CULTURA.SUL 139 12JUN2020

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Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o

JUNHO 2020  n.º 139 www.issuu.com/postaldoalgarve

7.772 EXEMPLARES

MARCA D'ÁGUA •••

Falamos, ouvimos e lemos - Não podemos ignorar Maria Luísa Francisco Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa luisa.algarve@gmail.com

Adapto uma conhecida frase de Sophia de Mello Breyner para homenagear a Língua que falamos, ouvimos e lemos... por isso não podemos ignorar ou maltratar esta que é a nossa Língua Materna. No passado dia 5 de Maio celebrou-se pela primeira vez o Dia Mundial da Língua Portuguesa. Esta data foi ratificada pelos órgãos da UNESCO, em Paris, no mês de Novembro e é um reconhecimento que ajuda a afirmar o Português no mundo. O Português é a quarta língua mais falada como língua materna - a seguir ao mandarim, inglês e castelhano - a mais falada no hemisfério sul e idioma oficial dos nove países membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e Macau. A nossa Língua Pátria está entranhada no nosso estar e modo de ser. A língua é parte do nosso património e acredito que a maior parte dos Portugueses está incomodada com

os atropelos para com o Português de Portugal. O Acordo Ortográfico de 1990 (AO) não foi ratificado por todos os Estados que o subscreveram, ou seja, não está em vigor na ordem jurídica internacional, não vinculando desse modo o Estado Português conforme o artigo 8º nº2 da Constituição da República. Um Acordo desta natureza não se pode implementar por Decreto. São oito séculos de Língua Portuguesa e uma língua é mais do que uma grafia, é uma memória viva. Recordo algumas palavras de Vasco Graça Moura que foram bastante veementes quando referiu que o AO resultou de um lobby político e é uma forma de adulterar o património cultural. E chamou a atenção para o Art. 78º nº 2 da Constituição da República Portuguesa. Artigo que nos implica a todos na preservação do património cultural imaterial. Pode ler-se na Lei Portuguesa, na alínea c) do referido artigo, que “Incumbe ao Estado, em colaboração com todos os agentes culturais: Promover a salvaguarda e a valorização do património cultural, tornando-o elemento vivificador da identidade cultural comum”. Se a Língua é esse elemento que dá vida à identidade comum, que nos une cultural e patrioticamente, não pode ser alterada de forma leviana. Assistimos diariamente a autores

de referência que se recusam a utilizar o novo Acordo e estão no seu direito. Esta coexistência dos dois Acordos está a gerar imensa confusão e creio que terá consequências muito negativas para a Língua Portuguesa. Falta coragem política para admitir que o Acordo é um erro. Faltam governantes intelectualmente responsáveis para dizer que não resultou e que seria mais coerente extinguir o Acordo. Esta situação desprestigia Portugal. O Acordo não está interiorizado e vai contra a nossa matriz cultural. “A Língua Portuguesa foi ferida por um vírus pior nos seus efeitos sociais e culturais do que o coronavírus.” Uso esta citação de Pacheco Pereira pela sua acutilância e actualidade e acrescento estas suas frases, não recentes, mas que se mantém actuais. “O acordo ortográfico é a típica medida de engenharia política. É a ideia de que, a partir da política, pode-se moldar a língua, moldando, neste caso, a grafia.” E ainda “(…) o acordo ortográfico é muito empobrecedor em relação à riqueza do Português”. O AO ainda pretende ser mais papista que Sua Santidade, vejamos este exemplo: Escrevemos “perceptível” e no Brasil escreve-se igualmente com o “p”. Então qual o sentido de no novo AO ser proposto que “perceptível” passe a “percetível” em Portugal, quando

no Brasil se mantem com o “p”? É certo que existiram outros acordos ortográficos, mas tinham a ver com uma evolução natural da Língua, como por exemplo passar a escrever Farmácia em vez de Pharmacia. Agora o que não faz sentido é estar a mutilar a Língua Portuguesa por causa de outros países. Há um conjunto de normas avulsas e não normativas propostas pelo novo AO que levantam muitas dúvidas. Por exemplo cor-de-vinho perde os hífens. Já para escrever cor-de-laranja o uso do hífen é facultativo. Falei com professores que estão completamente desiludidos com a situação e ainda mais baralhados ficam porque recebem documentos oficiais do Ministério da Educação, ora escritos com base no novo Acordo, ora com base no antigo Acordo. Esta e outras situações relativas ao novo AO deixam um amargo de boca à grande maioria dos portugueses. O número de assinaturas que tem sido recolhido o corroboram. Nesta semana em que celebramos o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas fica o desafio para um tratamento mais cuidadoso da nossa Língua-Mãe. Termino com palavras de Natália Correia retiradas do seu poema Língua Mater Dolorosa: l

Ficha técnica Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes Visuais: Saúl Neves de Jesus • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Filosofia Dia-a-dia: Maria João Neves • Letras e Literatura: Paulo Serra • Marca D'água: Maria Luísa Francisco • Nascida no Monte Ramiro Santos • Colaboradores desta edição: Teresa Lança, Vico Ughetto Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/ postaldoalgarve FB: www.facebook.com/ postaldoalgarve/ Tiragem: 7.772 exemplares

“(...) a canalha apedreja-te a semântica e os teus verbos feridos vão de maca (...)”

