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JUNHO 2020 n.º 139 www.issuu.com/postaldoalgarve
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MARCA D'ÁGUA •••
Falamos, ouvimos e lemos - Não podemos ignorar Maria Luísa Francisco Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa luisa.algarve@gmail.com
Adapto uma conhecida frase de Sophia de Mello Breyner para homenagear a Língua que falamos, ouvimos e lemos... por isso não podemos ignorar ou maltratar esta que é a nossa Língua Materna. No passado dia 5 de Maio celebrou-se pela primeira vez o Dia Mundial da Língua Portuguesa. Esta data foi ratificada pelos órgãos da UNESCO, em Paris, no mês de Novembro e é um reconhecimento que ajuda a afirmar o Português no mundo. O Português é a quarta língua mais falada como língua materna - a seguir ao mandarim, inglês e castelhano - a mais falada no hemisfério sul e idioma oficial dos nove países membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e Macau. A nossa Língua Pátria está entranhada no nosso estar e modo de ser. A língua é parte do nosso património e acredito que a maior parte dos Portugueses está incomodada com
os atropelos para com o Português de Portugal. O Acordo Ortográfico de 1990 (AO) não foi ratificado por todos os Estados que o subscreveram, ou seja, não está em vigor na ordem jurídica internacional, não vinculando desse modo o Estado Português conforme o artigo 8º nº2 da Constituição da República. Um Acordo desta natureza não se pode implementar por Decreto. São oito séculos de Língua Portuguesa e uma língua é mais do que uma grafia, é uma memória viva. Recordo algumas palavras de Vasco Graça Moura que foram bastante veementes quando referiu que o AO resultou de um lobby político e é uma forma de adulterar o património cultural. E chamou a atenção para o Art. 78º nº 2 da Constituição da República Portuguesa. Artigo que nos implica a todos na preservação do património cultural imaterial. Pode ler-se na Lei Portuguesa, na alínea c) do referido artigo, que “Incumbe ao Estado, em colaboração com todos os agentes culturais: Promover a salvaguarda e a valorização do património cultural, tornando-o elemento vivificador da identidade cultural comum”. Se a Língua é esse elemento que dá vida à identidade comum, que nos une cultural e patrioticamente, não pode ser alterada de forma leviana. Assistimos diariamente a autores
de referência que se recusam a utilizar o novo Acordo e estão no seu direito. Esta coexistência dos dois Acordos está a gerar imensa confusão e creio que terá consequências muito negativas para a Língua Portuguesa. Falta coragem política para admitir que o Acordo é um erro. Faltam governantes intelectualmente responsáveis para dizer que não resultou e que seria mais coerente extinguir o Acordo. Esta situação desprestigia Portugal. O Acordo não está interiorizado e vai contra a nossa matriz cultural. “A Língua Portuguesa foi ferida por um vírus pior nos seus efeitos sociais e culturais do que o coronavírus.” Uso esta citação de Pacheco Pereira pela sua acutilância e actualidade e acrescento estas suas frases, não recentes, mas que se mantém actuais. “O acordo ortográfico é a típica medida de engenharia política. É a ideia de que, a partir da política, pode-se moldar a língua, moldando, neste caso, a grafia.” E ainda “(…) o acordo ortográfico é muito empobrecedor em relação à riqueza do Português”. O AO ainda pretende ser mais papista que Sua Santidade, vejamos este exemplo: Escrevemos “perceptível” e no Brasil escreve-se igualmente com o “p”. Então qual o sentido de no novo AO ser proposto que “perceptível” passe a “percetível” em Portugal, quando
no Brasil se mantem com o “p”? É certo que existiram outros acordos ortográficos, mas tinham a ver com uma evolução natural da Língua, como por exemplo passar a escrever Farmácia em vez de Pharmacia. Agora o que não faz sentido é estar a mutilar a Língua Portuguesa por causa de outros países. Há um conjunto de normas avulsas e não normativas propostas pelo novo AO que levantam muitas dúvidas. Por exemplo cor-de-vinho perde os hífens. Já para escrever cor-de-laranja o uso do hífen é facultativo. Falei com professores que estão completamente desiludidos com a situação e ainda mais baralhados ficam porque recebem documentos oficiais do Ministério da Educação, ora escritos com base no novo Acordo, ora com base no antigo Acordo. Esta e outras situações relativas ao novo AO deixam um amargo de boca à grande maioria dos portugueses. O número de assinaturas que tem sido recolhido o corroboram. Nesta semana em que celebramos o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas fica o desafio para um tratamento mais cuidadoso da nossa Língua-Mãe. Termino com palavras de Natália Correia retiradas do seu poema Língua Mater Dolorosa: l
Ficha técnica Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes Visuais: Saúl Neves de Jesus • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Filosofia Dia-a-dia: Maria João Neves • Letras e Literatura: Paulo Serra • Marca D'água: Maria Luísa Francisco • Nascida no Monte Ramiro Santos • Colaboradores desta edição: Teresa Lança, Vico Ughetto Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/ postaldoalgarve FB: www.facebook.com/ postaldoalgarve/ Tiragem: 7.772 exemplares
“(...) a canalha apedreja-te a semântica e os teus verbos feridos vão de maca (...)”
