Cultura.Sul 138 8MAIO2020

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Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o

MAIO 2020 n.º 138 www.issuu.com/postaldoalgarve

6.618 EXEMPLARES

MISSÃO CULTURA •••

O confinamento e a Arte – o Cinema

Ficha técnica

foto d.r.

Sessão do Programa JCE - Juventude/Cinema/Escola, no Auditório do Museu Municipal de Portimão em 2018 •

Este é um texto que não quereria escrever. Num tempo de confinamento. É neste tempo que parece que a cultura é a salvação. Abrimos as redes sociais, os jornais, as revistas e surgem milhares de propostas para ler livros, ouvir música, concertos, ver filmes e por aí fora … Como bem disse António Guerreiro, no Jornal Público de 27/03/2020, «Estas listas ministradas como fármacos doces e agradáveis dizem-nos, pelo menos, duas coisas evidentes. Em primeiro lugar, que os media têm uma concepção pastoril da sua missão, muito especialmente no que diz respeito à cultura, e animados por essa concepção indicam os caminhos que o rebanho deve seguir para não se sentir completamente perdido e entediado, administram lições e conselhos que têm como pressuposto a ideia de que os leitores e espectadores não alcançaram a maturidade nem a autonomia e devem ser colocados sob tutela. (…) » Tendo a concordar que este tipo de lista nos infantiliza.

Mas nós tornámo-nos crianças perdidas no desconhecido e o nosso anseio de partilhar gostos e de enchermos o tempo e o espaço com os nossos tesouros dá-nos alento e conforto. E voltamos aos nossos valores seguros. Aquelas obras que estão no cantinho mais secreto do nosso ser. E também damos uma espreitadela em obras desconhecidas. E por vezes, embora raramente, escrevamos sobre algo que é importante para nós. É isso que irei fazer. Para vos falar de como o cinema – a 7.ª Arte – é capaz de nos preencher. Hoje estamos impossibilitados daquilo que é sagrado no cinema: o espetáculo em sala escura. Há até quem afirme que irá haver uma mudança de paradigma e que a lógica de Thomas Edison quando inventou o Kinetoscópio vai prevalecer. Edison inventou um processo filmográfico que consistia essencialmente em duas etapas: após a captação das imagens ser feita pelo cinetógrafo, a sequência de imagens era visualizada através de um

óculo dentro de um caixote de madeira. Esse segundo dispositivo era o denominado Kinetoscópio ou Cinetoscópio. Uma pessoa de cada vez introduzia uma moeda e o mundo das imagens em movimento iniciava-se. Era um espetáculo individual que pode ser comparado ao ato de ver cinema em casa. Edison comercializava a sua invenção nos Estados Unidos, mas também veio à Europa para divulgar orgulhosamente o Kinetoscópio. Foi em Paris que o pai dos Irmãos Lumière viu uma demonstração da nova máquina de reprodução de imagens em movimento. Entusiasmado, regressa a Lyon e convence os filhos – Auguste e Louis – a irem mais longe e a criarem uma máquina que projetasse imagens para várias pessoas. Auguste e Louis inventaram o Cinematógrafo. A 28 de dezembro de 1895, realizou-se em Paris a primeira sessão de cinema com este novo aparelho. 33 espectadores terão pago bilhete. Sentaram-se numa sala que ficou escurecida e o milagre da imagem em movimento projetou-se na tela. O cinema, tal

como o conhecemos, começava! Esses espectadores exultaram e transmitiram a outros, que passaram o maravilhamento a outros. Contrariando a premissa dos próprios Lumière «O cinematógrafo é uma invenção sem futuro». Não foi. Assim se têm passado os anos e, se bem que a morte do cinema tenha sido várias vezes anunciada (com o aparecimento da TV, do vídeo, da Internet), nunca tal óbito ocorreu… Porque os amantes de cinema vão sempre preferir o espetáculo coletivo ao visionamento caseiro. O próprio cinema tem-se reinventado com novos formatos, com outro som, com maravilhas da tecnologia e, sobretudo, com temas que nos abrem o Mundo. Assim retomamos o tempo presente e questionamos o futuro. Será que vai haver a tal mudança de paradigma e passaremos todos a ver cinema como Edison o inventou? É preciso mais uma nota para dizer que Edison se converteu ao espetáculo coletivo e iniciou uma guerrilha sobre a patente do cinema. E irá dedicar-se à realização de filmes para salas

Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes Visuais: Saúl Neves de Jesus • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Filosofia Dia-a-dia: Maria João Neves • Letras e Literatura: Paulo Serra • Marca D'água: Maria Luísa Francisco • Missão Cultura: Direção Regional de Cultura do Algarve • Reflexões sobre Urbanismo: Teresa Correia • Colaboradores desta edição: Graça Lobo, Vítor Azevedo Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/ postaldoalgarve FB: www.facebook.com/ postaldoalgarve/ Tiragem: 6.618 exemplares

escuras. Ironia… Por isso mesmo considero que a morte do cinema em sala não irá acontecer. Mas poderemos sempre ver/rever os filmes em casa como forma de um outro prazer – o de termos um outro tempo para a análise. Regressamos às listas e às conversas online. É um prazer partilhar aquilo que gostamos. É um prazer falar com os outros sobre aquilo que gostamos. Tempo para o fazer neste momento não nos falta. Enquanto aguardamos com ansiedade ver um filme em sala de cinema. l Graça Lobo (Técnica superior da Direção Regional de Cultura do Algarve)


