabalhos científicos quase exclusivamente ligadas a ações de salvaguarda patrimonial, prévios

às obras portuárias, o que raramente se traduz em investigações ou publicações científicas. Para além do património cultural marítimo e subaquático, não devemos descurar, no âmbito do património cultural marítimo, o que está ligado às vivências das comunidades ribeirinhas e ao património imaterial. Neste imenso potencial de herança cultural, é importante fomentar não só a ligação da comunidade científica com as comunidades piscatórias, como fomentar o diálogo, a troca de informação e a valorização histórico-patrimonial dessas mesmas comunidades. E porque, só conhecendo podemos valorizar e proteger o que conhecemos ,consideramos ser crucial que haja mais interesse dos investigadores sobre os temas do mar. São hoje de fomentar os estudos multidisciplinares que podem de algum modo contribuir para uma melhor reconstrução da paisagem marítima algarvia e conhecimento da importante herança cultural e patrimonial marítima do Algarve. l


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MARCA D'ÁGUA •••

Maria de Lourdes Pintasilgo: Cuidar o futuro através de uma nova cultura política d.r.

Maria Luísa Francisco Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

luisa.algarve@gmail.com

Maria de Lourdes Pintasilgo (19302004) formou-se em Engenharia Química no Instituto Superior Técnico e foi dirigente eclesial e política. Foi a única mulher que desempenhou o cargo de primeira-ministra em Portugal, tendo liderado o V Governo Constitucional, de 31 de Julho de 1979 a 3 de Janeiro de 1980. A sua dimensão de católica era indissociável dos seus empenhamentos sociais, sendo o horizonte da justiça a sua ambição política. Em 1957 fundou em Portugal o movimento internacional de inspiração cristã designado por Graal. Entre 1964 e 1969, enquanto vice-presidente internacional do Graal, foi coordenadora de programas de formação e de projectos-piloto no domínio da emancipação da mulher, do desenvolvimento, da acção sociocultural e da evangelização. Entre os muitos lugares que desempenhou internacionalmente, foi embaixadora de Portugal junto da UNESCO e eurodeputada. Foi convidada (anos 90) para presidir à Comissão Independente sobre a População e Qualidade de Vida, no âmbito da ONU,

tendo escrito o prefácio do Relatório dessa Comissão designado: Cuidar o Futuro – Um programa radical para viver melhor. Este Relatório, publicado em português em 1998, é um livro de consciencialização, problematizando questões que ainda hoje continuam muito actuais, tal como a crise ambiental. Um Relatório "visionário". Foi um dos documentos de trabalho que escolhi para algumas cadeiras que leccionei no ensino superior. Chegou ao conhecimento de Maria de Lourdes Pintasilgo que uma jovem professora era entusiasta deste Relatório e o partilhava nas aulas. Segundo uma pessoa que lhe era próxima iria ser marcado um encontro para nos conhecermos. Infelizmente nesse Verão de 2004 Maria de Lourdes partiu e fiquei com imensa tristeza por não a ter conhecido pessoalmente. Continua a ser uma inspiração para mim, pela forma como se entregou às causas, pela fé e pelo exemplo de vida.

Cuidar o Futuro – para uma ética global O Relatório introduz a noção de cuidado na acção política. A partir deste conceito a antiga primeira-ministra portuguesa defendia algumas das ideias fundamentais do seu pensamento e também do trabalho da Comissão Independente para a População e Qualidade de Vida: a importância de um novo contrato social que envolva a sociedade civil; a necessidade de uma concepção da política que implique não apenas a liberdade, mas também a responsabilidade; um

