Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o
JULHO 2019 n.º 129 9.405 EXEMPLARES
www.issuu.com/postaldoalgarve
MISSÃO CULTURA •••
Bela Cacela Ficha técnica
fotos d.r.
Projeto de Arqueologia em Cacela-a-Velha recomeçou em 2018 •
A pequena aldeia de Cacela-a-Velha, implantada sobre arriba costeira, domina uma vasta extensão de mar entre a foz do rio Guadiana e a cidade medieval de Tavira, integrada na zona marítima da bacia de Cádis. Encontra-se protegida das águas oceânicas pela península de Cacela, cordão arenoso estruturante do sistema lagunar da Ria Formosa. O conhecimento insuficiente sobre a história deste lugar gerou sempre inquietude nos investigadores. Por exemplo, o arqueólogo algarvio Estácio da Veiga escreveu em 1887 que «A outrora florescente vila de Cacela, hoje arrasada a ponto de não se conhecerem os antigos limites da sua grandeza, foi sucessora de mui anteriores populações, desde tempos remotíssimos, pois ali se acha largamente caracterizada a civilização neolítica, a romana e a árabe». Ou ainda Athaíde Oliveira em 1908 escrevia: «O que é feito de Hisn-Kastala, onde os mouros se faziam fortes, e de onde saíam contra os exércitos da cruz, espalhando o sangue dos seus inimigos à custa do seu próprio sangue?
O que é feito da Villa de Cacella dos primeiros séculos da Monarquia, onde por tantas vezes se levantaram sérias discussões entre os Mestres das Ordens e os bispos? Tudo desapareceu; e hoje sómente quem tenha o privilégio de conhecer a linguagem das ondas, pode, por seu intermédio, colher a verdadeira resposta». A Arqueologia em Cacela-a-Velha começou em 1989, tendo sido interrompida em 2007 e recomeçado com novo projecto de investigação em 2018. Este longo caminho percorrido, que permitiu compreender que, nos séculos XII-XIII, o castelo de Cacela sofreu amplas transformações no âmbito da política do califado almóada de fortificação dos territórios, concentração da população rural junto de núcleos fortificados
e reforço das povoações costeiras. Assim, a expansão do povoado foi orientada para o espaço extramuros, junto do provável porto situado na foz da ribeira. As escavações ar-
queológicas neste lugar denominado Poço Antigo revelaram um conjunto habitacional andaluz, abandonado no final do período almóada, primeira metade do século XIII. Após a conquista cristã de Cacela, cerca de 1238-1240, o Castelo transitou para a posse da Ordem de Santiago, que iniciou de imediato remodelações profundas na fortificação e na sua envolvente. Por exemplo, no sítio do Poço Antigo foi construída a primeira igreja de Cacela e instalado um cemitério que acolheu a primeira comunidade cristã daquela região. No interior do Castelo, as escavações arqueológicas puseram a descoberto a muralha original do período islâmico em taipa, compar-
Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus • Espaço ALFA: Raúl Grade |Coelho • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ao Património: Isabel Soares • Filosofia dia-a-dia: Maria João Neves • Letras e literatura: Paulo Serra • Missão Cultura: Direção Regional de Cultura do Algarve • Reflexões sobre urbanismo: Teresa Correia • Colaboradores desta edição: Eduardo Pinto e Catarina Oliveira Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/ postaldoalgarve FB: www.facebook.com/ postaldoalgarve/ Tiragem: 9.405 exemplares
timentos senhoriais denotando o uso prolongado no tempo e vários silos de grandes dimensões provavelmente entulhados no período da conquista cristã de Cacela, Foi possível também identificar a fortificação construída posteriormente em Cacela, incluindo uma das torres desenhadas pelo engenheiro italiano Massaii no século XVII. Através da Arqueologia, testemunha-se o impacto do terramoto de 1755, que desfez, por exemplo, o nivelamento de uma calçada de pedra. Assim se vai revelando a história deste lugar através da conjugação de todas as disciplinas que com a história partilham conhecimento, o rigor na observação dos detalhes e também, ouvir as ondas do mar. l
Direção Regional de Cultura do Algarve
16
5 de Julho de 2019
CULTURA • SUL
LETRAS E LEITURAS •••
Kudos, de Rachel Cusk
É uma mulher. É escritora. Vive em Londres. Divorciada. Mãe de dois filhos – com os quais parece só comunicar por telefone – que optaram recentemente por ir viver com o pai. Casada pela segunda vez. Chama-se Faye – como se descobre quando o seu nome é pronunciado uma única vez, no romance inteiro, perto do final. Está prestes a embarcar numa viagem de promoção da sua obra num festival de literatura na Europa. Kudos, publicado pela Relógio d’Água, encerra uma trilogia inicialmente publicada pela Quetzal, com A Contraluz (2017) e Trânsito (2018), e parece inclusive fechar o ciclo começado em A Contraluz, pois Faye encontra-se novamente num avião como no início do primeiro livro. Neste conjunto de obras a autora cria um novo dispositivo narrativo na sua obra, e inédito na ficção em geral, em que protagonista e narradora se esbatem
Há muito poucos momentos em que deixa entrever aquilo em que pensa É sintomática a entrevista que alguém intenta fazer-lhe, em que na verdade a entrevistada nunca fala de si... «Reparara, por exemplo, que muitas vezes era uma simples pergunta a provocar nas minhas per-
Há muito poucos momentos em que ela própria deixa entrever aquilo em que pensa, mas a sua capacidade de observação é sempre arguta, por vezes cáustica, como quando nos descreve o homem a seu lado no avião e que se prepara para lhe contar toda a sua vida: «Tinha quarenta e tal anos, um rosto que era ao mesmo tempo atraente e banal, e a indumentária limpa, bem engomada e neutra de um homem de negócios em fim de semana. (...) Irradiava uma virilidade anónima e ligeira m e n t e provisória, como um soldado de uniforme.» (p. 11).
