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Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o

NOVEMBRO 2021 n.º 156 7.270 EXEMPLARES

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ARTES VISUAIS

O “pequeno” também é belo nas artes visuais?

Ficha técnica Direção: GORDA, Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Responsáveis pelas secções: • Artes Visuais: Saúl Neves de Jesus • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Filosofia Dia-a-dia: Maria João Neves • Fios De História: Ramiro Santos • Letras e Literatura: Paulo Serra • Marca D'Água: Maria Luísa Francisco • Mas afinal o que é isso da cultura?: Paulo Larcher e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve FB: https://www.facebook.com/ Cultura.Sulpostaldoalgarve

Trabalho produzido por Willard

Trabalho produzido por David Lindon

Wigan

Imagens da exposição “Obras-primas em miniatura”

SAÚL NEVES DE JESUS Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; http://saul2017.wixsite.com/artes

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os últimos anos a arte tem procurado sair dos museus para ir ao encontro das pessoas, sendo a arte urbana uma das principais manifestações desta tendência. Isto tem levado a um aumento do tamanho das obras, estando a expressividade artística associada ao impacto que estas causam devido à sua dimensão. É óbvio que a escala das obras deverá estar articulada com o conjunto da linguagem escultórica, nomeadamente o relacionamento com a arquitetura e a paisagem onde são feitas ou colocadas. Por exemplo, a obra escultórica

criada por Anish Kapoor, que já expôs nos jardins de Serralves, tem sido concebida a uma escala de grandes dimensões, em ambientes urbanos. Este artista considera a grande dimensão que têm as suas obras como “parte da linguagem da escultura, essencial para envolver fisicamente o espetador”. A dimensão da obra produzida implica sair da “zona de conforto” em termos percetivos, repensando os objetos e a sua relação com o mundo. Efetivamente, a mudança de escala dos objetos artísticos é um fator que permite alterar a sua perceção e o efeito emocional que estes podem ter sobre o espetador. A perceção tem sido um domínio estudado pela Psicologia há mais de 100 anos, desde as experiências de Werteimer em 1912. Aspetos como o movimento dos objetos ou a forma

Trabalho produzido por Slinkachu FOTOS D.R.

como se relacionam no espaço têm influência sobre a perceção dos mesmos pelo espetador. Isto porque a perceção é subjetiva e dinâmica, reconstruindo ela própria os objetos percecionados pelo sujeito. A dimensão é assim uma variável que pode ser explorada na produção artística para aferir o impacto percetivo e emocional das obras de artes visuais. O aproveitamento do impacto da obra criada pela dimensão da mesma tem sido usado por vários artistas contemporâneos. É o caso de Joana Vasconcelos, conhecida internacionalmente pelas suas obras em grande dimensão, feitas com objetos da vida quotidiana. Objetos que habitualmente passam despercebidos ao mundo da perceção

artística, mas que Joana Vasconcelos integra em grandes quantidades, dando-lhes um sentido simbólico e permitindo que “o todo seja mais do que a mera soma das partes”. Embora a tendência na arte contemporânea seja a produção de obras com grandes dimensões, tem havido também uma aposta em trabalhos de pequenas dimensões por parte de alguns artistas, em que o ser “miniatura” é um dos aspetos originais e identitários das obras produzidas. Ainda em junho deste ano foi inaugurada a exposição “Masterpieces in Miniature” (“Obras-primas em miniatura”), na Pallant House Gallery, em Inglaterra, com obras dos 30 artistas britânicos mais

famosos, incluindo Damien Hirst e Rachel Whiteread, sendo considerada a menor mostra de obras em museu de todos os tempos, pois o espaço é o equivalente a uma casa de bonecas. Também muito recentemente o artista britânico David A. Lindon recriou famosas obras de arte em formato miniatura, com uma dimensão tão pequena que cabem na cabeça de uma agulha. O antigo escultor britânico recriou com precisão seis obras de reputados artistas, como “O Grito”, do norueguês Edvard Munch, e “A Noite Estrelada” e “Doze Girassóis numa Jarra”, do holandês Van Gogh, tendo conseguido vender todas as peças por um valor superior a 90 mil libras (mais de 100 mil euros). Já em 2012, o artista microescultor Willard Wigan havia produzido uma miniatura da tocha olímpica, a qual cabia no buraco de uma agulha, para comemorar a realização dos jogos em Londres. Além de criar a “menor tocha do mundo”, com detalhes impressionantes a partir de um pequeno pedaço de ouro de 24 quilates, adicionou ainda à obra os cinco anéis olímpicos, usando um mini cinzel de diamante. A obra era tão minúscula e

minuciosa que foi produzida durante a noite, para evitar as vibrações geradas pelo tráfego, tendo sido necessário usar um microscópio para esculpi-la e também para conseguir apreciá-la. Além disso, Willard Wigan realizou este trabalho com recurso a técnicas de respiração e meditação. Segundo as suas próprias palavras, “'eu tenho que entrar num estado meditativo antes de começar. Fazer algo deste tamanho é muito cansativo. Primeiro, preciso gravar a imagem na minha cabeça e depois desacelerar o sistema nervoso para evitar tremer, garantindo que cada corte seja feito entre batimentos cardíacos”. Procurando chamar a atenção para certos problemas da sociedade, o artista britânico Slinkachu tem realizado instalações em miniatura que deixa no exterior, como uma forma de arte urbana. É o caso da beata de um cigarro convertida em obra de arte, para chamar a atenção do lixo e da poluição causada pelo consumo do tabaco. Assim, o “pequeno” também tem lugar na arte contemporânea, sendo grande o detalhe, a minúcia e também a beleza e o significado que estas obras podem permitir expressar.