Maria de Lourdes Pintasilgo continua a ser uma inspiração para Maria Luísa Francisco • novo conceito de educação e um papel mais relevante para as mulheres. Maria de Lourdes Pintasilgo contribuiu para que fosse dado um novo sentido ao cuidado, trazendo o conceito de cuidado para o espaço público e, segundo a professora e investigadora Fernanda Henriques (Uni. Évora), contribuiu para que o cuidado fosse a chave para a configuração de um novo paradigma para a política. A ética global está assente em dois pilares que estão interligados: o do cuidado e o da responsabilidade, que são para Maria de Lourdes Pintasilgo a base da acção humana. A integração destes dois pilares no seu pensamen-

to e acção revela a importância da filosofia na sua vida e a influência de Martin Heidegger e de Hans Jonas no seu percurso como pensadora. Essa coerência sente-se nas suas palavras enquanto candidata independente às eleições presidenciais em 1986: “Candidato-me porque a ética obriga a buscar caminhos para que aquilo que é tido como sendo o possível, se aproxime cada vez mais daquilo que é não só desejável mas imperiosamente necessário”. Para Maria de Lourdes Pintasilgo os governantes tinham a responsabilidade ético-política de contribuir para um futuro com Qualidade de

Vida, que conduzisse a uma humanização da política, onde o Outro fosse tratado como interlocutor válido na discussão política. O lema “cuidar o futuro” foi tão importante na sua vida, que o usou como título para o Relatório internacional acima referido e o usou como nome para a Fundação que criou e que gere e preserva o seu espólio. Em síntese, pode dizer-se que o lema “cuidar o futuro” resume a sua proposta de uma nova cultura política, de uma nova atitude ética ligada à capacidade de cuidar e à responsabilidade de construir um futuro melhor com uma existência mais digna e mais feliz. l


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ESPAÇO AO PATRIMÓNIO •••

Filmes parcialmente perdidos ou inacabados O Cinema como património – VIDEO LUCEM

Sérgio Marques

Programador e coordenador do Video Lucem

O trabalho de programação em cinema pode ser por vezes similar ao processo arqueológico. A partir de certas pistas podemos chegar a um território mais concreto, que nos abre caminhos e desperta possibilidades. Não obstante, trabalhamos numa escala temporal mais recente. O cinema nasce no final do séc. XIX, ou melhor, foi nessa altura que se descobriu como recolher e projetar as imagens em movimento. Inicialmente era uma atração apresentada como um número de circo, um ato mágico e até do domínio do oculto. Rapidamente começou a ser pensado como um meio de criação e difusão de conteúdos, tanto do ponto de vista artístico, como cumprindo uma missão mais direta de informação e até de propaganda de ideias e ideais. Para o trabalho de programador parece, portanto, mais fácil esta tarefa de pesquisa e de criação de um conceito que envolve filmes e criações, realizadas há pouco mais de um século. No entanto, a criatividade dos técnicos é infinita (tal como em todas as áreas artísticas) e o cinema passou por muitos processos técnicos, rápidos, e que criaram formas de acessibilidade e democratização a filmar, editar e contar uma história. Existe, por isso, para o programador um território, tão vasto como o planeta, no decurso de cem anos de produções,

onde poderá encontrar o que procura. Com a agravante de que, nas primeiras décadas desde o seu nascimento, não existiu especial preocupação com a preservação destes materiais fílmicos, muito sensíveis e facilmente inflamáveis. De ressalvar um pequeno parêntesis sobre uma nova iniciativa de alguns dos arquivos cinematográficos, que aparece há cerca de dez anos, com o intuito de angariar imagens em movimento, filmes, no boom das novas tecnologias e no momento em que a humanidade mais recolhe imagens, mais as arquiva e mais as difunde. A particularidade desta procura é que se focaliza nos filmes de família, filmes caseiros produzidos por não profissionais, desde os anos 40 até aos 90, por equipamentos técnicos não profissionais (super 8, VHS, dvcam, etc.), possíveis de ser adquiridos pelas famílias e que recolheram imagens de casamentos, baptizados, férias, momentos na rua. Essas imagens são agora objeto de estudo, por variadas razões, mas sobretudo pelo facto de encerrarem em si uma realidade histórica não manipulada, não inventada, a verdade real do quotidiano dos dias. Sem truques jornalísticos, sem adição de música para ajudar a criar a emoção, sem demagogias e, contudo, com muito pouca margem para a criação artística. Só o olhar de quem filma, verdadeiro amador, e que usa a câmara como instrumento registador de memórias. Video Lucem pretende apoiar e desenvolver atividades na época baixa do turismo Este lado mais puro, da recolha de imagens que tinham um fim meramente pessoal, num tempo em que as imagens não eram tão banalizadas