.r .
Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL
sonagens proezas no domínio das revelações pessoais e que, como era óbvio, isso o fizera refletir sobre a sua profissão, que tinha como característica central fazer perguntas.» (p. 119) Inclusive quando observa os que com ela convivem, amigos, estranhos de passagem, colegas escritores, Faye não tece considerações, limitando-se a transcrever os seus diálogos, que mais se assemelham a monólogos, ainda que se perceba que lança perguntas que encaminham o ritmo dos solilóquios daqueles com que se cruza e através dos quais tece uma reflexão sobre os mais variados temas. Existem diversas situações em que os seus interlocutores são inclusive tratados como narradores e as suas histórias de vida como narrativas, pois como diz alguém: «as vidas das outras pessoas eram um drama que se desenrolava e que evoluía, passando por diferentes fases da existência, como uma telenovela prolongada» (p. 139). Mas Faye, ou Rachel Cusk, acaba por deixar pequenas indicações de leitura deste seu romance, se o leitor estiver atento, sempre pelo discurso de outrem: «Afirmou que esperava que eu estivesse de acordo com a sua avaliação, uma vez que deduzira da minha obra que, se eu tinha imaginação, tinha o bom senso de a manter oculta.» (p. 151).
sd to fo
Paulo Serra
até ser pouco mais do que um contorno a contraluz. Contudo o livro de Rachel Cusk é praticamente impossível de pousar, enquanto assistimos a um desfiar de histórias, sem filtro e sem juízos, sobre a família, a arte, a política, a crítica, a literatura, o futuro da Humanidade, o papel da mulher. Assim se tece uma nova forma de narrar, em que a protagonista, vista a contraluz, especialmente a partir do que os outros observam sobre ela, permanece muda em praticamente toda a narrativa. Apesar de se escrever que a obra da autora entretece autobiografia e ficção, quase nada é revelado sobre a personagem, apesar de ser ela também a narradora, e o que se regista sobre si é apenas factual. Quase sem voz, assim como sem corpo, a narradora mais parece uma confidente e que nunca opina, apenas coloca questões que conduzem a linearidade das histórias dos que a cercam.
Ragnarök – O Fim dos Deuses, de A. S. Byatt foto d.r.
