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Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o

AGOSTO 2022 n.º 165 14.258 EXEMPLARES

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ARTES VISUAIS

Pode a proximidade do mar inspirar a produção artística? Pintura “Mar do Norte” (Alfred Casile, 1888)

SAÚL NEVES DE JESUS Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; http://saul2017.wixsite.com/artes

FOTOS D.R.

O Pintura “A praia na maré alta” (Carleton Grant, 1896)

Aguarela “Marinha com barco e sombrinhas” (Rei D. Carlos, 1899)

Pintura “Farol” (João Bonança, 2012)

À DIREITA

Fotopinturas de Saúl de Jesus, “Sombras no mar” (2007) e “Energia Positiva” (2010)

À ESQUERDA

Escultura no Parque de Campismo da Praia de Faro

calor do verão faz com que a procura de locais próximos do mar aumente, procurando refrescar e relaxar. O som das ondas do mar é um dos mais relaxantes para a maior parte das pessoas e o mar tem sido fonte de inspiração para muitos artistas ao longo dos tempos. A título de exemplo, destacamos as pinturas realizadas no final do século XIX por Alfred Casile, artista que se destacou pela abordagem do tema do mar, tendo inclusivamente participado no Salão de Paris, principal evento de arte do século XIX. Na sua obra “La mer du nord” (“Mar do Norte”) é bastante expressiva a luz, a cor e a energia que o mar transmite. Neste mesmo período, em Inglaterra salienta-se Carleton Grant, com várias pinturas sobre o mar, nomeadamente “The beach at Hige Tide” (“A praia na maré alta”), e em Portugal destacam-se as pinturas, sobretudo aguarelas, do próprio Rei D. Carlos, sendo o mar o seu tema favorito. As ondas são um aspeto que, muitas vezes os artistas exploram ao ser abordado o mar. Por vezes vemos pinturas sobre ondas do mar de tal forma envolventes que parece que quase conseguimos escutar esse som das ondas. A pintura “Farol” (2012), do artista olhanense João Bonança, comporta essa envolvência. O Algarve comporta condições climatéricas excelentes para a prática e fruição artística! A luz dos dias no Algarve permite uma cor e um brilho especiais, para além de que o clima é gerador de energia para a produção artística, bem como para a fruição desses produtos. Sendo algarvio, também sempre encontrei no mar uma fonte de beleza e energia, tendo a primeira exposição de fotopintura que realizei, em 2007, sido precisa-

mente dedicada ao tema “O Mar...” Mais recentemente, o mar tem sido fonte de inspiração para vários artistas pelas piores razões, pois têm realizado obras a partir do lixo encontrado no mar ou do lixo que pode ser encontrado nas praias, nomeadamente de plástico, trazido pelo vento e pelas correntes. Num artigo anterior, alertámos para o problema do plástico no Oceano, constituindo cerca de 85% do lixo encontrado nas zonas costeiras de todo o mundo. A realização de obras de arte a partir de plástico encontrado no mar tem sido usada como uma das principais manifestações no sentido de procurar consciencializar as populações para o perigo que representa o plástico existente no Oceano. As questões ambientais estão cada vez mais na ordem do dia, fazendo parte do discurso político e das preocupações das pessoas em geral. As expressões artísticas têm acompanhado estas preocupações, pois a produção artística deve ser inserida na época em que ocorre e sendo as questões ambientais tão importantes na atualidade é compreensível que muitos dos trabalhos artísticos feitos a partir do mar não deem tanta ênfase à beleza do mar, mas mais às questões ligadas à poluição do mar, procurando consciencializar e responsabilizar a população pela limpeza do mar e das zonas próximas do mar, em particular as praias. Recentemente, um dos principais artistas portugueses de arte urbana, Bordalo II, que utiliza sobretudo plásticos de alta densidade que haviam sido jogados fora, realizou duas peças escultóricas com cerca de 10 metros, ambas representando um Cavalo Marinho. Uma encontra-se no Campus de Gambelas da Universidade do Algarve e outra no Parque de Campismo da Praia de Faro. Nesta interessante iniciativa da Câmara Municipal de Faro e da Universidade do Algarve, à qual dedicámos o artigo “Pode a arte contribuir para a preservação de espécies ameaçadas?”, procurou-se contribuir para a necessidade de consciencializar

para a importância de preservar esta espécie. É curioso que próximo da obra de Bordalo II no Parque de Campismo da Praia de Faro encontra-se uma escultura metálica na forma de peixe que serve para as pessoas colocarem o lixo de plástico, no sentido de ser reciclado. Esta foi uma iniciativa complementar do Município de Faro que deve ser valorizada, contribuindo, com arte, para a tomada de consciência das pessoas relativamente às questões ambientais e para a importância da prevenção através de comportamentos mais adequado, enquadrados numa economia circular, assente nos 3R: Reduza, Reutilize e Recicle! Iniciativas idênticas têm ocorrido noutros locais próximos do mar, nomeadamente no Largo da Manta Rota, junto ao passadiço de acesso à praia, com uma obra oferecida ao Município de Vila Real de Santo António pelo escultor Carlos Correia, comportando uma dimensão ambiental e também pedagógica.

