Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o
SETEMBRO 2019 n.º 130 9.653 EXEMPLARES
www.issuu.com/postaldoalgarve
MISSÃO CULTURA •••
Ermida de Nossa Senhora de Guadalupe: Experiência global e multi-sensorial num templo rural foto sergiy scheblykin
Projeto aprovado pelo Turismo de Portugal vai dotar a Ermida de Nossa Senhora de Guadalupe de condições de acessibilidade •
A Ermida de Nossa Senhora de Guadalupe constitui um ponto marcante no território na viagem entre Lagos e Sagres e integra-se numa paisagem ondulante de suaves colinas onde afloram os arenitos, o designado grés de Silves, ou “pedra farinheira”, como na região de Vila do Bispo é conhecida. Reconhecido como um dos mais
antigos testemunhos do gótico na região algarvia e um importante elemento patrimonial de particular relevância histórica, este templo constitui nos dias de hoje um importante lugar de memória para as comunidades locais. O “Projeto de Acessibilidade Física, Informativa e Sensorial”, recentemente aprovado pelo Turis-
foto vanda oliveira
Ermida é um importante lugar de memória para as comunidades locais •
mo de Portugal, no âmbito de uma candidatura da Direção Regional de Cultura do Algarve à Linha de Apoio ao Turismo Acessível do “Valorizar – Programa de Apoio à Valorização e Qualificação do Destino”, pretende munir o edifício da ermida de condições de acessibilidade física, informativa e sensorial, de forma compatível e coerente com a dimensão sagrada deste espaço, com as crescentes necessidades devido à afluência de públicos e com as dinâmicas especificas de funcionamento deste monumento nacional. O objetivo primordial deste projeto é o de dotar a Ermida de Nossa Senhora de Guadalupe de um percurso acessível para qualquer visitante com mobilidade reduzida temporária ou permanente, e o de promover uma comunicação inclusiva, útil a todos os visitantes, contemplando estratégias, ações e recursos para eliminar barreiras físicas, mas também intelectuais,
sensoriais, sociais ou culturais. Pretende-se proporcionar a todos os que visitam o templo uma experiência global mais inclusiva e mais próxima do lugar, oferecendo múltiplas oportunidades de aprendizagem, com uma estratégia de comunicação inclusiva, multissensorial e multimodal, com recurso a conteúdos mais humanizados e disponíveis em vários idiomas, letra ampliada, língua gestual portuguesa, sinais internacionais e braille. O caráter inovador do projeto traduz uma nova visão de intervir na recuperação e fruição do património e prende-se com a implementação estratégica do conjunto das seguintes intervenções: - um passadiço e rampa de acesso, que possibilitará, de forma muito simples, ultrapassar obstáculos de acessibilidade física ao interior do monumento; - sinalética informativa no interior e na envolvente do monumento; - um múpi interativo que nos dará a conhecer o enquadramento histórico do lugar, a origem do culto,
Ficha técnica Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus • Espaço ALFA: Raúl Grade |Coelho • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ao Património: Isabel Soares • Filosofia dia-a-dia: Maria João Neves • Letras e literatura: Paulo Serra • Missão Cultura: Direção Regional de Cultura do Algarve • Reflexões sobre urbanismo: Teresa Correia • Colaboradores desta edição: Filipe da Palma , Saúl Lopes Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/ postaldoalgarve FB: www.facebook.com/ postaldoalgarve/ Tiragem: 9.653 exemplares
foto lenea andrade
Projeto vai proporcionar aos visitantes do templo uma experiência mais inclusiva •
assim como também as vivências, saberes e memórias mais recentes das comunidades; - um efeito holográfico que permitirá uma experiência sensorial mais atrativa e diferenciadora, que ajudará a compreender a relevância histórica e patrimonial do lugar.
Pretende-se, com este projeto, proporcionar uma nova forma de ver, observar, interpretar e sentir este lugar de memória. l
Direção Regional de Cultura do Algarve
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LETRAS E LEITURAS •••
Entrevista a Patrícia Reis sobre As Crianças Invisíveis: “Ninguém quer uma criança crescida” Paulo Serra
foto carlos ramos
Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL
Escrevi em tempos que A Construção do Vazio, o anterior romance de Patrícia Reis fechava um tríptico constituído por No Silêncio de Deus (2008) e Por Este Mundo Acima (2011), todos publicados pela Dom Quixote. Ressalve-se que esta conclusão não é minha mas surgia no próprio paratexto do livro, provavelmente na sinopse da contracapa. Atrevo-me, sim, a afirmar que com o seu mais recente As Crianças Invisíveis, esse tríptico converte-se em quarteto (a suspeita parece confirmar-se na última linha, aliás palavra, do romance) e pode ainda continuar. Em A Construção do Vazio, ficámos a conhecer Sofia, uma mulher que se remete a um silêncio que nem uma terapia de sete anos consegue romper, vítima de maus tratos, violada pelo pai e agredida pela mãe, numa narrativa crua e dura. Em As Crianças Invisíveis, a história centra-se em torno de M., uma criança invisível, que vive «na sombra da vigilância do Estado» (p. 210), devolvida já por duas vezes pelas famílias adoptivas, sendo a razão apontada o facto de sofrer de uma condição cardíaca (o seu coração sente demais), se bem que chega também a ser maltratada: «Ninguém quer uma criança crescida», como se pode ler neste livro. M. volta assim à Casa, uma instituição de acolhimento, onde convive com outras crianças igualmente rejeitadas com as suas próprias histórias, no seu único refúgio do mundo real. Num registo literário notável, em que consegue uma proeza linguística e narrativa singular, de que nos aperceberemos ao longo do livro mas que infelizmente vem anunciada na sinopse do livro pelo que podem sempre optar por ignorá-la (como eu costumo fazer antes de terminar o livro ou estar já bastante adiantado na leitura), como devem também ignorar o