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MARCA D'ÁGUA

Pontes transfronteiriças e pontes culturais MARIA LUÍSA FRANCISCO Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa luisa.algarve@gmail.com

Ninguém pode construir em teu lugar as pontes que precisarás de passar para atravessar o rio da vida. (…) Existe no mundo um único caminho por onde só tu podes passar. Aonde leva? Não perguntes, segue-o!” Nietzsche

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Rio Guadiana une dois países e é testemunha da história de dois povos irmãos que mantêm a sua memória viva ao redor de um rio. Assim como um cordão umbilical que os une enquanto um só povo, através dos seus afluentes e da sua bacia. O Baixo Guadiana representa essa memória de dois povos que compartilharam uma tradição, usos e costumes. Os rios foram as grandes vias de comu-

nicação antes das estradas. Ao longo de vários séculos povos como os Fenícios, Cartagineses, Romanos, Árabes navegaram pelo Guadiana e instalaram-se pelos séculos fora nas suas margens, deixando elementos culturais que persistem até hoje nos usos e nos costumes das gentes locais. Certamente foram recursos como o sal do estuário e o minério da zona das Minas de São Domingos e Pomarão, que o rio permitia escoar, que justificaram, em grande medida, a fixação dos primeiros povos. No caso de Alcoutim e Sanlúcar de Guadiana, duas comunidades separadas e ao mesmo tempo unidas pelo rio, procuram potenciar a sua herança milenar comum. Cada vila à sua maneira, são exemplo de como um rio pode unir duas comunidades, que em certas alturas da história não estiveram tão próximas. A construção de uma ponte entre as duas povoações tem sido um sonho acalentado por grande parte dos habitantes de cada vila. Em 1999 surgiu a Associação Transfronteiriça Alcoutim Sanlúcar (ATAS) que se movimentou e mobilizou vontades pela construção da ponte. Umas vezes com mais acções junto do poder central, outras com reuniões em

Espanha. Umas com avanços, outras com recuos, mas finalmente foram apontadas, há poucos meses, possíveis datas para a concretização de um sonho destas populações. Tendo em conta a actual situação política, ainda muita água correrá, até à ponte! Carlos Brito e Victoria Cassinello estiveram na origem desta Associação, à qual presidiram vários anos. A presidência era alternada entre as duas vilas raianas. Trabalhei de perto com Carlos Brito na direcção da Associação ATAS e de facto o seu entusiasmo é contagiante. Toda uma imensa experiência de vida que tem colocado ao serviço de Alcoutim com uma dedicação e jovialidade que fazem deste ex-resistente um artífice de pontes culturais. A ATAS para além de ter tido como missão a criação de uma ponte física, criou pontes culturais e desenvolveu iniciativas que aproximaram os habitantes das duas vilas transfronteiriças. Quando leccionava na Universidade do Algarve integrei simultaneamente um projecto de investigação com a Universidade de Huelva, financiado pelo Programa de iniciativa comunitária “INTERREG III Espanha-Portugal”. Esse projecto pretendia conhecer a

realidade social de vários municípios transfronteiriços (Alentejo, Algarve e Andaluzia). Coube-me ir para o terreno em três municípios com fronteira com Espanha: Vila Real de Santo António, Castro Marim e Alcoutim. Antes do trabalho neste projecto aqui referido, eu apenas conhecia Alcoutim através do estudo de Cristiana Bastos intitulado Os Montes do Nordeste Algarvio, que citei várias vezes na minha tese de mestrado sobre Ecoimigração enquanto dinâmica migratória para espaço rural. Criei o conceito de Ecoimigração e em Alcoutim resolvi estudar os estrangeiros que viviam no Rio Guadiana no âmbito da minha investigação do doutoramento em Sociologia Rural e Urbana. Até ser convidada para colaborar com a ATAS não sabia que Carlos Brito escrevia poesia, nem ele sabia que eu também escrevia. De facto todo o trabalho com poesia pelo meio se torna mais leve e ao mesmo tempo mais profundo, porque a poesia é como um rio que nos corre pelas veias. Realizámos actividades transfronteiriços, também com os Poetas do Guadiana e de facto a ATAS foi uma Associação que criou laços entre as pessoas e amizades fraternas.

O território do Baixo Guadiana é muito rico e tem grande valor etnológico e etnográfico ao alcance de todos, por isso tem de ser preservado como herança dos povos que o habitaram. E onde, hoje, podemos usufruir das tradições e dos costumes, bem como da sua gastronomia. A passagem ilegal da fronteira de outrora (contrabando de produtos de consumo) deu lugar à cooperação. Até deu lugar a uma experiência ímpar entre dois países e que adorei: Deslizar 720 metros sobre o rio, de uma margem para outra, a vários metros de altitude, no único slide transfronteiriço do mundo! Foram criadas várias pontes (culturais, sociais, religiosas, políticas, económicas e poéticas), ou seja, as “pontes” estão criadas independentemente da ponte se concretizar ou não. * A autora não escreve segundo o acordo ortográfico

ESPAÇO AGECAL

A COP 26 e a boa globalização JORGE QUEIROZ Sociólogo Sócio da AGECAL Membro da delegação de Portugal na inscrição da Dieta Mediterrânica como PCI da Humanidade, 8ª Conferência Intergovernamental da UNESCO. Baku, a 4 de Dezembro de 2013.

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m Glasgow iniciou-se a 31 de Outubro a COP 26 da ONU sobre as Alterações Climáticas, é a vigésima sexta reunião entre os Estados parceiros, que durará até 12 de Novembro de 2021. A preocupação dos cidadãos aumentou com a tomada de consciência dos problemas ambientais que se agravam de ano para ano. As actividades humanas poluidoras, destrutivas dos ecossistemas e dos equilíbrios ambientais, resultam num crescendo de eventos naturais que indicam a proximidade do pior no que se refere à habitabilidade da “casa comum”.

