Pode a arte ajudar-nos a lembrar o passado para melhorar o futuro?
SAÚL NEVES DE JESUS
Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; http://saul2017.wixsite.com/artes
Até 22 de janeiro de 2023, a Cordoaria Nacional, em Lisboa, contará com uma exposição do fotó grafo Steve McCurry, um dos fotógrafos contemporâneos mais consagrados, tendo sido já distinguido com vários prémios, incluindo quatro World Press Photo, bem como orde nado Cavaleiro da Ordem das Artes e Letras pelo Governo francês. Embora acabe por ser uma exposi ção retrospetiva, “ICONS” não tem um percurso definido e as 100 ima gens escolhidas não estão dispostas cronologicamente, misturando-se as que foram captadas com máqui nas analógicas e digitais. O destaque vai todo para as imagens, com a sala quase toda a negro e o foco nas foto grafias, impressas no estúdio de Steve McCurry e expostas sem molduras. A mostra inclui ainda um ecrã, onde são mostrados vídeos sobre o trabalho do fotógrafo.
No percurso desenhado para “ICONS”, os visitantes poderão viajar pelo Afega nistão, Índia, Sudeste Asiático, África, Cuba, Estados Unidos, Brasil ou Itália, tendo sempre como ponto de partida o elemento humano. Cada uma das suas imagens retrata uma forma de inter pretar o presente, com os olhos postos no futuro, num mundo complexo de experiências e emoções que ligam o espectador a diferentes realidades e formas de entender a vida.
Uma das fotografias mais reconheci das de Steve McCurry é o retrato de uma menina afegã, Sharbat Gula, ti rado no Afeganistão em 1984 e que foi capa da National Geographic no ano seguinte.
Segundo Steve McCurry, “temos de nos lembrar do passado, lembrar mo-nos do que passámos (...) Ter um
registo de tudo isto é importante. Es perançosamente, em algum momento no futuro, faremos melhor. É neste, e noutros casos, que o registo é impor tante, para se fazer melhor no futuro”. Assim, a imagem visual pode sinteti zar questões psicossociais complexas e atuais e pode ajudar a promover a necessária reflexão sobre as mesmas, ajudando a construir um futuro me lhor, a partir do passado e do presente. Conforme já referimos num artigo anterior, a verdadeira “alma” da foto grafia está em interpretar a realidade e não em copiá-la. O resultado da arte fotográfica não está na máquina ou tecnologia utilizada, mas sim no olhar do fotógrafo que, de forma subjetiva, perceciona e captura um determinado momento, tornando-o eterno.
Tendo nascido em Filadélfia (EUA), Steve McCurry já fotografou um pou co por todo o mundo, do Afeganistão à Índia, do Sudeste Asiático a África, passando por Cuba, Estados Unidos, Brasil ou Itália, mas há um local com o qual tem “uma ligação especial”: “Tenho uma ligação especial com o Tibete e a cultura tibetana, as pessoas, as paisagens, acho que é um sítio muito especial. É um sítio profundo em ter mos de espiritualidade, da paisagem, os Himalaias. E as pessoas são tão ami gáveis, os mosteiros, a vida monástica é inspiradora. Há uma solidão em estar lá nas montanhas. É um lugar muito tranquilo”.
Quando falamos em Tibete, natural mente lembramo-nos de Dalai Lama, Nobel da Paz em 1989, e dos seus pen samentos sobre paz e espiritualidade.
Por exemplo, são suas as frases: “Ape nas um pequeno pensamento positivo pela manhã pode mudar todo o seu dia”; “Só existem dois dias no ano em que não podemos fazer nada. Um se chama ontem e o outro amanhã”; “A compaixão tem pouco valor se per manece uma ideia; ela deve tornar-se nossa atitude em relação aos outros, refletida em todos os nossos pensa mentos e ações”.
E estes pensamentos adquirem um
significado especial neste mês de dezembro, em que celebramos o Na tal, quadra associada à paz entre as pessoas, procurando despertar senti mentos mais positivos em relação aos outros e aumentar a frequência de situações de perdão, gratidão ou elogio. A paz deveria existir sempre, sendo um estado constante, mas infeliz mente não é isso que acontece, pois verificam-se muitos conflitos todos os dias, quer entre pessoas, quer entre países. Assim sendo, é neces sário haver períodos que permitam pelo menos atenuar esses conflitos, sendo esbatidas as diferenças, ou o que divide, e acentuadas as seme lhanças, ou o que pode aproximar. Desejo a todos um Feliz Natal e faço votos para que 2023 seja um ano de paz, entre países, entre pessoas, com os animais, com o ambiente e, em particular, consigo próprio!
Ficha técnica
Direção GORDA, Associação Sócio-Cultural
Henrique Dias Freire
pelas secções:
Saúl Neves de Jesus
(In)esperados Maria Luísa Francisco •
AGECAL Jorge Queiroz •
ALFA Raúl Coelho •
Dia-a-dia Maria João Neves • Letras e Literatura Paulo Serra • Mas afinal o que é isso da cultura? Paulo Larcher Colaborador desta edição Mauro Rodrigues e-mail redação: geralcultura.sul@gmail.com publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve FB https://www.facebook.com/ Cultura.Sulpostaldoalgarve
DIÁLOGOS (IN)ESPERADOS
O POSTAL DO DIA com Luís Osório
O último “diálogo (in)esperado” deste ano teve como interlocutor o jornalista e escritor Luís Osório. Foi um diálogo através de videochamada pelo telemóvel, em que falámos sobre a sua crónica diária, sobejamente conhecida.
MARIA LUÍSA FRANCISCO Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa luisa.algarve@gmail.comComo não poderia deixar de ser, falámos sobre o seu mais recente livro, Ficheiros Se cretos, que deu origem a um espectáculo ao vivo e ainda algumas referências ao Algarve. Luís Osório dirigiu jornais e uma estação de rádio. Imaginou progra mas de televisão, encenou uma peça de teatro, participou em comissões governamentais, coordenou a comu nicação política de uma campanha presidencial e é consultor empre sarial. Comentou política, realizou documentários e foi premiado como jornalista e criativo. Publicou cerca de uma dezena de livros.
P Como lida com a gestão da escrita de crónicas diárias, com temas tão diversos, e com um tão elevado nú mero de seguidores?
R As crónicas também me surpreen dem todos os dias! Sei que tenho mais impacto do que alguma vez tive. Inicialmente eram só publicadas no Facebook, depois passaram também para a TSF. Creio que o segredo para a popularidade dos “postais do dia” está na imprevisibilidade dos temas. Não tenho dogmas em relação aos temas, interessa-me a diversidade do mundo. Hoje posso escrever sobre a grande política e amanhã sobre a Cristina Ferreira. Talvez seja esse o segredo, esse e a tentativa de escrever
sempre para alguém em concreto, tento que cada crónica seja ouvida ou lida por pessoas que acreditem que escrevo para elas, só para elas. Gosto muito dessa ideia de exclusividade, de uma relação quase íntima entre quem escreve e quem lê
P O que o levou a escrever estas crónicas diárias?