NASCIDA NO MONTE •••

Entre mim e toda a terra Teresa Lança

Educadora de infância

Corria o mês de Maio. Os campos estavam cobertos de flores e a barra azul do monte pousada num tapete amarelo de grisandras; o vento vergava as searas sobre a terra, catarolando sons frescos que se dispersavam pelas colinas sem fim

e se silenciava lá ao longe, onde o céu e o verde se uniam numa ténue linha desfocada que parecia cerrar o horizonte. Como se para lá de tudo o que o olhar alcançava, não existisse mais nada. É partindo destas lembranças, umas contadas outras vividas, que imagino essa distante Primavera, no momento em que um ai de dor se dilui nos sons da natureza e com a força da vida expulsa das entranhas de minha mãe uma menina indesejada. Dentro deste corpo que minha mãe pariu, nasceu e cresceu uma vida ao deus-dará; por um lado, colorida de encantos e sonhos, com aromas e cores da Primavera que me acolheu

e, por outro, já a vida me enleava em laços de erva daninha que minava os terrenos virgens da minha tenra existência. Assim, afagada pela aragem morna do vento que passava, surgi apagando as esperanças de quem me esperava no masculino incendiando-lhe rastilhos na imaginação, que por consequência desta minha condição feminina, se veria obrigada a deixar semear de novo nas terras do seu corpo já cansadas! Era já hora de queimar o restolho, lavrar os campos dentro de si e deixar que florisse ou secasse em qualquer canto, a última colheita do seu ventre. Era hora de abrir de novo os braços,

sem remédio nem desejos de abraçar; nem sequer resignação nessa sua condição de mulher e mãe que, a cada filho que somava, subtraía um pouco mais daquele espaço que os sonhos alargam e a distância dói. Era de novo hora de ocupar os terrenos esvaziados por este filho, nascido mulher! Da âncora que me manteve amarrada, durante os últimos nove meses, ao único porto seguro que conheci, restava um pequeno e frágil cordão preso a mim e eu, desamparada, presa a ninguém. Um medo inconsciente deixava-me sentir a distância que crescia entre mim e todos os portos, e todos os cais onde atracar em segurança. Um medo que eu sentia em sons de

palavras repetidas, não sei se neste mundo onde de olhos abertos tudo ainda me soava desfocado, ou se, em todos os meus sentidos, transportara em mim as tempestades e dúvidas vividas através do ventre de minha mãe, para este imenso vazio de afetos, no qual, cada olhar, cada palavra e sentimento, não tinham lugar onde se aninhar. Como que um eco perdido num enorme espaço desabitado e aberto ao mundo, sem teto onde se abrigar, paredes onde embater, nem chão onde pousar a vida! Nasci assim, entre mim e toda a terra firme. Um deserto sem fim e um mar de medos. À deriva da sorte e da vida! l


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LETRAS E LEITURAS •••

Rua de Paris em Dia de Chuva, de Isabel Rio Novo fotos VErA CArMo

/ d.r.

Paulo Serra

Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

Se a biografia de Agustina (aqui apresentada no ano passado com entrevista à autora) pode ser lida com o enlevo de um romance, e se no romance anterior (também aqui recenseado) se cruzava ficção e ensaio, Isabel Rio Novo dá agora um novo passo no seu percurso romanesco, confirmando-a uma vez mais como uma nova voz da literatura portuguesa contemporânea, e presenteia-nos com o que poderíamos tentar definir como um romance biográfico, mas que se esquiva, como os livros anteriores, a ser classificado numa só categoria. Escrever um quadro No início do romance deparamo-nos com uma mulher velha, de longos cabelos grisalhos, que, todas as tardes, pouco tempo antes de o Instituto de Arte de Chicago fechar, costuma entrar na ala impressionista e postar-se a olhar para os rostos num quadro. A explicação é prometida para quem chegar ao final do romance... Imediatamente após esse breve preâmbulo, a narrativa começa num sábado de Inverno em 1877 com o jovem Gustave Caillebotte a instalar-se naquela que hoje é a praça de Dublin, numa confluência de ruas, onde intenta capturar uma cena da vida parisiense na sua tela. «Gustave é um homem de estatura mediana, magro, de cabelo castanho-claro. Os olhos são cinzentos ou esverdeados, as mãos, mais ásperas do que a suavidade das feições ou as roupas de boa qualidade deixariam supor. A Autora recorda estas coisas assim, como se as visse, porque na realidade as viu, ou sente que as viu.» (p. 12) A partir daqui está dado o mote do romance, que passa a alternar entre a narrativa da vida de um jovem aspirante a pintor e a Autora, que se assume claramente como a fonte criadora desta história, ainda que se refira a documentação e as exposições por parte de Helena, professora de história de arte, sobre a vida de Gustave. «Poderíamos principiar antes, mas há sempre um tempo que definimos como o início. A Autora gosta de pensar que foi ela quem definiu o princípio desta história e que nem Helena, que lhe cedeu documentos, nem as circunstâncias da vida, que