Ficha técnica Direção GORDA, Associação Sócio-Cultural Editor Henrique Dias Freire Responsáveis pelas secções: • Artes Visuais Saúl Neves de Jesus • Espaço AGECAL Jorge Queiroz • Espaço ALFA Raúl Coelho • Filosofia Dia-a-dia Maria João Neves • Letras e Literatura Paulo Serra • Mas afinal o que é isso da cultura? Paulo Larcher Colaborador desta edição Vítor Martins e-mail redação: geralcultura.sul@gmail.com publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve FB https://www.facebook.com/ Cultura.Sulpostaldoalgarve


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FILOSOFIA DIA-A-DIA

FOTO D.R.

Os 5 Elementos e os 7 Chacras

MARIA JOÃO NEVES Doutorada em Filosofia Contemporânea Investigadora da Universidade Nova de Lisboa

J

á alguma vez se sentiu cansado apesar de dormir bem e de se alimentar de uma forma correcta? Esta pergunta tão banal, numa coluna de filosofia pode parecer estranha. Porém, nos tempos em que a filosofia não vivia escondida por trás dos muros da academia, é muito provável que um filósofo - fosse ele grego ou indiano - lhe respondesse o seguinte: trata-se de um desequilíbrio do elemento Terra. Todos nós conseguimos identificar os 5 elementos ao olharmos para o mundo, e também não é difícil reconhecermos em nós a sua presença. A ciência já nos mostrou, por exemplo, que o nosso corpo é constituído por cerca de 70% de água e que, entre os electrões que formam os átomos de tudo o que existe, há imenso espaço. O problema reside em que saber estas e muitas outras coisas - nunca foi tão fácil acumular conhecimento como nos dias de hoje - não nos parece servir de muito. Se temos uma dor um sofrimento, vamos à farmácia, compramos suplementos alimentares, analgésicos ou ansiolíticos, e não pensamos mais no assunto. Justamente, este não pensar é o nosso maior problema. A dor no corpo é sempre um alerta de que algo não está bem. A dor requer a nossa atenção para que possamos observar com acuidade o que se passa e, caso seja necessário, corrijamos o curso da nossa ação. Permitam-me que viaje para a Jó-

nia do séc. VI a.C e vos apresente Tales de Mileto: tradicionalmente considerado o mais antigo físico grego ou investigador da natureza. Tales observou que todo o alimento é húmido e que o embrião de qualquer ser também tem uma natureza húmida. Ora a água é o princípio de todas as coisas húmidas. Princípio é aqui entendido no sentido da archè aristotélica: matéria original constitutiva das coisas, que persiste como substrato e na qual elas se convertem ao perecerem. No mesmo século, Anaxímenes, também de Mileto, estabelece o ar como substância originadora e forma básica da matéria, que muda por condensação e rarefacção. O ar, ao tornar-se mais subtil transforma-se em fogo, ao tornar-se mais denso transforma-se em vento. Sempre num crescendo de densidade vai-se transformando em nuvem, depois em água, seguidamente em terra, e por fim em pedras. O ar está em movimento perpétuo e é através dele que a mudança acontece. Anaxímenes afirma também que o ar circunda o mundo inteiro e que a nossa alma - sendo sopro - nos mantém. Quando a alma-vida parte, o corpo desintegra-se. Já no séc. V a.C Heraclito de Éfeso considerou que era o fogo a forma arquetípica da matéria. O fogo não seria uma substância originária, ao modo de como Tales considerou ser a água e Anaxímenes o ar. O fogo é aqui entendido como sendo uma parte do cosmos, em pé de igualdade com a água e com a terra. O fogo cósmico, puro, foi identificado com o aither: substância ígnea e brilhante que enche o céu resplandecente e circunda o mundo. Este aither divino era também o lugar das almas. O

fogo era o centro motor das mudanças cosmológicas, mas o logos - neste caso entendido como proporção permaneceria o mesmo. Persistia uma regularidade na mudança. Segundo Heraclito a alma também é feita de fogo - e não um sopro, ou alento, como pensava Anaxímenes ela é um fragmento do fogo cósmico, uma centelha de estrela. Estas observações sobre o mundo exterior e das suas correspondências com o corpo humano orientaram o sistema educativo grego que, sob o lema “mente sã em corpo são”, contemplava não apenas o intelecto - através do ensino da matemática e das letras - mas também a ginástica para o corpo e a música para o espírito que se queria sensível à beleza, à harmonia e ao ritmo. Apesar de tudo isto, não se conhece na Antiguidade Clássica um sistema educativo orientado especificamente para o equilíbrio dos 5 elementos. O sábio Heraclito, que sofreu de hidropisia, foi capaz de identificar o seu problema como um excesso de água no organismo, mas não soube como utilizar o elemento fogo para se reequilibrar. Quando o desequilíbrio entre os elementos atinge grandes proporções origina-se a doença e, se se agrava, falecemos. O Livro Tibetano do Mortos explica, em detalhe, este processo de desintegração do corpo nos cinco elementos. Nos dias de hoje, prestar atenção aos 5 elementos será algo mais do que uma curiosidade? B.K.S. Iyengar (1918-2014), um dos mais respeitados mestres de Hatha Yoga (yoga físico) que o mundo já conheceu, considera o corpo humano como uma miniatura do universo. No seu livro Light on Yoga, explica o seguinte: “a palavra hatha é um