R Comecei a publicá-las apenas na minha página de Facebook, só depois na TSF. A ideia surgiu como modo de manter a comunicação com quem me seguia. Interessava-me poder escrever sobre o mundo, sobre a sociedade, so bre o poder e as suas relações, sobre a condição humana. Interessava-me tentar ser cronista do quotidiano, não da actividade política ou da atualidade pura e dura. Estou numa fase da vida em que já não me interessa provar que sou inteligente, culto ou influente. Pre feri construir um espaço directo de relação com quem me lê.
P Sente-se mais jornalista ou escritor?
R Mesmo quando era jornalista nunca me senti um jornalista puro. Aliás, para dizer a verdade, nunca me senti coisa nenhuma em exclusivo. Sou um acumulador de experiências, um comunicador. Sempre fiz o que me apeteceu. Sou alguém que ten ta comunicar com o mundo e tenta compreender a diversidade criando pontes de entendimento entre as pessoas.
Vivemos um tempo de polariza ção em que as pessoas só lêem o que vai ao encontro daquilo que já pensam. Aceito bem que pen sem diferente de mim, procuro quem pensa diferente de mim.
P Como começou a ideia de levar o conteúdo do seu mais recente livro para o palco?
R Rui Couceiro, o meu editor, é o úni co culpado. Para ele era muito claro que “Ficheiros Secretos” deveria ser um monólogo, as histórias do livro são muito fortes e, na sua opinião, seria um excelente pretexto para acentuar, ou reinventar, a tradição oral. As histórias que conto ajudam a definir o país que somos - um Portugal feito de persona gens, desencontros e paradoxos. Um país que tem este Sol e que inventou o fado. Que partiu à conquista do mundo, mas cujos Velhos do Restelo ficaram para dizer mal dos que partiram. Um país sempre no fio da navalha, capaz de ser generoso e invejoso no mesmo dia. Sim, não deixa de ser um risco. Mas vai ao encontro do que eu sou, gosto de mergulhar sem rede, de arriscar.
P Que percepção tem do Algarve e que ligação tem a esta região?
R Há vários "algarves", não apenas um único. Mas os algarvios têm uma identidade muito própria. São únicos no seu pragmatismo, no seu orgulho, na capacidade de desejarem mais para a sua vida sem abdicarem de ter os pés no chão. Até numa certa arrogância. É um lugar muito adaptado à economia turística. Isso afastou-os um pouco de outros caminhos possíveis, especiali zaram-se na arte de oferecer a quem vem, um bocadinho de paraíso. Tenho uma ligação com Tavira. Os meus filhos mais velhos têm uma costela algar via – os seus avós maternos, e todos os seus descendentes, nasceram em Tavira. O seu bisavô era um médico benemérito, tem aliás um largo com o seu nome. Obrigada Luís por esta partilha para um outro Postal, o Postal do Algarve, que através do seu suplemento Cul tura.Sul marca a diferença e leva o Algarve mais longe.
*A autora não escreve segundo o acordo ortográfico
Natal português, mediterrânico
JORGE QUEIROZ Sociólogo. Sócio da AGECAL“Quem tem a candeia acesa Rabanadas pão e vinho novo Matava a fome à pobreza” “Natal dos simples”, canção de José Afonso.
de temperaturas amenas, menor humidade e algum frio. As regiões polares têm invernos longos e tem peraturas extremamente baixas.
A natureza determina os diferentes comportamentos das comunidades humanas, por essa razão a diver sidade cultural é tão importante como a biodiversidade.
sar do aparente antagonismo .
As festividades cíclicas, como sugere o nome, estão relacionadas com os ciclos da natureza tendo como marcadores temporais os equinócios e solstícios, relacionados com a inclinação e in cidência dos raios solares nas várias zonas do planeta.
Regiões existem, equatoriais e tro picais, cujas variações se resumem a duas grandes épocas, de calor in tenso e chuvas abundantes, outra
O clima mediterrânico semelhante ao das regiões subtropicais, define quatro estações do ano, os trabalhos agrícolas, sementeiras e colheitas, também os produtos e festividades, os pratos celebram e constituem a cozinha festiva. A alimentação é profundamente cultural.
As festas do solstício de Inverno têm origem pagã, as civilizações mediterrânicas celebram-nas, du rante o Império Romano eram as Saturnalias que duravam até 25 de Dezembro. Tiveram continui dade nas religiões construídas na bacia mediterrânica, judaísmo, cristianismo e islamismo, com muito em comum entre elas ape
O Natal é a principal festividade do cristianismo, pré-anunciado em vá rios rituais que antecedem a data convencionada para o nascimento de Jesus Cristo. No caso do Algarve em diversas zonas se “monta o alta rinho” dedicado ao Deus-Menino, colocam-se em vasos os grãos que se transformarão em “searinhas”, se estas florescerem viçosas haverá bom ano e abundância de produ tos. Em muitos lugares fazem-se presépios, algumas instituições e artistas conseguem nesta época do ano, criar verdadeiras obras de arte popular.
Em aldeias portuguesas o lenho ou “madeiro” de Natal é recolhido pelos jovens da terra a 7 de Dezembro, a sua colocação no adro da Igreja ou na praça pública faz parte dos rituais pré-natalícios, as lenhas co meçam a arder dois dias antes do Natal, ficam para aquecer os que delas se aproximam até ao dia dos Reis. Também se assam alimentos,
enchidos, castanhas… No nordeste transmontano acontecem as “festas dos rapazes”, os “caretos”.
O jejum integra as tradições me diterrânicas sendo a ceia do Natal cristão realizada com a família após a missa do galo na noite de 24 de Dezembro. A cozinha do período de Natal privilegia as sopas quentes, canjas, bacalhau, couves, legumes e batatas cozidas, polvo e aves de capoeira, a tradição do peru assado foi introduzida no século XVI com as viagens às Américas. Existe grande variedade de doçaria de Natal (raba nadas, filhoses, bolo rei, morgado, aletria…).