Isabel Rio Novo foi finalista do Prémio Leya por dois anos consecutivos •

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> lhe permitiram escrever durante um

ano inteiro, pesaram nessa decisão.» (p. 20) E deste ponto em diante, inicia realmente a história de vida de Gustave, contada a partir das gerações que o antecederam, nomeadamente com o bisavô Pierre. A Autora e a autora A Autora pode ser considerada como a mesma Isabel Rio Novo que assina a autoria do livro, que ao longo da narrativa irá relacionando a história da vida de Gustave com a história da sua própria vida, não se esquivando a contar-nos episódios mais privados da sua vida. Essa alternância entre as memórias (re) criadas da personagem e as memórias (re)criadas da Autora permanece ao longo de todo o romance, mesmo quando a relação entre as duas situações parece apenas indirecta. Um leitor atento que siga a autora nas redes sociais, designadamente no Facebook, incorrerá nessa tentação indiscreta de confundir esses episódios potencialmente autobiográficos com a realidade íntima de quem os viveu. Por exemplo, quando a 19 de Julho de 1870 a França declara guerra à Prússia e Gustave recebe a convocatória para ingressar na Guarda Nacional, sendo confrontado com a possibilidade de morrer, no parágrafo seguinte pode ler-se isto: «Cerca de um século e meio depois, também a Autora deste livro recebeu nas mãos o peso de um documento que convocava a sua mortalidade. Em rigor, não era um documento,

A obra pode definir-se como uma biografia romanceada de um milionário excêntrico •

mas um pequeno conjunto de películas e papéis. Falavam todos dela; não dela toda, de partes, e não dela apenas, de algo mais que se instalara

no seu corpo.» (p. 64) Como se pode ler noutra passagem: «Na verdade, não é de descartar que na história de Gustave Caillebotte a Autora deste livro procure a sua própria história» (p. 170) Narrativa pós-moderna

Isabel Rio Novo escreveu a biografia da escritora Agustina Bessa-Luís •

De um jeito pós-moderno, o narrador (ou narradora), que curiosamente não adopta a primeira pessoa, assume claramente que pode desviar os acontecimentos como bem entende, impondo-se de forma omnipotente. A Autora ora lembra-se, ora imagina, ora rompe decididamente com os factos e deixa a sua criatividade seguir outro rumo. Mas nem sempre é omnisciente, como quando se interroga ao ver Gustave em jovem: «O rapaz leva no dorso o vigor, a flexibilidade, a frescura de pele, que o resguardam de todas as máculas. Tem nos olhos o brilho dos dias intermináveis. Pode todos os sonhos. Desconhece todas as dificuldades. Que quererá ele, interroga–se a Autora, vendo-o avançar descalço sobre a relva?» (p. 44) Existem inclusive outras personagens que transitam por este romance que poderiam ser mais apelativas, mas é Gustave que fascina a Autora, a quem chama de «seu amigo», sendo que «a sua relação com Gustave Caillebotte excedia o interesse de uma romancista por uma personagem» (p.