Cinco décadas passaram desde que em Estocolmo se realizou em 1972 a primeira Conferência Mundial sobre o Ambiente, na qual foi criado o PNUM, programa da ONU para as questões ambientais. Seguiram-se a Conferência de Nairobi em 1982 onde foi apresentado o relatório Brutland, o Protocolo de Montreal em 1987 que assumiu a redução de emissões de CO2 na sequência da questão do ozono, a ECO do Rio de Janeiro em 1992 da qual saiu a Declaração do Rio, a Agenda 21, os princípios para a sustentabilidade das florestas, as Convenções da Biodiversidade e do Clima. Em 1997 em Kyoto o protocolo comprometia os subescritores com a redução de 5,2% das emissões poluentes e em Joanesburgo realizou-se em 2002 a “Cúpula Mundial sobre o Desenvolvimento Sustentável e Objectivos do Milénio”, ocorreu sob uma chuva de críticas pelo alheamento dos Estados quanto às obrigações de prevenção e financiamento. Na Rio + 20 em 2012 o debate

centrou-se no desenvolvimento sustentável, agudizaram-se as críticas sobre a ausência de metas claras e de fiscalização. O acordo de Paris em 2015 teve como principal ambição o controlo da temperatura global mantendo-a até ao limite de 1,5 graus centígrados em relação à era pré-industrial. Sucessivas conferências, pobres resultados… A ONU está limitada nas suas capacidades, não existem mecanismos legais ou coercivos para impor decisões do interesse comum, os países mais poderosos, os G20, são responsáveis por 80% da poluição mundial, foi permitido às empresas multinacionais criarem um superestado ou sistema global, que domina o capital financeiro internacional, a investigação e a ciência, a produção e as cadeias de distribuição de bens e serviços, os meios de comunicação e a internet. Para além da exigência de uma nova ordem política e jurídica internacional, todos os sectores têm o dever de se movimentar e actuar na defesa

dos direitos das próximas gerações a receberem um planeta limpo onde se possa viver com dignidade. Qual o papel da cultura nesta situação? Em primeiro lugar impõem-se a defesa da diversidade natural e cultural do planeta, das línguas, tradições, monumentos e sítios, tendo como instrumentos práticos as Convenções da UNESCO. O conceito de Património da Humanidade é a concretização da ideia de que há valores, patrimónios e práticas sociais que são pertença de todos, da comunidade mundial. É o caso da Dieta Mediterrânica que se articula com os objectivos culturais e ambientais da ONU. Do ponto de vista ambiental, a Dieta Mediterrânica significa salvaguarda da biodiversidade, orienta-se para agriculturas adaptadas ao clima, aos solos, que garantem a continuidade das capacidades regenerativas e reprodutivas das espécies, com menor consumo de água e de emissões de CO2, estimula os mercados de proximidade, o consumo de

produtos frescos de cada época do ano, fortalece as economias locais e garante a segurança alimentar. No plano da saúde pública, assegura uma nutrição mais rica e previne transmissões pandémicas. Tal como na Antiguidade, hoje as doenças viajam com as pessoas e os produtos. Reordenar o território pressupõe elaborar as “Cartas de Salvaguarda das paisagens histórico-alimentares”, preservando a identidade cultural das regiões e os direitos das comunidades. A introdução da dieta mediterrânica nos currículos escolares e a investigação protocolada entre universidades portuguesas são boas notícias. Mas há muito mais e melhor a fazer, Portugal, o Algarve e Tavira têm elevadas responsabilidades perante a UNESCO e os portugueses. A dieta mediterrânica é um dos instrumentos para uma globalização boa. * O autor não escreve segundo o acordo ortográfico


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FILOSOFIA DIA-A-DIA

Não existe nenhum aparelho para aceder à mente humana e não confiamos na nossa própria percepção por ser subjectiva FOTO D.R.

A Mente — o grande tabu MARIA JOÃO NEVES PH.D Consultora Filosófica

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artimos do princípio que os religiosos lidam com crenças, e que toda a sua actividade se fundamenta na fé. Os cientistas, pelo contrário, lidam com factos empíricos e com raciocínios lógicos. Alan Wallace, autor do livro The Taboo of Subjectivity (O Tabu da Subjectividade) diz-nos que “esse é um mito adorável mas nunca foi verdade”. Wallace aponta para uma obviedade constantemente ignorada: não é possível obter uma educação científica se não tiver confiança nos seus antecessores, nos seus professores, nos professores dos seus professores, e assim por diante. É impossível testar tudo! Nós acreditamos ou, dito de outro modo, temos fé nos cientistas que nos precederam. Em prol da cientificidade os dados empíricos têm sempre a última palavra e não há lugar para dogmas, teorias religiosas ou afirmações a priori, isto é, afirmações que não provenham da experiência. Porém, a ciência progrediu através de uma esteira ideológica — o materialismo científico — que, por sua vez, incorpora uma série de postulados a priori. Concentrar-nos-emos hoje no rei destes postulados: a objectividade.

O materialismo científico está crivado de suposições decorrentes dos dualismos absolutos. Recordemos, como exemplo, o posicionamento do filósofo francês René Descartes (1596-1650) que postula uma separação radical entre res cogitans (a substância pensante), e res extensa (a matéria), que, por sua vez, dá lugar ao dualismo entre entre sujeito e objeto. Rapidamente se julgou que somente o mundo material objetivo pode aspirar à cientificidade. Como consequência, apenas os fenómenos físicos e seus atributos passaram a ser considerados reais, por objectivos, em detrimento dos fenómenos mentais subjetivos. Os filósofos empiristas britânicos John Locke (1632-1704) e David Hume (1711-1776) consideravam que todo o conhecimento provinha da experiência. A mente era uma espécie de “tábua rasa” na qual os sentidos iam deixando as suas impressões. O filósofo irlandês George Berkeley (1685-1753), idealista, foi um acérrimo opositor do empirismo dominante na sua época. O seu ponto de partida é um argumento relativamente simples apresentado em Princípios: “é uma opinião estranhamente prevalecente entre os homens, que casas, montanhas, rios e, numa palavra, todos os objetos sensíveis têm uma existência natural ou real, independente de serem percebidos