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LETRAS E LEITURAS •••

Paulo Serra

Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

A colecção Retratos, da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), traz-nos «um olhar próximo sobre a realidade do país». Cobras, lagartos e baratas - Os melhores amigos do homem? é um retrato contado por Ana Daniela Soares, que viu, ouviu e viveu de perto como os portugueses cada vez mais escolhem répteis, insectos ou anfíbios como animais de estimação, naquele que é um mercado em crescimento – além de que o tráfico de vida selvagem é um dos mais lucrativos, depois do tráfico de drogas e de pessoas (p. 91). Ainda que a companhia doméstica de bichos exóticos possa surpreender e até arrepiar alguns dos leitores – até porque um animal de estimação hoje pode também considerado um parceiro –, este pequeno livro é um trabalho surpreendentemente isento de qualquer juízo de valor, em que a autora reparte em diversos capítulos o que resultou da sua pesquisa, nomeadamente das conversas com tutores, criadores, biólogos (como Élio Vicente, do parque temático Zoomarine), consultores em bem-estar animal, proprietários de lojas de animais e veterinários, de modo a revelar este «admirável mundo novo dos animais exóticos de estimação» (p. 10). Em Portugal, onde se chegou a vender 400 mil tartarugas por ano, há até quem tenha ouriços ou furões. Hoje é legal «ter como animais de companhia determinadas espécies de aranhas, escorpiões, lagartos, cobras, mamíferos como suricatas ou petauros-do-açúcar e até baratas-de-madagáscar, as quais podem atingir 10 cm» (p. 10).... Contudo, neste Retrato descobriremos histórias bastante mais insólitas que ocorrem em Portugal: pitões encontradas abandonadas na natureza, com 20 kg de peso e 1,70 m; crocodilos recolhidos na Barragem de Castelo de Bode com 1,5 m; uma mulher que passeava um elefante pelo Algarve (para sermos claros, tinha 4 m de altura e 4.000 kg); clientes que compram enganosamente mini pigs (moda que começou com George Clooney) que atingem os 100 kg; um senhor, em Portugal, que tinha um casal de leões adultos na sala (apesar das fiscalizações que ocorrem quando surgem denúncias para a apreensão de grandes felinos é preciso ter um mandado; nos EUA, por exemplo, vivem 300 tigres como animais de estimação); pode com-

Cobras, lagartos e baratas Os melhores amigos do homem?, de Ana Daniela Soares foto alfredo cunha

para estarem contidos num apartamento, e são libertados na Natureza, há que ter em conta que eles não estão preparados, depois de criados em cativeiro, para viver livremente e são um risco biológico e ecológico para o nosso ecossistema, inclusive os aparentemente inofensivos peixes vermelhos de aquário ou as tartarugas que podem colocar em risco espécies endémicas como o cágado.... Hoje, aliás, gasta-se mais a erradicar espécies exóticas do que na prevenção dos cuidados a ter com a natureza... (p. 52) Ana Daniela Soares é licenciada em Enfermagem e em Ciências da Comunicação. Integrou os quadros da RTP em 2004. Apresentou e fez reportagem em vários programas, concertos e emissões especiais na Antena 1 e Antena 2. Apresenta desde 2010 a rubrica À Volta dos Livros, transmitida de segunda-feira a sexta-feira, às 17:40 horas e às 21:20, na Antena 1. Em 2013, foi distinguida com o Prémio Pró-Autor, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Autores. Desde 2015 integra o canal de informação RTP 3 onde coordena e apresenta o programa Todas as Palavras. l

/ d.r.

Ana Daniela Soares viu, ouviu e viveu de perto como os portugueses cada vez mais escolhem répteis, insectos ou anfíbios como animais de estimação • prar uma formiga por 500 euros e colónias a vários milhares de euros. Estes animais exóticos são, muitas vezes, sobretudo para contemplação É bom ressalvar que estes animais exóticos são, muitas vezes, sobretu-

do para contemplação, até porque não se deixam manear, pois são de gerações de cativeiro ainda muito recentes, ao contrário de animais domésticos, como os cães, que co-evoluíram com o homem ao longo de centenas de milhares de anos. São animais selvagens, cuja proximidade podem dar aos seus cuidadores,

erradamente, a sensação errada de que podem manifestar afecto (p. 12). Além de que, quando se tornam demasiado grandes

Obra revela o admirável mundo novo dos animais exóticos de estimação •

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Terra Americana, de Jeanine Cummins >

«Uma das primeiras balas entra pela janela aberta por cima da sanita diante da qual se encontra Luca, de pé.» (p. 6) A frase inaugural deste romance agarra de imediato o leitor, até porque a história arranca em plena acção, com mãe e filho a procurarem proteger-se de um tiroteio na casa de banho. Luca, o filho de Lydia, tem oito anos. Os dois são os únicos sobreviventes desse ataque dos sicários naquele que é um bairro bom de Acapulco. Não haverá testemunhas pois apesar do movimento por trás das janelas dos vizinhos, estes já se preparam «para negar credivelmente que viram seja o que for» (p. 12) quando chega a polícia, que também não vai fazer nada, enquanto toda a família (16 pessoas) está morta no quintal das traseiras. A polícia não vai ajudar porque, das mais de duas dúzias de agentes da autoridade e pessoal médico, uma boa parte recebe do cartel da zona 3 vezes o ordenado que o Governo lhes paga. No México, a taxa de crimes por resolver situa-se acima dos 90 %. Sebastián, marido de Lydia, era repórter num local onde os cartéis assassinam um jornalista de tantas em tantas semanas: «Tudo aconteceu tão depressa nos últimos anos. Acapulco sempre teve pendor para a extravagância, portanto, quando finalmente caiu em desgraça, fê-lo com o espectacular espalhafato que o mundo se habituara a esperar da cidade. Os cartéis entregaram-se à farra e pintaram as ruas de sangue.» (p. 63-64) Apesar da acalmia que se instalara mais recentemente, Sebastián fora ameaçado, diversas vezes, para parar de escrever sobre os cartéis: «Uma imprensa livre era a última linha de defesa, dizia ele, a única coisa que protegia o povo mexicano da aniquilação total» (p. 42). E este seu idealismo e integridade pareciam a Lydia uma hipocrisia egoísta. O que ela não sabe é que Javier, o cliente que se tornou um visitante regular da sua livraria e um amigo, é o líder do cartel, pelo que, quando a verdade é desvendada, cria-se uma relação de amor-ódio entre ambos (com ecos intertextuais de O Amor nos Tempos de Cólera, de García Máquez). Ficaremos a saber como esta mãe se sente «esfarrapada como um pedaço de renda, definida não tanto pela matéria de que é feita, mas pelas formas que lhe faltam.» (p. 105), enquanto engole a dor e se empenha em chegar aos E.U.A., o único porto seguro para si e, particularmente, para o seu filho, pois estranhamente parece que é Luca o mais procurado. A forma determinada e calculista, de fria eficácia, com que Lydia supera o trauma e inicia uma fuga pela so-