Patrícia Reis é jornalista, cronista, editora da revista Egoísta e estreou-se na ficção em 2004 •
próximo parágrafo isolado em que explico essa singularidade narrativa do romance: Da mesma forma que M. e as outras crianças, dada a sua invisibilidade, uma vez que não passam de números e de processos, não têm nome, sendo designadas apenas pelas iniciais, também nunca se percebe qual o género de cada uma destas crianças. Como se na ausência de um nome se reflicta a própria identidade truncada, o vazio das suas vidas suspensas na ilusão de uma família, de uma pessoa a que possam chamar mãe. Apenas os adultos têm nomes. Saberemos, portanto, como é a relação de M. com S., Z., H., conforme esta criança, primeiro com dois anos, vai crescendo até atingir a maioridade e, por conseguinte, não pode continuar na Casa, tendo de enfrentar o mundo real de uma vida normal, mesmo sem ter tido as ferramentas emocionais que lhe dêem estabilidade e força. Mas M., e aqui reside uma das poucas notas de esperança do livro,
tem o apoio e o amor dos adultos que fazem daquela instituição um lar, como a assistente social Conceição, que aprendeu a ler os silêncios de M.. Da mesma forma que M. se irá apaixonar e perceber como a vida pode ser gloriosa e dolorosa. A violência e a desumanidade das histórias destas crianças ultrapassam a ficção, pelo que custa a crer que haja tantos casos como estes na realidade. Houve investigação feita por parte da autora, o que aliás se pode pressentir no próprio tema da narrativa, uma vez que ainda há dias circulava uma notícia, que já era de 2017, em que se dava conta de como em pouco mais de um ano, mais de 40 crianças cujo processo de adopção tinha sido iniciado (o processo de pré-adopção dura 6 meses, um “tempo de experiência” que as crianças passam com as famílias ou pais singulares adoptivos) foram devolvidas, em diversos casos por causa de condições de saúde. Patrícia Reis é jornalista,
cronista, editora da revista Egoísta desde 2000, e estreou-se na ficção em 2004. A infância é a geografia inicial Depois de um mundo pós-apocalíptico visto pelos olhos de uma criança em Por Este Mundo Acima (2011); da história de Sofia em A Construção do Vazio (2017), sobre uma mulher que se remete a um silêncio e um vazio que nem uma terapia de sete anos consegue romper, vítima de maus tratos, violada pelo pai e agredida pela mãe; silêncio de uma humanidade em busca de redenção já narrado em No Silêncio de Deus (2008), podemos considerar este romance um novo exercício literário em torno da infância como um tempo precioso que dificilmente se cura? Penso que a infância é, aliás, um universo a que voltas frequentemente. A infância é a geografia inicial, é aí que está o todo, seja por ser o começo da constru-
ção da identidade, seja pelo reconhecimento de emoções tantas vezes negativas. Nada é mais complexo do que crescer, do que ajustarmo-nos ao mundo. O que me importa verdadeiramente são as questões de identidade e as questões relacionais. Tudo na nossa vida nasce ali, na infância, e é definitivo a muitos níveis, mesmo que possamos invocar evolução e desenvolvimento pessoal. Regresso a esse tempo para entender o tempo da idade adulta. Fala-se muito do trabalho sobre a linguagem neste romance, numa escrita que aborda temas sérios e dolorosos com admirável contenção, distanciamento, numa “escrita límpida, poderosa e cirúrgica”. Inclusivamente conseguiste fazer o que acho que não tinha sido ainda feito na nossa língua, que é escrever um romance sobre uma personagem sem género... Mas mais admirável ainda, na minha óptica, foi conseguires narrar de forma
convincente a partir do olhar e sentir de uma criança. A plasticidade da língua foi um desafio, reconheço, contudo importava que o género não fosse determinante na forma como o leitor pode entender as personagens. O que queria sublinhar é o facto do espectro emocional ser o mesmo, ser para homens ou mulheres exactamente o mesmo: alegria, tristeza, dor, solidão. Nada disto tem género. A língua portuguesa, na sua infinita beleza, permitiu-me fazer este jogo. Foi muito difícil de apurar, não posso dizer que não o foi. O que me importa, na escrita, é a escrita “no osso”, como diria José Cardoso Pires. O vestir a pele da criança, a voz da criança, não é um feito, muitos o têm feito, é apenas o tal regressar à geografia inicial. Se bem que a leitura de A Construção do Vazio (2017) era já por si um murro no estômago, fizeste aqui uma intensa pesquisa para dar corpo ao romance, fazendo
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foto d.r.