como no novo milénio, é a meu ver, o mais interessante desta pesquisa. Este texto é escrito do ponto de vista de um programador, de alguém que materializa uma ideia que quer partilhar numa programação de filmes. Que pondera porque o deve fazer e como trazer algo de novo com a ligação de objetos artísticos já fechados, os filmes. O momento em que alguém se encontra com um filme é um momento solene, importante e que pode trazer uma experiência única, uma revelação. O Video Lucem (do latim Vejo a Luz), programa do Cineclube de Faro inserido no âmbito do projeto de promoção cultural 365 Algarve, que pretende apoiar e desenvolver atividades na época baixa do turismo, foi o projeto onde fui convidado a pensar numa programação específica. Não sendo natural de Lisboa e tendo sempre presentes os desequilíbrios no investimento cultural fora do território da capital, a falta de equipamentos e de recursos humanos, bem como o défice de oferta cultural de qualidade assídua (que estabeleça a verdadeira dinâmica do usufruto dos bens culturais por todos), a missão principal seria criar algo novo que marcasse o território com originalidade. A ideia inicial seria apresentar cine-concertos com filmes mudos e colocar músicos improváveis a criar em direto uma banda sonora original, para cada um dos filmes selecionados. No processo de investigação e pesquisa dos filmes deparei-me com um filme “The River”, de Frank Borzage, realizado em 1928 nos Estados Unidos. O filme parcialmente perdido, estão desaparecidas algumas cenas, foi recuperado e nas partes em que não há cenas, existem uns cartões com texto que tentam revelar ao espectador a cena que deveria estar ali

e que não existe. Esta experiência de ser público, com momentos de liberdade de criação a meio do filme é nova, mesmo até avant-gard. Eu, público, decido a expressão que o ator faz quando recebe uma notícia inesperada. Decido o enquadramento, o que vejo ao fundo, a posição do corpo da atriz quando é beijada de rompante. Até decido os figurinos, o tipo de iluminação. O Eu público tem assim uma possibilidade, uma simulação, de ser Eu realizador. A partir deste filme a pesquisa do programador incide em filmes portugueses e estrangeiros que estão guardados em arquivos porque perderam o som, ou porque lhes faltam sequências, ou que nunca foram finalizados. As histórias que levaram a estes acontecimentos são elas próprias narrativas que mereciam ser transformadas em filmes. A partir das imagens existentes, filmadas, algumas mesmo montadas, e dos guiões originais dos filmes, foi preciso desafiar os artistas para este diálogo. Foram convidados compositores, músicos, cantores, atores e sonoplastas. Todos os nomes que foram surgindo aceitaram a proposta de imediato. “Ir ver um espetáculo é um encontro com aquilo que desconhecemos” No Video Lucem foram delineados seis cine-concertos-espetáculos em seis locais do Algarve, de Dezembro de 2018 a Maio de 2019. O programa termina com a apresentação do filme de Frank Borzage, filme que foi a génese desta ideia, acompanhado por piano e pela cantora Cristina Branco, em Tavira. Com a ligação ao Museu de Portimão, foi apresentado o filme “Heróis do Mar”, de Fernando Garcia, de

1949, que retrata a vida da pesca do bacalhau num registo dramático, com apontamentos cómicos (um dos atores principais é António Silva), na receita certa e eficaz do cinema produzido sobre o olhar do Estado Novo, com uma missão propagandística dos seus ideais. O desafio foi entregue à atriz e encenadora Flávia Gusmão que convidou a música e sonoplasta Madalena Palmeira para esta viagem de barco. A Flávia como comandante envolveu vários coletivos locais, identificados pela equipa da Câmara e do Museu de Portimão, e apresentou um resultado final, em criação coletiva. Muitas vezes os processos, quando gratificantes para os participantes, são mais importantes que o resultado final, mas neste caso particular, o resultado final foi uma criação emocionante e comovente para o público. O filme saiu do arquivo, esteve sempre presente, em palco, no seu suporte original - película 35 mm. O tempo de apresentação foi de duas horas na noite de 15 de Março de 2019. O que aconteceu em palco foi irrepetível – uma comandante e uma tripulação juntos no mesmo propósito, com um público a assistir e a perceber como se homenageia um filme esquecido num arquivo, uma vida de trabalho de homens e mulheres, uma ilusão que o cinema cria, um conjunto de náufragos. Uma viagem. Sobre o espetáculo em si nada posso escrever nem descrever. O Teatro e o Cinema têm dimensões que só podem ser explicadas no momento em que acontecem, para quem está presente. Em suma: ir ver um espetáculo é um encontro com aquilo que desconhecemos e que poderá, sem o sabermos, e inesperadamente, falar de nós. O filme já voltou para o arquivo e lá ficará guardado. l