A transição entre o Natal e o Dia de Reis (6 de Janeiro) é celebrada com as “Janeiras”, os “reiseiros” no nor te, a tradição algarvia neste período são “charolas”, grupos musicais que percorrem ruas e praças. A relação equilibrada entre o ho mem e a natureza é a base que estrutura as festividades cíclicas, as mensagens simbólicas e celebrações
colectivas. Estas têm vindo a ser quebradas e substituídas ao longo do século XX, consequência de alte rações demográficas, mobilidades, industrialização e urbanização, mas sobretudo pelos valores introduzi dos por um modelo económico que estimula estilos de vida consumistas em grande escala, pondo em causa a sustentabilidade dos territórios. Convivemos hoje com uma panóplia de “eventos” artificiais, alguns hipo teticamente natalícios, inventados ou importados, que correspondem a objectivos e interesses meramente mercantis. Aparecem sob a capa de modernidade evoluída, mas pouco têm a ver com o uso correcto dos re cursos naturais, com o património espiritual das comunidades. A situação de emergência ambiental irá obrigar à mudança de paradig ma, ao regresso aos valores do humanismo e de respeito pelas for ças determinantes da natureza
*O autor não escreve segundo o acordo ortográfico
MENSAGEM DE NATAL
Nesta que é a quadra comemorativa do Nascimento de Jesus Cristo e, por conseguinte, da celebração da vida e do amor, venho em nome do Execu tivo da União das Freguesias de Tavira (Santa Maria e Santiago) junto dos nossos fregueses, trabalhadores, assembleia de freguesia, de todos os que nos visitam ou escolheram Tavira para viver ou trabalhar, desejar que os vossos corações sejam inundados pelo amor e as vossas vidas iluminadas por uma intensa luz.
Uma palavra muito especial para os que sofrem, assim como um pedido de proteção divina para os que não têm no amor, na tolerância e no respeito ao próximo o seu lema de vida.
Quero ainda incluir nesta mensagem todos aqueles que, independentemen te da religião que professam, são atualmente parte da nossa comunidade.
Bom Natal e um Ano Novo Feliz para todas as famílias.
O Algarve de Costa-a-Costa: A sombra de um homem projetada na sua Obra
FOTOS ANTÓNIO HOMEM CARDOSO | D.R. Texto: PAULO LARCHER Jurista e escritorApós a crónica anterior em que visitámos Loulé à vol d’oiseau, era su posto termos iniciado a nossa rota para Barla vento deixando para trás todas as estações e apeadeiros ferroviários da banda do Sotavento, que até ao momento temos tomado como fio condutor das nossas peregrinações algarvianas. Perdoar-me-ão os leito res, mas estou tentado em fazer uma última menção a Vila Real de Santo António pois, de todas as povoações, vilas e cidades que visitámos, esta foi a única que deve a sua existência à vontade soberana de um único ho mem - Sebastião José de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras e Marquês de Pombal - que impôs ao fluxo da história uma férrea determinação com resultados que ainda hoje des lumbram, sobretudo do ponto de vista da eficiência (e tão necessitados estamos nós em Portugal de eficiên cias similares…).
turismo que na atualidade sustenta este e muitos outros concelhos.
Vila Real foi, portanto, a expressão de um pensamento e de uma von tade de resgatar Portugal através do desenvolvimento da economia, principal garante do bem estar das pessoas. A Vila deveu a sua pujança económica a este pensamento ori ginal que permitiu constituir uma massa crítica nas áreas das pescas e indústrias associadas. Terminados os ciclos da sardinha e do atum, os vila-realenses viram-se confron tados com um vazio que só seria colmatado com o crescimento do
Há uma “pré-história” de Vila Real relacionada com um povoado, Santo António de Arenilha, situada na foz do rio Guadiana, uma comunida de de pescadores. Foi fundada nos primórdios do séc. XVI mas desapa receu num cataclismo natural uns cem anos mais tarde. Nos finais do século XVIII o Mar quês de Pombal mandou erigir uma nova povoação, um pouco a Norte da antiga Arenilha. A construção enquadrava-se na reorganização das “Reais Pescarias” no Algarveconcretizada no reinado de D. José - que se insere num esforço planeado de substituição da importação de géneros pela sua produção nacio nal. Acresce que em vários lugares do Algarve mas especialmente na zona de Monte Gordo, se instalara um concorrido centro piscatório uti lizado sobretudo por estrangeiros, pelo qual se esvaía - em impostos por cobrar - uma quantidade enor me de recursos. Talvez o primeiro sinal da intenção do Marquês em obviar a esta sangria do Erário Real, tenha sido a criação em janeiro de 1773 da Companhia Ge ral das Pescarias Reais do Reino do Algarve. Nesse mesmo ano man da construir a Vila e um mês depois (janeiro de 1774) envia uma planta da nova Vila exe cutada pela Casa do Risco (responsável pela reconstrução de Lisboa) sob a orientação do ar quiteto Reinaldo Manuel dos Santos. A primeira pedra é lançada em 17 de março de 1774 e a Vila é inaugurada dois anos depois, no dia 13 de maio.
Construção de uma cidade em pou co mais de dois anos!? É obra.
E não era uma cidade qualquer. Era na verdade uma fábrica de fazer di nheiro. Como diz Gonçalves (2009)(1): “Vila Real de Santo António é, pelo que se sabe, a primeira fundação urbana criada para desempenhar uma função económica específica, ou seja, terá sido o primeiro caso pensado e concretizado daquilo que, nos dias de hoje, se designaria como cidade-fábrica.”
Temos então que a frontaria pala ciana da Baixa Mar esconde um esmerado saber fazer, quer no que respeita aos aspectos construtivos, quer no que concerne às funciona lidades instaladas.
A construção relâmpago da Vila terá sido também uma manifestação de poderio em relação a Espanha. Na verdade, o Guadiana é uma frontei ra natural que tinha nas fortalezas de Castro Marim o seu principal núcleo de defesa. A nova Vila não iria acrescentar nada em termos defensivos. Aliás, a estratégia cons trutiva, o plano urbano que lhe foi determinado, apresentava ao país vizinho uma frente indefesa em ter mos militares mas prestigiante em termos arquitetónicos.
Se o coração da Vila Real era a atual Praça Marquês de Pombal (antiga Praça Real), a sua cabeça era a se quência de edifícios paralelos ao Guadiana, a Rua da Rainha (atual Avenida da República mas conheci da pelos locais como Baixa-Mar). Se sacarmos da régua e do esquadro, constatamos que o núcleo inicial tinha seis ruas perpendiculares ao rio e cinco paralelas a este. A frente da Rua da Rainha oferecia face a Espanha uma frente de quase meio quilómetro, que do outro lado do rio se deveria assemelhar à frontaria de um vasto palácio, provocando assim o grande vizinho com a nossa (su posta) grandeza.
