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Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o

ABRIL 2022 n.º 161 6.555 EXEMPLARES

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ARTES VISUAIS

Como são tratadas as obras de arte durante a guerra? SAÚL NEVES DE JESUS Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; http://saul2017.wixsite.com/artes

2 Pintura “A face da guerra”, de Salvador Dali (1940)

FOTOS D.R.

Pintura “Pomba da paz”, de Picasso (1961)

Pintura “Uma pomba abriu as asas e pede paz”, de Maria Prymachenko (1982)

4 de fevereiro de 2022 será para sempre recordada como uma data triste na história do mundo e da civilização humana, pois marca o início da invasão da Ucrânia pela Rússia. Logo dois dias depois foi divulgada a destruição do Museu Ivankiv, situado na região metropolitana de Kiev, tendo sido destruídas 25 obras de uma das principais artistas ucranianas, Maria Prymachenko. As suas obras, exuberantes nas cores e formas, retratavam a história e o quotidiano do país e do folclore, em pinturas, desenhos, cerâmicas e bordados. Era reconhecida internacionalmente, tendo o seu talento cativado Picasso e tendo a UNESCO dedicado à artista o ano de 2009. Entretanto, os bombardeamentos russos já destruíram, total ou parcialmente, outros locais de elevada importância cultural, como o Museu de Arte em Kharkiv, com mais de 25.000 obras de arte. Ocorreram também já bombardeamentos próximos do memorial do Holocausto Babi Yar, em Kiev, local onde, em 1941, mais de 34 mil judeus foram fuzilados pelos nazistas em apenas dois dias. Numa entrevista recente, Audrey Azoulay, Diretora-Geral da UNESCO, referia que “temos que salvaguardar a herança cultural da Ucrânia como testemunho do passado, mas também como catalisador da paz e da coesão para o futuro que a comunidade internacional tem o dever de proteger e preservar”. Efetivamente, o património cultural material do mundo é a nossa herança comum, marcando a identidade e constituindo uma inspiração para toda a humanidade, tendo o poder de nos unir e de promover a paz. Infelizmente, as guerras procuram apagar a identidade, a consciência coletiva e a memória cultural de um povo através da destruição de obras de arte. Procurando evitar que isso aconteça na Ucrânia, os funcionários do Museu Nacional Andrey Sheptytsky, o maior museu de arte deste país, localizado em Lviv, próximo da fronteira com a

Polónia, embrulharam e retiraram já tela, do mármore, do bronze, mas soobras deste museu, para protegê-las. bretudo uma destruição da palavra, da Não sabemos por quanto mais tempo memória coletiva na forma de arquivos se irá prolongar esta guerra, à da- históricos e de manuscritos. ta em que escrevo este artigo (11 de Há quem diga que sempre houve março; curiosamente, faz 16 anos que violência ou guerras na história da huocorreram os atentados terroristas manidade, pelo poder, pela conquista de Atocha, em Madrid), mas espe- de espaço, pelo desejo de posse, mas remos que a mesma termine quanto o problema adicional é que os meios antes, evitando mais mortes, feridos, usados são cada vez mais mortíferos, memórias de sofrimento e rastos de atingindo muitos inocentes. Esta é uma destruição. questão central quando pensamos o Naquele que é considerado o mais an- futuro da humanidade. Tal como as tigo tratado militar do mundo, "A Arte questões ambientais, as questões da Guerra", escrito no século IV aC, ligadas à paz, em particular, são fundapelo chinês Sun Tzu, é referido que a mentais para podermos pensar na vida guerra pode ser o caminho para a so- no nosso planeta a médio/longo prazo. brevivência ou para a ruína de um povo. A arte visual pode ajudar a parar no Ao longo dos séculos, a história tem tempo e a refletir, de forma a que não se demonstrado que a ruína é o denomi- repitam no futuro os erros do passado. nador comum de qualquer guerra, com Considero que, para além de contribuir destruição de marcos culturais, artís- para preservar o património cultural, a ticos e civilizacionais da Humanidade. identidade e a memória coletiva, a arNo século passado tivemos duas guer- te pode inserir-se num movimento de ras mundiais, a primeira entre 1914 e “educação para a paz”, nesta sociedade 1918 e a segunda entre 1939 e 1945. em que é cada vez mais importante Nesta última foi imensa a destruição, educar para princípios éticos univerem particular no plano de obras de sais e para valores humanistas, como arte. Ainda jovem, Hitler havia tenta- sejam a honestidade e o respeito pelos do ser um pintor reconhecido, mas foi outros. rejeitado na Academia de Belas-Artes de Viena, em 1907. Trinta anos depois, Ficha técnica já como líder da Alemanha Nazista, ordenou a maior ação contra a arte, Direção GORDA, anunciando a exposição “Arte Degenerada”, em que incluiu artistas como Associação Sócio-Cultural Editor Henrique Dias Freire Picasso, Braque, Matisse, Grosz e ErResponsáveis pelas secções: nst, numa ofensiva contra pinturas, • Artes Visuais Saúl Neves de Jesus esculturas, livros, gravuras e desenhos • Diálogos (In)esperados considerados "impuros", pois não se enMaria Luisa Francisco quadravam no ideal de beleza clássico • Espaço AGECAL Jorge Queiroz e naturalista. • Espaço ALFA Raúl Coelho Após a segunda guerra mundial, em 1954, criou-se na Convenção de Haia • Filosofia Dia-a-dia Maria João Neves • Fios De História Ramiro Santos o “Escudo Azul”, procurando a prote• Letras e Literatura Paulo Serra ção de bens culturais em situações de • Mas afinal o que é isso da cultura? guerra. No artigo 53º da Convenção de Paulo Larcher Haia para a Proteção da Propriedade Cultural no Caso de Conflito Armado Colaborador desta edição Vico Ughetto é explicitado que são proibidos “quais- e-mail redação: geralcultura.sul@gmail.com publicidade: quer atos de hostilidade dirigidos anabelag.postal@gmail.com contra monumentos históricos, obras online em www.postal.pt de arte ou locais de culto que constituam património cultural ou espiritual e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve dos povos”, sob pena de serem consideFB https://www.facebook.com/ Cultura.Sulpostaldoalgarve rados crimes de guerra. Infelizmente, em diversas guerras, localizadas em diferentes partes do planeta, tem sido evocada a transgressão desta regra, traduzindo a destruição da pedra, da


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FIOS DE HISTÓRIA

Memórias (im)prováveis de Adriano FOTO RAMIRO SANTOS / D.R.