A. S. Byatt é sobejamente conhecida pelo romance Possessão adaptado a filme •
A. S. Byatt nasceu em Yorkshire, em 1936, e em 1972 tornou-se professora de literatura inglesa e americana na University College em Londres. Tem poucas obras publicadas em Portugal mas é sobejamente conhecida pelo romance Possessão, vencedor do Booker Prize em 1990, publicado em 2010 pela Sextante, e adaptado a filme. Ragnarök – O Fim dos Deuses é mais um título a integrar a colecção de Mitos da Elsinore, originalmente publicada pela editora Canongate. Já aqui se apresentaram outros títulos desta colecção, como A Odisseia de
Penélope ou O Mel do Leão, de autores igualmente aclamados. São livros de capa dura, belamente ilustradas por Lorde Mantraste. A narrativa, a não confundir com um romance, é contada a partir da perspectiva de uma «criança magra», cujo sexo nunca é designado, que devora histórias com grande avidez, durante a noite com uma lanterna sob os lençóis, e que descobre dois livros que a marcam particularmente, Asgard e os Deuses e O Caminho do Peregrino. É a partir dessas histórias que nasce em si o desejo de escrever, num mundo ele próprio
perto do fim, quando as bombas da Blitz arrasam a cidade de Londres, e o pai da criança desapareceu. São estes os elementos de Ragnarök que se percebem autobiográficos, enquanto a autora recria de forma poética os mitos nórdicos do Crepúsculo dos Deuses – como em Wagner – e cria um paralelismo entre esse fim dos tempos e a destruição dos recursos do planeta pelo homem. O livro, originalmente publicado em 2011, reflecte seriamente sobre a sensação de fim dos tempos que se vive na nossa contemporaneidade, pois esta criança que vivia no campo, apesar do espectro dos bombardeamentos aéreos e de se fazer acompanhar de uma máscara de gás, lê agora (em adulta), todos os dias, sobre «uma nova extinção, o branqueamento dos corais, o desaparecimento do bacalhau que a criança magra pescava à linha no Mar do Norte, numa altura em que os peixes abundavam. Leio sobre projetos humanos que destroem o mundo, poços de petróleo habilidosa e avidamente construídos em águas profundas, uma estrada atravessando as rotas de migração no parque do Serengeti, o cultivo de espargos
no Peru, balões de hélio para transportar as colheitas de forma menos dispendiosa, emitindo menos carbono, enquanto as próprias explorações agrícolas esgotam perigosamente a água que alimenta os vegetais, os seres humanos e outras criaturas. (...) Quase todos os cientistas que conheço acreditam que estamos a forjar a nossa própria extinção a um ritmo cada vez mais acelerado.» (p. 142) Foi aliás notícia, recentemente, a percentagem assustadora de espécies animais que se extinguiram devido à acção humana nas últimas décadas... Autora foi professora durante largos anos da disciplina “Mito e Realidade no Romance” Neste livro inclui-se uma nota da autora, intitulada «Pensamentos sobre os mitos», que faz luz sobre esta obra e o porquê de ter sido este o mito a recriar escolhido pela autora, professora durante largos anos da disciplina «Mito e Realidade no Romance». Podemos alegar que os mitos, bíblicos ou gregos, não têm o fôlego dos grandes romances, mas é também nas linhas das grandes obras da literatura que perpassam diversos
ecos míticos; da mesma forma que os heróis míticos não se comparam com personagens de romances, pois faltar-lhes-ia serem dotados de verdadeira densidade psicológica; antes parecem joguetes nas mãos dos deuses, eles próprios tão caprichosos e incautos como crianças. O único deus nórdico que merece alguma simpatia por parte desta crítica literária e romancista é Loki, o endiabrado irmão de Thor, o único deus inteligente e trocista, mas também irresponsável e caprichoso como os demais. A. S. Byatt entretece estas questões complexas nesta preciosa nota, de como os deuses nórdicos são «peculiarmente humanos (...) porque são limitados e pouco inteligentes. São gananciosos, divertem-se a lutar e a brincar. (...) Sabem que o Ragnarök está a chegar , mas são incapazes de imaginar uma forma de o evitar ou de mudar a história. Sabem morrer destemidamente, mas não sabem tornar o mundo melhor.» (p. 144). A autora explica, em suma, como escolheu o mito nórdico de Ragnarök porque este representa o último de todos os mitos: «o mito que põe fim aos mitos, o mito em que os próprios deuses são destruídos» (p. 140). l
5 de Julho de 2019
CULTURA • SUL
17
ESPAÇO ALFA •••
Galeria Arco: um spot criativo em Faro foto d.r.