“Planeada como um todo orgânico, es truturado em forma regular, Vila Real de Santo António tem uma fachada composta de 6 blocos de 240 palmos e um de 250 palmos correspondentes aos 7 quarteirões da primeira fila, se parados por 6 ruas de 40 palmos, que no seu conjunto se apresenta como se fora a fachada de um palácio.”(2)
Esta iniciativa - única na históriatinha muito de bluf, pois na verdade ambos os países estavam mergulha dos numa imensa crise económica(3) e o que queriam era arrecadar para si os proveitos das pescas e da agricultura
Temos então a cabeça imponente de um grande corpo. Onde estava o co ração que o animava? Pois na Praça, já o dissemos, definida por quatro torreões ortogonais (ou não seja o quatro o número do material) e pelo obelisco, um centro que irradia luz, conhecimento, poder esclarecido ou, como reza a placa:
“El-Rei D. José I, Augusto Invicto Pio, […]Restaurador […] Do Commer cio da Agricultura. Reparador Da Glória e Felicidade Pública. […]” No topo do obelisco temos a cruz e sob ela a coroa real que repousa sobre a esfera armilar, símbolo do
império, tudo assente numa coluna onde se enrolam em espiral ascen dente os caules de pequenas flores de três pétalas. Não consigo deixar de associar essas plantas que ser penteiam ao redor da coluna, com o caduceu e as duas serpentes que representam a polaridade universal. Essa mesma polaridade é igualmen te visível nas cores preta e branca do pavimento radiante da Praça. Esses raios - para além da sua evidente conotação maçónica - representam o regime político do absolutismo esclarecido, pois na verdade, relacio nar o poder absoluto dos monarcas com o espírito das Luzes era a moda na Europa daquela época, moda em
que se inseria a visão do Marquês de Pombal, artífice musculado de um projecto nacional de desenvol vimento e de progresso que - helàs - poucos anos haveria de durar.
(1) GONÇALVES, Adelino, “Vila Real de Santo António, Planeamento de porme nor e salvaguarda em desenvolvimento” in Monumentos 30: Vila Real de Santo António, A “Cidade Ideal”, DEZ. 2009.
(2) CORREIA, 1984, p. 145
(3) Havia-se esgotado há muito o ouro do Brasil. No tempo do Senhor D. João V o Convento de Mafra fora o último sobressalto de grandeza.
O corpo nu da mulher sempre será sempre um campo de batalha
e do misticismo para racionalida de, modernismo e progressividade. Muitos artistas aproveitaram esta época para se libertarem e expri mirem como queriam, antes desta época os artistas estavam proibidos de representarem nudez e apenas pintavam quadros sobre temas e personagens sobrenaturais ou fic tícios, mas, é precisamente durante esta época de grande transformação que foram criadas muitas obras de referência onde a nudez tinha um papel central, mas houve uma peça essencial em particular que marca uma clara inovação e referência no mundo da arte da nudez.
O Nascimento de Vénus é uma pintura icónica de Sandro Botti celli em que a mulher nua, uma deusa, está ao centro dentro de uma concha, representando a beleza fe minina, a fertilidade, o amor divino, espiritualidade e na minha opinião claramente mais moderna, liberdade.
e das feridas da sociedade, o corpo nu da Mulher foi escolhido para ser um campo de batalha das nossas aspira ções e das nossas angústias.
OSeinfield uma vez disse: “O corpo da Mulher é uma obra de Arte. O corpo do homem é sim plesmente utilitário, só serve para nos levar de um lado pa ra o outro, é como se fosse um jipe!”
Mas porquê esta distinção, princi palmente dentro do círculo da arte, a mulher sempre teve um destaque mais central do que o homem. Va mos descobrir algumas das razões que levaram a nudez da mulher a ser tão relevante para a sociedade e para os artistas.
No geral, as pessoas sempre opina ram cada um há sua maneira sobre a nudez ao longo dos tempos. E a nudez tem evoluído bastante nas so ciedades mais modernas e liberais, mas existem ainda muitos locais no Mundo em que a nudez é ainda vista como algo proibitivo e inaceitável, principalmente a da mulher. Hoje em dia, a nudez está presente em grande parte da cultura no geral, na pintura, fotografia, cinema, teatro e até mesmo em lugares públicos. É vista como um barómetro impor tante e integral na vida social das pessoas, na cultura e na nossa iden tidade, mas existem ainda muitas vozes que se opõem ou são tímidas mesmo que a aceitem como fruto da liberdade de expressão. Desde os tempos pré-históricos até às primei ras civilizações que a nudez quase sempre fez parte dos desenhos e pin turas e pelas mais diversas razões,
essa representação sempre explo rou diversos sentidos e contextos, sejam eles alegóricos, históricos ou religiosos. Mas também eram usa dos simplesmente como decoração nas paredes ou arquitetura.
Hoje em dia, são três as grandes categorias em que a nudez é repre sentada: pornografia, artística e informativa (ciência), muitos artis tas usam a nudez, principalmente da mulher, para demonstrar a sua beleza intrínseca, mas também para imprimir outros significados mais ambíguos e até mesmo negativos, como por exemplo lutas sociais, ati vismo e outros problemas sérios na sociedade, o corpo nu da mulher tor nou-se essencialmente num campo de batalha, uma linha, uma divisão entre o moral e o imoral, transfor mou-se numa barreira imaginária que é geralmente usada como ar ma de arremesso contra sistemas totalitários e opressivos, com uma visão estreita dos direitos da liber dade de expressão. O corpo nu da mulher é usado igualmente como uma arma para reivindicar direitos das próprias mulheres no lugar da sociedade e o controlo sobre o seu próprio corpo, o corpo da mulher é visto essencialmente como o futuro da Humanidade e que deve estar so bre escrutínio constante e é matéria de importância extrema. O corpo nu da Mulher tornou-se num símbolo, num mártir e num ideal que provoca alguma pressão até sobre o género feminino, que se vê no meio de todas estas correntes e mentalidades. Mas o mais engraçado é que o corpo do Homem é exatamente igual ao da Mulher e de igual importância, porque um não pode sobreviver sem
o outro, e esteve igualmente presen te na arte, em igual patamar com a Mulher, na altura do Renascentismo nos meados do século XIV, lem bram-se certamente da icónica obra de arte de Leonardo da Vinci “O Homem Vitruviano” que simboliza um ideal renascentista humanista e clássico. Esta época marcou defini tivamente uma divisão clara entre a Idade Média. Por esta altura acon teceram grandes transformações evidentes na cultura, sociedade, economia, política, religião, mas definitivamente nas artes, filosofia e ciências, que se caracterizaram na transição do feudalismo para o ca pitalismo, do dogmatismo religioso
Estas representações como já disse anteriormente vão-se alterando com o passar dos tempos, muitos artistas hoje em dia, tentam representar o corpo nu da mulher para comunicar uma diversidade de ideias e emoções, além de verem o corpo como algo úni co e transversal que une os diferentes povos em redor do Mundo, também podem ser fruto de outros valores e simbolismos, como por exemplo, inocência, pureza, feminismo, força, diferença, esperança, união, para não falar dos sentimentos negativos, do outro reverso da medalha…, é como se o corpo da mulher, já não seja apenas um símbolo de desejo carnal para os artistas, é um escape, uma palete infi nita de representação dos problemas
Esta área da fotografia é bastante popular entre os fotógrafos, porque é especialmente difícil, porque afinal quer-se representar bem a mulher e o seu corpo, transmitindo os seus ideais de beleza, sob o nosso olhar artístico, além de se poder dar lugar à experimentação de outros e variados temas mais complexos ou abstrac tos. O fotógrafo nestes casos tem a oportunidade de aprender bastante sobre, por exemplo, iluminação, seja natural ou artificial, mas também a arte da pose e o uso de objetos parti culares e/ou o próprio lugar em si. É absolutamente necessário discutir os contornos deste género de sessão fo tográfica antes, para que não hajam surpresas, uma vez que este é sempre um trabalho que exige sempre bas tante da parte do fotógrafo como da modelo. Mas após ganharem cora gem os receios desvanecem-se e as modelos apreciam o resultado final. Este género de fotografia é uma luta enorme da liberdade de expressão e muitas das vezes as pessoas não sabem bem o que têm, e é frágil, isto porque o tempo e a sociedade estão constantemente em mutação e por vezes esquecemo-nos que a censura pode rapidamente instalar-se e os direitos e liberdades que se perdem muitas das vezes infiltram-se como raízes e dificilmente regressam ao es tágio que estavam antes. Expor-nos ao Mundo como viemos é mostrar a verdade intrínseca da nossa Hu manidade, a nudez é sinónimo de liberdade.
