CULTURA.SUL 164 8JUL2022

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Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o

JULHO 2022 n.º 164 9.156 EXEMPLARES

www.issuu.com/postaldoalgarve

ARTES VISUAIS

Pode a arte de rua ser apresentada num museu? SAÚL NEVES DE JESUS Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; http://saul2017.wixsite.com/artes

A Entrada do Museu STAAT (Amesterdão)

Vistas do interior do Museu STAAT

FOTOS D.R.

arte de rua, arte urbana ou “street art” tem tido um grande desenvolvimento nos últimos anos, numa perspetiva de democratização da cultura, de permitir o acesso de todos às manifestações culturais. Assim, a arte tem “saído” dos museus e galerias, vindo para a rua, para junto das pessoas. Por definição, a arte urbana diz respeito a manifestações artísticas realizadas no espaço público, coletivo ou urbano, permitindo uma aproximação da arte às pessoas, e distinguindo-se das manifestações de caráter institucional ou do mero vandalismo. A arte urbana tem vindo a tornar-se cada vez mais popular, havendo até algum aproveitamento turístico nalgumas cidades europeias, contribuindo para a animação e embelezamento das mesmas. Em Portugal este fenómeno também tem ocorrido nalgumas cidades, em particular em Loures. Tendo sido realizada em 2016 a primeira edição do “Loures Arte Pública”, com a participação de cerca de 100 artistas portugueses e estrangeiros, esta cidade tem vindo a afirmar-se como uma referência nacional e internacional em termos de arte urbana. Tendo começado na Quinta do Mocho, uma zona da cidade ainda há poucos anos marginalizada, as manifestações artísticas propagaram-se a todo o concelho, considerando-se atualmente Loures como uma galeria de arte a céu aberto, constituindo motivo de orgulho para os quase 3000 residentes, com visitas guiadas para os visitantes, mostrando que a arte pode ser fator de desenvolvimento e inclusão social. Em artigos anteriores temos feito referência a trabalhos de vários artistas que desenvolvem arte urbana, nomeadamente Bansky, JR, Bordalo II e Vhils, estes dois últimos portugueses que se têm destacado com várias produções artísticas no exterior. Sendo a arte uma expressão da socie-

dade, as manifestações de arte urbana cedidas temporariamente ao STRAAT. abordam temas geralmente relativos Assim, a exposição nunca é igual, pois a questões sociais, como a discrimina- as obras que um visitante pode ver a ção racial, os direitos das crianças, a serem realizadas numa semana, estapaz, a natureza, a multiculturalidade rão em exposição na semana seguinte. e a igualdade. Também podem ser encontradas telas Nesta forma de expressão artística, tal- em branco, preparadas para alguns vez Bansky seja o artista cujas obras são artistas que estão para chegar. mais conhecidas a nível internacional. Desta forma, o STRAAT consegue As mensagens visuais que produz abor- juntar obras de cerca de 150 artisdam questões da atualidade, sobretudo tas, procurando ter ainda um papel de crítica política e social, com um forte educativo sobre a história e a termiviés revolucionário e anti guerra, men- nologia da arte de rua, apresentando sagens bem necessárias neste período uma sistematização da informação, conturbado da história da humanidade, intitulada “From the streets to Straat. em que corremos o risco de ser iniciada Six decades of graffiti and street art uma 3ª Guerra Mundial. worldwide” (“Das ruas para Straat. Em 2019, antes da “guerra” contra a Seis décadas de grafite e arte de rua Covid-19, várias cidades do mundo, em todo o mundo”), num espaço do incluindo Lisboa, receberam a ex- Museu preparado para o efeito. posição “Bansky: Genius or Vandal”, Quando visitámos este Museu, em em que foram apresentados mais de maio passado, pudemos encontrar ex70 trabalhos de Bansky cedidos por posta a obra duma artista portuguesa, vários colecionadores privados inter- Wasted Rita, e tomámos conhecimennacionais. Desta forma, conseguimos to de que o STAAT tinha sido nomeado ter acesso a um conjunto de obras de para o prêmio de Melhor Museu da Bansky reunidas num mesmo espaço. Holanda de 2022. Este é um fenómeno curioso pois, no Independentemente de ser ou não o passado, o acesso à produção artísti- vencedor, vale mesmo a pena visitar ca em artes visuais obrigava a que as este Museu de arte de rua!. pessoas fossem a museus ou galerias de arte. A arte urbana contribuiu para Ficha técnica inverter esta situação, aproximando a arte das pessoas. Paradoxalmente, torDireção GORDA, na-se agora também possível apreciar Associação Sócio-Cultural a “arte de rua” em espaços fechados, Editor Henrique Dias Freire organizados para o efeito. Responsáveis pelas secções: É o que acontece no Museu “STRAAT • Artes Visuais Saúl Neves de Jesus - The Museum for graffiti and street • Diálogos (In)esperados art”, o maior e melhor museu de arte Maria Luísa Francisco de rua do mundo. Localizado no cais • Espaço AGECAL Jorge Queiroz NDSM, em Amsterdão, este museu • Filosofia Dia-a-dia Maria João Neves único, com imensa luz natural, apre• Letras e Literatura Paulo Serra senta obras de arte de rua do tamanho • Mas afinal o que é isso da cultura? de uma parede. Paulo Larcher Este Museu convida os artistas para e-mail redação: geralcultura.sul@gmail.com irem pintar no STRAAT, tendo total publicidade: liberdade para realizarem a obra que anabelag.postal@gmail.com entendam, sendo-lhes paga a viagem, online em www.postal.pt a estadia e os materiais necessários. e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve Os trabalhos são realizados no próprio FB https://www.facebook.com/ Museu, enquanto os visitantes pasCultura.Sulpostaldoalgarve seiam dentro do Museu, observando as telas gigantes, verdadeiros murais com cerca de 5 x 10 metros. Os artistas garantem os direitos de autor pelas obras que realizam, sendo as obras


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DIÁLOGOS (IN)ESPERADOS

Teatro Lethes – A mística do lugar

Luís Vicente e Maria Luísa Francisco conversaram no Teatro Lethes MARIA LUÍSA FRANCISCO Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa luisa.algarve@gmail.com