CULTURA • SUL

12 de Abril de 2019

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FILOSOFIA DIA-A-DIA •••

Resgate do Feminino d.r.

Maria João Neves Ph.D Consultora Filosófica

De acordo com a origem etimológica, a palavra Abril vem do latim aprilis que significa abrir. Abrem-se as flores na Primavera, germinam as culturas e venera-se Afrodite, a deusa grega do amor e da beleza, nascida na espuma do mar. Longe vão os tempos em que as mulheres ficavam em casa nas lides domésticas, ou a cuidar dos filhos, e submissamente se sujeitavam aos maridos que proviam para a família. Um estudo da OCDE de Março de 2018 mostra que as mulheres portuguesas lideram o ranking das ciências, tecnologias e matemáticas. Com 57% Portugal está no topo da lista, é o país da organização com mais mulheres formadas nas áreas de ciências. Contudo, o estudo refere ainda que “a desigualdade de género continua a ser uma realidade na maioria dos países, em todas as áreas sócio-económicas, com mais mulheres a seguir estudos superiores mas tendo bastante menos oportunidades de carreira do que os homens e com as diferenças salariais entre géneros para o mesmo tipo de trabalho a persistirem”. Não hajam dúvidas! As mulheres

conquistaram imenso terreno, mas quanto tiveram que sacrificar para o conseguir? O modelo de racionalidade masculino, caracteriza-se por um poder metafísico forte, uma verdade ontológica una, fixa, inalterável à qual se pretende aceder. Numa sociedade patriarcal, as mulheres masculinizaram-se para poder triunfar. Sacrificámos a intuição, a flexibilidade, a criatividade, em prol da objectividade, da racionalidade e da eficiência. Onde nos levou tudo isto? Aristóteles refere na Metafísica os cinco pares de opostos que os Pitagóricos consideravam como os dez princípios do mundo: finito e infinito, ímpar e par, unidade e pluralidade, direito e esquerdo, masculino e feminino, quieto e em movimento, recto e curvo, luz e obscuridade, bom e mau, quadrado e oblongo. Como podemos verificar, enquanto o lado masculino é o lado bom, onde se encontra a unidade e a luz, características sempre associadas ao acontecimento da verdade; o lado feminino é o lado “mau”, obscuro e múltiple, onde só se pode encontrar engano e aparência. Platão na República condena os poetas expulsando-os, entre outras razões, por provocarem naqueles que lhes são sensíveis comportamentos indignos e típicos das mulheres, como chorar, lamentar-se, estar fora de si, emocionar-se e perder o autodomínio. Já Kant, em Observações sobre o Belo e o Sublime, mostra-se ofendido pelas capacidades intelectuais e conhecimentos de Mme du Châtelet,