RAMIRO SANTOS Jornalista ramirojsantos@gmail.com

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ão é suposto que por aqui tenha andado, mas não é de todo improvável que isso pudesse ter acontecido. Afinal, Ossónoba fazia parte integrante do império romano e Milreu era uma estância residencial de um abastado súbdito de Roma. Adriano, imperador romano, nasceu em Itálica, na Hispânia, e foi no seu governo, entre os anos de 117 e 138 d.C., que conheceu um dos períodos de maior esplendor. Ficava a escassas duas léguas de Hispalis (Sevilha), e o seu anfiteatro, com capacidade para 25 mil espectadores, foi um dos três maiores do império romano. Marguerite Yourcenar, que lhe seguiu os passos por onde constasse que havia sinais dele, esteve em Faro, em fevereiro de 1958, mas não encontrou por aqui memórias de Adriano. Por essa altura, o seu busto e os de outras duas proeminentes figuras de Roma - os imperadores Galieno e Agripina -, estavam ainda soterrados nas ruinas de Milreu e só viriam a ser encontrados oito anos mais tarde. É verdade que o achado, por si só, nada esclarece quanto a uma eventual passagem de Adriano por aqui, embora Ossónoba, seguindo o itinerário de Antonino – um verdadeiro mapa de estradas do império romano –, não ficasse a mais de dois dias de viagem de Itálica. E por esse tempo, a futura capital algarvia já se havia tornado num centro eco-

nómico, comercial e político de grande relevo no império romano do sudoeste peninsular. Daqui partia a estrada para Itálica, e a norte estava ligada a Emérita Augusta (Mérida) por um corredor rodoviário - ainda hoje existente -, passando por Beja (Pax Julia) e Évora (Ébora), com uma derivação a ocidente, para Lisboa (Olissipo). Além disso, a cidade integrava-se no eixo marítimo que começava em Cádiz e contornava o Cabo de S. Vicente, passando pela foz do Guadiana, Tavira, foz do Arade e Lagos. O porto de Ossónoba, como os de outras cidades marítimas, era a plataforma onde se carregavam e escoavam os produtos agrícolas, sobretudo frutos secos, vinho e azeite, das quintas nos arredores de Faro, mais o pescado, o sal, as conservas e os minérios. Foi uma época de grande prosperidade e de afirmação estratégica no contexto regional, de tal modo que chegou a cunhar moeda própria. Mais tarde, na era da cristianização do império, viria a ganhar o estatuto de diocese, tendo D. Vicente como seu primeiro bispo. Pelas condições económicas ligadas ao mar e à agricultura de que dispunha, o Algarve desse tempo tornara-se um centro de atração escolhido pelas elites e famílias romanas abastadas que aqui se estabeleceram. E por toda a zona de costa, ou perto dela, ergueram-se novas cidades, rodeadas, quase sempre, de quintas agrícolas com as suas mansões, como foram os casos de Balsa (Tavira), Besuris (Castro Marim), Cerro da Vila (Vilamoura), Abicada, na Mexilhoeira Grande, e Milreu.

Tratando-se de um palacete de um patrício ou homem rico de Roma, a villa de Milreu alcançava-se subindo o rio Seco - considerando que fosse navegável nesse tempo - a partir de Ossónoba ou pela estrada que corre por perto em direção a Vale de Joios, em S. Brás de Alportel, onde se podem observar restos dessa mesma via romana. Durante muito tempo teve-se como provável que Milreu pudesse ter sido a antiga Ossónoba romana. Uma tese repetida até 1952, ano em que Abel Viana faria prova definitiva de que se tratava de duas povoações distintas. Situada a oito quilómetros da capital, Milreu - que teve ocupação permanente do século I ao século XI - ergue-se em patamares sobre uma encosta, paredes meias com a atual aldeia de Estoi, um pouco mais a subir. Era cortada por uma estrada que ainda ali está parcialmente lajeada. De um lado, à direita de quem sobe, eleva-se o templo, que numa primeira fase da romanização era destinado ao culto pagão da água e, mais tarde, transformado num santuário cristão. Já no período islâmico foi usado como cemitério. Do ponto de vista monumental é a estrutura que mais se salienta na paisagem, e parte significativa das suas paredes ainda se conserva de pé e em bom estado de conservação, tendo em conta os quase dois mil anos, entretanto, decorridos. O levantamento e os estudos de interpretação realizados primeiro por Estácio da Veiga em 1878, e posteriormente por outros especialistas, referem que o templo teria sido coberto por uma abóboda, agora inexistente, decorada com tesselas de ouro.

Do lado esquerdo da mesma estradinha que divide o conjunto arqueológico, estava edificada a villa propriamente dita. De ambos os lados da escadaria de entrada, existem dois tanques semicirculares que, outrora, terão sido cobertos por uma cúpula em meia-esfera. Passando para o interior da residência, seguindo as indicações do IPPAR, fica o que resta daquilo que seria a praça central, com um tanque retangular ao meio, rodeada de galerias supostamente cobertas, como atestam as colunas em mármore cinzento que foram sobrevivendo ao tempo e ao vandalismo. Estes corredores davam para um conjunto de divisões e quartos destinados aos residentes e convidados. A ocidente, no patamar contíguo à praça, ficava uma grande sala de refeições com uma estrutura em pedras dispostas em U, sobre as quais assentavam as clinai, que mais não eram senão aqueles cadeirões ou leitos inclinados onde, à maneira romana, se tomavam as refeições. A Villa de Milreu é um exemplo construído à semelhança dos modelos das casas rústicas existentes à época da romanização um pouco por todo o império, e permite perceber a riqueza e o nível social e cultural elevados das famílias que ali habitaram. Exemplo disso é a decoração dos pavimentos em mosaicos pintados com motivos predominantemente marinhos, faixas de ondulantes, revestimentos a mármore, estuques pintados e peças de escultura decorativas, como os bustos dos imperadores e de outras figuras notáveis da sociedade romana. Os proprietários da domus, como

bons romanos que eram, não dispensavam as termas. E havia pelo menos duas: a maior de águas aquecidas, e uma mais pequena de água fria chamada refrigerium, cujos degraus e paredes se mostram ainda revestidos a mosaicos decorados com desenhos alusivos ao mar. O aquecimento, que abrangia outras áreas residenciais, provinha de uma fornalha que aquecia igualmente as salas de massagens através de cavidades por onde circulava o ar quente. Nada ficava ao acaso, nem tão pouco o sistema de esgotos e o abastecimento de água, que era feito por armazenamento em cisternas alimentadas a partir de fontes localizadas em Estoi e que corriam pela encosta abaixo em direção à villa e ao rio. Na zona de uma casa rural que ali foi edificada em séculos mais recentes, podem ser vistas as estruturas de uma adega de vinho com as suas cubas para pisa e fermentação das uvas. Mais abaixo, no lagar de azeite, havia seis prensas ligadas por um sistema de tubos em chumbo a 36 talhas onde se recolhia o líquido, que depois era guardado em dois compartimentos de uma cave com três metros de profundidade para o manter em lugar seco e fresco. As talhas, em muito bom estado, feitas ao que parece em mármore, encontram-se tapadas para evitar mutilações irreparáveis. Como se constata, Milreu - que acumula diferentes fases de construção ao longo dos tempos - era um complexo residencial de luxo com uma unidade de produção agrícola e de armazenamento de produtos para abastecimento próprio, e para exportação através do porto de Osssónoba. Entre a réplica e o original, faz lembrar Villa Adriana, desenhada pelo próprio imperador para sua residência, junto à cidade italiana de Tivoli com outra dimensão e riqueza. E se Adriano não chegou a vir por aqui, sendo embora um imperador viajante, chegaram-lhe certamente notícias do esplendor do império para estes lados. Um brilho de riqueza e poder que se prolongou até ao fim do império romano, a que se lhe seguiu, por cinco séculos, o período de dominação islâmica. Um e outro - árabe e romano -, são dois lados da mesma moeda, com um valor facial em termos culturais, que não desvalorizou com as guerras nem com o tempo. Fontes: “Milreu - Ruínas”, IPPAR-Roteiros da Arqueologia Portuguesa; “O Templo Romano de Milreu”, João Pedro Bernardes e J. Encarnação, in Anais do Município de Faro, 2018; outras.


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MAS AFINAL O QUE É ISSO DA CULTURA?

O Algarve de Costa-a-Costa: Castro Marim FOTOS ANTÓNIO HOMEM CARDOSO / D.R.