rias sem rosto, nesse sentido invisíveis, que talvez não tenham o impacto que podiam ter se fossem desvendados todos os pormenores. Devo dizer que parti para este romance considerando chocante a devolução; depois de tudo o que li e ouvi, não sou tão radical, existem circunstâncias. Leio na condição de M., com o seu problema de coração, uma alegoria a uma criança com falta de amor e que por isso mesmo se torna dura e quase fria... Achas M. uma personagem dura, quase fria? É engraçado porque a minha leitura é outra, é uma criança A violência e a desumanidade das histórias destas crianças ultrapassam a ficção • sobrevivente e todas as crianças jus à tua carreira de jornalis- se caldo de imaginação, por sobreviventes são, em certa. Podes descrever os passos isso a escrita é, tantas vezes, ta medida, crianças com um que deste? acompanhada de lágrimas. As estrago, uma cicatriz, o que Ouvi muito. Ouvir é crucial, histórias que eu ouvi não as as impele a comportamentos diria mesmo que é a função declinei directamente para o defensivos, mas não frios. O primordial do jornalista, que livro, nem isso faria sentido. facto de ter optado por uma é a minha formação, e é tam- As histórias inspiraram a cria- criança com um problema bém uma das funções do ção de outras histórias. Certas de saúde, para mais ao nível escritor. Ouvir. Observar. Co- opções narrativas, temáticas, cardíaco, era também uma nheci pessoas que viveram em são muito exigentes emocio- metáfora e, em simultâneo, instituições, profissionais que nalmente. um reflexo da condição huaí trabalham, pais e mães que mana. Não somos perfeitos. adoptaram. Mergulhei no amNum ano foram devolvidas Nenhum de nós. E todos pobiente para melhor entender mais de 40 crianças demos ser olhados de lado, como fazer a personagem M. com processo de adopção julgados, criticados, descarseguir o processo de invisibiiniciado tados com facilidade. Importa lidade para o de visibilidade, a sobreviver a essa realidade, sua construção de identidade Achei curiosa a sincronia de encontrar caminhos. a partir de uma cicatriz, de um que o livro, publicado em Jutrauma. Não foi uma pesqui- nho, saiu justamente quando Ao contrário de Sofia, do teu sa jornalística, não o é para a também se anunciava núme- romance anterior, que ficou ficção, não tomo notas, não ros chocantes de que, num de tal forma quebrada que faço perguntas como faria se ano, mais de 40 crianças cujo dificilmente se poderá reinestivesse a preparar uma re- processo de adopção tinha ventar... portagem, as coisas que me sido iniciado (o processo de A tristeza é uma escolha, interessam são outras. Preciso pré-adopção dura 6 meses, uma opção de cada um, sende sentir na pele e de me pôr um “tempo de experiência” do que é mais poderosa do no lugar do outro. que as crianças passam com que a alegria. É mais fácil ser as famílias ou pais singulares triste. É mais fácil a queixa ou A imaginação é terrível adoptivos) foram devolvidas, a crítica, o festejar o outro é em diversos casos por causa mais complicado. O problema Foi tão duro ouvir essas his- de condições de saúde, como é que a tristeza engole as pestórias como foi passá-las ao é o caso de M.. soas e isso foi o que sucedeu papel? É uma realidade. O proble- a Sofia, ela não quis, delibeA imaginação é terrível, é ma é a frieza dos números e radamente, fazer nada e, ao perturbadora, pode poten- o que escondem. Precisamos mesmo tempo, a vida proporciar o horror de uma maneira de proteger estas crianças, cionou-lhe isso, tinha dinheiro quase violenta. E eu vivo nes- é evidente, mas são histó- para viver sem precisar de se
mexer. A Sofia é uma personagem com outra complexidade, diria que ainda hoje a tento perceber na totalidade. Neste romance há pelo menos duas surpresas e um piscar de olho aos teus leitores, se bem que devo confessar que não fui propriamente surpreendido. Apercebi-me primeiro que a narrativa era feita com a tal neutralidade de género, mas depois senti, mais e mais, que M. só podia ser um rapaz... Quando o escreveste já tinhas em mente algum desfecho? E quando percebemos, também no final, quem é S., foi algo que eu já pressentia... Ou estarei a tergiversar? Muitas pessoas acharam que as personagens eram dois rapazes, muitas pessoas achavam que eram raparigas. Houve, aliás, uma amiga que ficou zangada comigo porque tinha entendido como um universo feminino e o fim veio estragar esse cenário que compôs na sua leitura. Portanto, diria que depende do leitor. Eu sabia que M. era menino e só decidi mais tar-
de o que seria S., sendo que S. é, na maioria das análises, entendida como rapaz por ir parar às oficinas, por trabalhar com madeira, o que prova o meu ponto de que temos ideias feitas e preconceitos que importam deitar por terra. O ser humano é capaz do bom e do mau, tem de escolher Daquilo que ouviste e descobriste no teu processo de pesquisa, achas que se pode afirmar que há pais que são intrinsecamente maus? Como há filhos intrinsecamente maus. Os violadores ou assassinos são filhos de alguém. Acontece apenas que o ser humano é capaz do bom e do mau, tem de escolher e, muitas vezes, a infância já dá pistas nesse sentido. Existem pais que têm as melhores intenções e que não são compreendidos pelos filhos e existem pais que são apenas pessoas más. Achei ainda curioso a forma como te debruçaste tanto
sobre a assistente social Conceição, o adulto que forma a ligação mais forte com M.. Vejo em Conceição o teu cuidado em dar voz à mulher e à dificuldade de a mulher, ao contrário do homem, poder ser julgada quando se dedica demasiado ao trabalho... A Conceição era a ponte para a realidade exterior à instituição, era a mulher profissional dedicada que falha no casamento e, porventura, no exercício da maternidade. Era a mãe que poderia ser e não foi. E é ainda uma homenagem a muitas mulheres que vi em instituições, profissionais que enfrentam esta realidade diariamente e que ajudam na construção de um futuro. Já tens em curso o teu próximo trabalho? Digamos que tenho umas páginas. Nunca entrego um livro à editora sem ter começado outro, preciso de saber que já tenho outro território narrativo no qual navegar, que não fico sozinha, sem personagens na cabeça a pedirem coisas. l pub
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ESPAÇO ALFA •••
O desafio da fotografia de rua foto saÚl lopes
Saúl Lopes
Membro da ALFA
Um registo fotográfico de aspectos da vida quotidiana com espontaneidade e autenticidade num lugar público com um caracter documental, histórico ou social constitui a essência da fotografia de rua. Fotografia de rua é estar sempre preparado para poder fotografar o inesperado, o que lhe confere o caracter desafiador e ao mesmo tempo prazeroso. As fronteiras da fotografia de rua são esbatidas e as zonas de sombra enormes em relação a outros estilos de fotografia com os quais se cruza e convive. São registos fotográficos que transpiram por todos os pixéis utilizados um realismo envolvente e uma
"Em espera no aeroporto" - Pentax OPTIO W 80 28 mm,F/4.2,1/400 seg.,ISO 64 •
emoção subjacente, ao contar uma história, que não pode ser encenada ou invasiva. Sem fins manifestamente comerciais podemos fazer registos publicáveis ou não, dentro do res-
peito pela intimidade e dignidade humanas. Três premissas técnicas a considerar são o enquadramento, a focagem e a oportunidade do disparo. O enquadramento e a composição
definem o lugar físico onde decorre a história, englobando os elementos paisagísticos, arquitectónicos e dos seres vivos que possa conter. São linhas e curvas, luz e sombra, silhuetas e formas que comportam uma histó-
ria ou algo para contar. A focagem é aquilo que vai ajudar a definir os diferentes planos a realçar ou omitir. Os enfoques e desfoques ajudam a demarcar linhas de força ou a preservar a intimidade de quem é fotografado. O momento do disparo é crucial. Representa o culminar da interacção entre a objectiva e o objecto fotografado. Transporta consigo toda a emoção da captura que vai ser prolongada e ampliada por quem a vai visualizar. Traduz a magia de um momento que passa a ser importante no contexto pessoal ou social na medida em que a fotografia existe para ser partilhada. Na fotografia devemos ser rebeldes na adulteração das regras básicas da técnica fotográfica como forma de procurar resultados interessantes, harmoniosos e apelativos dentro dos condicionantes impostos pelo ambiente onde estamos a fotografar. Temos de ser arrojados na forma de encontrar sempre uma nova maneira de contar uma história em imagem. l
REFLEXÕES SOBRE URBANISMO •••
O urbanismo e as artes cem que seja efetuado um tratamento urbanístico por parte do Estado ou de uma autarquia que, por vezes, exigem abertura de vias, ou construção de espaços verdes, assim como habitação de diversa natureza. Procura-se um crescimento sustentável, baseado no respeito pelo ambiente, pela segurança e sã convivência entre as diversas partes da cidade.