composto das sílabas ha, que significa sol, e tha, que significa lua. As energias solar e lunar fluem no nosso corpo a partir dos dois canais energéticos: a Pingala nadi, que tem origem na narina direita e corresponde ao canal solar e a Ida nadi, que tem origem na narina esquerda e corresponde ao canal lunar. Ambos canais se dirigem para a base da coluna vertebral. Entre elas existe um canal de fogo - Susuma nadi por onde flui a energia do sistema nervoso. Pingala e Ida intersectam Susuma em diversos pontos ao longo da coluna vertebral. Estas junções são denominadas chacras, ou rodas energéticas que regulam o nosso corpo e mente.” Cada um destes chacras está também relacionado com um elemento, com uma cor, com uma glândula, com um sentido e com uma nota musical. Por exemplo, Muladhara, o chacra da raiz, é de cor vermelha e corresponde ao elemento Terra - prithvi, Terra-Mãe - que se caracteriza pela rigidez, firmeza e solidez. Está localizado no períneo, entre os genitais e o ânus, e diz respeito aos ossos, músculos, tendões, ao sistema eliminatório, e ao sistema linfático. Corresponde também ao sentido do olfacto e à nota musical Dó. Este primeiro chacra diz respeito à nossa relação com a gravidade, com o chão, com as nossas raízes e consciência do corpo. Psicologicamente, é o chacra da estabilidade e segurança. Corresponde ao aspecto material da vida, à sobrevivência e conexão com o mundo e, por outro lado, é o chacra da relação com a mãe e com a mulher em geral. O sentimento de cansaço, a que nos referimos no princípio deste artigo, poderia sugerir a reflexão

sobre tudo aquilo que diz respeito ao primeiro chacra. Poderíamos perguntar-nos como está a nossa relação com o trabalho, com o dinheiro, com a mãe e com a mulher em geral. Estão todos estes aspectos em harmonia? Quando nos sentimos cansados isso pode derivar do facto de fazermos demasiadas coisas que não nos agradam, de levarmos uma vida que não nos nutre, como a Terra-Mãe deveria nutrir. O corpo mostra-nos, fala connosco, para que possamos corrigir o curso da acção. Contudo, normalmente reagimos tomando mais café, e deixando arrastar e agravar a situação. De acordo com a mitologia Hindu, toda a prática de yoga consiste em despertar a Kundalini, a serpente que vive enroscada em volta do falo de Xiva - deus criador do yoga. No nosso corpo a serpente repousa adormecida no primeiro chacra, na base da coluna vertebral. É preciso acordá-la para que a energia comece a fluir pelo canal energético principal - Susuma nadi - de chacra em chacra, até que Xiva se una com a sua esposa - a deusa Sakti - no sétimo chacra no topo da cabeça. O filósofo português José Gil, no seu livro Metamorfoses do Corpo, esclarece: “Sakti é o princípio de toda a energia cósmica activa, móbil, enquanto Xiva constitui o princípio ‘macho’ da potência, impassível e imóbil, ao qual corresponde a luminosidade da consciência transcendente. Unir Sakti, e Xiva, em nós é conseguir a Libertação, no grau supremo de consciência e de conhecimento.” No seu livro Variations Sauvages a pianista Hélène Grimaud afirma o seguinte: “O corpo condiciona o raciocínio. Desfazer-se dos hábitos quotidianos do corpo é dar-se a possibilidade de um outro modo de pensar.” É disto, precisamente, que se trata. A cada chacra correspondem posturas de yoga - asanas - e exercícios respiratórios específicos - pranayama. Com a utilização não apenas do tapete no solo, mas também do tecido suspenso, a prática de yoga relacionada com os 5 elementos intensifica-se de uma forma exponencial. É possível recriar movimentos aquáticos ou voadores com correcção e beleza. Pretende-se equilibrar os chacras, propiciando saúde física e mental, e religar a nossa existência particular com o cosmos universal. Café Filosófico: 18 de Agosto de 2022, às 18:30 No AP Maria Nova Lounge Hotel Inscrições: filosofiamjn@gmail.com *A autora não escreve segundo o acordo ortográfico


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MAS AFINAL O QUE É ISSO DA CULTURA?

O Algarve de Costa-a-Costa:

Conceição, Luz e Fuzeta FOTOS ANTÓNIO HOMEM CARDOSO | D.R.