PAULO LARCHER Jurista e escritor

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sta é uma triste ocasião para escrever sobre algo mais que o horror pelo desrespeito pela vida humana e demais valores associados às sociedades justas e livres, a que temos assistido nos últimos dias1. Apesar desta lamentável circunstância, eu e o António Homem Cardoso decidimos manter o nosso plano desta travessia falada pelo Algarve - de costa-a-costa - seguindo

sempre que possível a via férrea que serve esta vastíssima região (com algumas falhas de que já falámos anteriormente). Na crónica sobre Olhão - lembro-me bem -, utilizei o método de perguntar à própria cidade como descreveria a sua alma. Talvez nesse caso - e por culpa do cronista - a resposta não tenha sido perfeita, mas a verdade é que qualquer que seja a abordagem a uma realidade plurifacetada, esta sempre se torna necessária se bem que normalmente insuficiente. Sei, sabemos, que as terras, todas as terras, têm as suas

dinâmicas culturais ancoradas em episódios históricos com os quais se conformam e identificam, e muitas vezes esses episódios tornam-se verdadeiros mitos nacionais (vide a epopeia portuguesa dos descobrimentos), mais significativos que uma abordagem mais científica do passado. Ao entrar na rotunda de Castro Marim, vindo de Vila Real de Santo António, surge-nos a interessante figura de um cavaleiro medieval, armado de lança e escudo, protegido com um elmo refulgente, toda feita de arame acobreado. É uma imagem bélica mas tranquila, como deveriam todas ser, quando o poderio militar é utilizado não como agressão mas sim como um factor de dissuasão das violências de todos os quadrantes. Quando o António fotografou a estátua lembro-me de termos andado algum tempo à sua volta procurando o melhor ângulo, sem nos apercebermos de que, disfarçado em arte, nos preparávamos para celebrar a guerra. Hoje, olhando-a, arrepio-me todo, pois esta parece-me uma prova mais de que a alma das comunidades humanas está quase invariavelmente ligada a ódios, como se o verdadeiro cimento dos povos fosse afinal a violência contra o Outro. Vejamos então o que nos diz o nosso cavaleiro dourado. No topo da sua longa lança um pendão quadrangular tem inscrita uma cruz. Quem não saberá o que significa essa cruz? Claro, é o símbolo da Ordem de Cristo (herdeira da cruz da Ordem do Templo a quem se deve a conquista de Castro Marim em 1242), e cuja primeira instalação no segundo decénio do século catorze, foi exactamente aí, no Castelo Velho. Nas paredes da cerca do Castelo, para quem se queira instruir, escreve-se com imagens a história dessa cruz que, adaptação após adaptação, se transformou na cruz que, por exemplo, o nosso navio-escola Sagres ostenta nas suas velas desfraldadas. Felizmente que a missão do navio tem sido a de, dando a conhecer Portugal, espalhar por esse mundo fora apenas a concórdia e a cultura. Mas voltemos à estátua. Era então religioso o nosso cavaleiro e sabe-se que naqueles tempos a Guerra e a Cristandade andavam de mãos dadas. O Castelo Velho e os seus torreões seria o seu poiso natural. Do topo de uma rara colina podia assim o frei-cavaleiro projectar o olhar para os arredores à cata de inimigos: no Sapal, no Guadiana e, muito ao longe, em Ayamonte, as mais das vezes mais amiga que inimiga. Eis então uma parte da “Alma” de Cas-

tro Marim assim desnudada. Será que adivinhámos desta vez? Castro Marim foi sobretudo uma praça forte que após o acordo de Badajoz2 se tornou uma sentinela fronteiriça no sistema defensivo português, com os seus altos e baixos, as suas construções e reconstruções. Teve pequenos papéis na Reconquista, e uma ou outra escaramuça nas guerras da Restauração e da Sucessão, mas, fundamentalmente, Castro Marim foi ao longo da sua história e até ao século dezanove um couto que serviu de abrigo de homiziados que ali cumpriam penas de degredo e que se ocupavam nas actividades que os locais não apreciavam, como o trabalho nas salinas ou o serviço no exército e, talvez também e mais que tudo, no contrabando de víveres, peixe e sal para os insaciáveis vizinhos do outro lado do rio. Como observa Diego Mesa acerca de Castro Marim3, “[…] Esta pequena vila é mais aldeia que cidade (apenas uma centena de ruas de casas baixas à volta do castelo e da igreja)”. Mas, se a capital do concelho é uma pequena e tranquila vila, o resto do concelho é extenso, embora na sua maior parte pouco atrativa para o turismo moderno. A sua extensa frente de rio está contaminada pelo Sapal. O que lhe resta para atrair turistas é um pequeno rasgão que, dividindo em dois o concelho de Vila Real de Santo António, lhe permite um acesso ao Eldorado da faixa costeira. O Sapal, contudo, permite ao concelho alguma actividade económica no campo da extração do sal de qualidade (a muito apreciada flor-de-sal ) e da aquacultura. A parte do concelho que sobe para o barrocal e para serra é quase desértica e com atividades pontuais no setor primário, quase ao nível da auto-subsistência. A autarquia esforça-se para não se deixar acantonar por essa escassez de uma história ou de um presente que justifique os seus pergaminhos,

e desenvolve uma intervenção cultural interessante na conservação das memórias do povo humilde e trabalhador de que o programa “100 memórias de Castro Marim” é um bom exemplo. Enfim, não há comunidade humana que não mereça a sua epopeia e Castro Marim não será exceção, e a pequenez deste texto não será pois da responsabilidade da terra mas do cronista canhestro que sobre ela reflete. (1) Escrevo no dia 8 de Março, duas semanas após o início da invasão da Ucrânia. (2) Em 1267 os reinos de Portugal e Castela firmaram um tratado que grosso modo concedia a Portugal os territórios algarvios na margem direita do rio Guadiana (3) Diego Mesa, Viagem ao Algarve, Baseado na Viagem a Portugal de José Saramago, 1ª ed., 2014, p 17


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DIÁLOGOS (IN)ESPERADOS

As Pessoas Invisíveis do escritor José Carlos Barros P O que é que vamos encontrar ao longo das 323 páginas deste livro? R Bem, o livro é, no essencial, um olhar sobre o Portugal do Estado Novo. Sobre esse período que vai da Constituição de 1933 até ao 25 de Abril de 1974. Com alguns recuos e avanços: um recuo ao século XIX, para se tratar da questão da abolição formal da escravatura, e um avanço até à morte de Francisco Sá Carneiro e às eleições presidenciais de 1980, para que os primeiros anos a seguir à revolução de Abril não ficassem de fora deste olhar sobre um arco temporal tão alargado. Claro que este é um olhar de entre muitos olhares possíveis, de entre várias perspectivas possíveis. P E que perspectivas são aqui privilegiadas?

Este olhar sobre o Estado Novo faz-se, no essencial, a partir de duas características desse tempo: por um lado, Portugal é um país que tem um Império, que tem Colónias. Que, aliás, passarão a designar-se por Províncias, após a revisão constitucional de 1951. Um país que tem um Império, portanto, e, simultaneamente, um País rural, pobre, de superstições, de santinhas miraculadas… R

P Há pouco foi referida a «abolição formal da escravatura» e não apenas «abolição». Que necessidade é essa de especificar a questão formal?