pelo entendimento. (...) o que são os objetos mencionados senão as coisas que percebemos pelos sentidos, e o que percebemos além de nossas próprias ideias ou sensações; e não é totalmente repugnante que qualquer um desses ou qualquer combinação deles deva existir independentemente da percepção?” Este conflito entre empiristas e racionalistas acaba por ser resolvido pelo apriorismo proposto pelo filósofo alemão Emmanuel Kant (1724-1804) através da sua “Revolução Copernicana”. Na Crítica da Razão Pura Kant diz-nos o seguinte: “Se a intuição tivesse de se guiar pela natureza dos objectos, não vejo como deles se poderia conhecer algo a priori, se, pelo contrario, o objecto (enquanto objecto dos sentidos) se guiar pela natureza da nossa faculdade de intuição, posso perfeitamente representar essa possibilidade”. Kant esclarece que jamais será possível obter um conhecimento absoluto e independente do modo de conhecer: “a nossa representação das coisas, tal como nos são dadas, não se regula por estas consideradas como ‘coisas em si’, mas são esses objectos, como fenómenos, que se regulam pelo nosso modo de representação”. Utilizando metaforicamente a linguagem informática da actualidade poderíamos dizer o seguinte: o nosso cérebro possui um determinado sof-

tware que obviamente condiciona o modo como os dados são apreendidos. É impossível sabermos como são os dados “em si”, independentes da forma como nós os apreendemos — à “coisa em si” Kant chamou númeno, referindo-se ao que as coisas seriam independentemente de quem as observa ou capta — aos dados recebidos com o nosso software cerebral Kant chamou fenómeno. A possibilidade do conhecimento científico, bem como os seus limites ficaram assim estabelecidos a partir do séc. XVIII: podemos estudar cientificamente o fenómeno. Na filosofia dualística e mecânica que dominou o surgimento da ciência moderna, a natureza não é apenas vista como desprovida de consciência, mas também objectivada a ponto de estar totalmente divorciada da experiência perceptiva. A experiência consciente foi efectivamente removida da natureza e, portanto, do domínio objectivo da ciência. Aderindo aos princípios do materialismo científico, a ciência veio a ser equipada com meios cada vez mais sofisticados de explorar processos físicos objectivos; mas não houve um desenvolvimento correspondente dos meios para explorar os processos cognitivos subjectivos. No início do século XX, psicólogos e académicos mudaram o foco da sua investigação dos estados subjectivos de consciência para o estudo objectivo do comportamento. O modo tradicional de purgar a subjectivida-

de do mundo natural voltou no final dos anos 1950, com o surgimento da psicologia cognitiva. A mente passou a ser considerada uma propriedade do cérebro. O neurocientista português António Damásio (1944) no seu livro O Erro de Descartes publicado em 1995 toma o quadro de Rembrandt A lição de anatomia do Dr. Tulp, onde se disseca um cadáver, para exemplificar o extraordinário progresso científico que então se alcançou. Antes da dissecação de cadáveres o interior do corpo era tabu. Desde então o cérebro passou a ser o grande tabu. Com o nascimento das neurociências e o avançar da tecnologia que permitiu scanners cerebrais e imagiologia do cérebro vivo, bem como a localização espacial de funções do foro psíquico/espiritual, como os juízos éticos, ficou demonstrado o tal erro em que incorria Descartes ao separar radicalmente a substância material da substância pensante. Damásio diz-nos: “A alma respira através do corpo, e o sofrimento, quer comece no corpo ou numa imagem mental, acontece na carne”. A investigação do neurocientista português continuou a avançar e em 2010 foi publicado O Livro da Consciência. Aí se explica que numa certa região do tronco cerebral, entre o córtex cerebral e a espinal medula, estão alojados todos os dispositivos de regulação vital do corpo. É ainda possível determinar com precisão uma subárea desta região que, se for danificada, provoca o estado de coma, ou o estado vegetativo, isto é, a nossa mente desaparece, a nossa consciência extingue-se. Porém, a localização neurofisiológica da mente/consciência não nos elucida sobre o seu funcionamento. Com mais de um século de investigação psicológica e cerca de meio século de progresso nas neurociências, até mesmo a maioria dos defensores do cientificismo reconhece que a ciência ainda não forneceu uma explicação inteligível sobre a natureza da consciência. Por seu lado, o materialismo científico erigiu um tabu contra a investigação científica dos fenómenos mentais subjectivos e tudo fez para prevenir que a perspectiva subjectiva de alguém pudesse, eventualmente, contaminar a ciência. Não existe nenhum aparelho para aceder à mente humana e não confiamos na nossa própria percepção por ser subjectiva. Vivemos sob o dogma de que tudo aquilo que é subjectivo não pode ser científico, ignorando os milhares de anos de treino mental que existe no oriente e que permite reduplicar experiências desta natureza. Erradicámos a consciência da ciência e transformámos a mente humana no grande tabu! Inscrições para o Café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com * A autora não escreve segundo o acordo ortográfico


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FIOS DE HISTÓRIA

A Batalha de Lagos que ia incendiando a Europa

RAMIRO SANTOS Jornalista ramirojsantos@gmail.com

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em punhos de renda, o Marquês de Pombal não poupou nas palavras. Falou alto e grosso num tom que soou por toda a Europa em guerra. E não haverá no registo da história da chancelaria portuguesa, palavras tão pouco diplomáticas: “Há tempos em que nas monarquias um só homem pode muito (...) fazei, portanto, o que deveis, se não quereis que eu faça o que posso”. Escreveu o conde de Oeiras, em tom ameaçador, ao governo de Sua Majestade britânica. Palavras duras para se ter com um amigo. Mas as circunstâncias não deixavam outra saída. O primeiro ministro português estava entre a espada e a parede. Entre a justa indignação dos franceses e a arrogante insolência dos ingleses. Tudo começara em agosto de 1759 quando uma frota britânica perseguiu e bombardeou quatro navios franceses que se haviam acolhido às praias de Almádena e do Zavial, na zona de Salema, entre Sagres e Lagos. A expedição gaulesa julgava-se protegida pelo estatuto de neutralidade de Portugal na guerra dos sete anos. Mas enganou-se. Os ingleses, senhores dos mares e do mundo, não estiveram com meias medidas. Fizeram tábua rasa das leis internacionais e abrasaram os navios de Luís XV. Justamente indignado, o governo francês multiplicou-se em protestos internacionais exigindo um pedido formal de desculpas e uma repara-