foto joseph kennedy

lugares e diferentes circunstâncias, uns urbanos, outros rurais, uns de classe média, outros pobres, uns educados, outros analfabetos, salvadorenhos, hondurenhos, guatemaltecos, mexicanos, índios, cada um deles carrega uma história de sofrimento em cima daquele comboio rumo ao Norte.» (p. 183) Terra Americana, de Jeanine Cummins, publicado em Março pelas Edições Asa, também disponível em ebook e com exímia tradução de Tânia Ganho, é um dos livros mais controversos deste ano. A autora foi inclusive acusada de “apropriação cultural” pois é um romance escrito sobre o México por uma autora norte-americana, pelo que não “pode conhecer a fundo a realidade que descreve”. A leitura deste livro quer-se compulsiva, virando as páginas ao ritmo da tensão, e a prosa é belíssima. É particularmente bem conseguida a forma como a narrativa oscila entre a focalização na perspectiva de Luca e da mãe, sem haver uma alternância sistemática entre as personagens, sendo que essa cisão de perspectiva pode ocorrer subitamente de um parágrafo para o seguinte, conforme aprouver melhor vivenciar a intriga por um dos dois migrantes. l

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Jeanine Cummins foi acusada de “apropriação cultural”, por ser um romance escrito sobre o México por uma autora norte-americana • brevivência, pode até desconcertar o leitor mas, como afirma o narrador, «se há uma coisa boa no terror é o facto de ser mais imediato que o luto» (p. 31). Lydia deparar-se-á, por fim, com a única forma possível de migrar para o país vizinho: «Lydia estuda os comboios de mercadorias em que se deslocam os migrantes da América Central, de uma ponta à outra do país. De Chiapas a Chihuahua, agarram-se ao cimo dos vagões. O comboio ganhou o nome La Bestia, porque a viagem é uma missão de terror em todos os sentidos possíveis e imagináveis. A violência e os raptos são endémicos ao longo da linha férrea e, além dos perigos criminais, os migrantes também correm o risco, todos os dias, de ficarem mutilados

ou de morrerem, quando caem do alto dos comboios.» (p. 87) Livro é um dos mais controversos deste ano A Besta: uma viagem de comboio a que todos os anos sobrevive meio milhão de pessoas. Nessa viagem, Luca, o nosso pequeno herói, «um homem de idade num corpinho mínimo» (p. 178), e a sua mãe conhecerão ainda personagens fascinantes com quem partilham o fado de terem de mudar de país para se manterem vivos, afastando-se da violência ou da miséria: «é aquilo que todos os migrantes têm em comum, é aquela a solidariedade que existe entre eles, apesar de virem todos de diferentes

Livro foi publicado em março pelas Edições Asa •


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REFLEXÕES SOBRE URBANISMO •••

Cidades, isolamento social e a arquitetura fotos d.r.

Teresa Correia

Arquiteta / urbanista arq.teresa.correia@gmail.com

O isolamento social como um fator de segurança De forma surpreendente, a nossa população cumpriu exemplarmente as indicações no sentido do seu confinamento, demonstrando um grande sentido cívico. Os idosos estão em casa, até por vezes, excessivamente isolados, as cidades estão mais vazias, e a circulação rodoviária é muito menor. Ninguém questiona que o isolamento social se constituiu como um fator de segurança do ponto de vista sanitário. Porém, quem por acaso circulou a pé mesmo que por trajetos curtos, pelas ruas na cidade de Faro, quase inevitavelmente se encontrou com um sem-abrigo, ou alguém a pedir esmola. Não são poucos, e agora com as ruas vazias, salientam-se, não existindo, provavelmente, casas-abrigo para este tipo de população. Não existem reações suficientemente fortes por parte do Estado para este tipo de população indigente, verificando-se apenas uma solidariedade ocasional. Por outro lado, os pequenos egoísmos salientam-se relativamente ao emprego, ao teletrabalho, ao dever

A população cumpriu exemplarmente as indicações no sentido do seu confinamento, demonstrando um grande sentido cívico • As cidades pós-Covid e a problemática dos espaços verdes Perante tão grave crise, ficou patente que será importante planear de forma adequada, com o justo equilíbrio entre os espaços construídos e os vazios, com espaços verdes inseridos nas malhas

Os idosos estão em casa, por vezes excessivamente isolados, as cidades estão mais vazias • que ficou por cumprir, à visita ao próximo que não se fez, ao espaço familiar que se reduziu ao núcleo. Na verdade, a saúde pública é uma condição que se sobrepõe a tudo o resto, pelo que o isolamento social só pode ser considerado como uma medida excecional e transitória, porque o custo é elevadíssimo, em termos sociais, económicos e humanos.