fotos d.r.
Teresa Correia
Arquitecta / urbanista arq.teresa.correia@gmail.com
O urbanismo como arte Poder-se-á entender o urbanismo como uma arte? Dificilmente, o estudo da cidade é aceite como tal, porque normalmente decorre de iniciativas pontuais e de um normativo legal, ou seja, de algo que está imposto e ainda pela contingência do espaço e do seu aproveitamento. Porém, a intervenção de um urbanista como artista do espaço à escala macro irá proporcionar qualidade de vida aos utentes e construir uma simbiose entre a ciência e aquilo que é um desenho urbano equilibrado e belo. O urbanismo é uma ciência, uma técnica e uma arte, que elevará as cidades num mundo cada vez mais competitivo. A administração de uma cidade deverá conceber uma visão global, adequada à sua identidade cultural, social e económica, mas com uma ambição de desenho que seja forte, lógica e clara. Porém, quem valoriza os urbanis-
As artes urbanas como ferramenta do urbanismo O Museu do Louvre - Paris •
tas no nosso país? Facilmente são confundidos com os juristas de direito de urbanismo, porque reduziu-se praticamente os planos às normas, antes mesmo de se perceber o conceito, ou aquilo que será a correta distribuição das funções no espaço. Se compreendermos o desenho de Paris, este é forte e marcante, em que as singularidades dos monumentos marcam eixos longos na cidade, traduzidos em espaços de parques urbanos ou em avenidas, ou seja, os “Boulevards”. Outro exemplo de grande peso no urbanismo é Barcelona como uma cidade com um modelo forte. Foi Ildefonso Cerdá o urbanista que esteve por detrás dos desenhos, em
1859, e que produziu um plano estratégico com manifestação de diversos espaços públicos. O urbanismo como solução para um problema social O urbanismo deve também ser entendido como uma forma de resolução de problemas concretos de uma cidade, incluindo os problemas sociais existentes. Será relevante perceber como funciona a economia urbana e qual a leitura dos problemas atuais, propondo soluções que mesmo que sejam micro, poderão ser um grande sinal de estímulo ou de avanço. As áreas urbanas desqualificadas, como antigas áreas industriais, mere-
As artes urbanas são outra forma de gerar pontos singulares de interesse numa cidade, em que o edifício devoluto é já bastante patente e comum nos nossos centros históricos. As paredes envelhecidas e abandonadas, de repente ganham vida e criam forma numa arte sublime, tendo como exemplo o artista plástico Vhils, nascido em Lisboa e que já deixou obra pelo mundo inteiro. Outro exemplo são os espaços livres abandonados que poderão ser temporariamente utilizados, como
sejam um pátio ou um recanto, que possa recriar um ponto de estadia ou de palco para animação. As empenas cegas dos prédios, as quais nada contemplam, ou por vezes, só publicidade, poderão ser uma das telas de uma criação a realizar. Bastaria estimular concursos de ideias para tal situação, com prémios a atribuir pelo valor artístico. Não confundir com o graffity gratuito e de marcação de território, que normalmente acontece em zonas mais urbanas e que não valoriza nada os nossos territórios. Faro tem potencialidades para recriar espaços próprios para esta expressão artística e, por outro lado, estimular a realização d e exposições temporárias e rotativas em áreas públicas, valorizando as artes urbanas e, por outro lado, qualificando espaços urbanos pouco aproveitados. As nossas cidades merecem uma melhor atratividade, crescendo com um desenho urbano, lógico e claro, mas também artístico e belo. l
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MARCA D'ÁGUA •••
Cuidar da Casa Comum Maria Luísa Francisco Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa luisa.algarve@gmail.com
O sociólogo Michael Löwy refere que a emergência climática “já é, e vai-se tornar ainda mais nos próximos anos, a questão política central da nossa época”. Este sociólogo radicado em França, é director de investigação no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e defende um “modelo de civilização baseado na justiça social, na igualdade, na democracia, na solidariedade e no respeito pela nossa Casa Comum”. A expressão “Casa Comum” é cada vez mais usada, quer nos meios académicos, religiosos ou políticos. Existe cada vez mais o sentimento
de que a terra é a nossa casa comum da qual devemos cuidar. Michael Löwy reflecte sobre as vantagens do ecossocialismo e frisa que a Carta Encíclica Laudato si’ deveria ser lida pela esquerda: “A esquerda deveria ler este documento e inspirar-se no seu diagnóstico sobre a urgência de salvarmos a nossa Casa Comum, a Mãe Terra”. A meu ver, as questões ambientais estão para além do conceito de esquerda ou de direita, são questões globais e urgentes, porque estamos todos no mesmo barco. E quer ele se incline para a esquerda ou para a direita, afundamo-nos todos! Talvez só depois da actual situação da Amazónia algumas pessoas se tenham consciencializado dos limites do nosso planeta e dos limites da sua capacidade de carga, que há muito é referida por cientistas de diversas áreas. Filipe Duarte Santos, especialista em ambiente e alterações climáticas e presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (CNADS) diz que a dependência dos combustíveis fósseis, tal como certas políticas são resultado dos interesses poderosos que estão por detrás desse sector económico. Este cientista considera