ção material pelos prejuízos causados, bem como a restituição dos barcos apresados. E Portugal, como país neutral e palco dos acontecimentos, não podia fugir às suas responsabilidades, devendo forçar os seus aliados a fazerem o que lhes era devido fazer. E para que os súbditos de Sua Majestade não ficassem com dúvidas, o conde de Oeiras avisou: “Eu fiz romper vivo o duque de Aveiro (Távoras) por ter atentado contra a vida do rei, e poderei muito bem fazer enforcar um dos vossos capitães por ter roubado a sua efígie em desprezo pela lei”. Tudo começou no quadro da guerra dos sete anos, e a batalha de Lagos surge como um episódio marginal na tentativa de Luís XV de invadir a Inglaterra num conflito que se estendeu pela Europa, África e América onde se disputavam as possessões coloniais de cada um dos beligerantes: Inglaterra, França, Espanha e os seus correspondentes e ocasionais aliados. Partindo de duas bases operacionais, a França procuraria surpreender os britânicos no seu próprio território. Uma frota de 21 navios de guerra da sua esquadra atlântica de Brest largaria a norte, e outra armada de 12 navios sairia da base mediterrânica de Toulon, a sul, sob o comando do almirante De la Clue. Este, a 17 de agosto, rompeu o bloqueio dos ingleses em Gibraltar, mas foi perseguido pelas embarcações do almirante Edward Boscawen. No dia seguinte, alcançados, cinco navios franceses conseguiram refugiar-se no porto de Cádiz, dois fugiram, um foi capturado e os restantes quatro procuraram as águas protegidas ao abrigo do princípio da neutralidade declarada por Portugal na guerra. Se destes quatro, em mar português,

os dois primeiros – o Téméraire e o Modeste foram aprisionados -, o Redoutable, encalhado na praia do Zavial, e l’Ocean na praia de Almádena, não resistiram ao fogo dos navios ingleses, naquela que ficaria conhecida como a batalha de Lagos. L’Ocean, apesar dos seus 80 canhões e os 801 elementos da sua tripulação, foi afundado. Salvou-se, contudo, a maior parte dos seus homens embora o almirante De la Clue tivesse saído gravemente ferido atingido nas duas pernas. Ele que se julgava em águas seguras de um país neutral. E foi essa violação da “sagrada” neutralidade das águas portuguesas que tanto parece ter indignado o governo de Pombal, abrindo uma guerra diplomática entre os três países que ainda não tinham saído de sarilhos maiores. O cônsul inglês em Faro, Thomas Lampiere, com o primeiro relatório dos acontecimentos em mão, fá-los chegar prontamente ao embaixador em Lisboa, Edward Hay, que por sua vez segue os canais diplomáticos normais comunicando ao governo de Londres o sucesso da batalha. No meio de ações de espionagem e contra espionagem, a correspondência sobre as movimentações de cada um dos beligerantes, tinha tudo menos de confidencial. Todos sabiam das cartas uns dos outros. E tinham acesso ao seu conteúdo. Os franceses não abandonavam a sua posição de firme indignação e protesto, exigindo a reparação material e a restituição dos navios aprisionados. Os ingleses, sonsos, desdobrando-se em desculpas e despudorado cinismo, lá iam avançando a tese de que a violação da neutralidade portuguesa por parte do seu almirante Boscawen se ficara a dever apenas ao “calor da batalha”.

E para que não restassem quaisquer dúvidas avisavam: “em circunstâncias algumas permitirá o governo de Sua Majestade qualquer espécie de repreensão a Boscawen ou restituirá qualquer navio perdido pelos franceses”. Admitia, condescendente, que o rei Jorge II estaria disposto a enviar uma missão extraordinária a Lisboa para apresentação de desculpas e justificações formais. O que veio a acontecer. Nessa condição, a 21 de março, Lord Kinnoul, embaixador extraordinário da Grã Bretanha é recebido pelo rei D. José em audiência pública. No fundo, o diplomata veio a Lisboa “amansar a fera” ou fingir perante a comunidade internacional, designadamente a França, que tudo não passara de um episódio infeliz que ninguém verdadeiramente desejara. Quem não parecia estar pelos ajustes revelando já forte impaciência, era o governo francês. E uma vez que Portugal não se demarcava da ofensa inglesa, ameaçou apoiar uma invasão espanhola, não apenas no continente português como no Brasil. O assunto, que colocou Portugal em estado de alerta, fez subir a tensão entre as partes, mas acabou por morrer com o tempo, por maior que tivesse sido a pressão francesa. Ainda hoje se discute se a carta confidencial que o marquês tornou pública, lavrando o seu protesto de justa indignação, constituiu somente uma enorme encenação para “inglês ver” ou foi um expediente concertado para iludir os franceses. De qualquer modo, trata-se de um libelo acusatório violento, numa afirmação de soberania para “que Portugal faça ver a toda Europa que tem sacudido o jugo de uma dominação

estrangeira (...) e Portugal não pode provar isto melhor que obrigando o vosso governo a dar-lhe uma satisfação. A França olharia para Portugal como para um estado em fraqueza”. A carta é ao mesmo tempo um desafio e uma provocação: “Vós não fazieis ainda figura alguma na Europa, quando a nossa potência era a mais respeitável. A vossa ilha não formava mais do que um ponto na carta ao mesmo tempo que Portugal a enchia com o seu nome. Nós dominávamos a Ásia, África e América, quando vós domináveis somente em uma ilha da Europa”. No documento, Pombal recorda como a grandeza de Inglaterra se ficou a dever a Portugal, com o ouro do Brasil do qual “não fica em Portugal uma só peça de oiro; e (com as importações dos têxteis), nós damos do que viver a quinhentos mil vassalos do rei Jorge, população esta que subsiste à nossa custa”. E prossegue: “Mas se vos temos elevado a esse ponto de grandeza, na nossa mão está o precipitar-vos no nada de que vos arrancámos. Nós podemos melhor passar sem vós, do que vós sem nós (...) há muito tempo que a França nos estende os braços para que recebamos as suas manufaturas de lã. Na nossa mão está aceitarmos as suas ofertas, o que sem dúvida aniquilará as vossas”. E após outras considerações veementes, concluiu: “Eu fiz romper ao vivo o conde de Aveiro e poderei muito bem fazer enforcar um dos vossos capitães. Fazei, portanto, o que deveis, se não quereis que eu faça o que posso”. Fontes: “Fahreneit 1759”, Jean Yves Blot e Mª Luisa Blot; Grupo de facebook “A Torre do Tombo e a História”, Alexandre Monteiro; outras