urbanas, e com uma densidade urbanística equilibrada. A qualidade das nossas cidades é agora colocada à prova, de forma a que seja possível, percorrer as ruas, sem congestionamento, fazer um exercício físico individual em parques verdes largos e amplos, ou ir ao centro comercial ao ar livre. Estamos na fase das revisões dos

PDM´s no Algarve, pelo que será importante a ponderação da qualidade e da proporção dos nossos espaços verdes, e do seu correto dimensionamento. A importância das árvores e dos espaços lúdicos é agora reforçada, impondo-se a necessidade de criar um fator de dimensionamento apropriado ao nosso clima, sociedade e território. Os arquitetos são chamados a ter um papel ativo neste planeamento, sendo aqueles que mais qualificados estão para a construção da cidade. Este saber deverá ser empregue em cada caso, tendo por base a análise da envolvente onde irá intervir a exposição solar, as vistas, o tipo de sistemas construtivos que utiliza, os valores arquitetónicos em presença e, sobretudo, com a qualidade do espaço que irá proporcionar. Construir edifícios e cidades saudáveis é complexo e não existem regulamentos e regras suficientes que possam produzir a qualidade de vida gerada por um edifício ou um espaço público bem projetado. Os regulamentos podem evitar o pior, mas não geram o melhor. A qualidade é gerada pelo correto posicionamento de todos os elementos face ao problema em causa, ou ao objetivo pretendido. Daí, a arquitetura é uma arte e uma técnica simultaneamente, que deverá ser respeitada e estimulada por todos, mas sobretudo pela nossa administração pública.

O ato de projeto como fator de salubridade das cidades A realidade é que a maior parte da produção de projetos públicos é hoje feita normalmente internamente pelas próprias autarquias, existindo pouca encomenda externa. Acontece que os próprios técnicos municipais estão, por vezes, extremamente sobrecarregados e é-lhes exigido um esforço extra de produção de projetos e planos, o que não abona à qualidade e à diversidade, por manifesta falta de tempo e recursos. Os decisores das

mais e melhor. Esse desafio que nos é agora apresentado, após a crise, deverá ser uma oportunidade para que possa ser dado um papel a outros intervenientes, e estes possam projetar uma visão apropriada, tanto no espaço público, como na mobilidade, ou nos edifícios. Será fundamental a criação de parcerias entre autarquias, Estado e entidades credíveis como a Ordem dos Arquitetos, por exemplo, para que haja um posicionamento correto face ao que será necessário fazer tanto em termos de legislativos

Os decisores devem agora refletir se a salubridade das nossas cidades não merece mais e melhor • nossas cidades devem agora refletir se a salubridade das nossas cidades, com um planeamento de pormenor, e de diferentes escalas, não merece

como em boas práticas, na área do Planeamento e da Construção, com vista a um melhor desempenho na saúde pública. l


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ARTES VISUAIS •••

Como visitar museus em tempos de Covid19? fotos d.r.

Saúl Neves de Jesus

Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; http://saul2017.wixsite.com/artes

Têm sido várias as semanas de confinamento a que têm sido sujeitas as pessoas de muitos países, como forma de limitar a proximidade social, para diminuir a probabilidade de contágio e propagação do novo coronavírus. Mas mesmo terminando o estado de emergência nos vários países, as restrições em espaços públicos irão manter-se por algum tempo. Os museus e espaços de fruição de artes visuais não são exceção.

Imagem do site da Google com as opções de museus para visitas virtuais •

Imagem do site do Museu do Vaticano com as opções de possíveis visitas virtuais, nomeadamente da Capela Sistina • Assim sendo, têm sido muitos os museus que, embora estando encerrados para visitas presenciais, têm criado a possibilidade de visitas virtuais às suas exposições. Embora nada supere uma visita presencial, a era digital tornou possível fazer visitas virtuais pelas coleções dos museus, enquanto permanece confortavelmente sentado no seu sofá. Não é necessário viajar pelo mundo para participar em atividades culturais interessantes, pois algumas podem mesmo ser desfrutadas a partir de casa. Sem ter necessidade de viajar, sem filas e tempos de espera, para além de não ter que pagar ingresso, pode ficar a conhecer muito do conteúdo dos principais museus do mundo através dos seus sites, sem pressas. Esta é seguramente uma boa forma de aproveitar o isolamento social, entrando pelas “portas” digitais desses museus.

Numa iniciativa promovida pela plataforma da Google dedicada à arte e à cultura, e pensada em todas as pessoas que estão em isolamento pelo mundo, várias centenas de museus juntaram-se para oferecer estas visitas online às suas coleções. Através do site https://artsandculture.google.com/partner?hl=en pode visitar e conhecer as obras que se encontram no Rijksmuseum ou no Museu Van Gogh, na Holanda, mas também ver a coleção do Museu do Louvre ou do Museu d’Orsay, em França, ou o espólio do MoMA Museu de Arte Moderna, do Museu Solomon Guggenheim ou da Galeria Nacional de Arte, nos EUA. De Portugal podemos encontrar o Museu Coleção Berardo e o Museu Calouste Gulbenkian, em Lisboa. A lista inclui ainda a Galeria de Arte Vancover, no Canadá, o TATE ou o

Imagem do início da visita virtual à Capela Sistina, em que cada um pode gerir as aproximações feita no espaço •

British Museu, em Inglaterra, a Belvedere, na Áustria, o Museu de Arte Moderna, no Japão, o Museu Pera, na Turquia, o Museu Nacional de Arte Moderna e Contemporânea, na

que era conseguir-se uma visita presencial antes da pandemia, pois só a podiam visitar um número limitado de pessoas em cada meia hora e com bilhetes comprados habitualmente