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49). Essa paixão, «maneira de dizer», observava a mulher sentada à sua é, como todas as paixões, um sen- frente. De repente, Helena era tão timento privado, mas nem por isso parecida consigo que se diriam irsecreto: «a Autora surpreendeu-se mãs. Os mesmos cabelos castanhos com o modo como Helena parecia e finos, caídos sobre os ombros, os muito ao corrente do seu interesse mesmos lábios cheios, os mesmos por Gustave Caillebotte, embora, em olhos grandes. Só que os de Helena seu redor, não fizesse segredo dos eram um castanho e o outro verde. livros de arte que colecionava nem Um como os seus, pensava a Autora, das viagens que empreendia para vi- o outro como os de Caillebotte. Sim, sitar museus. Talvez todos os que a eram parecidas.» (p. 49) cercavam soubessem. Talvez até os Isabel Rio Novo, doutorada em seus alunos percebessem a emoção Literatura Comparada, nascida no que a percorria quando, nas aulas de Porto, lecciona Escrita Criativa e literatura, a pretexto de um qualquer poema, projetava pinturas de Gustave Caillebotte, procurando ser sucinta e objetiva nas aproximações que entretecia, mas percebendo, pelos olhares de simpatia que recebia dos adolescentes, que se denunciava forçosamente» (p. 28). Há inclusivamente passagens em que a Autora reconhece que pode estar a filtrar a realidade pelos olhos da personagem que incorpora e inA escritora é considerada uma nova voz da literatura terioriza, como no portuguesa contemporânea • seguinte exemplo: «Mas as florestas, as pradarias cobertas de trevos, as outras disciplinas, como História de macieiras floridas, as veredas relva- Arte (à semelhança de Helena...), das, as vilas pitorescas erguidas nos no âmbito da arte, da literatura, do declives e quase inclinadas sobre o cinema. Foi finalista do Prémio Lemar, eram tão parecidas com as que ya por dois anos consecutivos, em Gustave Caillebotte representara 2016 com o Rio do Esquecimento, que a Autora chegou a perguntar-se e em 2017. se o que via não seria pintado pelo Rua de Paris em Dia de Chuva poolhar do seu amigo.» (p. 20) de definir-se como uma biografia O foco sobre a realidade pode os- romanceada de um milionário excêncilar entre a câmara que regista como trico, mecenas dos impressionistas, um filme ou a tela em que a descrição coleccionador de arte, indivíduo mulcorresponde a pinceladas, temas e tifacetado, pintor vanguardista; mas é reflexos, como é próprio da pintura. também uma elegia a uma época e à Aliás, refere-se, a dada altura, que cidade de Paris, conforme a cidade da a Autora, por nunca ter pintado, luz passa por sucessivas revoluções, procura escrever «como quem ten- pela industrialização e pela modertava desenhar, buscando beleza nas nização; é um romance magnífico de ideias, nas construções, na melodia pujança narrativa, que dialoga com a das palavras» (p. 73). arte e a vida, onde confluem diversos aspectos - tal como, no quadro que Desdobrar-se em personagens dá nome ao livro, as várias ruas que convergem –, alguns bastante caros Para terminar, e voltando a Hele- ao pós-modernismo – há inclusivana, há diversos momentos em que mente um piscar de olho ao leitor, nos é dado a entender que, mal- quando na biblioteca de René se engrado o desconforto da Autora em contram livros europeus com títulos relação à professora de história de extravagantes como «La fièvre des arte, a relação entre as duas é mais âmes sensibles ou Rivière de l’oubli» inequívoca do que a própria Autora (p. 128). E tal como o quadro depende gostaria de confessar, insinuando-se de um observador, este livro depende no leitor a possibilidade de Helena da perspectiva de quem lhe é exterior, materializar um alter-ego, pois afi- como no pormenor da capa, alguém nal é ela quem auxilia a Autora no que está deste lado, «à esquerda das seu processo de escrita, informan- personagens, na porção do quadro do-a e documentando-a:«a Autora que não se vê» (p. 224). l


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FILOSOFIA DIA-A-DIA •••

Convívio

foto d.r.

Maria João Neves Ph.D Consultora Filosófica

O Francisco descarregou com impaciência o novo e-book para dentro do seu sistema neuronal. E pensar que nos tempos antigos as pessoas tinham de fazer downloads, e ler as coisas em ecrãs digitais que faziam tanto mal à visão! Já para não falar das palavras passes que tinham que recordar, e de todo esse lixo de pop ups que apareciam nos ecrãs, sempre a distrair e a irritar! Tinham estudado esses horrores da multimédia antiga na disciplina de História e, tal como ele, todos os colegas tinham reagido com incredulidade. Esta incredulidade, no seu caso, tinha dado lugar a uma curiosidade crescente sobre os tempos antigos de tal modo que, pelo seu aniversário, os pais lhe tinham oferecido um acesso ilimitado à base de dados da biblioteca dos tempos antigos, onde se incluíam os séculos XX e XXI, que tanto interesse lhe despertavam. Lia avidamente, de olhos fechados, o seu novo livro até que esbarrou numa palavra: “convívio”. Leu e releu, tentou perceber o que é que esta palavra queria dizer mas não conseguiu! Ligou o sistema de gravidade quadrangular do seu quarto e pôs-se a caminhar pelas 4 paredes da divisão, gostava dessa sensação de mudar o acima e o abaixo, o lado esquerdo e o lado direito, ajudava-o a mudar de ponto de vista e a encontrar soluções para os enigmas. Caminhou durante longo tempo pelas quatro paredes, lembrando-se dos passeios peripatéticos dos Gregos do início da época pré-histórica. Foi em vão! Não conseguia perceber o que queria dizer convívio. Ligou a gravidade unidirecional, sentou-se e pressionou o botão do intercomunicador. Do outro lado a voz do seu preceptor andróide soou melodiosa: “Olá Francisco, em que posso ajudar-te?”. “Olá, olá... diz-me por favor o que significa convívio!” “Tentaste averiguar pelo contexto?” “Sim.” “Recorreste à origem etimológica da palavra?” “Sim. Cito: ‘acto ou efeito de conviver; relacionar-se de forma próxima; relações amigáveis; do latim convivium: participação em banquete.’ Não percebo nada disto!” Do outro lado do intercomunicador o andróide pareceu emitir um longo suspiro: “Francisco, sabes que nos tempos antigos os humanos tinham o hábito de fazer as suas refeições juntamente com outros hu-