Eduardo Pinto
Membro da ALFA @eduardopinto.soares
Nas minhas recordações dos anos 90 em Faro existem dois espaços que, para mim, sempre foram sinónimo de ver exposições de arte com grande qualidade, as duas galerias municipais TREM e ARCO, situadas na cidade velha de Faro e que eu visitava regularmente. De 1990 a 2003 a direção esteve a cargo do artista natural da cidade Manuel Baptista, que nos deu acesso, sem sair da cidade, a apreciar obras de artistas de grande renome nacional e internacional, como Pedro Cabrita Reis ou Jorge Molder, com a sua impressionante série fotográfica The Secret Agent (1991). Por volta de 2008, o espaço de uma das galerias, a ARCO, passa a ser partilhado por três associações culturais locais. Continuou a ser um lugar onde as visitas não se destinam
“Algumas fotografias podem contar toda uma vida, outras só recordam breves segundos... mas para sempre“ •
só a contemplar a magnífica vista da Ria Formosa, mas também à aposta de uma programação focada nas
indústrias criativas, em concertos musicais, artes performativas e exposições quase exclusivamente de
fotografia. Desde 2010 tenho acompanhado a ALFA – Associação Livre Fotógra-
fos do Algarve, como sócio, amigo e participante em passeios e viagens fotográficas de lazer. Agora, no início deste Verão, surgiu o convite para eu montar uma exposição fotográfica na ARCO, com fotografias que já tinha mostrado em Espanha, no Teatro Del Mar (Punta Umbría) e no Centro Cultural Casa Grande (Ayamonte), intitulada ”LIFE - TIME”. A exposição integrou a programação do Açoteia - Faro Rooftop Festival e a esplanada da ARCO foi uma entre as duas dezenas de spots aderentes da primeira edição de um evento pioneiro que quer marcar a diferença em Portugal. Para além de ser composto pela parte física com fotografias emolduradas - memórias fotográficas de 2016 até duas décadas atrás, também tem uma componente audiovisual com pequenas histórias vídeo-fotográficas que podem de alguma forma interessar ao visitante e complementar uma memória futura. “Algumas fotografias podem contar toda uma vida, outras só recordam breves segundos... mas para sempre“. A exposição estará patente até Agosto de 2019 e tem entrada livre. l
ESPAÇO AGECAL •••
Mouras encantadas e tesouros: Encantamentos no Algarve Catarina Oliveira Arqueóloga Sócia da AGECAL
Mouras, moirinhas ou bichas mouras, as mouras encantadas, aparecem belas e enigmáticas, junto a fontes, ribeiras, penedos ou ruínas penteando os longos cabelos, com preciosos pentes de ouro. Encantadas em serpentes, touros ou leões, em certos casos meio mulheres e meio cobras, guardam tesouros nas entranhas da terra, que oferecem a quem lhes quebrar o encanto. No Algarve, ficaram imortalizadas por nomes como Cássima, Fátima, Floripes, Zuleima, Alíria, Tomasina,... No Sul, onde a presença muçulmana foi mais longa e intensa, as mouras encantadas apresentam-se como lindas princesas, que por não poderem fugir durante a reconquista cristã, aqui ficaram encantadas. Muitas das lendas referem-se também
a fugazes encontros com pequenos mourinhos de gorros vermelhos na cabeça. Mas a permanência de mouros e mouras na memória e imaginário popular, também no Norte de Portugal, não se pode explicar apenas pela duração da presença islâmica no nosso território. Segundo muitos estudiosos, as mouras parecem vir substituir antigas divindades ligadas à fertilidade. Onde vivem? Dizem as lendas que habitam em fontes, poços, rios, grutas, minas, antas, castros e ruínas, e aí guardam os seus tesouros. Há quem diga que vivem na moirama, um mundo maravilhoso e labiríntico debaixo da terra, com túneis que desembocam em palácios de ouro e cristal. Por aparecerem frequentemente em fontes, poços, ribeiros, há quem as interprete como sobrevivências de antigas divindades e génios femininos ligados à água, elemento sagrado, cujo culto se perpetuou no tempo até aos nossos dias, tendo sido mais tarde substituídas por invocações de santos cristãos Quando aparecem? Dos espa-
ços de reclusão, onde cumprem encantamentos de muitos séculos, as mouras apenas podem sair em momentos mágicos, como a meia-noite, o nascer do sol ou o meio-dia. É especialmente na noite de S. João que deixam a forma de serpentes e, em figura humana, vêm pentear os seus cabelos de ouro, aguardando pela manhã para estender, no campo sobre esteiras, os seus tesouros: figos, meadas de ouro… A noite de S. João, com raízes nos antigos festejos pagãos do solstício de Verão, de que as tradicionais fogueiras – substituindo de noite o próprio sol – são a expressão mais conhecida, assinala o mais alto grau de vitalidade do sol, fecundador por excelência. E não remetem os atributos das moiras – cabelos, pente, tesouros de oiro – para o próprio Sol, símbolo de vida e fertilidade? E que tesouros guardam? Segundo o povo, quando os mouros, pela força das armas cristãs, largaram as nossas terras, deixaram lindas mouras em guarda dos seus tesouros. São de ouro, prata e pedras preciosas, mas aparecem disfarçados em