A Aldeia das Almas Desaparecidas:
A Floresta do Avesso, Parte I, de Richard Zimler
parece pouco provável Isaaque ter me mórias tão nítidas, ele próprio alerta o leitor que “tudo o que aconteceu na quela manhã desfila perante os meus olhos como uma série de imagens e diálogos vívidos” porque a avó Flor, que assiste ao seu parto, lhas recontou muitas vezes.
Doutorado
AAldeia das Almas Desapa recidas, com o subtítulo A Floresta do Avesso, cons titui o primeiro volume de uma saga histórica de Richard Zimler, publicada pela Porto Editora. Com tradução de Daniela Car valhal Garcia, esta é a primeira parte de um díptico que narra novas aventu ras e desventuras da família Zarco. A publicação do segundo volume desta saga, intitulado Aquilo que Procura mos Está sempre à Nossa Procura, já
está anunciada para o primeiro trimes tre de 2023.
Retomando a família Zarco, cujos membros têm sido protagonistas de alguns dos seus romances, em épo cas e lugares distintos, Richard Zimler centra agora a ação em 1662, em Cas telo Rodrigo – com saltos pontuais a povoações vizinhas, como Figueira de Castelo Rodrigo e Escalhão. Sub tilmente um leitor informado pode ainda encontrar neste romance refe rências a outras das personagens dos romances anteriores do autor, como é o caso de Berequias Zarco.
A narrativa, contada na primeira pes soa, conta-nos a história de Isaaque Zarco, justamente a partir do mo mento do seu nascimento. Até porque
Ao longo das primeiras 100 páginas de uma obra de peso, com cerca de 650 páginas, Isaaque revive assim em pormenor a sua infância desde o nas cimento. Acompanhamos, num ritmo pausado, numa belíssima prosa, a his tória da infância e da família deste menino puro. Talvez por isso mesmo a avó Flor apregoe, logo quando assis te ao parto e o ajuda a vir ao mundo, que Isaaque é um menino curioso e tão teimoso quanto especial. Partilha mos os seus constantes momentos de descoberta e maravilhamento perante a beleza do mundo e a bondade das pessoas que naturalmente o acolhem, num cenário idílico como é Castelo Rodrigo, com casas assentes no dorso de penedos que mais parecem o dorso de um dragão adormecido. Redesco brimos o universo pelos seus olhos de criança, ainda que por vezes haja pro lepses que nos despertam para o facto de estarmos a ler as palavras de um eu adulto, que coloca os acontecimentos em retrospetiva e indicia que tudo irá mudar. Essa nota de melancolia omi nosa torna-se mais forte à medida que se adensa a intriga. O paraíso dessa infância fica fortemente ameaçado quando, de modo misterioso, uma série de pessoas começam a desapa recer, a começar por Lena, a melhor amiga de Isaaque. O ambiente narrativo criado por Zi mler é de tal forma mágico que por
vezes se lê este romance histórico co mo se fosse uma saga de fantasia. Tal acontece nomeadamente nos primei ros capítulos, que giram em torno da avó Flor, velha parteira e curandeira castelhana, uma força da natureza pronta a desafiar o mundo com o seu conhecimento provavelmente ances tral e as suas tradições, com mezinhas, curas e passes de magia.
o período aqui abordado – a segunda metade do século XVII. Com recurso a nomes reais, datas de prisão e outros detalhes sobre os aldeãos levados pela Inquisição, Zimler apresenta um tra balho exaustivo de pesquisa que torna este romance uma obra magistral e um testemunho inigualável.
O desconcerto da situação desta aldeia onde começam a desaparecer almas é reforçado pela incompreensão espe lhada na perspetiva de uma criança inocente que nem compreende bem até que ponto a sua família segue práticas religiosas distintas do resto da comu nidade, que devem ser mantidas em segredo. É também dessa forma que o autor nos introduz num fascinante novo mundo, o do judaísmo pratica do em segredo, com as suas práticas e mitologia. O perigoso mundo dos cris tãos-novos, obrigados a manter as suas práticas em segredo, desde o reinado de D. Manuel I, e que vivem no fio da navalha, sujeitos a denúncias pelos vi zinhos e aprisionamentos.
Richard Zimler nasceu em 1956 em Roslyn Heights, um subúrbio de Nova Iorque. Fez um bacharelato em Reli gião Comparada na Duke University e um mestrado em Jornalismo na Stanford University. Trabalhou como jornalista durante oito anos, princi palmente na região de São Francisco.
Contudo, assim nos alerta o autor numa Nota Histórica no início de A Aldeia das Almas Desaparecidas, Richard Zimler inspira-se em factos históricos. Este romance explora os efeitos devastadores da intolerância religiosa na aldeia de Castelo Rodrigo e nas povoações adjacentes durante
Em 1990 foi viver para o Porto, on de lecionou Jornalismo, primeiro na Escola Superior de Jornalismo e depois na Universidade do Porto.
Tem atualmente dupla nacionalida de, americana e portuguesa. Desde 1996, publicou doze romances, uma coletânea de contos e seis livros para crianças. A sua obra encontra-se tra duzida para 23 línguas.