O

edifício onde está o Teatro Lethes começou por ser um colégio de Jesuítas designado por Colégio de Santiago Maior, fundado pelo então Bispo do Algarve, D. Fernando Martins Mascarenhas. Este local de aprendizagem, sobretudo de matriz religiosa, teve licença de utilização a partir de 8 de Fevereiro de 1599. Em 1759, a Companhia de Jesus foi banida do país e foram confiscados os seus bens. O Colégio de Santiago Maior encerrou assim as suas portas. Com a ocupação das tropas napoleónicas comandadas pelo Ge-

FOTO D.R.

neral Junot, as instalações do antigo Colégio foram devassadas e profanadas para aí se alojarem os soldados. Anos mais tarde, em 1843, o Colégio foi arrematado em hasta pública pelo Dr. Lázaro Doglioni (médico e mecenas veneziano que se radicou em Faro no séc. XIX) que manifestara publicamente intenção de construir em Faro um teatro à semelhança do S. Carlos, de Lisboa e do “La Scalla”, de Milão. A inscrição latina na fachada do edifício, monet oblectando, poderá ser traduzida por “instruir, divertindo”, salientando assim as preocupações culturais do promotor desta sala de espectáculos. A inauguração do Teatro Lethes realizou-se a 4 de Abril de 1845, associando-se às comemorações do aniversário da Rainha D. Maria II. Mais tarde, em 1860, foi ampliado pelo Dr. Justino Cúmano, médico tal como o seu tio Lázaro Doglioni.

Na conversa tida com o actor e encenador Luís Vicente no Teatro Lethes, foram destacados alguns aspectos sobre a mística do Teatro Lethes como um lugar de devoção, educação, tragédia, amor, mistério e cultura. Foi referido que este Teatro resulta de uma situação de tragédia e amor. Tragédia, porque por volta de 1804, numa terrível noite de tempestade, um navio veneziano onde viajava o jovem médico, Lázaro Doglioni, naufragou. Os sobreviventes desse naufrágio foram socorridos por pescadores de Tavira e entregues ao Cônsul de Veneza na cidade de Faro. Durante a convalescença o jovem Lázaro Doglioni tornou-se amigo de um dos mais ilustres habitantes da cidade (Guilherme B. Crispim), por cuja filha se apaixonou e com quem casou. Assim, passou a dispor de uma fortuna que lhe permitiu adquirir o edifício, daí a tragédia e o amor estarem ligados ao que viria a ser o Teatro Lethes. Na mística do Teatro Lethes existem outros episódios que ligam amor e tragédia: o de uma bailarina que se terá suicidado no palco por razão de amor não correspondido (cuja imagem já apareceu a algumas pessoas com mais sensibilidade mediúnica), e o de um militar napoleónico, cujo esqueleto foi encontrado, emparedado, no local onde hoje está instalada a cabina eléctrica. Durante o diálogo com Luís Vicente apercebemo-nos da importante ligação do actor a este espaço, aliás referiu que “tudo é relevante neste lugar, desde as paredes ou a forma como a voz se projecta no Teatro. O entendimento técnico e estético está presente no palco, outrora capela da casa professa, onde viviam os Jesuítas, e depois Colégio de Santiago Maior.” A dimensão do vão da nave da capela terá condicionado a planta da sala.

Dos clássicos à contemporaneidade Na mitologia grega, Lethes é um mítico rio cujas águas têm o poder de apagar da lembrança as amarguras da vida. Ao ser o nome de um Teatro remete-nos para momentos de deleite e fruição de espectáculos, esquecendo, por momentos, amarguras. Luís Vicente, director de produção e director artístico da ACTA - A Companhia de Teatro do Algarve, considera que os clássicos foram importantes na sua formação e estão presentes nas escolhas da programação, destacando que “o clássico só o é porque nos indica um caminho na contemporaneidade”. E a partir daqui fomos conversan-

do sobre livros e autores passando por Santo Agostinho, por Jostein Gaarder, que escreveu sobre Santo Agostinho. Não se podia deixar de falar acerca da obra do escritor e dramaturgo Samuel Beckett (Nobel da Literatura em 1969) e de À Espera de Godot. Falámos da abordagem transversal e pouco comum que Luís Vicente deu à encenação deste texto de Beckett. Eugène Ionesco e o teatro do absurdo também vieram à conversa. Aliás, Beckett e Ionesco estão entre os principais dramaturgos “do teatro do absurdo”. Falámos das interpretações de Shakespeare, nomeadamente das que mais marcaram o actor: Otelo e Ricardo III. Luís Vicente é o actor português, no activo, que mais vezes interpretou textos de Shakespeare. Sente que é um privilégio trabalhar com aqueles textos pelo que eles representam e pela forma como nos levam a interrogar a vida e a natureza humana. Na conversa sobre criadores, dramaturgos e encenadores Luís Vicente citou esta frase de Ionesco: “Criadores só há dois: Deus que criou o mundo e Shakespeare que criou a humanidade”! Margarite Duras e Albert Camus (Nobel da Literatura em 1957) são dos autores que mais marcaram a vida e o percurso do actor e encenador, sem esquecer o escritor e dramaturgo italiano Dario Fo (Nobel de Literatura em 1997). Luís Vicente referiu com orgulho que teve a honra de conviver de perto com o laureado e de encenar por duas vezes um texto dele.

A vinda para o Algarve A vinda para o Algarve, há mais de 20 anos, está ligada a um convite feito pelo professor José Louro para uma conversa com os elementos do Sin-Cera - Grupo de Teatro da Universidade do Algarve. O tema estava ligado à profissionalização dos actores e daí até surguir a ideia de criar algo mais amplo que servisse a região, a nível teatral, foi um passo, depois de alguma pesquisa sobre os investimentos que os municípios da região faziam em Cultura. Assim surgiu a ACTA – A Companhia de Teatro do Algarve, que já apresentou espectáculos em todos os concelhos da região algarvia e em Espanha, na Alemanha, na Polónia, na Bélgica, no Luxemburgo e no Brasil. Alguns desses espectáculos aconteceram através do projecto da ACTA, chamado VATe - Vamos Apanhar o Teatro (acrónimo de Vamos