PAULO LARCHER Jurista e escritor

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ão tenho dúvidas. Analisando num mapa o percurso do caminho de ferro de Vila Real de Santo António a Lagos, desenham-se claramente duas etapas que têm o seu início ou término em Faro. Até agora, eu e o Mestre Homem Cardoso andámos a explorar apenas uma delas, a que parte de Vila Real de Santo António e deambula preguiçosamente pelo litoral até finalmente repousar na cénica estação de Faro. Em mais de metade desse percurso o carril segue o desenho do cordão dunar que amansa o mar com as suas curvas indolentes. Nesse lento trajeto em que a costa marítima nunca fica muito longe das diversas estações e apeadeiros, e às vezes pertíssimo, surpreendemos por vezes um diálogo encantador entre o monstro de aço que nos transporta e as águas mansas da ria, como uma remake do famosíssimo filme, A Bela e o Monstro. Temos feito razoavelmente bem

o nosso trabalho. Eu tenho escrito umas coisas (ficar-me-ia mal qualificá-las…) e o António tem produzido dezenas de boas fotografias das quais, infelizmente, no espaço de uma crónica não cabem mais que duas ou três. Todavia, num apanhado do que fizemos até agora apercebemo-nos de que é injusto tentar descrever o Reino dos Algarves a partir dos locais comodamente servidos pela via férrea. Esse Algarve, regra geral, está contaminado pelo presente envenenado chamado turismo que ninguém se atreve a dispensar. Se calhar até poderíamos dizer que o verdadeiro Algarve, tão amado ao longo dos séculos por raças, credos e civilizações diferentes, terá que ser procurado mais longe do litoral, talvez no barrocal onde as ondas da serra talvez ainda escondam segredos milenares ou, ainda mais além, nas suas serras misteriosas. Em resumo, nesta primeira etapa visitámos à vol d’oiseau praticamente todas as estações de comboio, fazendo uma mancheia de comentários, todavia demasiado ancorados nas nossas subjetividades. Mas atenção!, mesmo o Algarve de que temos vindo a falar não é aquilo, é outra coisa qualquer, pois, como todos sabemos, é mais improvável descrever toda a vida com palavras do que esvaziar o oceano com um dedal. Para terminar a primeira metade da viagem, e muito contra os nossos hábitos, vamos falar de duas igrejas matriz, ou melhor, das respectivas fachadas, construídas na mesma época e que pela sua singeleza e antiguidade merecem ser referidas, mesmo que resumidamente. A primeira é a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Luz (de Tavira a partir de 2001) e datada de meados do século XVI. Apresenta um elegante portal maneirista com acrescentos barrocos posteriores. A Igreja tem

três pontos fortes: o primeiro tem a ver com a sua implantação num terreno desafogado, ajardinado, e que o é o ex-libris da vila. O segundo refere-se às dimensões das três naves cujas abóbadas correm à mesma altura, seguindo o modelo da igreja-salão o que a torna um exemplar único deste modelo arquitetónico no Algarve e só por isso merece uma visita. Finalmente, a harmoniosa e discreta porta manuelina, virada a Sul, e que surpreende pela sua discreta elegância os viajantes que por ali passam. Outro exemplar curioso é o da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, (de Tavira), cuja construção se iniciou também no século XVI em terrenos pertencentes à poderosa Ordem de Santiago, cujo escudo ainda encima a porta gótica, num desenho barroco assaz elegante de onde espreitam as vieiras, símbolos universais do apóstolo Tiago. A freguesia de Conceição, embora servida por um excelente apeadeiro da ferrovia algarvia, funciona como um arrabalde de Cabanas, uma espécie de grande dormitório, dado que toda a atividade turística é atraída pela beira-mar, pela doçura e encanto da Ria Formosa e das suas ilhas que nesta zona atinge um dos seus máximos, valorizada por um recente passeio pedonal, bastante criticado aliás, pelos comerciantes da zona, que perderam a visão direta da Ria, indiscutível fator de valorização dos seus estabelecimentos. O escriba confessa que passou aqui, ano após ano, as mais adoráveis férias da sua vida, pelo que as recorda agora com saudade. Passemos agora à Vila da Fuzeta que tem o raro privilégio de dispor

de duas! estações de comboio bem situadas e também de dispor de um parque de campismo na parte mais nobre da povoação o que, penso eu, deve atrair muita gente com vontade de banhos à mão de semear. Segundo Raúl Proença (1927), “O que Fuzeta é, sobretudo, é um centro piscatório. Estende-se a aldeia pelo declive suave da encosta, até á orla da praia […] A igreja matriz fica-lhe no ponto mais elevado. Na segunda feira in albis ocorre aqui uma vistosa festividade: a procissão da Senhora do Livramento, conduzida na antevéspera da sua capela da Luz de Tavira para a Fuzeta.”1 A procissão todavia não acabou nos dias de hoje, mas foi substituída por uma curiosa troca de Santas Senhoras entre Fuzeta e Livramento numa animada festa em que os pescadores carregam nos seus barcos os divinos tesouros. Mantém-se assim uma tradição ligada ao mar e à pesca e onde as embarcações tomam nomes femininos - Nélia; Cristina - ou de deuses - Neptuno ou são o arauto de verdades singelas do difícil ofício de existir - Faz-te à Vida; Vamos Vivendo. Oh! quão longe estão esses tempos das pescarias!… O que se pesca mais na Fuzeta é quartos, partes de casa ou mesmo casas, para alojar a população flutuante que, como uma vaga estival, submerge o litoral. A construção civil, em resposta a essa onda cíclica, é avassaladora, inestética e incongruente. Reina na Fuzeta a desarmonia só matizada pelo esplendor da ria e pelo estreito canal junto à marginal, pejado de embarcações que fazem imaginar campanhas a mares longínquos e piscosos.