NASCIDA NO MONTE •••
Entre mim e toda a terra Teresa Lança
Educadora de infância
Corria o mês de Maio. Os campos estavam cobertos de flores e a barra azul do monte pousada num tapete amarelo de grisandras; o vento vergava as searas sobre a terra, catarolando sons frescos que se dispersavam pelas colinas sem fim
e se silenciava lá ao longe, onde o céu e o verde se uniam numa ténue linha desfocada que parecia cerrar o horizonte. Como se para lá de tudo o que o olhar alcançava, não existisse mais nada. É partindo destas lembranças, umas contadas outras vividas, que imagino essa distante Primavera, no momento em que um ai de dor se dilui nos sons da natureza e com a força da vida expulsa das entranhas de minha mãe uma menina indesejada. Dentro deste corpo que minha mãe pariu, nasceu e cresceu uma vida ao deus-dará; por um lado, colorida de encantos e sonhos, com aromas e cores da Primavera que me acolheu
e, por outro, já a vida me enleava em laços de erva daninha que minava os terrenos virgens da minha tenra existência. Assim, afagada pela aragem morna do vento que passava, surgi apagando as esperanças de quem me esperava no masculino incendiando-lhe rastilhos na imaginação, que por consequência desta minha condição feminina, se veria obrigada a deixar semear de novo nas terras do seu corpo já cansadas! Era já hora de queimar o restolho, lavrar os campos dentro de si e deixar que florisse ou secasse em qualquer canto, a última colheita do seu ventre. Era hora de abrir de novo os braços,
sem remédio nem desejos de abraçar; nem sequer resignação nessa sua condição de mulher e mãe que, a cada filho que somava, subtraía um pouco mais daquele espaço que os sonhos alargam e a distância dói. Era de novo hora de ocupar os terrenos esvaziados por este filho, nascido mulher! Da âncora que me manteve amarrada, durante os últimos nove meses, ao único porto seguro que conheci, restava um pequeno e frágil cordão preso a mim e eu, desamparada, presa a ninguém. Um medo inconsciente deixava-me sentir a distância que crescia entre mim e todos os portos, e todos os cais onde atracar em segurança. Um medo que eu sentia em sons de
palavras repetidas, não sei se neste mundo onde de olhos abertos tudo ainda me soava desfocado, ou se, em todos os meus sentidos, transportara em mim as tempestades e dúvidas vividas através do ventre de minha mãe, para este imenso vazio de afetos, no qual, cada olhar, cada palavra e sentimento, não tinham lugar onde se aninhar. Como que um eco perdido num enorme espaço desabitado e aberto ao mundo, sem teto onde se abrigar, paredes onde embater, nem chão onde pousar a vida! Nasci assim, entre mim e toda a terra firme. Um deserto sem fim e um mar de medos. À deriva da sorte e da vida! l