Apanhar o Teatro). É o Serviço Educativo itinerante da ACTA, Prémio Gulbenkian-Educação 2010, que já proporcionou formação a professores e educadores de 8 países da UE e também da Turquia e foi objecto de tema de palestra na Universidade de Heidelberg. Trata-se de um autocarro que foi transformado numa sala de espectáculos e que anda em itinerância pela região e em festivais a levar aprendizagem e revelações inesperadas às crianças e também a idosos de zonas mais interiores. Foi então projecto pioneiro na Europa e, segundo pesquisa da RTP, já existem mais dois “filhos” deste projecto no espaço europeu. Luís Vicente fez questão de salientar a amizade que o ligou ao professor José Louro, figura incontornável do teatro e da cultura no Algarve e como ele continua presente, sendo homenageado diariamente, ao ter sido atribuído o seu nome à sala de espectáculos do VATe. De forma emotiva acrescentou ainda que “o Zé fez o favor de ser meu amigo durante mais de 40 anos. Eu sabia que o Zé gostava de mim, apreciava o meu trabalho, que ele acompanhava, e por isso é que me convocou a vir até cá. E eu vim, porque também gostava e apreciava o trabalho dele com grupos de amadores e universitários. Trabalho muito sério no plano ético e muito dedicado no plano artístico. E depois cruzei-me aqui com pessoas interessantes, alunas/ os do Zé: a Ana Baião, a Glória Fernandes, o Noé Amorim, o Davide Silva, o João Aidos (que anos mais tarde veio a ser Director-Geral das Artes). Foi bom. É bom! O Zé foi fundamental e incontornável para todos nós”. A pessoa com quem tive o gosto de conversar no Teatro Lethes é um conceituado actor conhecido do grande público, ao interpretar a personagem Átila na série televisiva Duarte & Companhia na década de 1980. É director de produção desde o início de actividade da ACTA, director artístico desde finais dos anos 90 e pensa continuar no Algarve. Faço votos de muitos sucessos pela voz que é na região e que continue a contribuir para a dinâmica cultural da cidade de Faro, em particular, e do Algarve em geral. E que o Teatro Lethes continue a ser a referência que é no panorama cultural regional, nacional e internacional. Caro leitor esteja atento ao que neste lugar de cultura acontece durante onze meses do ano. Dá para perceber que é uma epopeia diária! * A autora não escreve segundo o acordo ortográfico


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Empoderamento Radical FOTO RICARDO SILVEIRA D.R. P

Uma metáfora?

Sim. Fez-me tomar consciência de que em muitas coisas não existe, ainda, igualdade. E eu estava convencida que sim! Eu nasci num país europeu, desenvolvido, com muitos privilégios que nem sabia que tinha. R

“Talvez nem quisessem esse destino, mas nem lhes ocorria que a vida poderia ser diferente” Podes dar-me algum exemplo que te tenha impressionado? P

Anna Pixner é a skater mais rápida da Áustria e a número 10 no ranking mundial MARIA JOÃO NEVES PH.D Consultora Filosófica

B

astou a primeira colher da musse de chocolate vegan do Eduardo e, por uns instantes, o paladar dominou todos os meus sentidos. Quando voltei a abrir os olhos, deparei-me com uma jovem e bela mulher, que me resultava familiar, mas não conseguia identificar de onde a conhecia. Tinha um rosto angelical e o cabelo longo e arruivado descia em suaves ondas sobre as costas. Dela emanava uma calma, uma felicidade serena que, conjugada com a sua aparência, me fazia viajar para um filme de época: imaginava-a de vestido longo a bordar junto à janela. Na sua presença silenciosa havia qualquer coisa de irresistível. A Lia notou o meu interesse e, sem demora, apresentou-nos: conheces a Anna Pixner? Devo ter ficado de olhos esbugalhados com o cérebro em sérias dificuldades para processar a informação. Então aquela beleza clássica pertencia, nada mais nada menos, que à desportista radical Anna Pix-

ner! A skater mais rápida da Áustria e a número 10 no ranking mundial de Downhill Skateboarding ― (Skate Montanha Abaixo)! A empatia foi mútua, e a Anna concedeu-me esta entrevista. Sei que a Ericeira é a tua casa, já há 2 anos. Podes dizer-me como é que isso aconteceu? P

R “Aconteceu” é, de facto, uma boa palavra. Parti o punho e tive receio de que o verão austríaco já tivesse terminado quando eu recuperasse. Vim visitar uns amigos e pensei que podia ficar um mês, e tentar recomeçar com o skate aqui na Ericeira. Mas depois encontrei este sítio ― Omassim ― e comecei a trabalhar. A Lia, mostrou-me várias opções, incluindo uma caravana na qual eu podia viver, junto à horta. Foi perfeito! Sob a orientação do Eduardo, preparava os pequenos almoços de manhã, e praticava skate a tarde toda. Fiquei apaixonada por esta vida! Incluindo acordar no meio de um campo de vegetais (risos). A única coisa que me mantinha na Áustria eram os meus estudos. Tinha começado a tirar um curso de Mestrado em “Gender Culture and Social

Change”. Mas com a Covid passou a ser possível fazer tudo online. P Gostava de saber um pouco mais sobre esse teu interesse em Estudos de Género. Parece que tu não abandonaste o tema, apenas decidiste abordá-lo de um ângulo diferente.

Eu continuo a adorar estudar sobre este assunto e, às vezes, sinto saudades das aulas na faculdade. Porém, dei-me conta de que vendo o que acontece na vida real e, sobretudo, devido ao desporto a que me dedico, talvez eu tivesse a possibilidade de mudar alguma coisa. Decidi agir em vez de apenas teorizar, pensar acerca das coisas e escrever. R

Se não vemos mulheres fazer coisas extremas, crescemos com a ideia de que são incapazes de tal!”

P Podes precisar um pouco mais sobre este assunto? Que mudanças gostarias de alcançar? R Interesso-me sobre as diferenças culturais. Por exemplo: porque é que os desportos radicais, como o Skate Montanha Abaixo a que me dedico, são dominados pelo género masculino? Ou porque é que tantas mulheres nem sequer se atrevem a tentar? Por que partem do princípio de que não seriam capazes de fazer estas coisas? Pergunto-me se isto não tem muito mais que ver com a pressão social do que com a diferença de género. Se não vemos mulheres fazer coisas extremas, crescemos com a ideia de que são incapazes de tal! O contexto em que vivemos influencia-nos imenso! Verifico isto constantemente ao viajar para as corridas das Copas do Mundo. A maioria das mulheres que praticam este desporto são europeias ou norte-americanas. Elas sabem que esta possibilidade existe. Noutros lugares do mundo talvez isto não se mencione sequer! Para mim esse é o único motivo pelo qual o nível da prestação das mulheres, em alguns países, ainda fica um pouco aquém. Para mim é como uma metáfora.