que no fundo não há “nada de novo” e acrescenta que “o egoísmo e a ganância, dois traços do Homo sapiens, sobrepõem-se a quaisquer preocupações com as alterações climáticas”. Unidos pela Terra-Mãe Setembro começou com um dia de reflexão e oração, sendo celebrado pela Igreja Católica o dia 1/09 como o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação. O Papa Francisco instituiu este dia no ano de 2015. É uma iniciativa com sentido ecuménico porque a mesma data já era comemorada, há alguns anos, pela Igreja Ortodoxa, que deu início a esta celebração à qual se juntaram anglicanos, luteranos e evangélicos de todo o mundo. A celebração ecuménica anual de oração e acção pela Criação teve início no dia 1 deste mês, Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação, e termina no dia 4 de Outubro, precisamente no Dia de São Francisco, padroeiro dos ecologistas. Mais de um mês para que cristãos do mundo inteiro se unam em oração e acção para cuidar da casa comum. O tema para 2019 é: "A rede da vida". E para lançamento do tema o Papa Francisco proferiu estas palavras:
“Este é o tempo para voltar a habituarmo-nos a rezar imersos na natureza, para reflectir sobre os nossos estilos de vida, de empreender acções proféticas. As nossas orações e os nossos apelos visam sobretudo sensibilizar os responsáveis políticos e civis. Cada fiel cristão, cada membro da família humana pode contribuir para tecer, como um fio subtil, mas único e indispensável, a rede da vida que a todos abraça.” Laudato si’ Cuidar da Casa Comum: A Igreja ao serviço da Ecologia Integral é uma iniciativa de uma rede de instituições, organizações, obras, movimentos da igreja católica e de outras igrejas cristãs, bem como pessoas a título individual. A Rede procura aprofundar e difundir a Carta Encíclica Laudato si’ [Louvado sejas] do Papa Francisco, documento de 2015, que tem como sub-título: Sobre o cuidado da casa comum. A Laudato si’ acrescenta um novo contributo à Doutrina Social da Igreja e refere que toda a pretensão de cuidar e melhorar o mundo requer mudanças profundas “nos estilos de vida, nos modelos de produção e de consumo, nas estruturas consoli-
dadas de poder, que hoje regem as sociedades”. A Rede procura acompanhar, no espaço eclesial, as questões ecológicas de âmbito nacional e mundial, evidenciando as suas causas e consequências e equacionando-as à luz da referida encíclica. E não menos importante é o empenho em promover nas comunidades cristãs (paróquias, escolas, obras e movimentos) uma efectiva conversão ecológica e sugerir caminhos de actuação concreta com vista a uma ecologia integral. É com muito gosto que integro esta Rede (www.casacomum.pt) a convite da sua fundadora, Drª Manuela Silva, economista, catedrática (jubilada) do ISEG e ex-Secretária de Estado do Planeamento. E porque o espaço não permite mais, fica também o link da nota emitida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) com o expressivo título “Levante a voz pela Amazónia”, que tem como referência a ecologia integral e a Laudato si’: http://www.cnbb.org. br/levante-a-voz-pela-amazonia-pede-cnbb-em-nota/ Que possamos levantar a voz, “não para gritar, mas para que os sem voz possam ser ouvidos...” l
ESPAÇO AGECAL •••
“Frei João de São José e a Corografia do Reino do Algarve”, uma obra do século XVI a reeditar Jorge Queiróz
Sociólogo Sócio da AGECAL - Associação dos Gestores Culturais do Algarve
Fernão Lopes foi o primeiro cronista do Reino, reconhecido pelo seu método rigoroso, estilo de prosa “realista”, sobre quem Alexandre Herculano afirmou já “ter nascido historiador”. Lopes teve importancia decisiva na reconstituição do passado nacional nos finais da Idade Média e na descrição das mudanças estruturais ocorridas num período turbulento, a crise 1383-1385, com ascensão de D.João I e o início da segunda dinastia. Questiona-se hoje os motivos porque Fernão Lopes deixou para outro a tarefa da descrição da conquista de Ceuta de 1415, sucesso que antecede a descoberta da Madeira e dos Açores, ao qual o Algarve esteve ligado. D. João I e os príncipes regressaram de Ceuta por Tavira e na cidade o
futuro rei D. Duarte e seus irmãos D. Pedro e D. Henrique foram distinguidos com honrarias e doações. Sucedeu-lhe Gomes Eanes de Zurara, homem ligado ao Infante D. Henrique, a quem dedicou textos laudatórios que viriam a originar a lenda do “Navegador”, na qual o Infante aparece como visionário e quase exclusivo obreiro das Descobertas Portuguesas. Alexandre Herculano refere que com Zurara houve, em relação à obra de Fernão Lopes, uma alteração do conceito de história e António José Saraiva chamou-lhe “ historiador da nobreza e dos seus ideais” como o confirma as obras que escreveu para casas senhoriais. Entre os cronistas mais relevantes da época, sobressaem Garcia de Resende, que foi “moço de escrivaninha” de D. João II e João de Barros com vivências e grande experiência no Oriente e que a pedido de D.João III escreveu “As décadas da Ásia”.