Imagem durante a visita virtual à Capela Sistina • Coreia do Sul, a Galeria Nacional de Singapura, em Singapura, o Museu do Palácio, na China, o MOCA-Museu de Arte Contemporânea, na Tailândia, a Galeria Nacional de Arte Moderna, na Índia, o Museu Dolores Olmedo, no México, o MATE-Museu Mario Testino, no Perú, o MASP-Museu de Arte de São Paulo ou o Museu da Língua Portuguesa, no Brasil, o Museu Botero, na Colombia, o Museu Arqueológico de Atenas, na Grécia, o Museu do Prado, o Museu Thyssen-Bornemisza ou a Teatro-Museu Dalí, em Espanha, o Museu Hermitage, na Rússia, o Museu de Escultura Dresden, na Alemanha, a Pinacoteca de Brera, a Galeria Uffizi ou os Museus do Vaticano, em Itália. Escolhi apresentar algumas imagens da Capela Sistina, que integra os Museus do Vaticano, tendo em conta a sua importância na história e na arte, bem como a dificuldade

com meses de antecedência. É nesta Capela que se realiza o Conclave, quando é necessário escolher um novo Papa, e as suas pinturas foram feitas no final do século XV e início do século XVI. Em particular, na parece do altar encontramos “O Juízo Final”, de Michelangelo (1534). Temos, assim, uma excelente oportunidade de emergir na história e na arte através das visitas virtuais a museus! Gostaria de terminar este artigo salientando que a arte também está na forma de observar e usufruir aquilo que está à nossa volta, pelo que, após o período de confinamento em que nos encontrámos devido ao estado de emergência, devemos procurar apreciar aquilo que nos rodeia, com consciência plena, foco, calma, serenidade e gratidão pelos momentos em que fruímos e comtemplamos cada pormenor... l


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MARCA D'ÁGUA •••

Qualquer semelhança com a ficção… é cada vez mais realidade Maria Luísa Francisco

Andar ao sol a fazer exercício é mais uma terapia do que uma higiene!

foto d.r.

Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa luisa.algarve@gmail.com

A tecnologia é um facilitador e responde às nossas necessidades

“As sociedades são conduzidas pela sua tecnologia, mas são definidas pela sua humanidade.” Gerd Leonhard Hoje em dia somos, de facto, conduzidos pela tecnologia sem a qual nos sentimos isolados ou perdidos. Através da tecnologia e dos meios de comunicação social chegam-nos, entre milhares de imagens, novas palavras que passaram a fazer parte do nosso novo vocabulário covídico! Agora a palavra do dia tem sido “desconfinamento”, depois de há cerca de dois meses o “confinamento” ter sido a palavra, provavelmente, mais pronunciada. As palavras têm muito peso em nós, ainda que inconscientemente. O substantivo confinamento, é muito redutor. Poderíamos usar a designação recolhimento, até porque é uma palavra à qual associamos um tempo de introspecção e reflexão. Experimentem dizer “estou recolhido/a” e a seguir dizer “estou confinado/a”. Há uma sensação diferente ao dizer uma ou outra palavra. Ao sentir que estamos recolhidos, associamos a essa palavra algum sentido de liberdade de pensamento, de retiro e auto-encontro e até

a sensação de opção. Por sua vez, quando se diz “estou confinado/a” não temos a sensação de liberdade ou de opção, porque a palavra soa a obrigação, a limitação e soa a “finado”! Se pensarmos que não estamos confinados em casa, mas estamos em casa por solidariedade, por respeito pelo futuro de todos nós, acabamos por sentir que é um recolhimento

responsável e um recolhimento solidário. Outra palavra que se usa muito é “higiénico”, como se não bastasse a corrida ao papel higiénico no início desta pandemia, ainda temos de ouvir essa palavra associada aos passeios! Quando muito os passeios são terapêuticos. Saímos para apanhar sol, o que é excelente para obter vitamina D e para fazer exercício físico.

Temos a tecnologia ao dispor e ela aproximam-nos dos outros. Passamos parte do dia a comunicar ou consultar redes sociais, a atender telefonemas, a escrever e responder a sms’s, a escrever e-mails, a receber e partilhar vídeos e a ler jornais digitais. Por exemplo, as reuniões através do Zoom, Skype ou Teams vêm mudar a forma de estar em equipa. E há um detalhe muito interessante: as reuniões começam sempre a horas e intervém uma pessoa de cada vez, o que não acontece assim tanto nas reuniões presenciais. Acredito que depois da situação de pandemia estar mais controlada, muitas empresas e entidades públicas continuarão a utilizar esta forma de reunir. Para além da redução de custos com deslocações, permite mais foco e atenção durante as reuniões. Estamos digitalmente mais experientes e esta tendência cada vez mais se reflecte nos nossos hábitos, como por exemplo nas compras online e na leitura do jornal online. Com tudo o que foi referido, e graças à internet e aos telefones, creio que nós não estamos socialmente isolados. Imaginem como terá sido com a pandemia de há 100 anos, em que não havia internet, nem telemóveis. Isso sim, foi isolamento social. Na semana passada participei num encontro de escritores através da plataforma Zoom e foi fantástica