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LETRAS & LEITURAS

Almoço de Domingo, de José Luís Peixoto PAULO SERRA Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

José Luís Peixoto é um consagrado escritor da literatura portuguesa contemporânea FOTO PATRÍCIA SANTOS SILVA / D.R.

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lmoço de Domingo, de José Luís Peixoto, autor publicado pela Quetzal, chegou às livrarias no início de Março, justamente para fazer justiça ao fio narrativo deste romance que se desenrola ao longo de três dias, 26, 27 e 28 de março de 2021, em que confluem ainda 90 anos de vida. Com Autobiografia (2019), possivel-

mente uma das suas melhores obras e um dos mais inovadores romances da literatura contemporânea portuguesa, o autor construiu uma homenagem nada beatificada a Saramago, figura tutelar na sua escrita. Agora, em Almoço de Domingo, José Luís Peixoto volta a uma narrativa que, à primeira vista, se poderia confundir com uma biografia romanceada, revisitando a memória de Manuel Rui Azinhais Nabeiro, fundador da Delta, condecorado Comendador. O «menino Rui», ou o «senhor Rui», é o protagonista desta obra que retrata, em paralelo, a história do país de 1931 e 2021. A data de 28 de março de 2021, em que se celebra esse almoço de domingo, é, afinal, o dia em que se comemora os 90 anos do «senhor Rui». Mas desengane-se quem procurar ler este romance como se de uma biografia se tratasse, pois a sua proeza é justamente explorar o poder disperso e espiralar da memória, de como 90 anos de vida se podem concentrar em alguns momentos, alguns instantâneos que irrompem aqui e ali. Além disso, na contra-capa do livro não há qualquer esclarecimento ao leitor acerca de estarmos a ler sobre uma personalidade real, nem o apelido Nabeiro chega alguma vez a ser mencionado no próprio texto. Estamos assim no pleno domínio da recriação ficcionada de

uma vida. A narrativa constrói-se em dois planos, alternando entre o presente, ao longo dos dias 26, 27 e 28 de março de 2021, narrados na terceira pessoa, e o passado do «senhor Rui», com episódios marcantes da sua vida que irrompem aparentemente sem nexo ou ordem, narrados na primeira pessoa, num percurso que atravessa várias gerações. A vida do protagonista, que aos 9 anos percorria Campo Maior para distribuir os enchidos que a mãe vendia, passa pela Guerra Civil de Espanha, pelo período em que um chocolate tinha de ser contrabandeado e se tornava uma dádiva inestimável, pela fundação da Delta em 1961, pelo 25 de Abril em que os seus trabalhadores a tentativa de lhe tomarem a fábrica, por uma visita a Timor e a Angola com o fito de descobrir o café daí, e conhece figuras como Mário Soares. O «senhor Rui» torna-se o centro de uma constelação de vidas – a dos pais, do irmã e das irmãs, do tio Joaquim, da mulher Alice que conhece na escola primária e de quem se torna inseparável, do filho e das filhas, dos netos e bisnetos, dos seus funcionários (que agora se chamam colaboradores) e de todos aqueles que o procuram para lhe pedir um favor ou um trabalho –, até por fim se fundirem, num almoço de domingo, como se, não obstante a

idade de quase um século, a sua vida e a da família se tornasse um só corpo: «Como um clarão, num momento, de uma vez, com súbito, profundo e absoluto sentido, o senhor Rui percebeu que tinha estado em todos aqueles pontos, tinha tido todas aquelas idades, tinha sido cada um deles. (…) Em cada um, existiam todos os outros.» (p. 239) Esta exploração da ideia de identidade, já presente em Autobiografia, em torno das figuras de José L. Peixoto e José Saramago, ganha aqui novo matiz, pois no centro deste romance a imagem que perdura é a de uma mesa e a de uma família reunida em torno do patriarca num almoço de domingo, em jeito de celebração do amor e da consistência de uma vida que deixou obra mas deixa, sobretudo, continuidade de sangue. «Quando acumulamos suficiente tempo, os domingos transformam-se num período da vida. Recordamos os domingos como uma unidade, anos inteiros só de domingos, estações inteiras compostas apenas por domingos» (p. 106) Há uma passagem, logo nas primeiras páginas, em que o senhor e o menino se parecem sobrepor, como se o rememorar fosse verdadeiramente uma viagem no tempo, conduzindo à ocupação e redescoberta de um corpo que em tempos foi justamente seu: «Fixo-me

Humanidade – Uma História de Esperança, de Rutger Bregman

Rutger Bregman procura demonstrar que face a uma tragédia ou em momentos de crise as pessoas não se revelam egoístas nem desregradas FOTO STEPHAN VANFLETEREN / D.R.