Almoço em família •

manos, sentavam-se todos a uma mesa e comiam.” “Mas que trabalheira! Arranjar tempo para isso! Para se encontrarem e para se sentarem e com uma mesa, para que era a mesa?” “Nos tempos antigos as refeições eram feitas de alimentos e não de comprimidos como agora. A mesa servia para colocar os pratos, os copos e os talheres de que se serviam para comer.” “A sério?! Mas que canseira!” “Sim, é verdade. Existam sítios chamados restaurantes aos quais os humanos iam quando não queriam cozinhar eles próprios nas suas casas. As pessoas sentavam-se umas com as outras em volta da mesma mesa, comiam, bebiam e conversavam, a isto se chamava conviver. Uma refeição dessas podia levar várias horas!” “Horas?! Mas agora comer leva um segundo! É só engolir o comprimido! Que estranhos tempos esses!” “Sim Francisco, a nova era só começou na primeira metade do sec. XXI, mais precisamente em 2020. Até lá os humanos costumavam viver uns com os outros e encontravam-se com outros humanos, para trabalhar ou para realizar actividades de ócio. Também era muito comum as famílias encontrarem-se e celebrarem certas datas juntos: os aniversários; o Natal; a Páscoa, etc. Todos esses eventos incluíam refeições em comum com mesas e cadeiras e os humanos sentados uns junto aos outros numa mesma divisão.” “Isso é muito difícil de imaginar! E devia ser deveras perigoso toda a gente a respirar assim junta!” “Sim, até Abril de 2020 estes ditos convívios eram não somente possíveis mas frequentes. Os humanos costumavam, inclusivamente, encontrar-se para dançar juntos.”

“Dançar? O que é isso?” “Dançar é movimentar o corpo, geralmente ao som de alguma música. Os humanos podiam inclusivamente agarrar-se. Em algumas zonas do globo, no continente africano, por exemplo, existiam danças em que o homem e a mulher se movimentavam com o corpo de um colado ao corpo do outro.” “Corpo a corpo? Mas já tinham fatos de silicone?” “Não, Francisco. Nos tempos antigos os humanos tocavam-se, era pele com pele.” “Ai que nojo! E se transpirassem? Ficavam com as secreções corporais misturadas!” “Correcto Francisco. Mas isso, naquele tempo, era normal. Os humanos diziam até gostar de sentir essas secreções uns dos outros, e os seus cheiros.” “Mas que repugnante!” “Nessa época também se juntavam para procriar. Só em casos muito excepcionais é que se utilizava a fertilização in victro.” “Que loucura! E quando é que a civilização começou?” “Variou um pouco de país para país. Aqui em Portugal costuma considerar-se o dia 18 de março de 2020 que foi quando foi promulgado o primeiro estado de emergência devido à pandemia Covid-19. As pessoas foram obrigadas a ficar em casa, passaram a trabalhar através da internet e foi decretado o distanciamento social.” “Foi aí que acabou o convívio?” “Exactamente Francisco, aprendeste bem a lição!” *** O escritor de ficção científica Julio Verne (1828-1905) previu, com uma margem de erro de escassos quilómetros, o local onde viria a

realizar-se o lançamento da primeira nave espacial para a lua. Vaticinou também que os carros deixariam de ser movidos por cavalos e passariam a dispor de um “motor i n v i s í v e l ”. A máquina de calcular, comboios subterrâneos, o s u b m a r i n o, ou transportes que “flutuam no ar” foram outras das suas certeiras

antevisões. Com todo o ardor desejo que a primeira parte deste texto não seja uma inspiração a la Julio Verne! Que o princípio do distanciamento social não marque o início de uma nova era ascética em que deixamos de tocar uns nos outros, que a palavra convívio não caia em desuso ao ponto de a deixarmos de conhecer. Onde começou tudo isto? Não me refiro ao aparecimento de um vírus novo, inimigo invisível com o qual estamos a tentar lidar. Refiro-me ao enquadramento mental de separação que agora atingiu proporções inimagináveis! Foi o filósofo René Descartes quem no séc. XVI estabeleceu uma linha de fronteira entre a mente - res cogitans - e o corpo - res extensa. No fundo, Descartes era herdeiro da antiguidade clássica de acordo com a qual a mente cognitiva é o que de mais elevado a humanidade possui, e o corpo um empecilho para o avanço do conhecimento. Daqui ao estabelecimento da impassibilidade e da independência como notas do entendimento, foi apenas um passo. O progresso científico fez da objectividade a sua alavanca. Desprezados os sentimentos, desdenhámos as ligações. De acordo com a antiga filosofia indiana dos Vedas, o universo é uma entidade coesa Agora, em pleno séc. XXI, estamos a sofrer as consequências de tanta independência! Considerámo-nos entidades individuais, como se possuíssemos uma auto-existência, esquecemos o quanto em verdade dependemos uns dos outros e, mais ainda, o quanto dependemos do planeta!