a partilha, de certeza que durante aquela hora ninguém se sentiu socialmente isolado. O ser humano é um ser social, mas essa vertente, nesta fase, tem sido colmatada, tal como referi, com o acesso às novas tecnologias a partir de nossas casas. O ser humano é igualmente um ser de contacto físico e talvez essa ausência seja mais estranha nesta altura. Se alguém está triste, podemos dizer-lhe muitas palavras empáticas, mas um abraço caloroso e atencioso será muito mais eficaz. É certo que agora não são recomendados abraços, no entanto há novas formas de sermos presença, de sermos solidários, de sermos esse abraço, que apesar de intocado nos torna mais humanos. Têm razão aqueles que defendem que a vida nunca mais será a mesma depois desta pandemia. Começamos a fazer cenários, a recordar filmes de ficção científica, mas não sabemos ainda para onde estamos a caminhar. É isso o futuro, o desconhecido, o incerto. No entanto, uma coisa é certa, dependeremos, daqui para diante, mais uns dos outros do que alguma vez teremos dependido. Já estamos a experimentar essa mudança e está a ser muito rápida. Apesar da semelhança entre o que há décadas era ficção e hoje vai sendo realidade, existe em nós a esperança de um mundo melhor. Gerd Leonhard refere que os próximos 20 anos irão trazer mais mudança do que os últimos 300 anos e a ficção científica irá dar lugar à realidade científica. Fiquemos seguros e atentos aos próximos capítulos da humanidade! l

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FILOSOFIA DIA-A-DIA •••

5 Anos de Café Filosófico! Que desafio?! fotos d.r.

Maria João Neves Ph.D Consultora Filosófica

O Café Filosófico teve o seu início na Casa Álvaro de Campos em Tavira em Maio de 2015. Cumpre agora 5 anos, é um marco! Os participantes deslocam-se de várias localidades algarvias para estes encontros mensais que se realizam em Tavira ou Faro. Por que se darão a tanto trabalho? Que traz o Café Filosófico às suas vidas? Para esta edição do quinto aniversário resolvi recolher alguns testemunhos: “Participar nos encontros do Café Filosófico foi como um convite à visitar áreas do conhecimento que minha vida académica e profissional ainda não haviam me propiciado. Visitar a História, Lugares e Ideias que formaram (e continuam formando) nossa civilização, com este grupo eclético, é ter a oportunidade de, ao menos uma vez por mês, sair do quotidiano e saltar para outro tempo/espaço. São Textos, Poemas, Música, e tantas outras expressões que ampliam os horizontes humanos, há milénios! Fui cativado logo no meu primeiro evento. Não buscamos a essência académica como poder-se-ia inferir. Ao contrário, estendemos o convite a qualquer interessado e praticamos a diversidade. Seja das ideias que discutimos, seja das opiniões que temos. O que podemos aprender e ensinar? Mensalmente recebemos a inspiração através desta coluna, publicada pela Doutora Maria João Neves jornal Postal do Algarve/Cultura Sul; e frequentemente inspiramos a matéria a explorar no mês seguinte. Dos Gregos aos Millenials, não há restrições à contribuição. Ao contrário, a sua narrativa é o ponto alto de nossos encontros ! Aos 60 anos, já não sou mais menino. Tive oportunidade estudar agronomia, químicos de engenharia e até finanças, posto que minha vida profissional foi generosa em oportunidades. Aliás, já nasci Alemão no Brasil, com o improvável nome Ingo, e fui Brasileiro na Alemanha. Vivi na Europa e nas Américas, passei períodos na Asia. Na diversidade busco o caminho para tolerância e solidariedade. O Café Filosófico permite praticar isto aqui mesmo, no Algarve.” Ingo Lipkau, empresário, Albufeira.

Primeiro Café Filosófico em Tavira, Casa Álvaro de Campos, Maio de 2015 • “Vivemos um momento ‘intrinsecamente filosófico’ de paragem colectiva e reflexão (que bom se, também ela, fosse colectiva!). ‘Se nada fizermos, somos como prisioneiros. Se nos pusermos a pensar, poderemos seja criar maravilhas e inventar uma outra maneira de viver, seja criar bodes expiatórios e, nesse caso, adicionamos infelicidade à infelicidade’, disse há dias o neuropsiquiatra francês Boris Cyrulnik. Pensamento crítico e liberdade. Lucidez e cidadania. Procura para o sentido da vida. Livre. Lúcida. Que magnífica ideia, professor Marc Sautet! Desde há quase trinta anos, às 11h00 dos domingos no Café des Phares, em Paris. Procura e encontro no ‘café-philo’. Não por diletantismo, nem entretenimento – a necessidade de ser! Assim esta Ria Formosa (para onde a vida me trouxe após o exercício do último posto como diplomata da União Europeia em ilhas do Oceano Índico – umas descobertas pelo português Pedro de Mascarenhas em 1513 e outras, muito antes, pelos fenícios) favoreça a criação de maravilhas, a invenção de outra maneira de viver. Que magnífica ideia, professora Maria João! Desde há cinco anos, um final de tarde por mês entre Tavira e Faro (também por cá andaram os fenícios ...). Longa vida ao Café Filosófico!” Eduardo Vaz, diplomata, Tavira.

“Ao abeirar-me dos 72 anos, a grande maioria usados a estudar e a cuidar, com intervalos de meditação sobre o que observo, lembrei-me de que fui tocado pela análise atenta das moedas de 10$00 emitidas, creio que, entre 1971 e 1974. Aprendi que todas as medalhas/moedas têm duas faces e um bordo e que neste pode estar a mensagem mais importante, como pude mostrar a alguns dos participantes nos cafés. Os cafés permitem desviarmos o olhar das faces da rotina e centrá-lo nas mensagens que tendemos a desvalorizar.” Herberto Neves, médico, Faro.