coisas banais, como carvão, tijolos, figos. O afortunado que os acha ou recebe da moura, despreza-os sem suspeitar do encanto, ou conquista-os provando ser merecedor da riqueza que tem nas mãos, por se mostrar paciente, discreto, honesto e corajoso. Nas lendas, a conquista do tesouro implica provações de ordem moral e espiritual: o cumprimento de um pacto, o controlo de impulsos como a curiosidade, ou o seguimento das regras ditadas por um sonho sonhado três vezes. Como desencantá-las? É com os seus tesouros que as Mouras Encantadas tentam seduzir os homens para que lhes quebrem o encanto. Deve o homem submeter-se a provas de força ou, sobretudo, de coragem. Não deve demonstrar medo perante a investida da Moura, que pode aparecer sob a forma de um touro ou de uma serpente que o abraça e beija. Se vencer as provas, quebra o encantamento, se falhar redobra-o. Nas lendas recolhidas no Algarve são diversos e exigentes os preceitos a seguir para o desencantamento: enfrentar um touro e uma
cobra sem manifestar medo e ser beijado pela moura donzela que lhe tira os santos óleos do baptismo; ser três vezes engolido e três vezes vomitado por um leão, três vezes abraçado por uma serpente e finalmente beijado na fronte pela moura; apanhar o rouxinol que vier cantar em noite de véspera de S. João na árvore junto ao tanque onde está a moura; regar a área do terreno onde está a moura com água de massa amassada em noite de S. João; roçar o mato de uma courela, semear orégãos e a seguir plantar uma vinha; comer filhoses amassadas com água do rio na véspera de S. João;… No Algarve, Ataíde Oliveira foi um dos grandes compiladores desta riquíssima herança. Devemos-lhe o registo de dezenas de lendas oriundas de várias regiões do Algarve, compiladas em 1898 na obra “As Mouras Encantadas e os Encantamentos do Algarve”. A sua obra foi recentemente reeditada pela Apenas Livros e abre com uma introdução da autoria de Fernanda Frazão e Gabriela Morais sobre o Mito da Moura Encantada. l
18
5 de Julho de 2019
CULTURA • SUL
ARTES VISUAIS •••
“Banksy: Génio ou vândalo?” fotos d.r.
Saul Neves de Jesus
Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; https://saul2017.wixsite.com/artes
O título deste artigo corresponde ao título da própria exposição de Bansky (“Bansky: Genius or Vandal”), a decorrer na Cordoaria Nacional, em Lisboa, desde 14 de junho. Trata-se duma exposição com mais de 70 trabalhos de Bansky cedidos por vários colecionadores privados internacionais. Como todas as exposições anteriores dedicadas a Banksy, esta também não foi autorizada pelo artista, o qual procura manter o seu anonimato. Isto embora no ano passado se ter especulado que Banksy seria Robert Del Naja, dos Massive Attack, sobretudo porque as obras de Banksy têm aparecido em diversos locais do mundo, após concertos dos Massive Attack. Mas Banksy (ou Robert) valorizam a discrição, encontrando-se em contra corrente com aquilo que se passa com a maioria das pessoas na atualidade, em que toda a sua vida é exposta através das redes sociais. Aliás, o anonimato é algo explicitamente valorizado por Bansky, tal
“Girl with balloon” (50 x 70 cm; 2003) • Banksy não tem conta no facebook ou no twitter e não é representado por nenhuma galeria. Os trabalhos nunca são assinados. Apenas tem conta oficial no Instagram, onde publica as imagens das obras que vai realizando em paredes um pouco por todo o mundo, o que serve de autenticação para as mesmas.
“Big Gold Frame” (123 x 94 cm; 2009) • como é expresso por uma das suas frases que se encontrava numa exposição que visitámos no Museu Moco, em Amesterdão, em 2018: “I don’t know why people are so keen to put the details of their private life in public; they forget that invisibility is a superpower” (“não sei porque é que as pessoas estão tão interessadas em tornar públicos detalhes da sua vida privada; esquecem-se que o anonimato é um superpoder”).
Embora a sua identidade permaneça um mistério, Banksy é um dos artistas mais conceituados na atualidade, com trabalhos a atingirem valores astronómicos. Isto embora as obras sejam vendidas à sua revelia, não recebendo qualquer valor pelas vendas. Um episódio muito mediatizado ocorreu há uns meses atrás, em outubro de 2018, uma obra de Banksy “autodestruiu-se” depois de ser