Café Filosófico. O som do pensamento, de Maria
Café Filosófico. O som do pensa mento, de Maria João Neves, foi agora publicado pela Se reia Editora. A apresentação do livro será dia 16 de dezem bro, no AP Maria Nova Lounge Hotel (Lobby Bar), em Tavira, pelas 20:00. Este livro é uma seleção dos artigos publicados pela autora no Caderno de Artes Cultura.Sul entre 2015 e 2022.
O prefácio é da autoria de Adriana Freire Nogueira, que declara como “Somos uns privilegiados, no Algar ve, por podermos participar nos Cafés Filosóficos promovidos, há vários anos, por Maria João Neves. Porque esta modalidade de prática filosófica,
iniciada na última década do séc. XX (mas com inspiração na antiguidade), não é comum em Portugal.” (pág. 2) Podemos ainda fazer eco das pala vras de Adriana Freire Nogueira quando afirma que os textos de Ma ria João Neves, “agora reunidos nesta seleção, são artigos despretensiosos, dirigidos a um público abrangente, onde se percebe o propósito de levar o leitor a questionar, a argumentar, a querer saber mais.” (pág. 2)
Na Introdução, assinada pelo Profes sor Doutor Jon Borowicz, podemos ler como o primeiro Café Filosófico (café -philo), no Café des Phares em Paris, foi estabelecido em 1992 pelo filósofo fran
cês Marc Sautet: “Democrático, mas rigoroso, o café-philo surgiu para pro porcionar às pessoas a oportunidade de considerar ideias sérias num espírito de solidariedade intelectual. Hoje os cafés filosóficos podem ser encontrados em todo o mundo, existindo uma enorme variedade de abordagens que reflectem a diversidade cultural. O que une esses esforços é a paixão pela filosofia. Dada a formidável dificuldade de pensar em conjunto, os participantes dos cafés filo sóficos cultivam a capacidade de ouvir e formular os seus pensamentos de forma cuidadosa.” (pp. 9-10)
A autora do livro apresenta os seus 3 pilares: o pensamento de “razão poé
À Procura da Manhã Clara, de Ana Cristina Silva
tivesse nascido. Em qualquer dos casos, para fugir aos valores rí gidos da sua educação, em vez de uma personalidade, desen volvi uma índole de oposição. Sei apenas que continuo a gos tar do sonho que me arrastou até ti. Continuas enterrado no meu espírito como uma inesperada aventura, embora as minhas lembranças de ti sejam feitas de minúsculos fragmentos que têm dificuldade em juntar-se numa visão que faça sentido. Nada dis so importa agora; há muito que o nosso amor deixou de ter expres são terrena. Em breve, também eu serei apenas o espírito destas palavras e da minha existência restará somente o enigma das suas teias.»
ÀProcura da Manhã Clara , de Ana Cristina Silva, é o segundo romance da autora publica do com a chancela Bertrand Editora. Depois de Bela, bio grafia ficcionada de Florbela Espanca, Ana Cristina Silva vol ta a combinar realidade e ficção para recontar a história de uma figura que, nos últimos tempos, tem sido também redescober ta, noutros livros, assim como, mais recentemente, numa série de televisão. Ressalve-se
portanto que este romance é completamente independente e não deve ser confundido com outras criações.
A portuguesa Annie Silva Pais, filha do último diretor da PIDE, é uma jovem que abandonou tudo pela revolução cubana. «Não sei até hoje o que foste ver dadeiramente na minha vida. Chego a pensar que conheço muito pouco de mim própria, daí as razões de ter sido tão mis teriosa para os outros. A minha mãe sempre desejou que eu fosse outra pessoa, ou mesmo que não
Diz-nos a protagonista, no Pró logo, que ao contrário da mãe que escrevia todas as triviali dades numa agenda, Annie nunca escreveu diários nem descreveu em agendas os seus actos. Mas a certa altura, em criança, começou a redigir car tas como forma de desabafar os seus segredos e emoções. Em adulta, terá começado a guar dar as suas cartas numa caixa de sapatos. E é agora, quando sente a morte a rondar, que desenterra as cartas que, de alguma forma, ajudam a pon tuar a narrativa que se segue. À Procura da Manhã Clara alterna assim cartas confes sionais, mas nunca enviadas, pontualmente escritas por Annie à mãe, a amantes, a ami gas, com uma narrativa, que recua um pouco relativamente às missivas, contada na terceira pessoa, por um narrador omnis
ciente. O tom narrativo é ligeiro, quase coloquial, conforme des fia os acontecimentos, quase em jeito cinematográfico: “No final de fevereiro, condu ziu-a num daqueles grandes carros americanos ao serviço do Estado a um apartamento. O prédio era relativamente novo, construído a meio da década de cinquenta, e ficava no bairro Ve dado, junto ao cemitério chinês. As varandas eram paralelo gramas ao comprido, fazendo lembrar o mar, o espaço era pequeno (…) mas representava o início de uma vida.” (p. 130) A narrativa arranca na Fi gueira da Foz, em 1958, com o momento em que Annie, adolescente, começa a eviden ciar-se pela sua beleza, numa foto publicada no Diário de No tícias, em calções. A beleza e irreverência serão um constan te motivo de transtorno para D. Nita Silva Pais (sempre as sim designada, ironicamente, pela própria filha, bem como ao longo da narrativa). A ten são e a discórdia que dividem mãe e filha são aliás centrais ao romance, e servem ainda como símbolo de uma luta in tergeracional, assim como de um conflito de classes; D. Nita representa uma burguesia vã e fútil, ao passo que Annie se empenha na luta de classes. Ao longo da sua juventude, acompanharemos os vários percalços de Annie, com alguns namorados. É também pelos olhos dos seus enamorados estrangeiros que Annie ganha noção, ou confirmação, das impressões de Portugal, pela
pobreza, a imundice das casas, a tristeza nos olhos das mulhe res, o número de mendigos (p. 33). O pai era então director dos Serviços de Fiscalização das Actividades Económicas, um simpatizante de Hitler, que passava os dias num gabi nete “a servir a pátria” (p. 53) e bastante susceptível às críticas que lhe fizessem do país. Por volta dos 25 anos, depois de um grande desgosto, Annie casa -se, impulsivamente, com um diplomata suiço, na esperança de poder fugir a um Portugal “demasiado cinzento” (p. 22).
dedicar à revolução cubana. Com o passar dos anos, Annie destaca-se pelo seu trabalho co mo tradutora e intérprete, assim como pela devoção à causa. Vive igualmente com grande liberdade a sua vida sentimental, dando -nos conta de uma considerável galeria de amantes. Torna-se um membro de confiança da equipa de Fidel Castro, à qual pertenceu até morrer, e apenas regressou a Portugal em 1975, quando o pai, Armando Silva Pais, último dire tor da PIDE, é preso na sequência da Revolução do 25 de Abril.