O mais destacado homem de letras do Algarve nesse século foi Jerónimo Osório (1506-1580), Bispo de Silves, humanista e latinista de renome, homem viajado e contrarreformista, escreveu “Da vida e feitos de El-Rei D. Manuel I”. O século XVI, pleno de movimentos de ideias, revoluções tecnológicas e artísticas, deixou marcas que permanecem em Portugal, na Europa e no mundo. Vários autores descreveram o Algarve quinhentista em textos que merecem especial referência. João Cascão, escudeiro de D. Sebastião, acompanhou o jovem monarca nas visitas pelo Algarve, entre Janeiro e Fevereiro de 1573, preparatórias da “jornada de África”, descrevendo-as pormenorizadamente na “Relação da jornada de El-Rei D. Sebastião quando partiu da Cidade de Évora”. No contexto das descrições do Algarve merece também referência a “História do
Reino do Algarve” de Henrique Fernandes Sarrão, mas o destaque maior vai para a obra de um religioso que viveu e morreu no Algarve na segunda metade do século XVI, Frei João de São José. Frei João de São José, natural de Tentúgal, religioso agostinho, publicou em 1577 a “Corografia do Reino do Algarve dividida em quatro livros ”que o historiador Joaquim Romero de Magalhães, recentemente falecido, considerou“ a mais notável corografia do Renascimento em Portugal”. Foi prior em Tavira, cidade onde terá falecido em 1580, ano também da morte de Jerónimo Osório e da perda da nacionalidade por morte do Cardeal D.Henrique, com disputa sucessória e intervenção militar de Felipe II. Pertencia à mesma ordem religiosa e foi contemporâneo de Frei Valentim da Luz, do Convento de Nossa Senhora da Graça em Tavira,
frade agostinho condenado pelo Tribunal da Inquisição, queimado em 1562 num auto de fé realizado no Terreiro do Paço. A corografia é um género descritivo que se diferencia da Geografia, incidindo numa escala espacial mais reduzida e muito detalhado em pormenores locais. A corografia do Reino do Algarve de Frei João é uma obra incontornável sobre o século XVI na região, inicia-se em Aljezur e termina em Alcoutim, com descrições detalhadas sobre as qualidades da região, origens e como se divide, produções agrícolas, pescas, as cidades e localidades… Medida de valorização histórico-cultural da região, num momento em que se vão completando efemérides importantes para a História do Algarve e do País, seria a reedição da Corografia de Frei João de São José e a sua divulgação pelos estabelecimentos e alunos do ensino secundário algarvios. l
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ARTES VISUAIS •••
Pode a arte visual ser sazonal? Saul Neves de Jesus
Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; https://saul2017.wixsite.com/artes
É óbvio que a arte visual ocorre em qualquer altura do ano. No entanto, há produções artísticas que requerem condições climatéricas para poderem ser realizadas. Por exemplo, o Inverno é, nalguns países nórdicos, o período ideal para serem produzidas esculturas e estruturas com gelo, as quais permanecem construídas durante esse período do ano em que as temperaturas são muito baixas. A sua durabilidade é limitada, pois com o calor a água gelada começa a derreter, mas isso representa uma solução sustentável na produção artística. O aproveitamento das condições climatéricas para a produção artística ocorreu este Inverno nos EUA, em
Imagem do “Sand City” no Verão do Algarve •
particular no Estado do Minesota, em que as temperaturas atingiram os 50 graus negativos. Assim, surgiram muitas “exposições” de roupa congelada na neve, tendo até sido criado um desafio designado por “frozen pants”. Em artigos anteriores havíamos abordado o processo de democratização da cultura, através da
introdução da arte no quotidiano das pessoas, nos locais ou espaços que estas frequentam. Para além da arte urbana, também a “land art” (“arte da terra” ou “arte sobre a paisagem”) tem contribuído para uma maior ligação das pessoas às produções artísticas. Nesta perspetiva sazonal e da produção artística a partir da natureza,
no Algarve, desde o Verão de 2003, ocorre o Festival Internacional de Esculturas em Areia (FIESA). Este é considerado o maior evento do género em todo o mundo por utilizar cerca de quarenta mil toneladas de areia. Ao longo de 15 anos foram esculpidas mais de 700 obras originais, que se destacam pela técnica, pela estética e pela dimensão. As esculturas chegam a atingir os doze metros de altura e reproduzem, com grande detalhe, pessoas, objetos e cenários. Tendo sido realizado em Armação de Pêra, no concelho de Silves, até 2018, este ano a exposição está a decorrer em Lagoa. O parque temático designa-se Sand City Algarve, ocupando um terreno de cinco hectares, em que uma equipa internacional de 54 escultores construíram, usando várias técnicas de esculpir em areia, recriações de alguns dos mais célebres monumentos do planeta, tendo em conta que o tema é uma volta ao mundo em esculturas de areia. No mesmo espaço pode ser encontrada a Torre Eiffel (Paris, França), a Estátua
da Liberdade (Nova Iorque, EUA) ou a Torre de Belém (Lisboa, Portugal). Além disso, há uma zona dedicada ao mar, procurando mostrar o impacto negativo que os plásticos têm tido no ambiente marinho. A componente ambientalista desta exposição existe pela abordagem deste tema, mas sobretudo porque se trata da utilização de material reciclável e reutilizável, inserindo-se numa perspetiva de economia circular. Assim, quer as produções artísticas que usam o gelo, quer as que usam a areia, são sustentáveis, pois permitem a reutilização da matéria usada, não causando danos no meio ambiente. E é sobretudo esta perspetiva que gostaríamos de destacar neste artigo. O aproveitamento das condições climatéricas sazonais pode permitir uma produção artística mais “amiga do ambiente”, contribuindo para a sustentabilidade do planeta. Terminamos com a sugestão para visitarem o FIESA 2019, o que poderá ser feito até 8 de novembro. Vale a pena… l