MARIA LUÍSA FRANCISCO Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa luisa.algarve@gmail.com

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ste diálogo decorreu em Vila Nova de Cacela, onde já falei outras vezes com José Carlos Barros. Ambos colaborámos no DN Jovem, um suplemento do Diário de Notícias, embora em épocas diferentes. Como costumamos dizer, somos “DN Jotas”. Depois do Prémio Leya 2021 atribuído à obra As Pessoas Invisíveis, ainda não tínhamos falado pessoalmente e esta conversa permitiu conhecer alguns detalhes sobre o livro premiado para partilhar com os leitores deste jornal. José Carlos Barros nasceu em Boticas em 1963 e vive no Algarve, em Vila Nova de Cacela. É Arquitecto Paisagista, licenciado pela Universidade de Évora. Foi director do Parque Natural da Ria Formosa e da Reserva Natural do Sapal de Castro Marim e Vila Real de Santo

António. É autor de vários livros de poesia e de dois romances: O Prazer e o Tédio, de 2009, adaptado ao cinema por André Graça Gomes; e Um Amigo Para o Inverno finalista do Prémio LeYa em 2012 e publicado no ano seguinte. Venceu vários prémios literários. Os seus livros mais recentes, todos de poesia são: O Uso dos Venenos (2ª edição, 2018); A Educação das Crianças (2020), Estação – Os Poemas do DN Jovem, 1984-1989 (2020); Penélope Escreve a Ulisses (2021). No próximo dia 23 de Abril celebra-se o Dia Mundial do Livro. O romance nessa data já estará nas livrarias. Como será celebrado esse dia? P

R Bem, não sou muito de comemorar dias disto e daquilo, da Poesia ou da Árvore, da Paz ou dos Rios. Aqui não será muito diferente: As Pessoas Invisíveis vai para as livrarias no próximo dia 12 de Abril, e a 23 de Abril, portanto, já estará a fazer o seu próprio caminho, já a começar a deixar de me pertencer. A ir à vida dele. E é assim que está certo: o destino de um livro é ir à procura dos seus leitores.

R As histórias do livro demonstram como a abolição legal da escravatura, de facto, precedeu em muitos anos a sua abolição efectiva. Ou seja, a abolição legal não acabou com o trabalho escravo. Um dos episódios centrais do livro, aliás, baseia-se nisso mesmo.

Baseia-se no Massacre de Batepá? P

R

Exactamente.

P Ainda que, em nota de abertura, apareça escrito que as histórias do livro não se baseiam em factos reais e que não têm a ver com o Massacre de Batepá, nem com os acontecimentos de Fevereiro de 1953 em São Tomé e Príncipe…

R Sim, parte. Mas a ambição é sempre a de dar aos acontecimentos um carácter de universalidade. Ou seja: neste caso específico, mais do que descrever os acontecimentos do Massacre de Batepá, o que me interessava era dar notícia da ignomínia e da indignidade que, de modo idêntico, se revelou, e continua a revelar, em diferentes tempos e geografias.

Nesta conversa sobre o livro já falámos, por mais do que uma vez, da questão da escravatura… P

R Sim, porque é um dos temas centrais. O Massacre de Batepá, de facto, está ligado a uma recusa dos são-tomenses em se sujeitarem ao trabalho servil. Ou serviçal. Mas não tenhamos receio das palavras: ao trabalho escravo. P Penso que esta história é relativamente desconhecida… R Isso foi o que mais me surpreendeu e sobressaltou quando, em 2011, na Bienal de São Tomé, descobri pela primeira vez um conjunto de painéis com referência a esses acontecimentos de Fevereiro de 1953 em que terão morrido mais de mil pessoas. P Há um grande enfoque sobre trabalho escravo? R Sim, as referências e as denúncias a este respeito vinham do interior do próprio regime. Sem fugir à terminologia de trabalho escravo… Por exemplo: Marcello Caetano, por mais do que uma vez, faz referência ao assunto na sua correspondência com Salazar, alertando para a necessidade de resolver a indignidade associada ao «engajamento de mão-de-obra indígena». E no Relatório de Henrique Galvão, discutido em 1947 na Assembleia Nacional, em sessão secreta da Comissão das Colónias, refere-se uma «situação insustentável em que só os mortos estão isentos da compulsão ao trabalho» e denuncia-se uma realidade «mais grave do que a criada pela escravatura pura». É neste enquadramento que deve ser entendida a revolta dos forros, ou filhos da terra, em 1953, contra a imposição do trabalho servil.

R

P Mas o livro não se limita a esta temática…

P Mas não parte de um conjunto de factos reais?

R Claro que não. A conversa é que nos levou por aqui... No romance, como pano de fundo de tudo isto, há a revisitação do Portugal rural desse tempo, desde os anos trinta e das movimentações na raia durante a Guerra Civil, fugindo-se de Franco e de Salazar, até aos anos quarenta e à exploração do volfrâmio e ao tempo sombrio da Segunda Guerra

O leitor compreenderá, certamente, que essa é uma piscadela de olho que o autor lhe faz… Mas, no essencial, a procurar distanciar-se da ideia de romance histórico, e a alertar para o facto de que este livro não é, nem pretende ser, um romance histórico.

Mundial… Não se podendo decifrar as histórias, que o leitor deverá descobrir sozinho, sempre se poderá ainda dizer que, fintando as cronologias, tudo começa em 1980, em Berlim, com o relato da descoberta de uma jazida de ouro… P E quem são, afinal, As Pessoas Invisíveis? R Penso que o leitor descobrirá as pessoas invisíveis do livro: essas que não têm rosto, nem voz, nem identidade. E que, muitas vezes, ou a maior parte das vezes, são quem paga a factura do que convencionamos designar por «interesse público». Como se não existissem, ou como se o mundo, que não funcionaria sem elas, pudesse abdicar de lhes dizer os nomes. P Foi interessante termos falado no início desta conversa sobre escritores de relevo em Portugal, que se lançaram através do suplemento DN Jovem. Que escritores mais te influenciaram ao longo da vida? R Acho que, de um ou outro modo, tudo o que lemos acaba por servir ao ofício: os bons e os maus livros, as notícias de jornal, as bulas dos medicamentos, os textos de publicidade. Mas é claro que somos particularmente marcados por determinados livros e autores. Assim de repente, talvez todo o Vergílio Ferreira, todo o Jorge Luis Borges (mas começando pelas Ficções), o Eugénio de Andrade, Os Passos em Volta do Herberto Helder, e, claro, sempre, o D. Quixote. P Já estás a pensar num próximo livro? Que tema? R Penso que vai demorar até me libertar deste livro e regressar à escrita. Mas, sim, já ando com algumas histórias na cabeça, ainda que não tenha escrito uma única linha de texto. Não gostaria de falar do tema, porque eu próprio não tenho a certeza do que é que vai acabar por impor-se: mais do que escolher, em regra o que acontece é que somos escolhidos. Mas quase de certeza que regressarei ao passado, porque não vejo outro modo de falar sobre o presente e de compreender o nosso tempo. P Obrigada por esta partilha, a primeira que será publicada sobre o conteúdo desta obra premiada, antes de ir para as livrarias. Boa sorte para a carreira literária.

Obrigado, boa sorte também para a tua escrita. R

* A autora não escreve segundo o acordo ortográfico


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FILOSOFIA DIA-A-DIA

O Colosso Agrilhoado durante a chamada “Guerra Fria” Um modus vivendi em que oponentes armados se abstêm de atacar uns aos outros por medo. Esse tipo de paz é apenas uma trégua ou impasse. Em tais condições os oponentes não foram reconciliados e as intenções hostis não foram eliminadas. Vive-se numa espécie de empate possibilitado pela força de dissuasão mútua. E foi este empate frágil que a Europa e os EUA desequilibraram sem medir as consequências. Subestimar o “inimigo” nunca é boa ideia.