R Uma das minhas primeiras competições internacionais foi nas Filipinas. As atletas locais tinham imenso talento, as suas capacidades eram incríveis! Mas o seu equipamento era muito mau. Falando com elas apercebi-me das diferenças abissais entre nós. Algumas estavam quase a completar 18 anos e pensavam que já não iriam competir mais porque era tempo de casarem e terem muitos filhos. Era como se estivessem programadas. Talvez nem quisessem esse destino mas nem lhes ocorria que a vida poderia ser diferente.

Há quanto tempo praticas este desporto radical? P

R

Há 10 anos.

P

Então, começaste muito nova?

R

Sim. Eu tinha 15 anos.

P E és a mulher mais rápida da Áustria, neste desporto, e uma das mais rápidas do mundo?

R - Sim, mas... Aí está... Não sei se isto é muito justo. Não sei se há alguma mulher em algum lugar do mundo, muito mais rápida do que eu... Desconhecida e, obviamente, não contemplada no ranking mundial. P Sei que os sponsors andam de olho em ti. Constou-me que tens um pensamento muito interessante a este respeito...

R Na verdade, esse mundo dos sponsors sempre me desagradou bastante. É que se trata, na maioria das vezes, de vender a tua imagem. Sendo mulher, não tem tanto a ver com as tuas capacidades... P

Como assim?

Por exemplo, quando eu comecei neste desporto, era a única mulher. Os meus companheiros eram todos rapazes. Eu rapidamente comecei a ter sponsors e alguns deles, que eram muito melhores que eu, continuavam > R


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FILOSOFIA DIA-A-DIA

“ > sem sponsors durante anos! Então tornei-me bastante céptica. E duvidei muito sobre se devia aceitar essas ofertas ou não. Porquê eu e não o meu amigo que é muito melhor do que eu? É só porque sou mulher e posso atrair mais atenção? Nunca percebi estas diferenças entre homem e mulher neste desporto! Compreendo o que dizes mas, por outro lado, os sponsors são necessários para teres dinheiro para frequentar todas estas competições internacionais e ter bom equipamento, certo? P

Sim... Tenho aprendido bastante. Percebi que existem muitas formas de lidar com isto. Também compreendi que não me podia esquivar dos media, que era necessário estar em frente da câmara.

da minha cara ou do meu corpo. Talvez com um skate debaixo do braço... Não lhes interessa filmar um vídeo em que mostro as minhas habilidades, em que arrisco a minha vida. Fico indignada! Não sou vista como uma atleta, mas como uma modelo barata. Eles só mandam alguma roupa, nem sequer pagam pelas fotografias! Este é um dos casos em que há grandes diferenças de tratamento entre homens e mulheres. Com os homens os sponsors querem vídeos e fotografias que mostram a acção. Connosco, confundem-nos! Somos mulheres atletas, tratam-nos como modelos.

R

P E tu decidiste que não te iriam confundir! Como conseguiste isso?

Basicamente, só faço as coisas que me sinto confortável fazer. Essa é a minha principal linha orientadora. Estes R

Claro que esses outros sponsors me trariam mais dinheiro... Por exemplo, tive uma oferta para um anúncio publicitário que me teria dado 2000€ num dia, só por “aparecer” com as roupas da sua marca. Seria dinheiro fácil, mas, parece-me estranho. Pagam-me mais para estar para ali com umas roupas vestidas, em vez de fazer aquilo para o qual venho treinando há 10 anos!

“É mais fácil passar a mensagem através de um vídeo-documentário do que de um artigo Como pretendes passar a tua mensagem? P

R Acho que um bom meio de passar esta mensagem, nos dias de hoje, são curtas metragens, “film projects”. As pessoas parecem captar bem as mensagens dos filmes. P Estão a filmar um documentário sobre ti, neste momento?

FOTO JENNY SCHAUERTE D.R.

R Sim. O Octavio Scholz é o director, Jaz Levis o produtor, e James Harvey o editor. Misturam vídeos de mim no skate com entrevistas. Acho que é muito mais fácil passar a mensagem através destes documentários do que ao escrever um artigo académico. Nos dias de hoje, as pessoas não se interessam por ler algo intenso que possa provocar pensamentos desconfortáveis. Porém, ao visualizar um vídeo de um desporto radical talvez não se esteja à espera de encontrar algo mais profundo e significativo. A respeito das qualidades internas o documentário também veio ajudar. Eu sempre fui muito introvertida. Acho que toda a gente me subestimava, até ao dia em que comecei com o skate.

Olhando para o teu percurso como atleta, torna-se difícil acreditar! P

uma modelo barata!” P Explica-me lá então, de que é que gostas e de que é que não gostas em relação aos media. R Por exemplo, há uma série de marcas

de roupa, de lifestyle, que procuram pessoas como eu. Só querem que pose para a câmara. Pretendem fotografias

são os meus valores. Geralmente, não me sinto confortável a tirar fotografias nas quais não estou a andar de skate. Neste momento só trabalho com marcas que estão mesmo interessadas no desporto: fabricam skates ou equipamento. E quais são as consequências práticas dessa decisão? P

R Bem, tenho de trabalhar em algum emprego “normal” entre competições.

medrosa que os meus amigos... Empoderei-me a mim própria!” P

académico”

“Sou uma atleta e não

“Eu era muito mais

R Na escola tinha piores notas por não falar. Ao escrever, sim, tinha notas melhores. Espera-se que nos consigamos expressar oralmente bastante bem e rapidamente. Creio que isto é muito injusto. As pessoas introvertidas começam a subestimar-se a si próprias. O skate ajudou-me muito! Primeiro a abrir-me mais, e, segundo, a tomar consciência de tudo isto. Eu tendo a pensar que pessoas mais caladas têm, frequentemente, coisas muito interessantes a dizer. Só precisam que lhes seja dado tempo para se expressarem. Gostaria de empoderar estas pessoas!

E está a resultar?

Eu tendo a pensar que sim. Tenho recebido imenso feedback nos media e na vida real. Dizem-me que os faço pensar. As pessoas sentem-se empoderadas! Eu comecei a andar de skate porque gostava, estava longe de imaginar que este desporto se podia transformar num modo de empoderar as pessoas. R

P E como é que o skate te empoderou a ti?