Esses barcos - helàs - são agora mais utilizados não para pescar mas para transportar veraneantes sequiosos da areia branca das ilhas, da mornidão das águas e da mordida dourada que o Sol inflige aos corpos desnudados. Todavia, o espírito do lugar desta vila de antigas tradições, mas afogada pela maré imobiliária, ainda se pode ver representado no brasão da Vila, em que um barco oferece ao vento a sua vela quadrangular bem caçada. Bela e distante memória que, porém, não supre as necessidades atuais das gentes algarvias. Falta falar da estátua do pescador, trajado com os seus resguardos de alto-mar, e que, especado na praça urbana, oferece aos passantes apressados a imagem brônzea de um belo peixe carnudo e fresco. Pobre pescador! Que pensará ele, assim absorto, da sua estática missão? Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades... (1) Guia de Portugal, Biblioteca Nacional de Lisboa, 1927


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ESPAÇO ALFA

A Arte da Atração FOTO D.R.

VITOR MARTINS Membro da ALFA - Associação Livre Fotógrafos do Algarve*

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eflexões sobre a Arte da Atração como uma linguagem universal e as suas diversas manifestações no quotidiano. Diariamente enquanto navegamos o nosso mundo tomamos decisões que são influenciadas pela Arte da Atração expressada como um mecanismo transacional. Encontramos a influência da Arte da Atração em todas as formas de vida no nosso planeta. Falo de todos os organismos, plantas, animais, e do nosso mundo humano. Quando existe uma transação cujo resultado é positivo o sucesso desta transação depende da eficácia dessa atração. Flores usam forma, cor e cheiro para atrair insetos, outros animais podem usar plumagens, manifestações físicas e sons para efeitos de procriação.

Todavia, existem outros objetivos, por exemplo, jovens para garantir a sua sobrevivência, outros para obter comida ou segurança. Humanos usam cor, movimento e mensagens de várias formas para publicitar os vários aspetos da nossa vida, seja sexualidade, profissionalismo, segurança e eventualmente para ganho financeiro. Existem inúmeras estratégias, cada uma adaptada à sua audiência. Sendo um tópico de enorme importância decidi criar este grupo de imagens, onde procuro estimular curiosidade sobre o assunto e convidar a audiência a observar as diversas maneiras como a Arte da Atração se manifesta diariamente. (*) V Martins Photography. Fotógrafo profissional. Residência: Irvine, California, United States e Querença, Loulé. Especializado em imagens emocionais que se apoiam na abstração. Temas favoritos do seu trabalho: paisagem, botânica, vida selvagem, vida e ambientes urbanos.

ESPAÇO AGECAL

Migrações, questão cultural JORGE QUEIROZ Sociólogo, sócio da AGECAL

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igrações são movimentos populacionais que sempre existiram na história da humanidade. Ocorrem devido a guerras, procura de alimentos e de melhores condições de vida, com as alterações climáticas em curso prevê-se que milhões de pessoas tenham de se deslocar e abandonar os seus territórios de origem. É um problema novo, económico, mas sobretudo de gestão de recursos alimentares, habitação e reorganização social, mas também eminentemente cultural porque suscita relações e tensões provocadas por diferentes valores religiosos, formas de viver, de se alimentar ou vestir, de linguagens e manifestações culturais. Após três séculos de mobilidades intercontinentais, de colonizações

e esclavagismo, cerca de 40 milhões de pessoas entre 1840 e 1914 deixaram a Europa, dirigindo-se para as Américas fugindo à fome, foi uma das maiores migrações na história da humanidade. Nos EUA e Canadá, concepções religiosas de colonos ingleses e irlandeses expressaram um modelo de organização social suportado em reinterpretações da Bíblia, uma cultura hoje patente em movimentos político-religiosos neoconservadores que defendem o supremacismo étnico, exclusão de minorias, legalização e acesso a armas por civis. O cristianismo original não aprovava a usura, os juros e a supremacia do dinheiro como modelo de vida colectiva, as ideias defendidas por Jesus Cristo são nesses aspectos elucidativas. O capitalismo na sua fase ascensional e monopolista substituiu o modo de produção feudal, foi uma das causas do cisma religioso do século XVI, que levou à separação entre católicos e protestantes, com surgimento do luteranismo,

calvinismo, anglicanismo e outras correntes. Max Weber (1864-1920), alemão, economista, jurista e um dos fundadores da sociologia, desenvolveu no seu livro “Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” a explicação de como o ideário capitalista se transformou em valor ético-cultural e não é apenas um modelo económico. A componente cultural que se afirmou ao longo da revolução industrial e tecnológica, tem matriz anglo-saxónica ligada aos mercados, expressa-se por uma língua dominante, o inglês, é promovida pelas indústrias culturais do Norte, sobretudo musical, cinematográfica e de animação com substituição de festividades tradicionais por outras ligadas ao consumo massificado (halloween, noites brancas, dias comemorativos dos mais diversos temas,…). No plano das migrações o caso português é particular. Portugal possui uma cultura não homogénea, rece-