O Café Filosófico andou, pela cidade de Faro, um pouco como o Fado Vadio. De café em café, sempre à procura de condições ideais para a sua realização, que nunca apareceram. Esta busca fez parte da experiência e, para mim, ainda hoje, me serve de tema de reflexão. No ano passado houve sessões em que saímos do espaço físico do próprio Café Filosófico que me agradaram especialmente: a sessão no motoclube com a presença e testemunho do seu presidente José Amaro, e a sessão no Teatro Lethes em que assistimos à peça de teatro sobre o poeta e filósofo sufi Ibn Qasi. A sessão de Verão, no jardim da casa da Maria João foi outra experiência muito interessante.” Isabel Pereira, engenheira mecânica e escritora, Loulé. Café Filosófico aconteceu em muitos espaços nas cidades de Tavira e Faro Durante este anos o Café Filosófico aconteceu em muitos espaços nas cidades de Tavira e Faro. Os cafés frequentemente com eventos musicais cujo volume impede uma conversa à mesa; os jardins públicos com algum desconforto de vento, insectos ou ausência de casas de banho em boas condições; os espa-

Primeiro Café Filosófico on-line, Abril de 2020 •

“Frequento o Café Filosófico da Doutora Maria João Neves desde o primeiro dos seus cinco anos de existência, em Tavira. Desloquei-me os 45 Km de distância desde Loulé, onde vivo, até aquela cidade para experimentar este espaço aberto de reflexão, que é o Café Filosófico. Por vezes, nessa viagem, tinha a companhia de outras pessoas amigas. Era uma óptima oportunidade para conversarmos um pouco sobre o tema do texto que a Maria João nos Café Filosófico no Motoclube de Faro tinha enviado, ou puSetembro de 2019 • blicado no jornal.

ços culturais por vezes com clientela demasiado ruidosa... A tudo isto o Café Filosófico resistiu, adaptou-se, encontrou alternativas mostrando grande flexibilidade e resiliência. Agora, devido à pandemia, o Café Filosófico enfrenta um novo desafio: estabelecer-se num espaço on-line. Muitos resistem ainda às actividades on-line. Seja pela aversão à tecnologia, seja pelo facto de o encontro pessoal ser um ingrediente muito apelativo destes encontros. Contudo, o espaço virtual apesar de topologicamente distante permite uma elevada intensidade na interacção dos participantes. Constrói-se um universo comunicacional para o qual são transferidas uma grande parte das interacções sociais. Há

até, poderia dizer-se, um quase roçar da experiência da ubiquidade, um transcendermo-nos ao sentirmo-nos próximos apesar de estarmos geograficamente longe. O primeiro Café Filosófico surgiu em França em 1992 no Café de Phares em Paris, iniciativa do filósofo Marc Sautet (1947-1998), autor do livro Um Café para Sócrates publicado em 1995. A sua ideia de trazer a filosofia de volta às suas origens, isto é, para a rua, levando o cidadão comum a reflectir sobre as experiências quotidianas em vez de simplesmente passar pela vida, rapidamente conquistou o mundo. Existem múltiplas variantes das mais às menos estruturadas, mas há alguns elementos comuns: o exercício das capacidades intelectuais, a procura de rigor apesar do ambiente relaxado. O foco coloca-se no entendimento do ponto de vista do outro em vez de se argumentar para ganhar uma discussão. Como já tive ocasião de referir num artigo publicado nesta coluna em 2017 intitulado “Bica, galão ou Café Filosófico?”, esta não é uma simples “conversa de café” a bem do rigor, o Café Filosófico exige um moderador qualificado que seja, pelo menos, licenciado em filosofia. O moderador tenta que os participantes vão além doxa, o mero discurso opinativo ou das ideias mal alicerçadas, promovendo a gestação de um pensamento fundamentado, lúcido e responsável. Nestes 5 anos a propor, a escrever e a moderar o Café Filosófico talvez tenha chegado o momento de também eu partilhar o que é que este significa para mim. Encontro em Nietzsche a forma sintética de o expressar: o Café Filosófico é o círculo que eu escolhi! “Escolha o seu círculo - Livremo-nos de viver num círculo no qual não é possível calarmo-nos dignamente nem comunicar o que temos em mais alta conta, de tal modo que não nos restam para comunicar senão as queixas, as necessidades e toda a história da nossa miséria.” (F. Nietzsche, Aurora) Pelo contrário, no círculo do Café Filosófico não existe essa necessidade nem tendência lamurienta. As experiências pessoais apenas surgem para servir de trampolim no diálogo permanente entre aquilo que é particular e o universal que a todos diz respeito. Aqui encontro as condições de calma, dignidade, empenho e respeito que são ideais para que o pensamento floresça. Também na solidão ou no diálogo que se estabelece com um livro o pensamento prospera. Porém, o Café Filosófico possibilita o pensar em conjunto! Obrigada a todos vós que há tantos anos me acompanham nesta aventura por me propiciarem esta experiência preciosa! l


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8 de maio de 2020

CULTURA • SUL

ESPAÇO ALFA •••

Tempos de reflexão / . . Às vezes ficamos “hipnotizados” pelos equipamentos que temos, pelos que queremos adquirir ou pelas constantes novidades. Será mesmo importante termos mais pixels nas nossas câmaras? Termos uma lente um pouco mais luminosa? Termos mais “milhentas” funções, das quais só utilizamos 10% e muitas delas nem sequer sabemos que existem? Não seremos nós o mais importante, criando, imaginando, alterando o ângulo de visão, inventando alternativa para o flash Na fotografia, como na vida, são os momentos menos bons que nos dão a oportunidade para mudarmos para melhor • ou o spot que não temos, improvisando, utilizando a luz natural a nosso nologia, a nossa visão pessoal, a nossa meio para atingir um fim? o tempo para pensar mais claramenfavor? Percebendo que na fotografia capacidade de inovar, criar, de construir Na fotografia, como na vida, são os te e a oportunidade para mudarmos nós somos mais importantes que a tec- utilizando apenas o equipamento como momentos menos bons que nos dão para melhor. l foto vÍtor aZevedo