*** A história de Anna Pixner é um exemplo de empoderamento. Frequentemente, o conceito de poder é entendido como domínio que se exerce sobre algo ou alguém, tornando-se sinónimo de opressão ou subjugação. Porém, a filósofa alemã, de origem judaica, Hannah Arendt, rejeitou desde cedo este modelo de poder entendido como comando-obediência. No seu livro A Condição Humana propõe a definição de poder como “a capacidade humana não apenas de agir, mas de agir em conjunto”. Existe uma afinidade notória entre esta sua proposta e a concepção feminista de poder como empoderamento. Desta forma, o poder é entendido não como poder sobre, mas como poder para uma capacidade ou habilidade, de se transformar a si mesmo e aos outros. A definição de poder de Arendt contém ainda em si o foco na comunidade ou, como passou a ser chamado, empoderamento coletivo. É nesta esteira que se insere, por exemplo, a psiquiatra e activista americana Jean Baker Miller.

R Mostrou-me que havia muito mais dentro de mim do que eu acreditava existir. E fez-me ver que eu era mais do que supunha. Omassim Eu tinha a imagem de mim Guesthouse própria como uma pessoa muito cautelosa, que não gostava de coisas extremas [risos]. Eu era muito mais medrosa que os meus amigos. Nunca pensei que quereria dedicar a minha vida a um desporto radical! Comecei muito devagar. No princípio este desporto era apenas o espaço de que eu necessitava Num artigo intitulado “Mulheres e para estar comigo, para processar os Poder” afirma que “as mulheres pomeus pensamentos, era uma espécie dem querer ser poderosas de maneiras de meditação. Levei algum tempo, não que simultaneamente aumentem, em pensei que iria gostar disto porque sou vez de diminuir, o poder dos outros”. muito cautelosa. A escritora estadunidense Starhawk, Às vezes dou aulas a outras mulheres uma das vozes do chamado eco-feque são exactamente como eu era. minismo, no seu livro Truth or Dare: E acham que não vão gostar deste Encounters with Power, Authority, desporto. Foi incrível para mim and Mystery, afirma estar “do lado descobrir esse lado de mim própria, do poder que emerge de dentro, que é tomar consciência de que, afinal, inerente a nós como o poder de crescer gosto de adrenalina e de velocidade. é inerente à semente”. O poder de denDe certa maneira, empoderei-me a tro é uma força positiva, afirmadora da mim própria! E continuo a lembrar- vida e fortalecedora. É também neste -me do caminho que percorri. Agora, sentido que Serene Khader, filósofa e quando penso que não sou capaz de teórica feminista americana, no seu lialguma coisa, simplesmente mudo a vro Adaptive Preferences and Women’s minha mente a respeito disso. Passo Empowerment define empoderamena pensar: talvez eu ainda não saiba to como um conjunto de processos que sou capaz! “que aprimoram algum elemento do conceito de auto-direito de uma pessoa e aumentam a sua capacidade de “Quando penso buscar seu próprio florescimento”. Rápida que nem um relâmpago no seu que não sou capaz skate, Anna Pixner põe em prática o aqui se teoriza e vai empoderando de alguma coisa, mudo que mulheres por esse mundo fora!

a minha mente: talvez eu ainda não saiba que sou capaz!”

Café Filosófico: 21 de Julho de 2022 às 18:30 no AP Maria Nova Lounge Hotel Inscrições: filosofiamjn@gmail.com * A autora não escreve segundo o acordo ortográfico


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Paraíso, de Abdulrazak Gurnah tória cheia de subtexto, com um final em aberto. Neste paraíso ameaçado, disputado pelos europeus, Yusuf é ele mesmo uma espécie de anjo. Um jovem bondoso sem mácula, e que se mantém virgem até ao final do livro, apesar das constantes tentações, pois causa permanente admiração e fascínio por onde passa; a sua beleza involuntariamente atrai mulheres e homens. As mulheres são, no entanto, elas próprias propriedade dos maridos, ou pais, pelo que dificilmente se podem deixar tentar. Yusuf é igualmente fascinado pelo jardim do comerciante Aziz, criado graças ao empenho do introvertido jardineiro. É no trabalho desse jardim que se refugia, sempre que possível. Vendido como escravo pela própria família, Yusuf simboliza um continente que é também ele disputado a regra e esquadro. Numa época em que se pressente já a flagrante mudança numa terra «pura e luminosa» (p. 126), trazida pelas disputas coloniais e pela guerra na Europa, África é em si um pequeno paraíso virgem, a começar a ser tocada pela mão humana, cujas boas intenções podem ainda assim corromper a bondade natural de um

povo: «Um pastor luterano ensinara-os a usar o arado de ferro e a construir a roda. Disse-lhes que eram dádivas do seu Deus, que o enviara para aquela montanha para oferecer a quem ali vivia a salvação das almas.» (p. 71) São centrais à obra do autor temas como a experiência africana, o colonialismo, a noção de identidade e do valor humano. «E estes jovens vão perder ainda mais. Um dia, os Europeus vão fazêlos cuspir em tudo o que sabemos e vão fazê-los recitar as suas leis e a sua história do mundo como se fosse a palavra divina. Quando chegar a sua vez de escrever sobre nós, o que vão dizer? Que fizemos escravos.» (p. 97) Na década de 1960, Abdulrazak Gurnah foi forçado a sair de Zanzibar, então em revolução. Na altura com 18 anos, chegou como refugiado ao Reino Unido, para poder continuar a estudar. Foi professor de Inglês e Literaturas Pós-coloniais na Universidade de Kent. No conjunto da sua obra destacam-se ainda os romances By the Sea (2001), nomeado para o Booker Prize e finalista do Los Angeles Times Book Award, e Desertion (2005), finalista do Commonwealth Writers..

Abdulrazak Gurnah venceu o Prémio Nobel da Literatura de 2021 FOTO MARK PRINGLE / D.R. PAULO SERRA Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

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araíso, de Abdulrazak Gurnah, é a segunda e mais recente obra do autor (em Portugal) publicada pela Cavalo de Ferro, com tradução de Eugénia Antunes. Este romance do mais recente Nobel da Literatura confirma-o como uma voz literária de grande fôlego. Publicado originalmente em 1994, finalista do Booker Prize e do Whitbread Award, foi este romance que claramente projetou Abdulrazak Gurnah para o palco internacional, consagrando-o como um dos grandes escritores da actualidade. Paraíso é uma fusão de romance de formação, ficção histórica e literatura de viagens. Centra-se na infância e juventude de Yusuf, ao mesmo tem-

po que nos oferece uma narrativa alegórica, efabulatória, do continente africano nas vésperas da Primeira Guerra Mundial. Nascido numa pequena povoação da África Oriental, Yusuf vive em fome permanente (como a criança em crescimento que é) e é vendido aos doze anos pelo seu pai ao rico comerciante Aziz, a quem se habituara a chamar tio. Só gradualmente é que o jovem compreenderá que foi entregue como penhor das dívidas que o pobre pai foi contraindo ao longo dos anos e que esta é uma prática relativamente comum naquela zona. Na sua nova vida como escravo, ainda que relativamente confortável, e contando com a estima de Aziz, o seu patrão e dono, Yusuf será depois chamado a participar numa perigosa expedição comercial ao interior do continente. Nessa viagem de iniciação ao coração das trevas de uma parte do imenso e complexo continente africano, Yusuf constatará como a paisagem muda permanentemente. Bela, selvagem,