beu influências das populações que habitaram o território antes da fundação do Reino, sobretudo romanos, visigodos e muçulmanos, evoluiu com a expansão marítima e colonizações africanas, asiáticas e do Brasil, finalmente reflexo das novas migrações do século XX registou-se na primeira metade emigração para as Américas e na segunda metade para a Europa ocidental sobretudo para a Alemanha, França, Luxemburgo e Países Baixos. A lusofonia transcende a dimensão de Portugal, fez do português o quinto idioma no mundo, surgiu também uma cultura resultante da emigração, relacionada com o Pais e o exterior, baseada em laços afectivos com a aldeia natal, estabeleceram-se duplas nacionalidades, gerações de luso-descendentes contactam esporadicamente com o “País dos avós”. Após a entrada de Portugal na União Europeia em 1986 surgiu a partir das superestruturas políticas a ideia de “cultura europeia”, que não encontramos nas ideias e textos fun-

dadores. Com uma frágil dinâmica demográfica a Europa dos 27 necessita atrair mão de obra exterior para manter os padrões de desenvolvimento. Ao mesmo tempo crescem na UE movimentos nacionalistas, populistas e até xenófobos, com expressão eleitoral, que encontram eco em populações receosas de alterações quantitativas e de convivência com outras culturas. Portugal recebeu populações vindas de outros continentes, de acordo com o SEF em 2021 existiam 740 mil pessoas residentes (7% do total), sendo a comunidade brasileira a maior (209.072), seguida de Cabo Verde (35.913), Índia (30.995). Em 2022, com o conflito militar no Leste Europeu, haverá alterações significativas nos fluxos migratórios e no turismo. Valores culturais e ambientais estarão em breve no centro de inevitáveis mudanças globais. * O autor não escreve segundo o acordo ortográfico


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As Pessoas Invisíveis, de José Carlos Barros A intriga

José Carlos Barros foi o vencedor do Prémio LeYa 2021 PAULO SERRA Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

O autor e o prémio

C

om a chancela da LeYa, chegou recentemente às livrarias o romance As Pessoas Invisíveis, de José Carlos Barros, anunciado vencedor do Prémio LeYa 2021 em novembro do ano passado. Com o valor de 50 mil euros, o Prémio LeYa é o maior prémio literário para romances inéditos em língua portuguesa. O júri do prémio – constituído pelo poeta Manuel Alegre (presidente), a escritora angolana Ana Paula Tavares, a crítica literária Isabel Lucas, o professor José Carlos Seabra Pereira, o poeta Nuno Júdice, o jornalista Paulo Werneck e o professor Lourenço do Rosário – deliberou, por unanimidade, As Pessoas Invisíveis como vencedor entre os mais de 700 originais que concorreram a esta edição do prémio e dos quais apenas uns 14 foram selecionados para apresentação ao júri. O júri descreve este romance como “uma viagem por vários tempos da História recente de Portugal, desde a década de 40 do

FOTO AUGUSTO BRÁZIO / D.R.

século XX, narrada a partir de uma personagem ambígua, Xavier, que age como se tivesse um dom, ou como se precisasse de acreditar em ter um dom”. José Carlos Barros é licenciado em Arquitetura Paisagista pela Universidade de Évora. Transmontano, nascido em Boticas, vive e trabalha no Algarve, em Vila Nova de Cacela. Foi diretor do Parque Natural da Ria Formosa e da Reserva Natural do Sapal de Castro Marim e Vila Real de Santo António. Nas várias edições do Prémio LeYa, tem havido alguns casos, raros, em que o autor não é inédito, como aconteceu com o escritor moçambicano João Paulo Borges Coelho. Este é o terceiro romance do autor. José Carlos Barros já tinha sido finalista do Prémio LeYa em 2012, com Um Amigo para o Inverno, publicado pela Casa das Letras (e por nós apresentado há alguns meses). O Prazer e o Tédio, publicado em 2009 (e aparentemente esgotado), foi adaptado ao cinema por André Graça Gomes. Autor de vários livros de poesia – O Uso dos Venenos (2.ª edição, 2018); A Educação das Crianças (2020); Estação – Os Poemas do DN Jovem, 1984-1989 (2020); Penélope Escreve a Ulisses (2021) – começou a sua produção literária a publicar poemas no suplemento «Jovem» do Diário de Notícias nos anos 80.