A medicina ayurvédica, que se baseia na indiana filosofia dos Vedas que data de 1500 a.c. entende o ser humano, não como uma entidade individual mas antes como um ser com raízes cósmicas, ligado não apenas ao planeta onde nasceu mas a todo o universo. Este enquadramento tem consequências profundas para a saúde e para o modo de conduta. A terra já existia biliões de anos antes da vida humana ter surgido. As árvores, por exemplo, são muito mais antigas que nós. Em Dezembro de 2019 uma equipa de investigadores da universidade de Binghamton, Nova Iorque, descobriu um extenso sistema radicular de árvores com 385 milhões de anos, que existiam durante o período Devoniano. As árvores com sementes apareceram 10 milhões de anos mais tarde. De acordo com a antiga filosofia indiana dos Vedas, o universo é uma entidade coesa. Contudo nós, humanos, vivemos preocupados com a nossa individualidade, completamente surdos para o pulsar da harmonia planetária. Ávidos de sucesso vivemos obcecados pelas nossas conquistas. Na realidade comportamo-nos como adolescentes imaturos! De acordo com a medicina ayurvédica, inspirada na filosofia dos Vedas, “Cada árvore, cada montanha, cada nuvem, cada nascente reflecte a luz do universo. A memória cósmica é mantida e refinada pelo código genético em todas as formas de vida. Por esta razão, a comunidade cósmica prevalece sobre todos os habitantes da Terra. Quando andamos, corremos ou escalamos, cada célula lembra-se do início da vida. A própria terra possui uma memória cognoscente dos seus cerca de 10 milhões de espécies! O nosso movimento, as nossas acções criam as condições para a actualização dessa memória. Quando contemplamos a beleza de uma nascente a cintilar ao sol, ou provamos o néctar de um pêssego maduro, ou até em momentos mais passivos, quando o vento nos acaricia a pele, ou quando as nossas narinas se inundam pela fragrância de uma flor, nós experienciamos os elementos - estimulamos a nossa memória cognitiva.” (Maya Tiwari, Ayurveda. A Life of balance). Talvez valha então a pena recordar que não somos uma existência separada, que pelo contrário estamos ligados e somos dependentes. Dependentes dos outros, dependentes deste planeta que habitamos, dependentes do universo no qual obtivemos esta fantástico improvável dom da vida! E se ajustássemos o nosso comportamento a esta realidade? l


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ARTES VISUAIS •••

Como podemos fruir das artes visuais em tempos de Covid19? fotos d.r.

Saúl Neves de Jesus

Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; http://saul2017.wixsite.com/artes

É inegável a importância para o nosso bem-estar e para a nossa saúde mental desenvolvermos emoções positivas. Tal como quando ouvimos uma boa música, apreciar artes visuais é seguramente uma boa forma de despertarmos essas emoções e sentir a plenitude desses momentos, comportando benefícios no plano psicológico. Todos os nossos sentidos podem contribuir para a nossa fruição, mas a audição e a visão são os nossos dois principais sentidos para a relação que estabelecemos com as atividades culturais. É fantástica a sensação de plenitude e preenchimento que temos quando inspiramos profundamente ao sermos confrontados com a beleza duma obra de arte, pela cor ou pela forma que esta apresenta. Mas, para além da componente emocional, uma obra de arte também pode ter uma dimensão cognitiva. Sendo a arte uma forma de comunicação, muitos artistas procuram expressar, não apenas emoções e sentimentos, mas também ideias e conceitos nas suas produções artísticas. Costuma dizer-se que uma imagem pode valer mais do que mil palavras e, desta forma, uma obra de arte visual pode conseguir sintetizar ideias que ajudam a tomada de consciência e a reflexão do espetador, para além da componente emocional que possa comportar.

Embora atualmente haja muitas obras de arte urbana, acessíveis a

Imagem do início da exposição online •

qualquer um, as visitas a museus permitem-nos um contacto mais sistemático e organizado com as artes visuais.

vid19?”, demos conta duma iniciativa promovida pela plataforma da Google que permite realizar visitas online a centenas dos principais museus de

Nas várias semanas de confinamento não foi possível visitar museus ou exposições de forma presencial. E, mesmo terminando o estado de emergência nos vários países, as restrições em espaços públicos mantêm-se. Os museus e outros espaços de fruição de artes visuais não são exceção. Assim sendo, têm sido muitos os museus que, embora estando encerrados para visitas presenciais, têm criado a possibilidade de visitas virtuais às suas exposições. No último artigo, intitulado “Como visitar museus em tempos de Co-

arte em todo o mundo, através do link https://artsandculture.google. com/partner?hl=en Mais recentemente, de Portugal para o mundo, a galeria lisboeta Underdogs propõe uma exposição coletiva online, que estará patente até ao próximo dia 13 de Junho, em www.under-dogs.net Esta mostra tem a particularidade de apenas conter obras que foram criadas por 32 artistas, portugueses e estrangeiros, durante o período de confinamento, feitas com materiais que estes tinham em casa. A designação “Right now”, ilustra

esta característica da exposição, em que os artistas produziram obras que falavam da sua realidade e das circunstâncias presentes durante o período de confinamento, onde quer que estivessem. Um rosto quebrado por uma máscara, a impossível proximidade de um beijo, a difícil passagem do tempo, o distanciamento social, a casa como espaço seguro ou como prisão e a natureza que floresce lá fora, são algumas das imagens criadas durante este processo por artistas como Aka Corleone, André da Loba, Maria Imaginário, Pedrita Studio, Okuda San Miguel, Wasted