árida, por vezes sem nada a não ser terra vermelha, povoada de animais ferozes que frequentemente disputam o território com os humanos, Yusuf descobre igualmente um território povoado por tribos hostis, africanos muçulmanos, comerciantes indianos e agricultores europeus. A narrativa é mais coesa do que a de Vidas Seguintes, o primeiro romance deste autor publicado entre nós. Em comum, temos um tom narrativo encantatório, em que, ainda que sejam nomeados espaços físicos, e Zanzibar é um nome distante sempre presente – nunca há uma clara alusão ao país africano em que a ação decorre, ainda que se nomeiem alguns topónimos. Igualmente indefinido é o tempo; só perto do final do romance na alusão à guerra prestes a iniciar entre ingleses e alemães é que percebemos que estes podem ser os últimos dias antes da Primeira Guerra. Numa narrativa sempre isenta, sem alguma vez procurar dar pistas de leitura, esta é, ainda assim, uma his-

Paraíso foi o romance que projetou Abdulrazak Gurnah para o palco internacional


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LETRAS & LEITURAS

O Silvo do Arqueiro, de Irene Vallejo

Irene Vallejo é apaixonada pelas lendas gregas e romanas desde a infância FOTO JORGE FUEMBUENA

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Silvo do Arqueiro, de Irene Vallejo, publicado pela Bertrand Editora é o primeiro romance da autora de O Infinito num Junco. E ainda que um seja um romance e o outro um livro de não-ficção que se tornou um best-seller em tempos de

pandemia e confinamento, há pontos em comum. Nomeadamente a paixão da autora pela Antiguidade Clássica e pela forma como o mito e a lenda, entretecidos com a História, tecem os fios da nossa vida, como seres pensantes e como leitores. «Diverte-me muito ver como os humanos inventam lendas e o quanto precisam delas. Coleciono mitos de todas as regiões do mundo e, quando escalo as encostas do céu para ir ao banquete dos deuses, faço muito sucesso a repetir estas histórias que ouvi de lábios mortais. A nós, deuses, surpreendem-nos e de certa forma enternecem-nos os seus esforços para tornarem o mundo compreensível. Infelizmente, nós não temos nada parecido. Está claro que a arte de contar histórias é algo que não ensinámos aos humanos, aprenderam-na sozinhos, e a sua capacidade de invenção é deslumbrante.» (p. 56) O Silvo do Arqueiro inicia com Eneias, o herói errante e derrotado que, em fuga do saque de Tróia com o seu filho, naufraga nas praias de Cartago, na costa

africana. Marcado por uma misteriosa profecia que o anuncia como fundador de uma vindoura grandiosa civilização, Eneias deixa o seu destino nas mãos de uma mulher, a rainha Elisa. A narrativa alterna entre as vozes de Eneias, Elisa e Ana, meia-irmã da rainha, uma criança que nasceu com uma mancha na cara que assinala o seu destino como feiticeira, e que, apesar do temor que inspira, acaba por se fazer ouvir. Mais pontualmente, intervêm ainda as vozes dos deuses, em particular Eros, que se imiscuem na esfera terrestre, procurando tecer o destino dos humanos, enquanto simultaneamente os invejam, pois aos deuses falta aquilo que distingue a natureza humana: o amor e a criatividade, qualidades que são possivelmente uma só. «A minha mãe costumava dizer que, um dia, muitos aprenderão a desenhar os seus pensamentos, e a magia de guardar as palavras espalhar-se-á e será um grande feitiço contra o esquecimento.» (p. 152) A narrativa de Eneias e Elisa,

consoante se deixam enlear nos braços de Eros, alterna ainda, em capítulos breves, com a história de Vergílio que, séculos mais tarde, escreverá a obra, como encomenda do imperador Augusto, que lhe dará uma imortalidade próxima dos deuses, a Eneida. Tal como Eneias hesita entre deixar-se ficar em Cartago com Elisa em vez de seguir para Itália, a terra da profecia, um pouco como Ulisses quase se deixa enredar na teia de Circe. Por seu lado, Vergílio, o escritor propagandista de Augusto, teme não ser capaz de escrever o grande romance que lhe foi pedido pelo imperador. Belissimamente escrito, numa prosa lírica, despretensiosa, principalmente quando são os desinspirados e invejosos deuses a assumir a narrativa. O Silvo do Arqueiro, de Irene Vallejo, mais uma vez confirma que a revisitação das obras da Antiguidade continua a inspirar algumas das melhores obras de literatura contemporânea. Há um destaque especial para o papel da mulher, como se a autora procurasse ainda

resgatar as personagens femininas do mutismo a que os clássicos tendem a votá-las; pois as suas ações e desejos surgem normalmente retratadas do prisma masculino que as reduziam a seres inconsequentes e caprichosos. A leitura de O Silvo do Arqueiro pode também, de forma muito especial, servir de mote à leitura da mais recente tradução da Eneida, recentemente publicada pela O Silvo do Arqueiro é o primeiro Quetzal em edição bilingue – la- romance da autora tim e português –, com tradução, introdução e anotações de Carlos palestras e visita escolas, univerAscenso André. O romance termi- sidades e bibliotecas, divulgando na aliás com uma clara referência a importância e a atualidade do à motivação e à determinação legado do mundo antigo. Colabora de Vergílio encarar, finalmente, com meios de comunicação, como o ponto de partida da escrita do o jornal El País, em Espanha. romance que viria a sobreviver Alcançou o reconhecimento à civilização romana que Eneias internacional com o seu livroO Infifundou. nito num Junco (Bertrand Editora, Irene Vallejo (Saragoça, 1979) 2020), título que lhe valeu o Prémio é apaixonada pelas lendas gre- NacionaldeLiteratura2020(Espagas e romanas desde a infância. nha)nacategoriadeensaio.Venceu Estudou Filologia Clássica e dou- ainda o Prémio El Ojo Crítico de torou-se nas Universidades de Narrativa, o Prémio Acción Cívica Saragoça e Florença. Empenhada 2020,oPrémioLasLibreríasRecoem dar a conhecer os autores clás- miendan 2020 e o Prémio Aragón sicos ao grande público, a autora dá 2021, entre outros.