As Pessoas Invisíveis, narrado na terceira pessoa, começa com um primeiro capítulo a que poderíamos chamar prólogo que de algum modo contradiz a advertência inicial configurada na Nota ao Autor. Embora esta nota garanta que “a presente ficção não se baseia em factos reais e não tem a ver com o massacre de Batepá nem com as ocorrências desse mês de fevereiro de 1953 em São Tomé e Príncipe”, páginas depois leremos como na cidade de Berlim, em 1980, é encontrado um caderno que relata a descoberta, no Vale das Freitas, aldeia em Trás-os-Montes, de uma possível jazida de ouro. Ironicamente, aquilo que devia ser o esquisso de um relatório afigura-se mais como um “diário poético” de “conteúdo inverosímil”. O autor preocupou-se mais com a descrição da paisagem bucólica, dos bosques, rios, ribeiras, vegetação, estrutura urbana dos aglomerados perdidos nas serras, e menos com os recursos geológicos de um “metal estratégico das fábricas de armamento do Terceiro Reich” (p. 11). De 1980 recuamos, no capítulo seguinte, a 1942 (relembre-se que decorre então a não tão distante Segunda Guerra Mundial), período em que se instala a confusão em Vale das Freitas, com a sofreguidão das concessões mineiras que se instalam na região e do caos que rompe a paisagem outrora pacata e um modo de vida rural que se começa a perder, com o escoamento da maior parte dos homens para a exploração do volfrâmio. É nesse ambiente que testemunhamos a improvável amizade de um engenheiro alemão e do jovem Xavier Sarmiento. A intriga centra-se, a partir de então, na figura de Xavier, um jovem que descobre ter o dom de curar e que cedo se deixa fascinar e depois corromper com a ideia do Poder. Até à página 120, o que constitui cerca de um terço do livro, acompanhamos a história ambígua do curandeiro e mágico Xavier, até este ser preso e depois seguir para a Ilha da Província, em África. Nesta primeira parte, a crítica tem considerado que o autor parece aproximar-se do realismo mágico, dando conta de um país rural, cheio de crendices, à procura de um milagre. Ressalve-se que o realismo mágico se pauta pela indeterminação entre o mundo natural e o sobrenatural, onde o maravilhoso acontece sem criar sobressalto ou espanto. Aquilo que acontece em torno de Xavier, no entanto, é quase sempre descrito de forma ambígua – e aqui reside um dos pontos fortes da escrita: “Não havia unanimidade quanto ao entendimento dos poderes de Xavier Sarmiento. As histórias que se contavam eram

de fábula e contradiziam-se.” (p. 135) A voz narrativa consegue a proeza de deixar o leitor às escuras relativamente à veracidade ou não dos poderes que Xavier reclama ter e teima em treinar: “Xavier sorria por dentro e imaginava a cara do homem se lhe explicasse que o poder está ao alcance de todos. Que, em boa verdade, qualquer pessoa podia curar ou levitar, ou presidir aos governos, ou fazer mover os objetos à distância, desde que acreditasse” (p. 101). O mesmo acontece com as “pessoas invisíveis” que dão nome ao romance, cuja invisibilidade mais do que sinal de oblívio significa proteção. Como se referiu, dá-se uma fuga de Xavier para África, depois de ter estado preso (a sua pena é ironicamente reduzida devido ao fascínio que os seus poderes exercem), mais especificamente para a Ilha da Província – nome naturalmente fictício, a condizer com a ficção do Império Colonial, agora chamado de Ultramar, de alterar a nomenclatura dos territórios ultramarinos, deixando de haver Colónias para passar a haver Províncias (p. 149), o que acontece mais ou menos nos anos 50 do século passado.

Romance venceu o Prémio LeYa entre os mais de 700 originais que concorreram

Note-se que com a mudança de cenário que acompanha a deslocação do protagonista, a sua figura torna-se também cada vez mais esbatida perante o leitor. Só ficamos a saber sobre Xavier face ao que os outros contam e evocam, conforme a sua sombra cresce enquanto um temido chefe das milícias. Como se indica na sinopse do livro, e esta é uma das poucas pistas de leitura de um livro tão original quanto desafiante, As Pessoas Invisíveis é um romance que reflete sobre a “ideia de Poder”. Se, na aldeia, o poder advém do dom de curar e de parecer até comungar do espírito e vontade anímica dos outros - nomeadamente mulheres -, na Província o protagonista move-se numa diferente esfera do poder, passando a ser o homem de con-

fiança do Governador e andando quase sempre camuflado, habitado pelo espírito do bosque, e uma vez mais rodeado de versões contraditórias relativas aos seus poderes.

Re-escrita Conforme Xavier parece perder o protagonismo, entra em cena o inspetor Álvaro Lince, filho de um velho amigo de Santa Comba Dão do doutor Salazar, incumbido de averiguar os “incríveis acontecimentos” daqueles “três dias de princípios de Fevereiro”, em que se deu um massacre. À semelhança do que acontecia com o caderno encontrado de que se fala no início do romance, também Álvaro tem em mãos recolher informação, com vista à redação de um relatório a enviar à Metrópole, mas sem saber como dar conta das várias atrocidades que descobre: campos de concentração; tortura na cadeira elétrica; celas improvisadas onde se morre por falta de ar; dos “desmandos” de Xavier (p. 193). Podemos inclusivamente ver esta narrativa como uma alegoria de um país pequeno, outrora rural e insulado, que com a desmesura do poder alcançado, aquando da expansão e da apropriação de novos territórios que o ultrapassavam em tamanho, perde o norte. A extraordinariedade dos acontecimentos é agora de outra ordem, como muitas vezes também acontece na ficção do realismo mágico, quando se dá conta do horror imposto por regimes totalitários. Este poderoso romance percorre assim livremente vários episódios da vida portuguesa ao longo de cinco décadas, terminando com os primeiros anos da democracia. Nessa digressão revisita e reescreve acontecimentos inevitavelmente abafados pelo discurso oficial histórico, uma outra forma de invisibilidade, portanto. O autor terá tomado conhecimento do Massacre de Batepá ao deparar-se com uns painéis numa visita a São Tomé e Príncipe. Nesse fevereiro de 1953 teriam morrido mais de mil pessoas. A mortandade destes nativos forros evidencia como o fim legal da escravatura precedeu, em várias dezenas de anos, a sua efetiva abolição. Um romance aparentemente fragmentário, que deixa a interpretação a cargo do leitor, impelindo-o a coligir os vários momentos de uma narrativa por vezes díspar. Entre os silêncios do livro fica o leitor encarregue de resgatar os seres que aqui vivem da sua invisibilidade, principalmente da sua pior forma: o esquecimento. Uniforme ao longo do romance é o trabalho sobre a linguagem, a riqueza de um vocabulário que não se atrapalha por ser oralizante, de uma magia telúrica que nada atrapalha, antes cadencia e enriquece as frases, denunciando o autor como poeta.


