CULTURA.SUL 142 11SET2020

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Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o

SETEMBRO 2020 n.º 142 www.issuu.com/postaldoalgarve

10.291 EXEMPLARES

MISSÃO CULTURA

Hans Gadow e as primeiras escavações arqueológicas em grutas do Algarve FREDERICO TÁTÁ REGALA Arquéologo ao serviço da Direção Regional de Cultura do Algarve

A

thaíde Oliveira, na página 154 da sua bem conhecida Monografia do Concelho de Loulé, publicada em 1905, afirmava em relação a uma caverna no sítio da Salustreira: “Já ali, em tempo, se estabeleceram uns ingleses, que fizeram grandes investigações, cujos resultados foram desconhecidos, não só porque a ninguém deram conta, mas porque levaram consigo tudo quanto ali apuraram”. Quem seriam esses ingleses e o que levaram da caverna? Esta questão permaneceu envolta em algum mistério até que trabalhos de pesquisa documental recentes, no âmbito do Projecto Património Espeleológico do Algarve (DRCAlgarve / ICArEHB – UALG) permitiram melhor conhecimento. Desde há muito que as grutas do Algarve acicatam a curiosidade de investigadores portugueses e estrangeiros. Já em meados do século XIX o geólogo francês Charles Bonnet pesquisou algumas grutas na região de Loulé, embora sem resultados arqueologicamente relevantes.1 O arqueólogo Estácio da Veiga revelou particular interesse pelas grutas da região, as quais procurou inventariar e descrever, trabalho que integrou na sua distinta obra “Antiguidades Monumentais do Algarve”, no 1.º volume, publicado em 1886. Entre outras grutas deu atenção à Caverna da Solestreira (ou Salustreira), em Querença, Loulé, sobre a qual recolheu informação. Referiu que dela eram então extraídas grandes quantidades de guano de morcego para fertilizar as terras agrícolas e que durante a extracção surgiam pedaços de cerâmicas antigas, indiciadoras do interesse arqueológico da gruta. Esta informação transmitiu-a Estácio a um investigador da Universidade de Cambridge, Hans Gadow, quando este esteve em Faro no ano de 1884. Não obstante a formação de Gadow ser na área da biologia, este interessou-se claramente pelos depósitos arqueológicos em gruta, possivelmente influenciado pelas importantes

descobertas que revolucionaram o conhecimento da pré-história na segunda metade do século XIX, em contextos de grutas do ocidente europeu, inclusivamente na Estremadura portuguesa na sequência de escavações realizadas sob a égide da então Comissão Geológica de Portugal. Gadow ficou de tal modo interessado nas grutas da região que regressou com o objectivo de proceder a intensivas pesquisas. Visitou grutas em Alte, Salir e Querença, tendo a sua preferência recaído sobre as chamadas Solestreiras, duas grutas próximas, que viria a escavar em Julho de 1885. Para o efeito conseguiu uma carta de recomendação do então Ministro dos Negócios Estrangeiros, À esquerda: O mais antigo levantamento topográfico que se conhece de grutas Barbosa do Bocage, dirigida ao no Algarve (Gadow, 1886); cima à direita: Local onde terão acampado, em Junho Governador Civil do Algarve, o de 1885, Hans Gadow e a equipa de arqueologia; em baixo à direita: Câmara prinque lhe proporcionou o apoio cipal da Solestreira poente FOTOS D.R. logístico dos poderes locais. Com a autorização escrita de Manoel da Silva, a Solestreira do lado poente estivera arqueológicos recolhidos por Hans o proprietário, Gadow contratou seis fechada com uma lage de pedra e no Gadow, em parte perderam-se logo mineiros e contou com o apoio de Tho- seu interior terão sido descobertas três após a recolha, incluindo as contas de mas Warden, engenheiro civil então “sepulturas”, assim como recipientes mineral, num acidente ocorrido duem serviço na Mina de São Domingos cerâmicos “com formas peculiares”. rante o carregamento de uma mula (Mértola). O pesquisador e a sua equi- Presume-se que os contextos arqueo- utilizada para o transporte, conforme pa estiveram acampados durante sete lógicos devem ter sido extensivamente o próprio dá conta; outra parte foi dias na gruta que apresenta entrada perturbados e removidos aquando da levada para Cambridge, no Reino Unimais ampla, sendo diariamente abas- exploração de guano e dos sedimentos do. Confirmou-se que, de facto, existe tecidos de víveres por um habitante subjacentes para uso agrícola, antes presentemente um conjunto de peças de Querença. Foram então escavadas da intervenção arqueológica, perden- arqueológicas fornecidas por este invesvárias sondagens em ambas as grutas, do-se a informação que deles poderia tigador e provenientes de Portugal no acervo do Museum of Archaeology and o que permitiu a exumação de ossos ter sido obtida. e dentes humanos acompanhados de A campanha deu origem a uma Anthropology (MAA) da Universidade alguns artefactos, destacando-se gran- crónica que, para além da relevância de Cambridge. A informação constante de número de contas de colar feitas de arqueológica, constitui uma descrição da respectiva etiquetagem revela-se por mineral verde “calaíte” (provavelmen- pitoresca, em estilo vitoriano, focan- vezes equívoca, mas é possível correlate um mineral do grupo das variscites) do aspectos de diversa natureza, cuja cionar com as Solestreiras pelo menos e um artefacto em osso de veado que edição veio à estampa em 1886, em ar- duas peças, incluindo o dito punhal em foi então interpretado como sendo um tigo publicado pela Universidade de metápode de veado. punhal (tipologicamente um formão). Cambridge2, mas que acabaria por não Deve ser notado que para além do Pela descrição os restos são compa- alcançar a merecida divulgação, man- interesse arqueológico das Solesteitíveis com contexto de necrópole da tendo-se, ao que tudo indica, ignorado ras estas grutas constituem também Pré-História recente, apesar de não ter em Portugal até muito recentemente. importante abrigo para espécies de sido registada a presença de cerâmi- O documento reveste-se de particular morcegos protegidas, sendo altamente cas ou outros artefactos que ajudem a interesse por constituir o mais antigo desaconselhada a realização de visitas uma melhor resolução cronológica. De registo de escavações assumidamente ao seu interior. Apesar deste facto e dos acordo com a informação prestada a arqueológicas, com resultados relevan- esforços de salvaguarda promovidos pela Autarquia de Loulé, assim como Gadow pelo antigo proprietário do ter- tes, realizadas em gruta do Algarve. reno em que se encontram as grutas, Quanto ao paradeiro dos materiais pelo ICNF, estas grutas têm vindo a so-

Ficha técnica Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes Visuais: Saúl Neves de Jesus • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Fios de História: Ramiro Santos • Filosofia Dia-a-dia: Maria João Neves • Letras e Literatura: Paulo Serra • Marca D'Àgua: Maria Luísa Francisco • Nascida no Monte Teresa Lança Colaboradores desta edição: Frederico Tátá Regala Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/ postaldoalgarve FB: www.facebook.com/ postaldoalgarve/ Tiragem: 10.291 exemplares

frer lamentáveis actos de vandalismo, sendo evidente a desfiguração provocada por inscrições nas paredes, quebra de formações, lixo diverso, fogueiras e outras acções que vão paulatinamente provocando a delapidação deste importante património natural e cultural de Querença e do Algarve. 1 Mémoire sur le Royaume de l’Algarve (1850) - Memorias da Academia Real das Sciencias de Lisboa (2ª série, tomo II, parte II) 2 Gadow, H. (1886) – On some caves in

Portugal. Proceedings of the Cambridge Philosophical Society, Vol. 5, pp. 381-391.


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