2. O burro é Putin por não

perceber que só pode perder

Imagem de Íris Mestre MARIA JOÃO NEVES PH.D Consultora Filosófica

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4 de Fevereiro de 2022 - uma coluna de fumo em forma de punho ergue-se nos céus: a Rússia bombardeia a Ucrânia. Na minha mente, tal como outrora para defender Espanha das invasões napoleónicas, o gigantesco Colosso ergue-se agora para enfrentar a invasão russa. Na tela original de Goya, observamos na base do quadro animais e gentes que fogem em todas as direcções; correm espavoridos em pleno caos e destruição.

chev ao poder em Moscovo (1985) e a dissolução da URSS (1991) assistimos a um acontecimento sem paralelo na história mundial: um império colocou à frente da sua própria sobrevivência, o interesse da humanidade, evitando uma guerra nuclear generalizada que conduziria a uma ‘destruição mútua assegurada’ (...) Apesar das promessas de que a reunificação da Alemanha não implicaria o alargamento para leste da NATO, a verdade é que esta se efectuou.” Como é de conhecimento público, em Março de 1999, a República Checa, a Hungria e a Polónia, ex-membros do Pacto de Varsóvia, aderiram à NATO. A Bulgária, a Estónia, a Letónia,

Pormenor da tela de Goya El Coloso Apenas um animal permanece quieto e olha o espectador: um burro branco, cuja sela já perdeu o cavaleiro. Alguns especialistas afirmam que este asno parado pode simbolizar a incompreensão do fenómeno da guerra. Eu atrevo-me aqui a propor algumas outras interpretações desta espécie de “alegoria do jumento”.

1. O burro somos nós por não

termos evitado esta guerra 1.1 Num artigo de opinião intitulado “Derrota mútua assegurada”, publicado a 26 de Fevereiro no DN, apenas 2 dias depois da invasão da Ucrânia pela Rússia, o filósofo português Viriato Soromenho Marques escreve o seguinte: “Entre a chegada de Gorba-

a Lituânia, a Roménia, a Eslováquia e Eslovénia fizeram-no em Março de 2004, e, em Abril de 2009 a Croácia e a Albânia também aderiram à NATO. A vontade expressa de adesão à NATO, por parte da Ucrânia, terá certamente intensificado o medo e a hostilidade por parte da potência russa. Viriato Soromenho Marques interpreta, deste modo, a guerra na Geórgia em 2007, e a anexação da Crimeia em 2014: “a Rússia traçou uma linha vermelha à expansão de uma aliança militar, que considerava fazer perigar a sua segurança nacional. O desastrado activismo bélico da NATO e dos EUA nos últimos 20 anos, num proselitismo democrático coberto de sangue e ruínas, no Afeganistão, Iraque ou Líbia, ajudou a consolidar as reservas de Moscovo.”

FOTOS D.R.

1.2 Quando a Rússia se posicionou para atacar a Ucrânia a Europa continuou a acreditar que se tratava de “exercícios militares”. Uma e outra vez, ignorámos - que nem asnos! - os indícios que apontavam para a real possibilidade de uma guerra. Acordámos da pior forma possível: a realidade transformou-se em pesadelo! Apesar da solidariedade em larga escala demostrada, o povo ucraniano encontra-se desprotegido frente ao gigante russo sem que nenhum Colosso se erga. O gigante NATO está agrilhoado. Não pode intervir sob pena de fazer deflagrar uma terceira guerra mundial. 1.3 Apelamos para a paz, mas de que paz estamos a falar? A paz pode resultar da submissão ao poder; e a guerra pode terminar com a rendiçãoincondicional. O filósofo francês Jean Jacques Rousseau opôs-se terminantemente a esse tipo de paz apelidando-a de “paz de Ulisses” referindo-se ao episódio em que Ulisses e os seus companheiros de viagem, aprisionados na caverna do Ciclope, aguardam a sua vez de serem devorados (A Lasting Peace Through the Federation of Europe and The State of War, London: Constable and Co., 1917). Podemos afirmar que o domínio absoluto e a submissão absoluta produzem uma espécie de paz, mas trata-se de paz conjugada com injustiça. Daqui decorre que apenas podemos considerar como verdadeira Paz aquela que se nutre da justiça. A ideia de justiça está no centro da tradição a que se chamou “guerra justa”, que afirma que temos o direito de lutar contra a injustiça. A definição dialéctica de paz como ausência de guerra pode abarcar a ideia da paz armada, como a que vivemos

Interajo aqui com os pontos de vista dos historiadores Yuval Noah Harari (Israel) e Timothy Snyder (EUA) apresentados numa conversa online intitulada The War of Ukraine & the Future of the World que teve lugar no canal YouTube a 8 de Março de 2022. 2.1 Yuval Harari diz-nos que Putin cometeu um erro crasso ao não reconhecer a Ucrânia como uma nação com forte identidade própria. Considera que Putin construiu uma fantasia na sua cabeça julgando que os ucranianos são russos que querem ser absorvidos pela pátria mãe, e estão impedidos de o fazer por causa de um “gang nazi”. Esta fantasia fê-lo invadir a Ucrânia pensando que Zelensky fugiria, o exército se renderia, e a população lhes atiraria flores. Ora, todo o contrário ocorreu: Zelensky, apesar das ofertas de extradição pelos EUA, escolheu ficar no seu posto em Kiev; o exército ucraniano, mesmo com poucos meios, luta ferozmente - “they are big, but we are brave” - dizia um dos militares aos oradores e a população em vez de flores atira cocktails molotov. 2.2 Timothy Snyder diz-nos que Putin é vítima da sua própria tirania: todos os seus conselheiros temem-no, ao ponto de não se atreverem a discordar, preferindo ocultar qualquer verdade que indisponha o seu líder. Sem ninguém que o contrariasse, o presidente russo ficou completamente convencido das suas mentiras, perdeu o contacto com a realidade. O grande problema de um ditador é que quando comete um erro não consegue admiti-lo e procede numa escalada de violência cega. No enquadramento geopolítico de hoje, que um país julgue, só porque é grande e poderoso, que pode obliterar outro país, é inaceitável! Voltamos para a selva! Putin está a trazer o mundo todo para uma era de guerra que julgávamos ter já sido ultrapassada. Porém, num certo sentido, Putin já perdeu a guerra: se a Ucrânia era remota e desconhecida para alguns, agora a sua existência é incontornável. Os ucranianos dão a sua vida pelos ideais europeus de liberdade e demo-

cracia e aparecem, aos olhos de todos nós, como heróis. Quem pode esquecer as imagens de uma população, de mãos vazias, a enfrentar os tanques de guerra invasores?! 2.3 Outro erro incontornável para o qual aponta Timothy Snyder é a perversão da terminologia proveniente do holocausto que é parte constituinte da história e cultura de todos nós. Putin diz que quer “desnazificar a Ucrânia” e inicia uma guerra contra um país democrático, cujo presidente é judeu, e comete atrocidades que começam a ser comparadas ao genocídio em cidades martirizadas como é o caso de Mariupol. A Rússia não está apenas a invadir uma nação inocente e a tentar erradicá-la - algo que não se via desde os tempos das guerras imperiais - está a desfazer as estruturas morais e linguísticas decorrentes da 2ª Guerra Mundial. A palavra genocídio e a palavra nazi são muito importantes para a estrutura moral dos países europeus. Com o seu discurso falso e pervertido Putin não está apenas a ir contra um país, mas está a tentar destruir o marco civilizacional que nos constitui. Por isso mesmo, todos sentimos nas entranhas que há algo de radicalmente errado e horrível nesta invasão.