Humanidade – Uma História de Esperança, de Rutger Bregman, publicado pela Bertrand Editora, defende a ideia, controversa (se pensarmos naquilo que os meios de comunicação nos mostram, e no que os livros de história têm evidenciado), de que a Humanidade, quando confrontada com algu-

mas das maiores tragédias, como o Blitz em Londres na Segunda Guerra ou o Furacão Katrina em Nova Orleães, não entra em choque nem em histeria. Os exemplos estoicistas de humor britânico durante a destruição provocada pelas bombas alemãs são reveladores disso mesmo. Neste livro, o historiador e jornalista Rutger Bregman procura demonstrar como, face a uma tragédia ou em momentos de crise, ao contrário do que se assume, as pessoas não se revelam egoístas nem desregradas, numa fuga de “salve-se quem puder”, mas sim solidárias e corajosas, capazes até de ceder o lugar ao próximo, deixando-o passar à frente, enquanto descem o World Trade Center em chamas… «Há um mito persistente de que os seres humanos, pela sua própria natureza, são egoístas, agressivos e depressa entram em pânico. É aquilo a que o biólogo holandês Frans de Waal gosta de chamar teoria do verniz: a civilização não passa de uma fina camada que estala à menor provocação. Ora, a verdade é o oposto. Numa crise

– quando caem bombas ou sobem as águas durante uma inundação –, nós, humanos, tornamo-nos na melhor versão de nós mesmos.» (p. 25) O autor nega a «retórica fatalista da ruína» (p. 162), desmontando inclusivamente mitos que se instituíram, como uma eventual chacina na ilha de Páscoa que resultou no extermínio da população que, na verdade, nunca aconteceu. Dando ainda conta de algumas experiências macabras (incluindo reality TV shows) que procuravam justamente revelar o pior da natureza humana, e que inevitavelmente falhavam, Rutger Bregman mostra que, num momento em que enfrentamos «uma crise ecológica a uma escala existencial» (p. 140), não há verdadeiramente razão para sermos derrotistas, comprovando-o com a evocação de vários momentos da História em que fomos capazes de fazer o nosso melhor, revelando cooperação e altruísmo. Um dos episódios-chave do livro é quando durante a I Guerra Mundial os soldados de linhas inimigas celebram o Natal.

Livro foi bestseller do New York Times e do Sunday Time e também o livro do ano do Guardian

«Os humanos simplesmente não estão programados para fazer guerra.» (p. 412) Humanidade foi livro do ano do Guardian, bestseller do New York Times e do Sunday Times. O anterior livro do autor, Utopia para Realistas, foi igualmente um êxito internacional.

O comendador Rui Nabeiro, fundador da Delta, é o protagonista do romance de José Luís Peixoto

nas minhas mãos de rapaz de nove anos, o tamanho e a forma dos dedos, as unhas, a pele da palma das mãos, os pulsos. Reparo nos meus braços, na proporção do meu corpo em relação ao que me rodeia, esta cozinha, a cozinha dos meus nove anos, reparo neste tempo, serão da minha infância» (p. 24). Acerca do poder da memória, na forma como resgata momentos de vida que irrompem pelo presente, destaque-se um momento-chave em que o protagonista parece descobrir a sua própria madalena, ao jeito de Proust, que, no seu caso, serão as sopas de leite, tipicamente alentejanas: «Rui, também menino por um momento, teve a distinta vontade de sopas de leite, procurou uma tigela e uma colher, leite num pequeno jarro. Lembrou-se de ter um cubo de pão na boca, a sua textura, a apertá-lo com a língua de encontro ao céu da boca, o leite morno a jorrar do seu interior.» (p. 124) Esta passagem retrata igualmente bem outra das características marcantes da obra: a forma como a memória, e a vida, assenta sobretudo em sensações. A sinestesia do romance é forte, principalmente no táctil e no gustativo, como que a dar conta de que o melhor da vida é feito de pequenos momentos em que a atenção expande a consciência: «Era um veio de acidez, podia avançar por ele, isolá-lo do resto do sabor. Nesse exercício, conseguia identificar um tipo de frescura que sugeria a imagem de maçãs verdes, como quando descascava uma maçã noutro tempo e a lâmina da faca tinha riscos húmidos e a carne da maçã sangrava pequenas gotas de sumo ácido. Mas, claro, reconhecia também o doce, a sua preferência. Em alguma idade teria aprendido esse gosto, o doce confortava-o.» (p. 33). José Luís Peixoto nasceu em Galveias, em 1974. Em 2001, foi atribuído o Prémio Literário José Saramago ao romance Nenhum Olhar. As suas obras foram ainda finalistas de prémios internacionais como o Femina (França), o Impac Dublin (Irlanda) ou o Portugal Telecom (Brasil), entre outros. Os seus romances estão traduzidos em mais de trinta idiomas.


CULTURA.SUL

Postal, 5 de novembro de 2021

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MAS AFINAL O QUE É ISSO DA CULTURA?

Mas afinal o que é isso da cultura?

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FOTOS MESTRE HOMEM CARDOSO D.R.

PAULO LARCHER Jurista e escritor

E

stará o meu leitor lembrado que na minha crónica de Agosto passado eu e o António Homem Cardoso desenvolvemos uma lenta conversa, enquanto deambulávamos ao longo de um rio encantado na belíssima Tavira. No final do passeio lancei-lhe o desafio de irmos juntos dar uma volta pelas “mais lindas cidades do Algarve”, a fotografar e a discutir filosofia. Estará ainda lembrado que o António, após uma breve hesitação, afirmou que lhe parecia uma excelente ideia. Ora bem, este é o ponto da situação: há dois meses, ambos concordámos em algo que não sabíamos bem o que era. Acresce que a conversa teve lugar numa noite cálida de Verão - propensa à fantasia - e agora faz mais frio e não apetece deambulações. Que fazer? “Como? Desculpe… Quem é o Mestre Homem Cardoso?! Ah, não sabe? Caro leitor, esse artista - que faz o favor de ser meu amigo - é um dos grandes fotógrafos portugueses, com 50 anos de actividade e mais de 100 livros publicados… Mas está tudo na “net”, caríssimo leitor, é só fazer dois cliques!” E, aliás, o Homem Cardoso tem fotografado o Algarve desde tempos imemoriais, o que provo pela fotografia da Ermida de Santo António, em Castro Marim. Quem a conseguirá reconhecer, assim despida dos seus atavios modernistas? Bem, voltemos à vaca fria. Andava eu nestas lucubrações quando recebo um telefonema do António. Diz-me ele: “Então quando é que arrancamos para as cidades algarvias?”. Ena pá! fiquei mesmo aflito. Arrancar para as “cidades mais lindas do Algarve”. E como é que diabo vou eu escolher, de entre tantas, o grupo das “cidades mais lindas” Felizmente que o António tem sempre umas cartas na manga e desta vez não foi excepção: “Estive a lembrar-me” - disse ele “que aqui há um bom par de anos, o meu querido Manuel andou pelos Algarves a escrevinhar umas coisas que depois foram publicadas nuns jornais, não me lembro quais”. “Mas quem é esse teu querido Manuel?” “O Fonseca! Não estás a ver quem é?” “Ah, o Fonseca… Claro que estou” - respondi eu, abespinhado. - “Mas em que é que isso nos interessa, António?” “Interessa, porque eu sei que esses textos foram publicados em livro. Tu arranjavas o livro e tiravas umas ideias para as tuas crónicas. E aí tinhas uma possível abordagem cultural ao Algarve. Porque a literatura é cultura. Ou não?!”. “Sim… pois… claro…” - digo eu, hesitante. - “Tirar umas ideias do livro do Manuel da Fonseca será eventualmente possível, mas complicado e sujeito a suspeição de plágio. Mas vou analisar a coisa, António. Prometo”. E terminou assim a nossa conver-