É também nessa segunda parte do livro que a narrativa se torna mais envolvente, ao contrapor a viragem política de Portugal, com o fim do fascismo, os ventos de mudança que varrem o país, e a comparação com Cuba.
Ao regressar ao seu país, Annie vem ainda incumbida de uma missão: agir, de certo modo, como espia, enviando relatórios para o governo cubano do que por aqui se passava, nomeadamente du rante a instabilidade de 1975.
O seu sonho concretiza-se, de forma inimaginável, quando acompanha a viagem do mari do na sua colocação em Cuba. Aí, apaixonar-se-á por Che, uma paixão que tem tanto de fantasiosa como de intensa, e deixa a sua antiga vida para se
Ana Cristina Silva nasceu em Lisboa e é professora no ISPA - Instituto Universitário de Ciên cias Psicológicas, Sociais e da Vida na área de Aquisições Pre coces da Linguagem Escrita, Ortografia e Produção Textual. Autora de quinze romances e de um livro de contos, foi três ve zes finalista do Prémio Literário Fernando Namora (2011, 2012 e 2013), que venceu em 2017 com o romance A Noite Não é Eter na. Recebeu também o Prémio Literário Urbano Tavares Ro drigues pelo romance O Rei do Monte Brasil, em 2012.
João Neves
tica de María Zambrano” (pág. 15); o budismo e a prática regular de medi tação desde há mais de uma década; e o seu trabalho como instrutora de yo ga vinyasa flow, desde 2012, e depois de yoga aéreo, profissão que exerce a par da sua investigação filosófica. Por isso, nestes vários ensaios, a auto ra demonstra uma sólida formação académica em filosofia e artes, e simul taneamente oferece-nos cafés filosóficos tão variados quanto a sua experiência, formação e apetências. Como afirma Jon Borowicz, “Os textos deste volume refletem a rica diversidade de experiên cias e interesses desta filósofa dedicada à prática filosófica.” (pág. 10)
Num dos seus ensaios, provocadoramen te intitulado «Os estóicos praticavam mindfulness?», Maria João Neves alerta -nos como este aparente ecletismo não é propriamente novo: “Somos herdeiros de distintas escolas filosóficas e algumas delas, para espanto de muitos, incluem exercícios espirituais.” (pág. 46)
Estas dissertações são igualmente imbuídas de um certo sincretismo, fazendo reviver a tradição e a histó ria da filosofia, à luz dos nossos dias, por exemplo, quando se passa do caos algarvio dos meses de Verão para os ginásios dos jovens gregos, das dietas radicais e milagrosas para a ginástica da mente e do corpo. Não se pense,
contudo, que estes são textos ligeiros. Leve é, na verdade, a forma como a autora consegue tratar temas sérios. Acresce que, muitas vezes, a ensaísta não advoga certezas ou arroga conhe cimento (não obstante as referências variadas à literatura e às artes). Antes opta por tecer as suas reflexões em torno de profusas questões (isto é, in terrogações retóricas) que interpelam o leitor, como podemos ver em, por exemplo, «Sobre o Amor»: “Diz-se da paixão que é irresistível. Será assim realmente? Será a paixão uma droga que coloca o indivíduo à sua mercê, perdendo o seu livre-arbítrio? Por esse motivo tudo se justifica? Por esta razão
tudo se desculpa?” (pág. 70)
Café Filosófico resulta de uma anto logia de cerca de 70 breves textos. Estes repartem-se mais ou menos livremente por afinidades temáticas em sete secções, intituladas «Corpo e Mente», «Amor e Prazer», «Inquie tudes», «Pandemia», «Bem Viver», «Arte» e «Nós & Outros».
Maria João Neves é doutorada em fi losofia contemporânea (2002) com uma tese sobre o pensamento de Ma ría Zambrano. Única neste campo por aliar o treino fenomenológico a um co nhecimento profundo das disciplinas do corpo, é igualmente instrutora de yoga e praticante de meditação.
A canção da alma
MARIA JOÃO NEVES Doutorada em Filosofia Contemporânea Investigadora da Universidade Nova de LisboaApareceu nas redes sociais uma publicação sobre a tribo Himba, da Na míbia, que provocou muita controvérsia. A organização Full Fact concluiu que a tradição a que a dita publicação se refere não existe na tribo Himba tra tando-se, portanto, de um post falso. Porém, sendo real ou imaginada, não mais consegui parar de pensar na história ali partilhada. Contava -se que, para este povo, a data de nascimento de uma criança não coincide com o dia em que a mãe a dá à luz, nem com o dia em que se calcula ter sido concebida. O nascimento de uma criança cor responderia ao momento em que a futura progenitora ouve pela pri meira vez a canção da alma do filho que virá a gerar dentro de si. A escuta desta canção não surgiria espontaneamente, mas seria fruto do desejo de conceber da mulher Himba, que teria de actuar nesse sentido. O primeiro passo consisti ria em sentar-se à sombra de uma árvore e descansar. Só se levantaria dali quando ouvisse dentro de si a música da criança que iria gerar. Uma vez ciente dessa melodia a mãe iria ter com o homem, futuro pai da criança, e ensinar-lhe-ia essa canção. Durante o acto conceptivo, ambos cantariam esta canção para convidar o futuro bebé a nascer. Durante a gravidez, a gestante ensinaria a canção às parteiras da tribo e às mulheres mais velhas da aldeia que, quando o bebé nasces se, a cantariam para o receber. À medida que a criança crescesse, a sua canção iria sendo conhecida por mais elementos da tribo. Se a crian ça se magoasse, cantar-lha-iam. Se o/a jovem fizesse algo extraordiná rio, toda a tribo entoaria a canção da sua alma em sinal de homenagem. No casamento, as canções de am bos noivos seriam cantadas em conjunto.