ESPAÇO AGECAL

O sistema alimentar mundial e a actualidade da Dieta Mediterrânica JORGE QUEIROZ Sociólogo Membro da delegação de Portugal à Conferência da UNESCO em Baku, inscrição da Dieta Mediterrânica como Património Cultural Imaterial da Humanidade a 4 de Dezembro de 2013

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guerra no Leste Europeu evidenciou o que era conhecido, fragilidades do sistema alimentar mundial e especulação nos circuitos de comercialização de bens essenciais que originam a actual inflação em alta que atinge sobretudo a população trabalhadora e os pensionistas. A situação é potenciada pelo facto de diversos países produtores de cereais terem reduzido ou mesmo suspendido exportações por razões de segurança alimentar dos próprios. Se há capacidade suficiente para a humanidade produzir os alimentos de que necessita, a tendência mundial tem sido o abandono das produções tradicionais e

das espécies endógenas, a dependência de mercados externos, desflorestação e destruição de ecossistemas, pressão sobre recursos hídricos, uso de combustíveis fósseis e fertilizantes, urbanização intensiva com ocupação de solos de boa aptidão agrícola, sobreexploração da pesca nos oceanos. Cerca de 80% do consumo baseia-se em cinco produtos, trigo, milho, arroz, batata e soja. Corolário da lógica mercantil estima-se que 30% dos alimentos produzidos vão parar às lixeiras. Sendo a alimentação um direito básico universal, tem de ser garantida a perspectiva ambiental e social. E Portugal? O País nas últimas décadas transformou-se do ponto de vista agrícola e alimentar, o estilo de vida foi alterado, aumentaram doenças relacionadas com a má alimentação, o consumismo e a sedentarização, agravando a pressão sobre o SNS e os custos dos orçamentos públicos de saúde. Grandes e pequenas cidades que há

anos garantiam produções da agricultura de proximidade em mercados de bairro, dependem agora de algumas grandes cadeias de comercialização. E a Dieta Mediterrânica? Na última década Portugal integrou com outros seis países, Espanha, Itália, Croácia, Grécia, Chipre e Marrocos, a candidatura da Dieta Mediterrânica a Património Cultural Imaterial da Humanidade da UNESCO, aprovada em Baku a 4 de Dezembro de 2013, por unanimidade e sem recomendações. Em breve este processo merece avaliação e reflexão, com abertura a novos Países. A Dieta Mediterrânica resulta da sabedoria de camponeses e pescadores, em especial das mulheres, saber fazer “muito com pouco” para alimentar a família alargada, com os produtos da horta e do pomar, do mar, do rio e ribeiras. São normalmente pratos nutritivos, saborosos e aromatizados, caldos com pedaços de carne ou peixe, sopas de hortaliças, ensopados, açordas, A protecção, tal como a investigação, valorização e divulgação da

Dieta Mediterrânica são crescentemente necessárias não só porque é uma riquíssima herança cultural e um estilo de vida milenar, a “daiata” da antiguidade grega, como responde a emergências actuais. A Dieta Mediterrânica é um padrão alimentar saudável reconhecido pela OMS, nutricionalmente variada e rica, as comunidades alimentam-se de acordo com os ciclos da natureza. Cada época do ano tem os seus produtos e pratos característicos que integram as festividades, valoriza a tradição comunitária e alimentar, isto é o património cultural do País. Do ponto de vista agrícola a DM integra as “dietas sustentáveis” da FAO, tem por base agriculturas de proximidade, utiliza a água de forma racional, reduz as emissões de CO2, pois não necessita de transportes de longa distância, ajuda a preservar os ecossistemas, a conter os efeitos das alterações, garantindo a segurança alimentar das populações. A sua dimensão cultural favorece a

coesão social, valoriza a História e o património. Do ponto de vista económico favorece os agricultores e os produtos locais, pode reactivar os mercados de bairro e localidade. Os efeitos positivos no turismo são relevantes, crescente é a procura de lugares com relações sociais humanizadas, cultura e património, ambientalmente preservados, com gastronomia diferenciadora. A Dieta Mediterrânica é um dos modelos alimentares mais estudados no mundo e terá de ser melhor promovida nas políticas publicas de saúde, ambientais, agrícolas e culturais, incluída nos currículos escolares, não apenas no plano da nutrição. Em Portugal é leccionada no ensino básico. Por iniciativa da UAlg dezanove Universidades e Escolas Superiores portuguesas assumiram um protocolo de investigação e valorização deste património da humanidade. * O autor não escreve segundo o acordo ortográfico


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CULTURA.SUL

POSTAL, 8 de julho de 2022

MAS AFINAL O QUE É ISSO DA CULTURA?

O Algarve de Costa-a-Costa: Ossonoba FOTOS ANTÓNIO HOMEM CARDOSO / D.R.

PAULO LARCHER Jurista e escritor

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aro é capital de uma região desde sempre considerada um reino: de Portugal e dos Algarves, assim se intitularam os nossos reis, de D. Sancho I a D. Manuel II. Contudo, a cidade gosta de realçar o seu passado romano, daí lhe veio o nome: Ossonoba, ao contrário de outras povoações que valorizam os períodos do domínio muçulmano e da reconquista cristã. A cidade prosperou ao longo dos séculos devido à sua posição geográfica, ao seu porto seguro e à exploração e comércio de sal e produtos agrícolas, prosperidade várias vezes travada ao longo da sua história por cataclismos naturais e também por violentos saques e pilhagens que continuam gravados na memória da comunidade. De entre tantos episódios possíveis, refiro apenas um levado a cabo no ano de 1487 por uma figura relevante da comunidade judaica, o tipógrafo Samuel Gacon: trata-se da impressão do Pentateuco em hebraico, tornando-o o primeiro livro (talvez o segundo… ainda há dúvidas) impresso em Portugal. Os alter-ego(1) (2) (3) que me têm acompanhado nesta lenta peregrinação ao longo da via férrea algarvia, o mestre Saramago e o Diego Mesa, interessaram-se muito pelas ruínas romanas de Milreu e pelo Palácio de Estoi, “antigo palácio dos condes de Carvalhal” que, apesar de mal conservado quando o Nobel o visitou se encontrou agora convertido em pousada chique mas, como ambos (ruínas e pousada) ficam longe da estação do comboio não fomos lá, dado que, como se deverão lembrar, o compromisso firmado entre mim e o António Homem Cardoso(4) foi o de seguirmos esta longa linha de caminho de ferro sem desfalecimentos ou tergiversações. Na verdade, o perspicaz Manuel