3. Consequências

de tanta burrice 3.1 A Europa vivia uma longa época de paz. O nosso orçamento global para a defesa era de cerca de 3%. Antigamente, reis e imperadores, gastavam 40, 50, mesmo 70% do seu orçamento com o exército. A desmilitarização permitiu que os recursos se orientassem para áreas tão fundamentais como a Educação e a Saúde. No dia seguinte à invasão da Ucrânia pela Rússia, a Alemanha duplicou o seu orçamento para a defesa. Os outros estados europeus estão também a ajustar os seus orçamentos incrementando a percentagem bélica, em detrimento de outras áreas. 3.2 Temos visto nos telejornais os ucranianos a chorar, não apenas pelos horrores da guerra, mas pela perplexidade que lhes causa a invasão russa. Era uma nação que consideravam como um parente próximo, agora sentem-se apunhalados pelas costas. Não sabemos qual será o desfecho desta guerra, mas, o que sim é certo, é que Putin está a plantar sementes de ódio e desconfiança que perdurarão durante gerações. Este será o seu legado. Um Colosso muito maior está a ser criado! Inscrições para o Café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com * A autora não escreve segundo o acordo ortográfico


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ESPAÇO ALFA

Exposição como forma de ativismo VICO UGHETTO Membro da ALFA Associação Livre Fotógrafos do Algarve

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omummente associa-se o acto de expor um trabalho artístico ao mostrar o belo, de dar a conhecer o que é aprazível e estético. É o que o público espera de uma exposição seja qual for a arte em causa e na qual a fotografia não é exceção. Ela até sofre mais com a indiferença do mundo atual, onde os mais de 3 mil milhões de imagens, e as cerca de 800 mil horas de vídeo partilhadas diariamente, tornam mais difícil captar alguma atenção e não ser meramente mais uma neste oceano imagético. Para escapar a este paradoxo

em que a imagem deixa de ter a sua função de captar a atenção, de passar uma mensagem, a ALFA desenvolveu o conceito de LPI - Large Photo Installations - no qual a partir de estruturas urbanas de design próprio, faz a exposição de fotografias de grande dimensão em locais de forte circulação de pessoas. Foi assim em Faro e depois em Estoi e Santa Bárbara de Neve, com a exposição “A Sul Profundo” que apresentou um conjunto de fotografias subaquáticas captadas no mar do Algarve e na Ria Formosa. O conceito de ativismo fotográfico resulta da procura em alertar e consciencializar o público para toda a problemática das alterações climáticas, mas também do facto de os oceanos e os sistemas a ele afetos, como as zonas lagunares, serem possivelmente das zonas mais

sensíveis e afetadas. Ainda nesta vertente de usar uma exposição fotográfica como forma de ativismo, não ecológico e ambiental como anteriormente, mas social e comunitário, decorre a mais recente exposição “Rostos da Insulina”, que retrata 11 rostos de pessoas cuja atividade profissional ou o seu historial clínico as faz ter uma relação de proximidade com a insulina, uma hormona essencial às pessoas que padecem de Diabetes Mellitus. Esta exposição encerra o projeto “A insulina sai à rua”, organizado pela associação AEDMADA em parceria com o CHUA - Centro Hospitalar Universitário do Algarve, no sentido de comemorar o centenário da descoberta da insulina e desta forma transformar o tratamento desta doença crónica (a do tipo 1).

Os retratos foram captados por 5 associados da ALFA, reunindo um misto de fotógrafos a tempo inteiro e outros a tempo parcial, tendo por missão integrar esta exposição e com ela lembrar ao público o trabalho feito no Algarve na área da saúde e alertar para o impacto da Diabetes no dia a dia das pessoas, pois ao termos esta informação ficamos sensibilizados para o esforço que enquanto sociedade temos que desenvolver para o diagnóstico, monitorização e tratamento constante que a Diabetes exige. Esta exposição estará patente no Mar Shopping durante todo o mês de abril e é feita em conjunto com a Urban Sketchers Algarve, que integraram, com a ALFA, o conjunto de parceiros ligados ao projeto da comemoração do centenário desta descoberta. A exposição “Rostos da Insulina” está patente no Mar Shopping durante o mês de abril FOTO FABIANA SABOYA D.R.

ESPAÇO AGECAL

A “Crónica da conquista do Algarve” e a actualidade dos textos fundadores JORGE QUEIROZ Sociólogo, sócio da AGECAL

“Quando o Mestre Dom Payo Correa ouve gãhadas estas villas e lugares no Algarve que erão da Conquista de ElRey de Castella cuidou ElRey Dom Affonso que era bem de mandar pedir aquella terra a seo sogro que lha desse por conquista e então enviou la a Raynha sua Molher e ella foi a Tolledo…” In “Coroniqua de como Dom Payo Correa Mestre de Santiago de Castella tomou este Reino do Algarve aos Moros”

O

Al Andalus é hoje reconhecido pela sua importância para o Renascimento europeu. Recentemente,

um dos maiores prémios da União Europeia para as ciências sociais e humanas foi atribuído ao estudo da influência do Corão na vida cultural europeia, a análise de elementos que nos permitem a compreensão das identidades nacionais como processos evolutivos. As interpretações dos textos fundadores do cristianismo e islamismo têm hoje formulações alteradas, descontextualizadas, sectárias e nalguns casos mesmo radicalizadas. Entre os séculos XII e XV no mundo cristão, foram elaboradas crónicas justificativas das cruzadas e da ocupação de territórios sob domínio muçulmano. O epílogo político-militar deste processo histórico na Península ocorreu em 1492 com a queda do Reino nazari de Granada, com a expulsão dos judeus nos Séc. XV e XVI, também de milhares de “mouriscos” no século XVII. No período da formação de Portugal, a poesia trovadoresca e dos jograis era a mais popular, precedia a prosa

erudita escrita em latim pelo clero, teólogos e juristas. O testamento de D. Afonso II datado de 1241 foi o primeiro texto em prosa escrito em português. O incremento de traduções anteriores ao século XIII, bem como a afirmação da língua procuraram legitimar os novos poderes. Assim, a “Crónica do Mouro Rasis”, de Ahmad Al-Razi (887-955 d.C.), traduzida para português pelo clérigo Gil Peres, terá sido decidida pelo rei D. Dinis, determinada pelos interesses político-culturais do soberano, também ele escritor e poeta. A “História Geral de Espanha de 1344”, inspirada na de Afonso X de Castela e Leão, é uma tentativa de concretizar uma história ibérica integrando a nova realidade portuguesa. A autoria é atribuída a um filho bastardo de D. Dinis, D. Pedro conde de Barcelos, nela se inclui a formação do Condado Portucalense e as crónicas de todos os reis portugueses até D. Afonso IV.