vendida por 1,04 milhões de libras (1,18 milhões de euros) na leiloeira londrina Sotheby's. O próprio autor divulgou uma fotografia na sua conta do Instagram no momento em que o quadro “Girl with balloon” (“Rapariga com balão”) se desfaz em tiras ao passar por uma trituradora de papel instalada na parte inferior do quadro. Originalmente, esta imagem havia sido pintada num muro em Londres, tendo sido votada pelos britânicos em 2017 como a obra preferida no Reino Unido. Considera-se que a destruição desta obra só terá aumentado a sua cotação no mercado de arte. Também foi bastante divulgada a abertura, em 2017, do seu Hotel Walled-Off, considerado pelo próprio como aquele com “pior vista do mundo”, pois situa-se em frente ao muro de Israel na Cisjordânia, que constitui uma das materializações mais emblemáticas do conflito entre israelenses e palestinos. E este muro é a única vista que os nove quartos têm. Voltando à exposição “Banksy: Génio ou vândalo?”, de acordo com a promotora “Everything is New”, trata-se da “primeira grande mostra em Portugal sobre o iconoclasta britânico que revolucionou a arte contemporânea e cuja identidade per-
manece uma incógnita”. Esta exposição já passou por Moscovo, São Petersburgo e Madrid, onde “foi visitada por mais de 600 mil pessoas”. Tivemos oportunidade de apreciar esta mesma exposição em Madrid, no final de abril passado e é uma fantástica imersão nas imagens e pensamentos da Banksy. Muitas obras são originais, enquanto outras foram produzidas a partir
dos originais. A título de exemplo, destacamos apenas as obras “Big Gold Frame” (“Grande moldura de ouro”), que representa uma crítica à própria arte contemporânea, e “Brexit”, que representa a sua posição “anti-Brexit”. Para todos os efeitos, Banksy é o pseudónimo de um artista de rua, que pinta desde os anos 90 sobretudo em graffiti e cujos trabalhos podem ser encontrados em espaços públicos de cidades de todo o mundo, sem autorização de nenhuma entidade governamental. As suas obras são instalações ou pinturas feitas através de stencil, muitas vezes com frases escritas. As mensagens visuais que produz abordam questões da atualidade, sobretudo de crítica política e social, com um forte viés revolucionário e anti guerra. Uma das frases de que é autor é a seguinte: “Os maiores crimes do mundo não são cometidos por pessoas que violam as regras, mas por pessoas que seguem as regras. São as pessoas que seguem ordens que soltam bombas e massacram aldeias.” Talvez possa ser considerado vândalo por alguns, pois pinta paredes sem pedir autorização, mas fá-lo de forma genial e é genial a profundidade das suas obras e dos pensamentos que vai deixando escritos um pouco por todo o mundo! Vale a pena aproveitar para apreciar esta exposição em Lisboa, até 27 de outubro... l
“Brexit” (Mural em 2017) •
5 de Julho de 2019
CULTURA • SUL
19
FILOSOFIA DIA-A-DIA •••
Pode a Filosofia ser um guia para o prazer? fotos d.r.
Maria João Neves Ph.D
Consultora Filosófica
Ao arrepio da tendência filosófica ocidental prevalecente, Epicuro coloca a seguinte questão: Não sei como poderei conceber o Bem se prescindo dos prazeres do gosto, se abnego do prazer sexual, se me privo do prazer de ouvir, se me abstenho de todas as doces emoções induzidas pela contemplação de formas belas! Nascido na verdejante ilha de Samos em 341 a.c., Epicuro dedicou-se à filosofia desde os 14 anos de idade, viajando para estudar com proeminentes professores como o platonista Pânfilo ou o atomista Nausífanes, discípulo de Demócrito. Contudo, o jovem filósofo não conseguia concordar com a maioria dos ensinamentos, e antes de cumprir 30 anos decidiu compilar os seus próprios pensamentos sobre a filosofia da vida. Calcula-se que escreveu cerca de 300 livros sobre os mais diversos temas: amor, música, natureza, vida humana, etc. Infelizmente, quase toda a obra se perdeu e acedemos ao seu pensamento apenas através de alguns testemunhos de discípulos e epístolas, entre elas, a Carta para a Felicidade, escrita a Meneceu.
Aquilo que imediatamente distingue Epicuro dos outros filósofos é o seu ênfase na importância dos prazeres sensuais: “o prazer é o princípio e o objectivo de uma vida feliz”. Epicuro confessa abertamente o seu apreço pela boa culinária: “o princípio e a raiz de todo o bem é o prazer do estômago”. No seu entender, até a sabedoria e a cultura se lhe deveriam referir. A filosofia teria a incumbência de se converter num guia para o prazer. Muito poucos filósofos admitiram tão abertamente o seu interesse num estilo de vida prazenteiro. De facto, este reconhecimento chocou
A Epicurean Life promete conferir um status social ao alcance de poucos •