da Fonseca na sua estadia em Faro interessou-se mais pelas ilhas e praias do que por ruínas e o Diego mandou mesmo a escrita às urtigas e mergulhou de facto nas águas cristalinas do Algarve e isso recorda-me um belíssimo poema de Teresa Rita Lopes que reza assim: “[…] Em Faro aprendi a amar as ilhas Todas e quaisquer Ainda hoje só a breve palavra me comove.”(5)

Faro tem tudo para ser uma bela e grande cidade. Tem essa artéria pulsante chamada comboio que passa mesmo pelo centro, bordejando uma enseada pejada de embarcações com altura limitada à do arco que sustenta a via férrea e que a liga à Ria. Faro tem um aeroporto. Faro tem um bom teatro. Faro tem uma Universidade. Faro tem um grande hospital. Faro tem ao alcance de um agradável passeio de barco uma extensão imensa de areias finas e águas límpidas que Teresa Rita Lopes tão bem sabe descrever: “[…] Ir à Ilha de Faro era uma aventura Começávamos a apetecer o mar de longe Quando finalmente nos recebia nos seus braços possantes Já o nosso corpo o tinha longamente desejado […]”(6)

Faro tem também a felicidade de um crescimento demográfico sustentado que atrai gente permanente e não apenas as marés cíclicas do turismo. Faro tem tudo isto, mas o turista (ou viajante no nosso caso), que desembarca do comboio depara-se com um plano de cidade confuso e barulhento. É pena. Nessa ocasião. como acontecera com os meus alter-ego, também fui de início atraído pelas ruas comerciais onde se reza às forças invisíveis do mercado que tudo prometem. Logo à entrada de uma dessas artérias dei de caras com a belíssima fachada do Café Aliança - com projeto de Quintas Júnior - que manteve as suas portas abertas desde 1930 e que agora exibe um cartaz a dizer que está à venda. O que restará depois dessa venda? (aposto que o comprador não o irá reabilitar para a mesma função). Apenas, talvez, uma memória das tertúlias sociais, políticas e literárias nele mantidas pela boa gente da terra e por figuras ligadas à vida social, à política ou às artes, como o desenhador e ilustrador Roberto Nobre ou Samora Barros que tão bem pintou o

Algarve, ou ainda por poetas tais como João Lúcio e políticos-artistas como Cândido Guerreiro, entre tantos, tantos outros. Nos anos 40, alguns dos muitos refugiados que a cidade recebeu também se tornaram assíduos frequentadores do Café Aliança - destaco dentre esses a grande escritora Simone de Beauvoir - dando-lhe o tom cosmopolita que nos nossos dias infelizmente termina. Porque será? que me lembrei agora do triste poema do grande poeta António Ramos Rosa (nascido em Faro) que reza assim: “[…]As palavras mais nuas As mais tristes. As palavras mais pobres As que dormem Na sombra dos meus olhos. […]”(7) Faro é capital do Algarve e isso traz-

-lhe algumas obrigações mas também múltiplos benefícios. Mais do que em qualquer outro lugar no Algarve (com excepção de Tavira), constata-se uma surpreendente densidade de monumentos onde se expõem obras de arte de boa qualidade. Não vou falar especificamente de nenhum deles embora o merecessem, mas não posso deixar de fazer uma menção elogiosa à Vila

pavimentos romanos de Milreu e elevado à categoria de tesouro nacional e que nos espreita, desolado, através dos seus pétreos pixeis coloridos. No verão, quando anoitece, uma outra vida renasce na cidade, mais terna, mais doce, na mornidão tropical das noites do sotavento. As mãos procuram-se, as gargantas refrescam-se, canta-se, dança-se, assiste-se ao

Adentro que integra grande parte do núcleo histórico da cidade e que é um percurso turístico obrigatório. Acede-se a essa Vila Adentro por várias portas sendo a mais conhecida a do Arco da Vila escavado na muralha moura, cuja frontaria heteróclita inaugurada em 1812 evoca o santo-filósofo Tomás de Aquino, doutor da Igreja, na sequência de episódios rocambolescos que, encontrando-se descritos em todos os folhetos turísticos, me dispenso de contar. Nessa entrada, ladeando a torre sineira, é habitual ver-se dois ou três ninhos de cegonha atraídas pela clemência do clima e a bondade das gentes. É imperioso entrar e passear por esse reticulado de ruas contido dentro da muralha moura e é imperioso, também, admirar a vetusta torre sineira da Sé, o alinhamento escrupuloso dos telhados em tesoura da câmara municipal e, last but not the least, dar uma boa olhada às diversas colecções do museu municipal que, para além do lindíssimo claustro de dois andares, nos permite homenagear o deus Oceano, em boa hora recuperado dos

regresso dos pequenos barcos desenhados a fios de luz dourada sobre a escuridão que mansamente invade a grande lagoa, Formosa de seu nome. O mundo é natural, ridente, quando o verde rompe Animal olhar.(8) . (1) Manuel da Fonseca, Crónicas Algarvias, Editorial Caminho, 2ª ed., Lisboa,1986. (2) José Saramago, Viagem a Portugal, Editorial Caminho, 2ª ed., Lisboa, 1985 (3) Diego Mesa, Viagem ao Algarve, Baseado na Viagem a Portugal de José Saramago, 1ª ed., 2014 (4) António Homem Cardoso, fotógrafo e amigo, que me acompanha neste trajeto do Algarve Costa-a-Costa. (5) Teresa Rita Lopes, in O Sul dos meus sonhos, Viajantes, Escritores e Poetas, Retratos do Algarve, ed. Colibri, CELL/UALG,, 2009, p. 38. (6) Lopes, op. cit., p. 38. (7) António Ramos Rosa, poeta farense, citado em Viajantes, Escritores e Poetas, Retratos do Algarve, ed. Colibri, CELL/UALG, 2009, p 113. (8) Rosa, op. cit. , p 115.


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