É neste contexto de afirmação dos novos poderes que surgiu a “Coroniqua de como Dom Payo Correa Mestre de Santiago de Castella tomou este Reino do Algarve aos Moros”, uma cópia desta foi descoberta em 1788 por Frei Joaquim de Santo Agostinho nos “Tomos Velhos” da Câmara Municipal de Tavira. O traslado foi editado em 2013 pelo Arquivo Municipal de Tavira. É um texto fundamental para o estudo da História e Cultura do Algarve, pelas características, contexto e objectivos, mas também pelas interrogações que levanta. O relato da conquista definitiva do Reino do Algarve, um texto breve, anónimo e não datado, terá provavelmente tido origem no século XV ou princípios de XVI numa crónica que descreve os acontecimentos no reinado de D. Afonso III. No documento surge como figura central Dom Paio Peres Correia, aristocrata português, mestre da Ordem de Santiago entre 1242 e

1275. Alguns medievalistas consideram que terá sido elaborada nos “Scriptoria” desta Ordem fundada em Castela, por esse facto orientada para os desígnios e interesses estratégicos castelhanos, subalternizando o papel da Coroa portuguesa. Da disputa entre poder régio e as ordens militares, constituídas para o apoio às cruzadas e conquista de territórios aos mouros, resultou a nomeação dos mestres pelos Reis de Portugal. Fernand Braudel demonstrou que “as civilizações renascem”, os actuais conflitos na Europa e no mundo evidenciam questões com muitos séculos, territoriais e de identidades colectivas, emergem hoje com novas dimensões políticas, económicas, culturais, religiosas e militares. Na realidade, apesar das distracções virtuais, o passado continua presente. * A autora não escreve segundo o acordo ortográfico


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Madalena é o novo romance de Isabel Rio Novo: P Depois de A Febre das Almas Sensíveis, onde abordava a tuberculose, este romance volta à temática da doença. A realidade agora retratada é a de uma jovem com cancro da mama. Há traços que se impõem enquanto autobiográficos, como o facto de a narradora, sem nome, ser professora de História. Esta aparente (in)dissociação serve para confundir o leitor? R Indissociação será uma palavra um tanto forte, que não se aplica neste caso, nem sequer no caso do romance anterior, no qual a Autora personagem, interagindo, por exemplo, com Gustave Caillebotte, não pode obviamente corresponder à minha pessoa real. Aqui ainda menos, embora algumas experiências da vida da narradora protagonista sejam parecidas com algumas que tive (e outras tantas não). Não desejo confundir o leitor, quando muito, jogar com ele, o que é diferente e é também um dos desafios de sempre da literatura.

Isabel Rio Novo é uma das grandes vozes da ficção portuguesa contemporânea FOTOS PAULO M. MORAIS / D.R.

PAULO SERRA Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

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adalena, de Isabel Rio Novo, autora publicada pela Dom Quixote, venceu o Prémio Literário João Gaspar Simões 2016 com este novo romance, confirmando-se como uma das grandes vozes da ficção portuguesa contemporânea. Enquanto se submete a tratamentos para um tumor, uma jovem professora formada em História, que sempre gostou de romances, torna-se mais predisposta a olhar para o passado. Quando a narradora observa o armário livreiro em carvalho que tem em casa, mandado fazer pelo bisavô - onde estão reunidas as fotografias, a quase centena de cartas e os velhos livros da família – tudo isso lhe cai literalmente em cima do seio esquerdo, justamente onde se localiza o tumor maior. E é a explorar esses papéis, retratos e cartas que a narradora ocupa os longos dias que lhe restam de ânimo, quando o tumor não a ocupa em abso-

luto, reconstruindo a história de Álvaro Amândio, o bisavô culto e ensimesmado, e sobretudo de Madalena Brízida, a bisavó sedutora, enigmática e talvez cruel. Madalena surge como uma segunda personagem do romance, também ela tocada pela doença, como se torna claro no final. Há inclusive momentos em que surge como um desdobramento da narradora, como quando esta imagina ver o reflexo da antepassada no espelho do armário. Esse confronto com um reflexo que não é o seu, mas o de Madalena, acontece ainda uma segunda vez, justamente perto do fim do livro. De forma subtil e subliminar, esta é também uma narrativa sobre os mortos que nos sobrevivem sempre, cujo legado genético inclusivamente muitas vezes vive em nós, gerações depois… Isabel Rio Novo, doutorada em Literatura Comparada, nascida no Porto, leciona Escrita Criativa e outras disciplinas, como História de Arte, no âmbito da arte, da literatura, do cinema. Foi finalista do Prémio Leya por dois anos consecutivos, em 2016 com o Rio do Esquecimento, e em 2017. Está agora a trabalhar numa nova biografia (depois da de Agustina), dedicada a Camões.

P Parece haver uma novidade neste livro. Um humor mais ácido… Surge como defesa? Como um olhar desenganado e cínico sobre o mundo? R Não creio que os meus romances anteriores sejam destituídos de humor, quase sempre um humor fino, algumas vezes negro, mas posso estar enganada. É verdade que aqui o humor ácido e as tiradas certeiras surgem como um mecanismo de defesa da protagonista. O desafio, aliás, foi criar uma personagem que não fosse naturalmente ou obviamente simpática, mas que, mesmo assim, contra vontade dele às vezes, levasse o leitor a identificar-se com ela e a estabelecer com ela uma relação de empatia. Por isso ao humor ácido junta-se muitas vezes uma certa ternura, que espreita inesperadamente do canto mais insuspeito. Em todo o caso, o humor salva-nos sempre, sobretudo o que direcionamos a nós próprios.

R O final estava na minha mente desde o início do romance, como acontece em todos os meus livros, e isto mesmo desde a primeira versão (sendo que nunca nenhum romance meu conheceu tantas versões como Madalena). Nunca me ocorreu outro e não o escolhi pensando nesta ou naquela leitura. O final é o que é, ou o que eu achei que tinha de ser. P Quando a narradora nos fala do armário livreiro em carvalho, mandado fazer pelo bisavô, onde estão reunidas as memórias dos seus bisavós, tudo lhe cai literalmente em cima. Em A Febre das Almas Sensíveis a narrativa de reconstrução parece ser escrita a partir das ruínas revisitadas de sanatórios. Já na escrita da biografia de Agustina fez questão de visitar e perambular pelos espaços por onde a autora se movera… Podemos assumir que, nestas viagens no tempo e na escrita, o método da Isabel, autora, é físico, quase como o de uma arqueóloga a escavar? R Muito físico. Não só no que toca à visita aos sítios, onde há sempre alguma atmosfera que me estimula a escrita e me desperta sentidos, mas também no

que diz respeito ao gosto por todos esses vestígios do passado: os retratos, as cartas, os objetos... Ainda que depois, no romance, todos eles, sítios, registos, surjam transfigurados pela imaginação. Das poucas coisas realmente verdadeiras neste romance, verdadeiras nesse sentido de resgatadas à realidade do passado, o armário livreiro em carvalho. Está na minha sala, cheio de álbuns, cartas antigas, papéis, meus e do Paulo [Paulo M. Morais, marido, escritor]. P Ainda acerca do resgate do passado como busca de um sentido num caminho futuro. Acresce que a história dos bisavós da narradora define-se no livro como «uma verdadeira fuga, real, imediata» (p. 146). Mas é também pela história de Madalena que a identidade da protagonista-narradora se define… R Sim, nós achamos sempre que somos únicos, e somos, mas também é verdade que somos mais um indivíduo entre milhares de milhões de indivíduos, todos com sentimentos, medos, frustrações, aspirações… Quis que este romance fosse também uma história sobre o modo como construímos a nossa identidade, sobre a parte que os nossos >

“O final estava na minha mente desde o início do romance” P Mais perto do livro assume-se uma natureza mais metanarrativa. Reside aí talvez um dos momentos mais emblemáticos do romance: «tudo isto deve ser um mecanismo de defesa, preparar-me para o fim, como quem termina um romance, sentindo que algo de definitivo se instaura e pode permanecer» (p. 188). Inclusivamente, logo depois, a narradora assume: «Invento histórias encorajadoras que acabam bem» (p. 189). Este final romanesco tem em mente um leitor mais atreito a finais menos felizes?