ESPAÇO AO PATRIMÓNIO •••
Fotografando o Algarve há mais de duas décadas: “Expondo, exponho-me” Filipe da Palma
Fotógrafo
Fotografando o Algarve há mais de duas décadas, em seus aspectos mais singulares, com especial atenção aos testemunhos ainda tangíveis de uma arquitectura aqui produzida e desenvolvida na primeira metade do passado século, encontro-me hoje na posse de milhares de imagens que dão corpo a um discurso antagónico a um outro, sendo este último simplório e redutor, acerca da Arquitectura Popular na Região do Algarve, cuja existência domina ainda sobre a maioria da população. De facto, se por um lado o discurso dá os primeiros passos de mudança ao nível da produção de conhecimento dentro das Universidades, revelando uma complexa e variada ocupação e vivência do espaço; por outro assiste-se, a um mesmo compasso, ao confinamento do mesmo a essas mesmas instituições não contagiando a população e desta forma perpetuando não só uma ideia errada acerca da Região,
mas igualmente condenando os testemunhos ainda existentes a uma efemeridade que não se coaduna com um possível estatuto que poderiam vir a lograr, se fossem reconhecidos enquanto Património. Somos educados no sentido do Património erudito e religioso, altaneiro e majestoso, formatados por doutrinas de criação de uma unidade de imagem de uma Arquitetura Algarvia alva e utilitária - uma determinada arquitectura popular do Algarve, cuja existência se caracterizava por elementos ligados somente à estética do prazer visual, encontra-se remetida para as sombrias dobras da História, onde nunca se deverá entrar, pois quem o fizer cairá no campo do exótico, do pastiche, da bizarria. Penso que não erro ao escrever que já todos teremos experimentado sensações transmitidas pelas ruas por onde caminhamos, e se algumas poderão transmitir a frieza dos alumínios, repelindo; outras transmitirão a maciez da madeira, envolvendo-nos. Nas urbes, sendo as ruas um espaço público confinado pelas fachadas das habitações, ao percorrê-las, já todos pensámos na
falta de urbanismo ligada a uma recente construção ou, pelo contrário, julgámos estar perante um tesouro: um testemunho de um Tempo Outro. “Já elaborei exposições por todo o território” A partir de certo momento que não saberei precisar no tempo, vi-me com um corpo de trabalho já imenso, e capaz - quer pelo seu número quer pela diversificante riqueza por si representada - de ser exequível a ideia de edificação de uma exposição em cujas linhas estivessem contidos os múltiplos elementos que imprimem à arquitectura algarvia um cunho singular e diferenciador. A primeira oportunidade surgiu na forma de um convite feito pelo saudoso António Rosa Mendes, para elaborar uma exposição de raiz na biblioteca da Universidade do Algarve. Concebi a criação de um conjunto expositivo a partir das existentes mesas-vitrine (cerca de 20) em cujo interior dispus cerca de 600 imagens impressas, sendo que todas elas se encontravam veladas sob uma camada de areia da praia, obrigando o
espectador a afastar a areia dos olhos, no que se assemelhava a um arqueológico exercício, para se poder ter acesso a uma outra realidade. A par tir Filipe da Palma já expôs os seus trabalhos por todo o país • desse momento até aos dias de hoje, elaborei exposições vezes do dia-a-dia, um conjunto ou por todo o território, tendo sempre um pequeno elemento, trazê-lo de presente a tentativa de mostrar a um dissolvente firmamento para a existência de uma riqueza arquite- altura dos olhos ou à distância tangítónica presente nas formas, cores, vel do toque confere a tal elemento influências, materiais e soluções. na imagem representado uma outra Assim, pensando nas razões que visibilidade, uma outra existência, me levam a edificar um conjunto tornando-se possível não somente expositivo e a colocá-lo perante o a criação de uma políedra imagem olhar do outro, será não somente acerca da Arquitectura Popular Alo desejo de mostrar o trabalho por garvia como a sua sedimentação mim desenvolvido, fruto de paixão, enquanto existência sob ameaça. mas igualmente de uma tentativa de contaminação do próximo para que Se puderes olhar, vê. igualmente inscreva em si a importânSe podes ver, repara. cia da existência de tais elementos. Livro dos Conselhos Ao subtrair à realidade, muitas das d’El-Rei D. Duarte l
13 de Setembro de 2019
CULTURA • SUL
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FILOSOFIA DIA-A-DIA •••
Filosofia a duas rodas: pela nossa N2 Maria João Neves Ph.D Consultora Filosófica
A filosofia começa com o espanto. Assim reza o livro alfa da Meta�ísica de Aristóteles. A filosofia começa, portanto, com a capacidade de se surpreender, de se maravilhar. Viajar cria condições favoráveis para que tal aconteça. Abandonamos hábitos e rotinas, saímos desse quotidiano que conhecemos demasiado bem. Ao viajar, retiramos o manto de indiferença que cobre o mundo impedindo-nos de o apreciar. Como diz Charles Feitosa “Filosofar é migrar voluntariamente, exilar-se da própria casa, da cidade, de si mesmo (...) passamos a perceber de forma mais apurada as coisas e tornamo-nos revolucionários!” Viajar de mota é como colocar especiarias na comida! Os cheiros, os recortes da paisagem, os sons, tudo se intensifica! Podemos deslizar devagar, ou correr velozes. Viajar de mota é ter o corpo sempre presente: manter o equilíbrio em duas rodas, inclinar-se nas curvas durante o tempo necessário para as superar sem cair, retesar braços e levantar-se nas lombas e, sobretudo, encontrar a forma de relaxar entre uma coisa e outra. Viajar de mota é sentir o erotismo da deslocação do ar, a adrenalina da velocidade que se expressa no roncar dos motores, e uma sensação de liberdade que nos invade a alma!