Incrivelmente, se algum elemento desta tribo cometesse algum crime, ou actuasse de forma considerada errada, não se lhe prescreveria uma punição. Pelo contrário, esta pes soa seria colocada no centro de um círculo e toda a tribo cantaria a sua canção, por forma a recordar-lhe quem é. Os Himba acreditariam que ao reconhecermos a música da nossa alma, jamais sentimos o desejo de prejudicar outrem Uma vez no leito de morte, toda
a tribo se juntaria para entoar ao moribundo a sua canção uma úl tima vez. ***
Esta história trouxe-me imediata mente à memória um outro texto ficcional que li, há muitos anos atrás, intitulado A condenação pitagórica de Aristóteles, da autoria de María Zambrano. Nele, a filósofa con ta-nos, em não mais de página e meia, as peripécias com que se de para Aristóteles quando, ao subir “às mais altas esferas”, encontra os pitagóricos à sua espera. Sem expli cações e ante a sua perplexidade, entregam-lhe umas partituras ru dimentares e uma lira e deixam-no só. O ilustre filósofo aplica-se então com afinco, mas sem grande talento, à lira e às partituras, mas o tempo passava, passava, e ninguém o vinha buscar. É que a música é a aritmética inconsciente dos números da alma e só quando Aristóteles encontrasse, e não teoricamente, os números da sua alma, quando os fizesse soar, se levantaria dali Para os pitagóricos, é o número que dá forma e expressão à estrutura da realidade, de tal modo que a ver dadeira sabedoria consistiria em perceber os números, ou em identifi car o tecido de ritmos de que estaria composto o universo.
Recordemos que também Platão, no Fédon, nos conta como Sócrates, enquanto aguardava na prisão o dia destinado ao cumprimento da sua sentença de morte, compôs um hino a Apolo e colocou em verso algumas fábulas de Esopo. Sócrates sempre tinha pensado que a filosofia era a mais excelente forma de música, mas ante a aproximação da morte, e a insistência de um sonho para que compusera música, resolveu obedecer.
Na antiga Grécia coexistiam duas tradições musicais, uma baseada no mito de Orfeu, que deu origem aos cultos órficos, e outra dionisíaca a que correspondem os rituais rea lizados em honra do deus Dioniso. Orfeu toca uma lira – justamente, Aristóteles recebe dos pitagóricos uma lira – e canta ou recita belos poemas. Em Orfeu a palavra está presente. Dioniso, pelo contrário, é um músico puramente instrumen tal, tocador de flauta cujos sons são de tal forma inebriantes, que os corpos não lhe resistem, sendo o seu culto realizado em forma de dança. Tanto Orfeu como Dioniso ressaltam o poder mágico da músi ca, a sua capacidade para subverter as leis naturais, para reconciliar princípios antagónicos através do encantamento que gera nos que a escutam/dançam. Em ambos os ca sos, a música actua pela via sensitiva
do prazer, que enfeitiça os ouvintes/ bailarinos, os quais, dominados por um poder superior, a seguem. Or feu é sempre representado serena e contidamente; não é por acaso que a palavra faz parte da sua arte – a música com palavra é música com logos, música racionalizada. Quan do a música aparece associada ao conhecimento, trata-se de uma mú sica que obedece a regras rígidas e que pouco possui de improvisação, o instrumento escolhido é quase sempre a lira apolínea. Pelo contrá rio, Dioniso é o deus da embriaguez, do frenesim e da desmedida, dirige os coros das bacantes que cantam e dançam ao som da sua flauta, que tem a capacidade de pôr em movimento as forças primogénitas da natureza, originando compor tamentos orgiásticos. A flauta dionisíaca produz demasiados sons e conduz à loucura e à desmedida. Superando a rivalidade entre Orfeu e Dioniso, os principais conceitos musicais dos pitagóricos, que in fluenciam grandemente a filosofia vindoura, são os seguintes: cosmos, harmonia e psicagogia. Ainda que de forma breve, vejamos em que consiste cada um deles. Os pitagóricos supunham que todos os seres eram, em essência, consti tuídos por números, tendo chegado a esta conclusão pela observação de uma regularidade matemática em fenómenos como a acústica, que ge neralizaram a todas as outras coisas. Convencidos de que o universo está constituído harmoniosamente, os pitagóricos chamaram-lhe cosmos, que se pode traduzir por ordem Desta forma, a ordem, a regulari dade, a simetria, enfim, todas as categorias subordinadas ao número, passaram também a ser constituin tes fundamentais da estética antiga: a beleza só era encontrada quando se conjugavam estes elementos har moniosamente Seguindo este mesmo raciocínio, os pitagóricos consideravam que a alma humana, apesar de composta por elementos muito diferentes, ou mesmo opostos, era harmonia. A harmonia, numa primeira acepção, consiste num equilíbrio de forças opostas. Na afinação da lira, por exemplo, está presente essa tensão entre contrários regida por uma proporção numérica: as cordas emitem sons harmoniosos quando o seu comprimento corresponde a certas proporções numéricas; por exemplo, metade produz a oitava, dois terços a quinta. Para conhecer a alma haveria, então, que encontrar as proporções numéricas em que se baseia a sua harmonia.
Certamente, María Zambrano teria presente esta ideia quando escreveu
a história ficcional a que fazemos referência acima. Entregando-lhe uma lira para as mãos, Aristóteles é condenado pelos pitagóricos a per manecer no sítio em que se encontra até encontrar o número/proporção da sua alma e a expressá-lo em ter mos musicais. Dito de outro modo, não pertencendo a uma tribo Himba que lhe recordasse a canção da sua alma, Aristóteles teria de a encon trar sozinho.
A psicagogia constitui, talvez, o elemento mais inovador da filoso fia pitagórica e, simultaneamente, aquele que mais consequências pro voca. Os pitagóricos verificaram que tendo duas liras, e fazendo soar uma delas, a outra responde, como se de um eco se tratasse, ao som produzi do pela primeira. Desta observação concluíram que a música possui um poder muito superior ao das res tantes artes, que consiste em poder actuar sobre a alma, melhorando -a ou corrompendo-a. Também se deram conta de que a música, tal como a dança, afecta não somente os que as praticam, mas também e com bastante intensidade, os que apenas ouvem ou vêem.
Mais tarde, Platão extrai deste poder psicagógico da música um julgamen to ético: música boa, que suscita a
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elevação do espírito, e música má, que despertaria o que de mais irra cional existe no ser humano. Daqui para a actual musicoterapia, é só um passo.
Esta ideia de tomar a alma como um instrumento musical, sugere que ca da um de nós emite uma sonoridade, que será harmoniosa se estamos afi nados; o contrário ocorrendo se não o estamos. A alma afinada e de ouvi do treinado, tenderia a rodear-se de outras almas igualmente afinadas e a escolher circunstâncias favoráveis à harmonia. O contrário ocorreria se não conhecemos/escutamos a música da nossa alma: viveríamos de forma desafinada.
Seja fantasia ou realidade, talvez valesse a pena que cada um de nós experimentasse sentar-se sossega damente à sombra de uma árvore para tentar descobrir a canção da sua alma..
Café Filosófico | 16 Dezembro | 18.30
AP Maria Nova Lounge Hotel, Tavira Inscrições: filosofiamjn@gmail.com Seguido do lançamento do livro Ca féFilosófico.OSomdoPensamento de Maria João Neves, às 20:00.
*A autora não escreve segundo o acordo ortográfico