sa telefónica. Deixe-me dizer-lhe, caríssimo leitor, foi como abrir a caixinha de Pandora. Mal pude, e para honrar a minha promessa, arregacei as mangas e numa biblioteca pedi emprestado o livro do Manuel da Fonseca que se chama, exactamente: Crónicas Algarvias. Leitura interessante, embora um pouco datada (foi escrito em 1968). O autor fez o trajecto do Algarve, de Sotavento a Barlavento, em transportes públicos, viajando sobretudo pelo litoral e escrevendo. Escrevendo o que vê, o que escuta e o que sente. Já que estava no sítio certo - biblioteca - espreitei outros autores e logo me arrependi porque, apesar do volume bibliográfico não ser muito grande, era suficientemente volumoso para tornar incongruente a escrita de crónicas - que se querem ligeiras - baseadas em tal pletora de ficção, de ensaio, de poesia… Mesmo assim, para além das Crónicas1, consultei, com a firme intenção de os vir a utilizar como fonte de inspiração, mais quatro livros: A Viagem a Portugal do Saramago2, A Viagem ao Algarve3 de Diego Mesa, uma colectânea coordenada por João Carvalho, Viajantes, Escritores e Poetas4 e, last but not the least”, o Guia de Portugal, Estremadura, Alentejo, Algarve, edição da Biblioteca Nacional, Lisboa, 19275. Fica assim bem evidente para o leitor (espero eu), o imbróglio em que me fui meter quando levei a sério uma converseta que, da minha parte, não fora mais do que um delírio pós-prandial. Mas, enfim, o mal está feito e devo agora desenvencilhar-

-me desta situação. Só há, aliás, um caminho honroso: o de escolher, visitar e descrever o melhor possível as “mais lindas cidades do Algarve”. Ora aí está! E como faço eu isso? Começo pelo Barlavento, pelo mítico rochedo de Sagres com o indecifrável grão-mestre visando o largo oceano, e venho por aí fora, cidade a cidade, local a local, esquadrinhando as serras, os barrocais, as praias, os monumentos, os costumes, até que, arrastado por irrefreável impulso, caia exausto no Guadiana? Não! Não dá. É impossível. Isso seria uma espécie de Odisseia e é até provável que os leitores fugissem bem depressa das minhas croniquetas. Debatia-me eu nestes dilemas, quando o sábio António me mandou o seguinte sms: “Vamos de comboio, de costa a costa. É ecológico e económico”. Juntamente com esta determinação enviou-me uma única fotografia, a que ilustra a crónica de hoje. E foi tudo. Eu que me desenrascasse… “De comboio?!” Foi quando o automobilista em mim se revoltou e dedilhei furioso: “Estás louco. De comboio não vou!” Se o António recebeu a minha resposta ou não nunca o saberei. Talvez a mensagem tenha entrado directamente para esse Mar dos Sargaços a que se chama spam. De qualquer dos modos, o seu silêncio deu-me tempo para pensar e, sobretudo, para tentar entender o significado da imagem que me enviara, essa ponte enigmática suspensa entres mundos: terra, água, ar…

Mas muitos outros mundos lá estão vibrando, a chamar a nossa atenção. A realidade e o seu onírico reflexo. A separação e a travessia. A estrutura e o caminho. O homem e a natureza. E outros ainda, tantos quantos conseguirmos pensar. Peço emprestado ao “Querido Manuel” uma bela descrição que se enquadra muito poeticamente na minha reflexão. Diz ele: “O Sol do poente, estilhaça de lume os vidros das janelas. Intenso, vermelho-vivo, irradia do horizonte. Penetra tudo. Tinge o mar, o céu, as casas, e há um momento em que tudo, natureza, casas, pessoas, se aquieta como que num espanto”.6 Obrigado, Manuel da Fonseca. Eu já escolhi o meu sentido: há um homem que caminha pensativo. Parece descer de um plano mais elevado para outro mais baixo. Os dois

caminhos, o real e o seu reflexo vão encontrar-se no horizonte. “Tudo se aquieta como que num espanto”. Soberbo! O espanto do real e o real do espanto. Está decidido, António. Vamos de comboio. (1) Manuel da Fonseca, Crónicas Algarvias, Editorial Caminho, 2ª ed., Lisboa,1986. (2) José Saramago, Viagem a Portugal, Editorial Caminho, 2ª ed., Lisboa, 1985 (3) Diego Mesa, Viagem ao Algarve, Baseado na Viagem a Portugal de José Saramago, 1ª ed., 2014 (4) João Carvalho et al., Viajantes, Escritores e Poetas, Colibri (5) Guia de Portugal, Estremadura, Alentejo, Algarve, edição da Biblioteca Nacional, Lisboa, 1927 . (6) Fonseca (1986), p. 186

* O autor não escreve segundo o acordo ortográfico


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