Era uma vez três amigos e duas motas, um pano do motoclube de Faro, muitos pins, e uma pendura inexperiente mas entusiasmada: Live to ride and ride to live! Veremos se te aguentas! No meu espírito relembro as palavras de Raul Proença: “Quem é assim disposto para a felicidade não tem que lamentar as
estopadas dos caminhos.” (Guia de Portugal, 1927). E assim fizemos Faro-Chaves num dia para depois começar a saborear a descida pela lendária N2. As estradas não ligam apenas lugares, ligam pessoas. Pela N2 há colegas de curso ao longo das povoações. São memórias colectivas de há muitos anos que agora se revivem em redor de uma bela posta de bacalhau - tão alta como jamais vi! - , bem regada com um tinto a condizer! O casal amigo que nos recebeu no km Zero em Chaves foi tão bom cicerone que quase se torna difícil iniciar a viagem. A Ponte Trajano - ex libris da cidade - resiste às intempéries do Tâmega há cerca de 1900 anos e seduz, quer de dia quer de noite. Nas suas margens encontra-se o Museu Nadir Afonso com arquitectura de Siza Vieira - aqui o deleite é duplo, quer na geometria virtuosa e colorida das telas de Nadir, quer nos amplos espaços que Siza concebeu para as albergar. A gastronomia do lugar é saborosa e farta, não podendo dispensar-se o famoso pastel de Chaves. Depois de tanto prazer dado ao palato, recomenda-se beber a água que brota a 73 graus e tem a tradição milenar de cura de afecções músculo-esqueléticas, do aparelho digestivo e respiratórias, e também se diz benéfica para a prevenção de mazelas modernas como o stress e a ansiedade. Os seus vapores na noite fazem pensar que em tempos idos também aqui existiriam pitonisas. Nas redondezas é impossível não experimentar mais nascentes que brotam por toda a parte: Campilhos; Pedras Salgadas, Vidago... Mesmo junto ao marco do kilómetro zero encontramos em estética motard um bar/restaurante homónimo e a loja de recordações Templo N2, que abriu em Julho deste ano e é já um enorme sucesso! Descemos por Vila Real e na Régua a respiração suspende-se com
a beleza da paisagem! Fica a vontade de um passeio de barco pelo Douro e as visitas às vinhas da região. Junto ao rio, pedimos uma limonada fresca com hortelã para retemperar as forças e seguimos caminho. A cada curva a paisagem deslumbra! Mais abaixo a estrada divide duas pequenas povoações: Matança, para a direita, e Forca para a esquerda. Caso para dizer: venha o diabo e escolha! Em Lamego pelas festas de Agosto colocaram um palco gigante mesmo em frente da monumental escadaria de acesso ao Santuário de Nossa Senhora dos Remédios! Haverá remédio para tamanha insensibilidade?! Rodeamos e subimos. Lá em cima, longe do check sound, é possível ouvir o silêncio e estender o olhar. A igreja está aberta e, pelos claustros, ensaiam espontâneos elementos do coro. Seguimos o caminho abençoados... Boa a benção que nos enche os depósitos da paciência! É que desce o crepúsculo e em Viseu das rotundas perde-se a N2! Não há como! Nem perguntando a Viriato “destro na lança mais que no cajado” (Lusíadas, VIII)! Por muito fieis que queiramos ser, só seguindo um pouco pela IP3 se sai daquele rodopio! É noite cerrada quando chegamos a Tondela, onde a generosa hospitalidade de antigos colegas não cessa de surpreender. Grelha-se no jardim carne da melhor, tão abundante que recorda as hecatombes descritas na Odisseia, e fazem-se libações aos deuses da amizade, esta que cai em cascatas de gargalhadas na recordação dos episódios caricatos, ou nas graças novas que se geram ali mesmo, ao sabor fotos JoÃo dias e honorato
grilo
do momento. É a festa! É a alegria! É a dança! É o deslizar do corpo e da mente para esses vestígios de ritual dionisíaco dos tempos modernos. E é já tão tarde que se tornou manhã cedo... E quando de novo entardecemos não resistimos aos encantos da Fonte da Sereia que nos incita a conhecer a praia fluvial de Nandufe. Tão pequena mas tão bela! Dir-se-ia que podemos espreitar o habitat natural destas criaturas míticas. Em Santa Comba Dão vem à mente a polémica sobre a criação do Museu Salazar e a petição em contra que circula pela opinião pública via internet. Períodos nebulosos da nossa história a coincidir com esta manhã de pouca visibilidade. Desaguamos na lindíssima praia fluvial de Góis, com o seu areal branco no meio do rio e uma ampla esplanada por cima das águas. Enquanto degustamos uma bela alheira recordo que também Michel Vaillant - o meu piloto herói de banda desenhada - andou por aqui! Prosseguimos rumo a Pedrógão Grande. Em contraste com o verde de mais acima, o coração aperta à vista das árvores queimadas, e à ausência da ve g e t a ç ã o rasteira que ainda não recuperou! Pesarosos, recordamos o inferno que aqui se viveu em Julho de 2017. Apesar da proximidade com a grandiosa barragem de Cabril, o socorro não chegou a tempo! Com 66 mortos
e 254 feridos foi o maior incêndio florestal de sempre em Portugal e o mais mortífero da história do nosso amado país. Amado?! Sim, porque é impossível não se amar Portugal ao percorrer a N2. E aqui, em Pedrógão Grande, este amor dói. A próxima paragem será doce, palha de Abrantes. Do castelo-fortaleza alongamos o olhar a perder de vista. Daqui em diante a bacia hidrográfica do Tejo exibirá o seu esplendor, pela ribeira do Sôr, sobretudo nos quilómetros que ladeiam a enorme extensão de água do vale do Sorraia, que beneficia das barragens de Montargil, Maranhão e Magos. Os nomes das povoações fazem-lhe menção: “Água de todos os dias”, ou "Domingão”. Apetece parar a moto e viajar um pouco de canoa, ou estender-se muito quieto e observar as aves. Prosseguimos e o Alentejo estende sobre nós o seu manto de noite estrelada. O cansaço já pesa. Encontramos um belo porto de abrigo em Torrão, onde O Tordo está bem preparado para nos receber. O último dia reserva-nos as surpresas do Museu da escrita de Almodovar e, já prestes a terminar, a N2 faz as delícias dos motociclistas pelas curvas da Serra do Caldeirão. E eis a chegada ao Km 738 em Faro - a viagem terminou! Mas, afinal, é apenas o princípio do tanto que ficou por ver. Fica a promessa de regressar com mais tempo! l
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