imensa gente! Reacções adversas não se fizeram esperar quando constou que Epicuro atraiu o apoio de algumas famílias ricas, e utilizou o dinheiro que lhe foi dado para criar uma instituição dedicada à promoção de felicidade. A sua escola admitia tanto homens como mulheres - foi, provavelmente, um dos primeiros estabelecimentos de ensino misto de que se tem conhecimento no Ocidente - e encorajou-os a viver e a estudar o prazer em conjunto. O seu impacto percorreu todo
o espectro, desde o grande entusiasmo à condenação moral. Se procurarmos no Facebook “Epicurean Life” encontraremos a página do Alexander Group onde pode ler-se: “A nossa página do Facebook irá mantê-lo a par do mais alto luxo: Restaurantes, Viagens, Moda, Automobilismo, Artes, Interiores e muito mais...” Tudo aquilo que o dinheiro pode proporcionar! Já o slogan da capa da revista Epicurean Life - “Um mundo de luxo... para quem tem bom gosto!” -, aponta para o facto de que não basta ter dinheiro, é necessária alguma erudição estética para ascender
aos prazeres propostos por uma vida epicúrea. O dinheiro é um requisito prévio, mas apenas aqueles com classe, com estilo, poderão aceder ao que a revista propõe. A Epicurean Life não apenas divulga prazeres refinados, ela promete conferir um status social ao alcance de poucos. Mas seria realmente isto que Epicuro tinha em mente? O filósofo adverte para as rasteiras muito comuns em que se pode cair nesta busca do prazer e da felicidade. Allain de Botton realiza um interessante estudo sobre publicidade e ideias epicúreas. Vejamos alguns exemplos: Neste anúncio da Bacardi promove-se uma bebida alcoólica, mas, na verdade, em termos epicúreos, o que se pretende obter são amigos. Aqui anuncia-se um spa de luxo mas, para Epicuro, o que se busca realmente, é relaxamento e calma... Um corpo sem dor, e paz de espírito. Na realidade, a casa que Epicuro comprou, com a ajuda de alguns amigos com os quais vivia em comunidade, não era grande. No terreno em seu redor cultivavam vegetais e plantaram um harmonioso mas modesto jardim. As refeições eram simples. Bebia-se água, não vinho. Estava-se saciado com um pouco de pão e um punhado de azeitonas. “Enviem-me um pote de queijo para que eu possa fazer um festim quando quiser”, admoestava o filósofo! Ao sol do nosso Algarve que nos beija a pele cada dia, vai-se com amigos à praia e traz-se de lá a refeição, pois as conquilhas saltam ao rodar do calcanhar na maré baixa. Haja um pouco de azeite e alho e algum fogo para as abrir. Tempera-se com o sumo de um limão apanhado dum ramo que se estende para
nós, oferta de um quintal qualquer a caminho de casa, e colhem-se a salsa e os coentros que crescem no canteiro improvisado na varanda, ou no parapeito da janela. Alguém pega numa guitarra e canta-se e ri-se e celebra-se a vida! É a felicidade, que ao contrário daquilo que nos querem fazer acreditar, é acessível a bem modesto custo. Influenciáveis, sucumbimos à publicidade falsa e massacrante de que se não tivermos uma casa grande, um carro último modelo, uma conta bancária choruda, se não vestirmos a última moda e tivermos um status social elevado, ninguém gostará de nós e jamais poderemos ser felizes! Há muito quem lucre com a estimulação de desejos desnecessários em pessoas que desconhecem as suas verdadeiras necessidades. A sociedade de consumo ruiria se nos déssemos conta disto! Não vemos em nenhum lado publicitados os prazeres simples a que qualquer um pode ter acesso: brincar com um cão, conversar com um amigo, apanhar um banho de sol, ouvir no
Se Epicuro quisesse casar seria impossível encontrar uma loja onde deixar a sua lista de presentes, pois para o filósofo a vida prazenteira baseia-se nestes 3 ingredientes fundamentais: 1. Amizade Os verdadeiros amigos não nos julgam de acordo com os valores mundanos. O seu amor por nós não é afectado pela nossa posição social, riqueza, fama ou sucesso. Respeitam-nos, tratam-nos bem, simplesmente... Apreciam-nos pelo que somos! 2. Liberdade No jardim de Epicuro vários foram aqueles que trocaram os seus bons empregos por uma vida mais simples mas, sobretudo, uma vida com tempo. Preferiam cultivar a sua própria comida, ainda que escassa, a ter de passar os dias obedecendo às ordens de algum chefe tirano. 3. Pensamento Ao escrever sobre um problema ou ao conversar sobre ele fazemos com que os seus principais aspectos emirjam. Se o problema não
rádio aquela canção favorita, comer um pãozinho fresco com um pouco de manteiga barrada... Lucrécio, articulando os valores epicúreos, chegaria à conclusão de que a humanidade é perpetuamente vítima de um martírio fútil, afligindo a vida em preocupações infrutíferas por não conseguir distinguir quanto a aquisição é limitante a respeito do crescimento do prazer genuíno.