Vítor Azevedo

Membro da ALFA - Associação Livre Fotógrafos do Algarve

Agora que estamos em tempo de recolha e introspecção, poderá ser um bom momento para refletirmos acerca da nossa atividade fotográfica, libertos da ansiedade de ir a correr fotografar, aproveitar a oportunidade, fazer mais uma sessão, editar, editar, editar. Claro que temos mais tempo para visualizar e editar aquelas fotos que, há meses, esperam no fundo do disco rígido pela nossa atenção. Mas a minha mensagem é mesmo de reflexão. Analisemos o nosso trabalho. Será que o que até aqui fizemos é mesmo tudo o que gostaríamos de ter feito? Não gostaríamos de ter variado e inovado mais? De buscar novos olhares? Novas leituras? Novas áreas para fotografar?

dr

ESPAÇO AGECAL •••

Cultura portuguesa, o passado e o presente...1 Jorge Queiroz

Sociólogo e gestor cultural, Sócio da AGECAL ‒ Associação de Gestores Culturais do Algarve

"Quando a tempestade acabar não recordarás como conseguiste, como sobreviveste. Nem sequer estarás seguro que a tempestade realmente acabou. Mas uma coisa é certa, quando saíres da tormenta não serás a mesma pessoa que nela entrou. Disso trata a tormenta." Haruki Murakami, escritor japonês. in "Kafka à beira mar Se desejarmos avaliar o momento actual, objectiva e projectivamente, teremos de partir da análise do pro-

cesso de desenvolvimento cultural do País, tarefa fundamental não só pelos elementos ideológicos de várias épocas e interpretações que subsistem, mas igualmente pelos patrimónios e infraestruturas que nos chegaram. A cultura em sentido amplo e as artes, funcionaram desde sempre intimamente ligadas aos poderes e aos mecenas, mas foram em muitos momentos consciência crítica da sociedade e contrapoder. A cultura como função do Estado é recente, foi sobretudo no século XIX que, resultado das ideias iluministas e democratizadoras, a educação e cultura transitaram para a esfera pública. Durante o Estado Novo, não recuando aos movimentos culturais do período da 1ª República (1910-1926), o organismo estruturante de toda a política cultural em Portugal foi o Secretariado Nacional da Propaganda criado a 27 de outubro de 1933, cujo objectivo era divulgar a ideologia da “Revolução Nacional ”, suportada numa mitologia étnica, de desígnios e heróis, transformada em doutrina do Estado e suporte da ditadura. O SNP dotado de poderosos meios

num País com escassas capacidades internas, dirigido por António Ferro, intelectual prestigiado pela estreita relação com o movimento modernista português, admirador dos regimes autoritários. Como jornalista entrevistou Mussolini, Hitler, Primo de Rivera, escreveu também um livro apologético sobre Salazar. Ferro seguiu como linhas estratégicas, a sedução dos intelectuais e artistas de qualidades reconhecidas, propondo-lhes encomendas orientadas para temas previamente escolhidos, também desenvolveu um programa de cultura popular encenada ligada à doutrinação. O legado dessas décadas foram de diversos géneros, o folclore como encenação das danças do mundo rural e as “marchas populares”, a Exposição Colonial de 1934, a promoção do cinema de pendor nacionalista, os bailados “Verde Gaio” e o “Teatro do Povo”, prémios nacionais de história, ensaio, poesia,… contudo a grande realização desse período de forte exaltação nacionalista foi a “Exposição do Mundo Português”, realizada em Lisboa entre Junho e Dezembro de 1940, assinalando a

Fundação da Nacionalidade em 1140, a restauração de 1640 e a celebração das obras do Estado Novo em 1940, logo no inicio da II Guerra Mundial. Desta exposição, a mais importante realização cultural de meio século de regime, persistem marcas na área entre os Jerónimos e o rio Tejo, o “monumento aos descobrimentos” da autoria do arquitecto Cotinelli Telmo e do escultor Leopoldo de Almeida, o jardim da Praça do Império e o Museu de Arte Popular. Nos diversos projectos trabalharam os arquitectos Pardal Monteiro, Carlos Ramos, Jorge Segurado, Raul Lino, entre outros e dezenas de pintores reconhecidos como Bernardo Marques, Carlos Botelho, Almada Negreiros, Jorge Barradas, Sarah Afonso,… Portugal só voltaria a organizar uma exposição de maior grande envergadura em 1998, com a EXPO de Lisboa também ligada aos oceanos , que transformou a zona oriental de Lisboa. Mas nem tudo foram adesões e seduções do regime corporativo, muitos cientistas, escritores e artistas ligados às correntes democráticas da oposição, eram vigiados e tiveram de

se exilar, vários foram presos, as suas obras banidas ou censuradas. A lista é vasta, com referência para figuras centrais da cultura portuguesa como Jaime Cortesão, Borges Coelho, Júlio Pomar, Jorge de Sena, Miguel Torga, Abel Salazar, António José Saraiva, Costa Pinheiro, José Cardoso Pires, e tantos outros, incluindo intelectuais ligados as lutas pela independência das colónias. Uma conflitualidade dialéctica percorre a história da cultura portuguesa no século XX, em apenas 100 anos o País conheceu quatro regimes político-constitucionais: monarquia, 1ª Republica, Estado Novo e a Democracia Democrática Parlamentar. Nessa vivência de antagonismos dialécticos, coexistem cosmopolitismos e cultura popular, nacionalismo e universalismo, o que originou alterações de discursos sobre a identidade nacional. Após o 25 de abril de 1974 e o fim de 500 anos de “Portugal Ultramarino” surgiu uma nova realidade económica, social e cultural, um novo discurso sobre a cultura portuguesa como parte integrante da “cultura europeia”. l


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