O romance venceu o Prémio Literário João Gaspar Simões em 2016


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LETRAS & LEITURAS Escritora está a trabalhar na biografia de Camões

"O humor salva-nos sempre" > A autora foi finalista do Prémio Leya por dois anos consecutivos

antepassados (não gosto especialmente da palavra, mas é útil para nos referirmos aos que vêm antes de nós) detêm na construção dessa nossa identidade, sobre a dificuldade em alcançar a verdade sobre qualquer existência humana. P Podemos ver a narradora e Madalena (e a Autora) como um desdobramento da mesma personagem? Algo assim já acontecia em Rua de Paris em Dia de Chuva (2020), nomeadamente na alternância entre as memórias (re) criadas da personagem e as memórias (re)criadas da Autora. R A narradora e a bisavó Madalena Brí-

zida são duas faces de um espelho, de certo modo, ainda que aparentemente muito diferentes. Mas o autor e a sua personagem estão sempre implicados nessa relação dupla e recíproca, não é? Nessa medida, Rua de Paris em dia de chuva só expunha de uma forma mais ostensiva, digamos assim, o que vem acontecendo na ficção desde há milhares de anos. P Esta é também uma narrativa sobre os mortos que nos sobrevivem sempre, cujos genes transportamos para as futuras gerações… R É verdade, como aliás sugerem as epígrafes do romance. Tanto do que so-

Um Amigo para o Inverno de José Carlos Barros

José Carlos Costa Barros venceu o Prémio Leya 2021 com a obra As Pessoas Invisíveis FOTO AUGUSTO BRÁZIO / D.R.

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m Amigo para o Inverno, de José Carlos Barros, foi publicado em 2012 pela Casa das Letras, tendo a obra sido finalista da edição do Prémio LeYa desse ano. Agora, a poucos dias da publicação de As Pessoas Invisíveis, vencedor da edição de 2021 do Prémio LeYa, parece uma boa ocasião para apresentar o romance anterior do autor. A narrativa baseia-se numa história verdadeira, quase desconhecida, de resistência à ditadura no Norte do País. A corroborar a sua autenticidade figuram fotos no final do livro, onde surge inclusivamente o “narrador” do romance, então criança, assim como fotos de documentos judiciais: mandado de captura, auto de detenção, sentença condenatória… O sargento Francisco Aniceto Gonçalves (nome fictício para

uma personagem real) chega em 1971 à Vila como novo comandante do Posto Territorial da GNR. A sua presença recém-chegada será imediatamente disputada por dois grupos distintos, que o alertam para os perigos que se escondem sob a aparente quietude das montanhas em redor: «Compreendia que alguém (todos?) o confrontava com a legitimidade do poder e lhe exigia a escolha de um dos lados do muro que parecia levantar-se mais a cada momento.» (p. 49) O aviso ganha especial sentido quando Rogério Afonso é assassinado na sequência de uma quezília relacionada com o roubo de águas. Da mesma forma que o sargento Francisco Gonçalves se faz acompanhar de um único livro na sua bagagem, um policial de Maigret em Nova Iorque, de Georges Simenon, referido aqui e ali no texto, o leitor pode começar a suspeitar que também esta narrativa se reveste da natureza de um policial… O próprio sargento recusa-se a aceitar a explicação mais óbvia para a morte de Rogério Afonso. «Francisco Aniceto Gonçalves é dado à leitura e muito particularmente batido em Simenon. Como o herói do seu herói, o comissário Maigret, ao sargento pouco o preocupavam as circunstâncias imediatas de um crime. Porque, salvo raras excepções, (…) acreditava que as razões de um crime vêm de muito antes da sua execução» (p. 56) Numa narrativa belissimamente lírica, mais circular do que linear (as datas recorrentes na intriga surgem destacadas no corpo do texto), onde abundam personagens (também ao

jeito de um policial), entre figuras do partido comunista e agentes da PIDE, homens solitários e mulheres determinadas, tece-se aqui o retrato de um país nas últimas décadas do regime salazarista. Note-se que o sargento parte da Vila a 24 de Abril de 1974. E a pontuar esta cerzidura narrativa está um estilo deliciosamente controverso (o início do romance é aliás uma reflexão sobre a importância do estilo na frase inaugural de uma obra), em que o narrador irrompe a dar ares da sua graça: «não sei, nesta desarrumada narrativa, sem um plano que haveria de ter como recomenda a teoria do romance, se já disse que corri mundo» (p. 152). José Carlos Barros (Boticas, 1963) é licenciado em Arquitetura Paisagista pela Universidade de Évora e vive no Algarve, em Vila Nova de Cacela. A sua atividade profissional tem sido exercida nos domínios do ordenamento do território e da conservação da natureza. Foi diretor do Parque Natural da Ria Formosa.

Romance foi finalista do Prémio Leya 2012

mos e do que acreditamos em nós ser só nosso, único, sabemos lá ao certo donde vem? A minha filha mais nova, que não tem sequer memórias da minha avó materna, espirra exatamente como a minha avó fazia, com o mesmo timbre, a mesma cadência, a mesma garra… Comovo-me sempre um bocadinho quando a ouço, ao fundo da casa, e murmuro para dentro de mim: «Olá, Bó.»

“Gosto de pensar nos meus livros como irmãos entre si” Este livro ganhou o Prémio Literário João Gaspar Simões na edição de 2016. Tratar-se-á, portanto, de uma obra anteriormente enviada a concurso, que apenas agora foi dada a publicação… Em termos de continuidade lógica da sua obra narrativa faz sentido aproximá-lo do seu segundo livro, A Febre das Almas Sensíveis… Em que o momento o devemos enquadrar? R No momento que é seu: este, agora, depois dos três anteriores. O meu processo de escrita é sempre demorado. No caso de Rua de Paris em dia de chuva, por exemplo, decorreram dez anos entre a vaga ideia de um romance sobre o pintor Gustave Caillebotte e a publicação do livro. Madalena não demorou mais; a diferença é que houve uma primeira versão logo em 2012, 2013, a que se seguiram várias outras, entre as quais a do ano da premiação. Mas essa ainda P

não era a versão que me satisfazia. Demorei mais alguns anos, quase o pus de parte; devo muito ao Paulo o não ter desistido dele. Este livro encerra ainda, em dois momentos, um piscar de olho ao leitor mais atento, quando invoca o título desse seu outro livro, e depois quando se invoca uma das obras de arte mais amadas pela narradora, o quadro de Gustave Caillebotte, Rua de Paris em Dia de Chuva. R Em todos os meus romances há remissões para os anteriores, umas vezes mais evidentes, outras, mais subtis. Tem a ver com essas piscadelas de olho (mais uma forma de humor) que eu gosto de deixar aos leitores que leem mais do que um livro meu, mas também com o desejo de criar entre os meus romances um certo ar de família. Gosto de pensar nos meus livros como irmãos entre si: olhamos para eles, não dizemos que são gémeos uns dos outros certamente, mas lá estão as parecenças… P

P Está agora a trabalhar numa nova biografia que, imagina-se, deve ser uma empreitada de grande responsabilidade. R Até dá medo de escrever o nome do biografado, não é? Camilo dizia qualquer coisa como: estamos tão habituados a encarar Camões à luz triste e crepuscular das lendas do poeta injustiçado ou então sob os coloridos fortes da epopeia que mal o podemos olhar a uma grande luz natural. Mas que tentação tentar encontrar essa luz…


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