por esta não se limitar a conversar nos salões da sociedade como faziam as outras senhoras, considerando então que deveria tentar deixar crescer a barba, “de forma a dar mais profundidade aos seus pensamentos”, uma vez que se comportava de uma forma tão masculina. Aos seus olhos resultava inconcebível que uma mulher discutisse mecânica, ou que dominasse o grego, “como se de um homem se tratasse”. Hoje em dia sabemos que todos os seres humanos possuem características de ambos os géneros. Do ponto de vista intelectual dir-se-ía que somos andróginos, capazes tanto de um uso masculino como de um uso feminino da razão. A predominância do exercício da razão masculina legou-nos um mundo desequilibrado. Finalmente demo-nos conta de que “o preço que há de pagar a razão em troca do seu poder é uma impressionante limitação dos objectos que podem ver-se e acerca dos quais se pode falar”, afirmam os filósofos Vattimo e Rovatti, coordenadores de uma série de ensaios sobre a razão feminina. Dizem-nos então que “a razão deve debilitar-se no seu próprio núcleo, deve ceder terreno, sem temor de retroceder à suposta zona de sombras, sem ficar paralisada por ter perdido o ponto de referência luminoso, único e estável, que um dia lhe conferiu Descartes”. Esta necessidade de alargamento dos horizontes para a zona de sombra implica uma radical mudança de atitude; a razão dominadora, activa por excelência, deve

Todos os seres humanos possuem características de ambos os géneros •

ceder lugar a uma razão mais passiva e acolhedora. Chantal Maillard no seu livro La Razón Estética propõe que pensemos sobre o par de opostos débil/forte a partir da teoria chinesa das mutações permitindo-nos assim olhar este par já não desde a sua situação de opostos, mas antes a partir de uma óptica de complementaridade. Segundo Maillard, o débil é o forte em flexibilidade, em porosidade, em abertura, em capacidade de adaptação; por sua vez, o forte, é débil nas características que acabam de enunciar-se. E tal como no símbolo chinês o branco-forte-masculino-yang, tem em si o gérmen do negro, também o negro tem em si o gérmen do branco. Tratando-se de um desenho, habituámo-nos a ver estas figuras fixas, ignorando que se trata de uma realidade em movimento. Na

verdade Ying e Yang estão continuamente a transformar-se um no outro, a dar lugar um ao outro. Tal como a encosta soalheira da montanha é a mesma encosta durante a noite, assim também Ying e Yang perpetuamente se metamorfoseiam. As plantas e os seres que habitam a montanha beneficiam tanto da “luz vivificante do dia como do poder regenerador da noite”. Que é feito desse lado feminino? Esse lado que cuida, que cura, que acolhe sem julgamento. Como desembrutecer este mundo dominado pela tirania da técnica? E se nos embrenhássemos na espuma sensual de Afrodite? E se ouvíssemos o coração e nos abríssemos à intuição?... É urgente resgatar o feminino que existe em todos nós! l Inscrições para o café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com

ESPAÇO ALFA •••

Vamos valorizar a arte fotográfica na região Vico Ughetto Eduardo Pinto

Vítor Azevedo ALFA - Associação Livre Fotógrafos do Algarve

O Prémio Melhor Programação Cultural Autárquica, atribuído pela SPA à Câmara Municipal de Faro, foi um bom contributo para a pretensão da autarquia a Capital da Europeia da Cultura 2027. Claro que para lá chegar será necessário desenvolver muito trabalho na área cultural, em parceria com

Fotografia de rua em destaque no Festival Internacional Latitudes 21 em Huelva. Março 2019 • muitas entidades, e particularmente com o associativismo local que traba-

lha em prol da cultura, da região e dos seus valores pessoais e patrimoniais.

Se em outras áreas culturais Faro tem crescido apresentando já uma significativa oferta, na área da fotografia Faro ainda não atingiu esse patamar. A ALFA - Associação Livre Fotógrafos do Algarve pretende pôr em prática um projeto que consiste num evento anual de grande dimensão e qualidade, na área da fotografia. Para isso será necessário um trabalho conjunto e que envolva entidades oficiais e apoios de empresas/mecenas, uma vez que será necessário cativar espaços, convidar fotógrafos reputados (a nível regional/nacional e se possível internacional, para conferências, tertúlias, workshops), organizar exposições fotográficas de dimensão e qualidade, passeios e visitas fotográficas na região, realizar um concurso

de fotografia para o evento. Será muito importante que a autarquia tenha um espaço ao ar livre onde possam ser expostas fotos em grande formato, impressas em material resistente à intempérie. Aqui fica o desafio para que esta antiga ambição da ALFA passe a realidade, engrandecendo a fotografia e a região, divulgando os nossos artistas e trazendo conhecimento e troca de informação na área da fotografia. l


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