Cultura.Sul 140 10JUL2020

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Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o

JULHO 2020  n.º 140 www.issuu.com/postaldoalgarve

9.839 EXEMPLARES

NASCIDA NO MONTE •••

Porto Seguro Teresa Lança

Educadora de infância nascidanomonte@gmail.com

Vagueio pela casa: um apartamento pequeno e colorido, salpicado de recordações que vão mudando de lugar e cor, ao comando do meu coração e da minha vida desgastada que me enviou para aqui. Um lugar que fui preparando com cuidado, por saber que seria aqui o final da linha – da linha do horizonte que levei mais de meio século a alcançar na vida e que com os olhos da alma nunca a perdi de vista. Espreito através da janela e reparo no trepidar do ar lá fora, onde o sol do Alentejo tolda a mente, enquanto nos acostuma a viver prisioneiros duma imensa liberdade. Deito-me no sofá e cerro os olhos, tentando descansar das lembranças espalhadas por todos os cantos e paredes da casa que agora explodem de saudade em mim. Penso nos recantos que cada uma delas ocupa e merece, dentro e fora de todos os lugares onde eu habito.

Sinto saudade de quando o meu mundo era pequeno; de quando a minha memória ainda não tinha memórias. Sinto saudade de quando abria a porta da vida e o meu mundo ficava inteirinho atrás das minhas costas e cabia no relance do meu olhar; sem passado porque, para além das quatro paredes que o cercavam e o deixavam à vista, não existia mais nada – toda a minha existência estava ali presente! Que saudade do tempo em que a minha vida se dividia em dia e noite; em que a porta aberta para as colinas a perder de vista, me deixavam inventar vidas de faz-de-conta, que eu não sabia chamar de “sonhos”, nem que tudo o que sentia brilhar dentro de mim era ser feliz. Muito menos ainda que os sentimentos escuros que apertavam o meu peito, tinham a cara do medo – um medo ignorante que não conhecia ainda o preço a pagar por cada metro a palmilhar no dia a dia da vida! Saudade desse medo que sentia ao olhar a imensidão do espaço vazio e infindável, e eu na porta do mundo sem coragem para começar a caminhada. Saudade de saber fazer coisas simples e duradouras, daquelas que a infância não mudou aqui, dentro desta arca de sonhos, mas que o tempo levou a chave que eu não encontrei mais. Tento fazer o caminho de volta,

mas, ora adormeço nos recantos do passado, ora deslizo numa correria louca esbarrando nos atalhos deste labirinto que levei tanto tempo a construir, e sinto medo. Medo de olhar para trás e me dar conta de não avistar a porta por onde entrei, de não ver mais aquela luz que eu seguia e que iluminava o paraíso que procurava alcançar lá adiante no futuro, e agora tento encontrar no passado: um passado que avisto desfocado pelo muito que se distanciou! Aqui estou eu inutilmente de olhos fechados: inutilmente por não conseguir fechar os únicos olhos que veem todos os meus caminhos – os antes e os depois. Por não conseguir impedir as visitas frequentes aos lugares onde deixei mascarados de coragem os meus medos, nem onde em redemoinhos continuam a azucrinar os turbilhões dos meus fantasmas. Tento desenvencilhar-me desta teia de pensamentos em que frequentemente me enleio, abro de novo os olhos e corro para aqui. Quero escrever, falar dos trilhos que agora me assaltam à memória, daqueles que deixei na vida, daqueles que segui deixados por outros, daqueles que os meninos que cuidei deixaram gravados a ferro e fogo nos lugares secretos que com eles percorri nas suas infâncias, e se tornaram por isso meus também. Talvez daqui a pouco eu já não veja

nítidos como agora, todos os pontos onde as crianças que fomos tão distantes no tempo se cruzaram, e os lugares esquecidos dentro de mim que com elas de mãos dadas e olhos fechados percorri até a minha meninice. Como se todos os caminhos de todas as crianças se cruzassem algum dia em algum lugar! Quero escrever, mas o meu pensamento corre mais veloz do que os meus dedos que aqui e ali deixam para trás marcas desvanecidas pela poeira cerrada que a minha corrida pelo tempo entretanto levantou. Quero escrever as sombras que atravessei dentro de mim, numa proteção inconsciente de todos os que me viam sem me ver. Quero descansar do muito que corri enquanto pensava fugir de tudo o que não conseguia perder de vista, arrastando-o numa corrida louca à minha frente e eu atrás, colada a mim, sem me poder distanciar, sem me dar conta que só o tempo passava. E aqui continuo eu tentando de novo. Mais uma vez de novo. Agora, lado a lado comigo, num caminho de regresso à infância que foi minha e num lugar onde só eu cabia: dentro de mim! Quero imprimir a minha alma que agora me fala da criança que fui e que sempre será o meu porto seguro. Em qualquer cais, em qualquer saudade! l

Ficha técnica Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes Visuais: Saúl Neves de Jesus • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Filosofia Dia-a-dia: Maria João Neves • Letras e Literatura: Paulo Serra • Marca D'água: Maria Luísa Francisco • Nascida no Monte Teresa Lança • Reflexões sobre Urbanismo: Teresa Correia • Colaboradores desta edição: Vítor Azevedo Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/ postaldoalgarve FB: www.facebook.com/ postaldoalgarve/ Tiragem: 9.839 exemplares

ESPAÇO ALFA •••

Falemos um pouco sobre fotografia foto vitor aZevedo

dia ou os tons dourados do final da tarde vamos fazer as nossas fotos. Utilizemos um pouco de flash de enchimento para fazermos fotos em contra luz ao cair do dia e vamos ver que o assunto da nossa imagem ficará com mais recorte, mais tridimensional e enquadrada num fundo dramático e quente, ou, sem flash, Vítor Azevedo Membro da ALFA exploremos o recorte da luz de fun- Associação Livre Fotógrafos do Algarve do na silhueta que fotografamos. Sabemos que esta hora do dia se Agora que os dias estão mais lon- escoa muito rapidamente e por isso gos e o confinamento mais curto devemos saber aproveitá-la, contudo, temos duas boas razões para voltar um pouco antes dessa hora de luz máa fotografar no exterior. gica, sós ou com o nosso modelo, se for Usando a luz suave do início do o caso, desfrutemos dos aromas e da

serenidade do cair da tarde esquecendo por momentos os “clicks”, relaxando, acalmando o corpo e a mente. Após esses momentos de relaxamento o resultado do trabalho fotográfico terá muito melhor precisão e qualidade, tudo fluirá com harmonia e sincronia, feito ao ritmo certo, sem pressões. Se nunca utilizaram esta técnica de relaxamento, experimentem e depois digam-me se concordam ou não com o que digo, o que sentiram, como viram os resultados das vossas fotos, como sentiram a relação com o vosso modelo. E como é Verão e a vida espera-nos, hoje fico-me por aqui, até um próximo encontro. l

/ d.r.

Fim de tarde na Ria Formosa •


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