CULTURA.SUL

POSTAL 5 de agosto de 2022

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LETRAS & LEITURAS

A Ilha das Árvores Desaparecidas, de Elif Shafak “ilha verde”, famosa pelas suas densas florestas, e revela a história de um país dividido, com gregos e cristãos, outrora vizinhos, em lados opostos. Quando o exército turco entra em Varosha, todos os habitantes da cidade, mais de 39 mil pessoas, são obrigadas a fugir. Como se refere no texto, «ninguém se apaixona em plena guerra civil, quando se vive no meio da carnificina e rodeado de ódio por todos os lados» (p. 184), mas é exatamente isso que acontece com Kostas e Defne. Porque «o tempo arbóreo é equivalente ao tempo narrativo» (p. 60), em que uma árvore, tal como uma narrativa, não cresce em linhas direitas, mas curva-se e torce-se e bifurca-se, é pela voz da figueira que se desenterram os segredos de uma terra devastada por milhares de mortes, cujos corpos são abandonados em segredo. «Uma árvore é uma guardadora de memórias. Emaranhadas sob as nossas raízes e ocultas nos nossos troncos encontram-se as nervuras da História, as ruínas de guerras que ninguém venceu, os ossos dos desaparecidos.» (p. 229)

Elif Shafak é considerada uma das mais influentes e inspiradoras mulheres da atualidade FOTOS D.R.

A

Ilha das Árvores Desaparecidas, publicado pela Editorial Presença, traduzido por Maria de Fátima Carmo, é o mais recente romance de Elif Shafak. Autora turco-britânica multipremiada e aclamada pela crítica, conta já com 19 livros publicados, entre os quais 12 romances. A Ilha das Árvores Desaparecidas, finalista do Prémio Costa, é um belíssimo romance, de uma estranheza cativante, que agarra logo nas primeiras páginas e nos conta a história de uma família de duas perspetivas. A narrativa na terceira pessoa centra-se na deslocada Ada, cuja mãe faleceu, e que nunca conheceu a ilha de Chipre onde nasceram os seus pais. Alternadamente, acompanhamos a história de Ada, dos pais e de Chipre pela voz de uma figueira, uma Ficus carica, a crescer no jardim da sua casa, e nos revela o mundo secreto e fascinante das árvores e das improváveis ligações que estabelecem entre si e o mundo dos humanos. É a figueira que lança inclusivamente luz sobre alguns dos mistérios apresentados na narrativa. Quando Kostas, grego e cristão, e Defne, turca e muçulmana, saíram da ilha de Chipre, em 1974, trouxeram consigo um enxerto desta figueira, agora

plantada no terreno da sua casa. Na altura, Defne também já transportava consigo Ada, ainda que desconhecesse estar grávida. Anos depois, agora a viver em Londres, Kostas terá de enterrar a figueira para a proteger de um iminente tem-

poral. É também nesse período que Meryem, a irmã de Defne (nome que ressoa, sugestivamente, a figura mitológica de Dafne), afastada da irmã há anos, decide reatar relações com o cunhado, e a sobrinha que nunca conheceu, fazendo-lhes uma visita.

Ada fica incomodada com esta espampanante tia, ainda que se recuse a comprar as vistosas roupas que lhe enchem a mala, que parece só saber falar por provérbios. A narrativa recua então ao ano de 1974 na ilha de Chipre, outrora conhecida como a

“A Ilha das Árvores Desaparecidas” é o mais recente romance de Elif Shafak

A escritora conta já com 19 livros publicados, entre os quais 12 romances

Os livros de Elif Shafak, muitos deles bestsellers, estão traduzidos em 55 línguas. Doutorada em Ciência Política, deu aulas em várias universidades na Turquia, nos Estados Unidos da América e no Reino Unido, nomeadamente em Oxford, onde é honorary fellow. É vice-presidente da Royal Society of Literature e foi considerada, pela BBC, uma das mais influentes e inspiradoras mulheres da atualidade. Defensora dos direitos das mulheres, LGBTQ+ e da liberdade de expressão, foi distinguida com a medalha de Chevalier de l’Ordre des Arts et des Lettres. Em Portugal, a obra da autora está publicada pela Editorial Presença. Foi recentemente reeditado o livro A bastarda de Istambul.


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