Rita, André Saraiva, Bráulio Amado, Francisco Vidal e Vhils. Sem poder sair de casa, os artistas tiveram de usar apenas os materiais que já tinham consigo e alguns deles tiveram também de usar técnicas mais simples do que aquelas que é habitual no seu trabalho. É o caso de Vhils, por exemplo, que apresenta desenhos, quando em geral apenas os usa como base para outros trabalhos de grande dimensão. No comunicado à imprensa, a curadora Pauline Foessel explica: “Sempre acreditámos que a arte cumpre um papel fundamental em aproximar as pessoas, agora estamos seguros de que é crucial para manter o nosso sentido de comunidade, de proporcionar apoio e conforto durante este novo capítulo da nossa experiência humana conjunta.” Efetivamente, trata-se duma experiência global, vivida por todos em todo o planeta, independentemente de sexo, raça ou religião. Esperemos que possa servir para nos unir e refletir sobre o que realmente é importante, bem como para desenvolvermos atitudes e comportamentos mais adequados para nós mesmos, para com os outros e para com o planeta Terra, em particular outras espécies animais e a natureza. Devemos procurar fruir das artes, mas com esta fruição devemos aprender a fruir daquilo que está à nossa volta, em cada momento, com consciência e emoção plenas, serenidade e gratidão. l

Imagens de algumas das obras expostas online •


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CULTURA • SUL

ESPAÇO ALFA •••

A nova imagem do (des)confinamento e onde, apesar de expostos, acabaram por ter uma guerra branda com poucas ou nenhumas baixas (e até contágios) entre os fotógrafos, e a restante Comunicação Social. Para as restantes áreas fotográficas, tudo ficou em suspenso. Os fotógrafos urbanos, tinham as ruas, mas sem vida e sem a verve que a Vico Ughetto Vice-presidente da ALFA agitação das metrópoles exibe, e que - Associação Livre Fotógrafos do Algarve a torna sedutora para o registo dos instantâneos de rua. Os fotógrafos de viagens, ficaram ainda piores, pois se as deslocações no bairro Por muito que digamos que não eram limitadas, ainda mais entre vamos falar ou escrever sobre a países e continentes. Os fotógrafos Covid-19, e toda a problemática e de eventos, espetáculos, casamenquestões relacionadas, a realidade tos e outras reuniões familiares ou é que acabamos por não conseguir, empresariais, ficaram com a agenpois esta pandemia não só definiu os da cancelada por completo, e os três últimos meses mais sui generis fotógrafos de cariz mais comercial que vivemos, como irá marcar segu- – como quem diz – os que trabalham ramente todo o ano de 2020. E não com as empresas e marcas, seja na foi só o confinamento forçado e to- fotografia de produto, de moda, ou das as demais restrições associadas, corporativa, também não escaparam, foi também a forma como passamos pois a comunicação que não foi cana viver e como iremos incorporar al- celada perdeu muita criatividade e gumas dessas mudanças no nosso dinâmica centrando-se apenas no quotidiano agora reinventado. essencial do combate ao vírus. Na vertente da fotografia os imNeste campo houve algumas inipactos foram fortes. Quem teve ciativas com imaginação e criativas, essencialmente trabalho ou ativida- sem dúvida, só que elas puseram de de foram os repórteres fotográficos, parte os fotógrafos e centraram-se aqueles que, digamos, puderam es- em ter o próprio staff das empresas tar na frente de combate ao vírus a produzir os conteúdos a partir de

foto VICo uGHEtto

/ d.r.

O entardecer visto da açoteia da Galeria Arco (sede da ALFA) sobre a Ria Formosa é um tónico ótimo para o bem-estar e a reflexão sobre os próximos desafios que se avizinham no campo da imagem fotográfica •

casa. Assistimos ao boom das plataformas de videoconferência, dos webinares e dos diretos feitos nos escritórios improvisados nas salas de jantar ou nos quartos. Grandes marcas internacionais como a Gucci, usaram o feito-em-casa ao extremo, tendo realizado as fotografias da próxima coleção Outono/Inverno pela primeira vez, sem a intervenção de qualquer fotógrafo(a), maqui-

lhador(a) ou estilista, tendo sido inteiramente produzidas e realizadas pelos modelos, que são também os intervenientes. São quase uma espécie de autorretratos do seu quotidiano, ligeiramente orientados pelo diretor criativo Alessandro Michele, que confessou, numa entrevista online, ter dado espaço para a criatividade de forma a que os modelos fossem os diretores deles próprios.