se dissolver neste exercício, pelo menos alguns dos seus efeitos secundários tendem a diminuir, tais como a confusão e o sofrimento que esta provoca. No jardim de Epicuro encorajava-se acima de tudo o pensamento. Talvez existam poucos remédios para a ansiedade tão eficazes como este! l Inscrições para o Café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com
20 5 de Julho de 2019
CULTURA • SUL
REFLEXÕES SOBRE URBANISMO •••
O ordenamento do território e a praias Teresa Correia
Arquitecta / urbanista arq.teresa.correia@gmail.com
As praias do Algarve e as alterações climáticas As praias do Algarve são uma das maiores riquezas naturais, potenciando o desenvolvimento económico da nossa região. Com o aumento da temperatura, muito provavelmente, teremos uma cada vez maior afluência da população ao litoral, procurando o clima mais ameno e temperado. A este aumento de carga nas praias, nomeadamente na Praia de Faro, temos por outro lado uma situação contraditória, a alteração da fisiografia das praias, sobretudo da Península do Ancão, com uma efetiva redução do areal de ano para ano. A APA-ARH, sendo a entidade que regula as infraestruturas das praias de banhos, não parece ter os meios necessários e existe uma tendência dominante em termos
políticos que é a descentralização para as autarquias. Verifica-se, assim, alguma dificuldade na gestão de uma área sensível e sujeita a grande pressão humana, como seja a Ria Formosa e as Ilhas. Não se perspetiva um investimento assertivo na reconstrução dunar tão relevante para a manutenção da ilha, como zona de lazer e balnear. Apesar de algumas estruturas pontuais realizadas pela autarquia e pela Polis, não se considera que estas sejam suficientes para a visão mais estruturada de futuro, a qual deverá estar necessariamente ligada ao profundo conhecimento que a Universidade do Algarve possui de toda esta região. Com as alterações climáticas, é também relevante as análises de risco e de vulnerabilidade que presumo só na Praia de Faro foram realizadas no âmbito do PP, mas ainda desconhecido para o comum cidadão. Seria coerente com o discurso de defesa das alterações climáticas, que fosse realizado um investimento sério neste tipo de análises, sobretudo nas faixas costeiras, para que fosse possível um planeamento adequado nomeadamente dos POOCs e PDMs.
Necessidade de investir nas praias do Algarve Apesar de tudo, o Algarve possui um trabalho de base e já antigo com a primeira geração de PDMs, porém, estes não estão adaptados às realidades atuais demográficas, sociais e económicas. Espera-se assim que a nova geração consiga dar uma maior qualidade ao nosso território e atender a uma visão focada no cidadão comum, democratizando o acesso às praias. As concessões excessivas das praias, somadas à redução do areal, por vezes, e a acrescer à dificuldade de acesso por falta de estacionamento ou de transporte público, faz com que haja uma relativa redução do bem público que é o usufruto da praia. No verão com o aumento de afluência, nalgumas zonas, é já praticamente impossível chegar à praia que conhecíamos na nossa infância. Se existisse uma monitorização em SIG dos veículos que estão estacionados pelas encostas, pinhais, areais e zonas em escarpa, facilmente se concluía que vale tudo para conseguir chegar à praia. No entanto, não é só com a simples
proibição que tal problema se resolverá, devendo, pelo contrário, ser criados os meios de transporte como veículos de minibus, comboios elétricos ou um maior número de barcos, em carreira regular, que facilitem os acessos, sem que seja necessário levar o carro à beira da água. Para a Praia de Faro tinha sido planeado um circuito em minibus gratuito, entre o parque de estacionamento exterior e a praia, associado a um recurso a zonas de estacionamento de duração limitada na praia, que pagaria esse investimento, ou seja, a ligação lógica e natural entre transporte e estacionamento. Este plano era visto de forma mais global, com a construção de uma nova ponte, face à grande debilidade estrutural da atual. Os acessos, como a nova Ponte e as pistas cicláveis de acesso à Praia de Faro, são uma necessidade urgente de investimento, e tal parece ainda longínquo. Os organismos do Estado devem estar aptos para compreender o mercado no lançamento de concursos mais específicos e exigentes, de forma a evitar a demora e o atraso na resolução das questões.
A paisagem e a segurança A preservação da paisagem será fundamental na sustentabilidade da nossa economia, no entanto, qual a liberdade que possuímos de estruturar os acessos com novos caminhos, ou seja, de criar segurança? Em REN, é proibida a criação de novos acessos, mas tal poderia ser mais claro, se fosse previsto ao nível dos POOCs, com os acessos que se consideram fundamentais para o normal usufruto de uma praia marítima, assim como os estacionamentos. Essa visão deverá ser coordenada com as ligações viárias, portuárias, etc, numa visão intermodal, e tal parece nunca ter existido, pelo menos, em número e dimensão, talvez pela escala muito alargada com que são produzidos. A segurança dos cidadãos deverá ser um fator de importância tal, que deveria relevar para contextos menores outros interesses públicos ou privados. Assim, será evidente, que num contexto planeado e executado em conformidade, numa região turística, o cidadão deveria ter sinalização adequada, percursos seguros, transportes adequados e usufruir de forma acessível e integradora à praia desejada. l pub