Creio que o olhar, a criatividade e o talento do fotógrafo ainda fazem e farão a diferença, mas a nova imagem do desconfinamento passou a ser registada de modo mais individual, simplista, económico e imediato. Isto não era propriamente novidade, a sua aceitação generalizada (desde a produção ao consumo) é que foi muito acelerada devido aos acontecimentos. l

ESPAÇO AGECAL •••

A cultura no pós 25 de Abril: 1974-1990 (2) Jorge Queiroz

Sociólogo e gestor cultural, Sócio da AGECAL ‒ Associação de Gestores Culturais do Algarve

O grande acontecimento cultural de 1974 foi a liberdade. A abolição da censura e do exame prévio foram as primeiras medidas do Movimento das Forças Armadas-MFA, inscritas no programa apresentado ao País logo após o derrube da ditadura, simultaneamente foram tomadas medidas em relação à liberdade de informação. O Programa do MFA assentava nos três D: Democratizar, Descolonizar e Desenvolver. Nesta primeira fase verificou-se uma estreita ligação de cultura e educação, também a estruturação dos

domínios culturais em cinco áreas: literatura, música, teatro, cinema e artes plásticas. Relevada pelo novo poder democrático a importancia da comunicação social na difusão da língua portuguesa no mundo. A preocupação do acesso à cultura nas regiões periféricas e do interior do País originou as “Campanhas de Dinamização Cultural”, impregnadas de voluntarismo e romantismo revolucionário, mas que estiveram longe de ser aceites pelos destinatários, dada a ideia paternalista que estava na base da sua formulação. Nas zonas urbanas do País dá-se a explosão das artes públicas, surgem os grandes murais políticos realizados por colectivos de artistas, mas também se verifica crescimento exponencial das frequências aos cinemas e aos espectáculos em geral, nomeadamente de teatro. As populações surgem desejosas de conhecer e de usufruir das liberdades cívicas. A cultura está na rua. O Poder Local deu com as eleições de 1976 os primeiros passos para a democracia local e em 1979 a Lei das

Finanças locais permitiria o acesso a recursos financeiros, o início da estruturação dos serviços municipais e dos reequipamentos. Foi o período de trabalho intenso nas obras de saneamento básico, rede viária e electrificações, planeamento urbano e habitação social, também na saúde com o serviço médico à periferia e na habitação o SAAL. Em relação à cultura predominava nas autarquias a ideia de animação cultural, mas a construção/ reabilitação de infraestruturas culturais (bibliotecas, museus, arquivos, teatros…) necessitava de gestão e trabalho quotidiano especializados. Em 1976 surge o I Governo Constitucional e a Secretaria de Estado da Cultura e na política cultural como áreas estratégicas: o património cultural, a investigação e fomento cultural. Publica-se uma actualização do Código do Direito de Autor e o Estatuto do Profissional Intelectual. No programa do III Governo Constitucional (Nobre da Costa) faz-se uma teorização da cultura que a subdivide em cultura erudita, de massas e popular, sendo objectivo da tutela diminuir

as distâncias entre elas. Este governo e os seguintes, seriam de curta duração, tendo como Primeiros Ministros Mota Pinto (IV GC), que defende a valorização da cultura humanista portuguesa no mundo e Maria de Lurdes Pintassilgo (V GC), que se orienta para a maior participação cívica dos movimentos culturais, cria um Ministério da Coordenação Cultural e da Cultura e Ciência. Regista-se neste Governo, único presidido por uma mulher em todo século XX republicano, o abandono da visão mais conservadora de património e abertura às novas formas de criação contemporânea. Nos governos dos anos 80, de predominio da Aliança Democrática (PSD, CDS e PPM) e bloco central com o PS, dá-se maior enfase à preservação do património e em 1983 (VIII GC) foi criado o Ministério da Cultura e da Coordenação Científica, tutelado por Francisco Lucas Pires e no governo seguinte (IX GC) surge pela primeira vez um Ministério da Cultura tendo como ministro Coimbra Martins. A ideia da intervenção mais destacada do sector privado na cultura

originou a Lei do Mecenato. O Decreto-Lei nº 258/86 foi objecto de debate político baseado na possibilidade do Estado se demitir gradualmente das obrigações e responsabilidades culturais e educativas. Nesta década de 80 são publicados importantes diplomas como a Lei de Bases do Património Cultural Português (1985), que não chegou a ser regulamentada, e em 1987 a Rede de Leitura Pública com avanço na nova rede de bibliotecas municipais e escolares. Todo este processo se desenrola no contexto da integração de Portugal na CEE ocorrida em 1986, a qual provocou nos anos seguintes grandes alterações, em particular no tecido económico nacional mas também da visão instrumental para a cultura nacional. A ideia da marca “Portugal” surgirá no princípio da década de 90. As políticas culturais acompanham a visão de fim de ciclo de 500 anos do Império, acompanharão a renovação de discursos e práticas, de forma mais visível na Europália-91 coincidindo com o semestre da presidência portuguesa da UE (1991). l


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