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SAÚL NEVES DE JESUS
Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; http://saul2017.wixsite.com/artes
Oúltimo artigo foi dedicado ao tema “Como tem evoluído a abordagem da figura humana nas artes visuais?” e verificámos que, neste âmbito, o corpo da mulher tem sido o principal tema ao longo da história de arte, pelo que este artigo é dedicado especificamente a este tópico.
Desde as primeiras figuras humanas, que remontam a várias dezenas de milhares de anos antes de Cristo, em particular a Vénus de Galgenberg e a Vénus de Willendorf, até à atualidade, a mulher tem-se mantido como principal objeto de inspiração artística.
Mesmo no Renascimento, embora o corpo do homem também comece a ser representado por alguns artistas, nomeadamente Leonardo Da Vinci, com o desenho “Homem virtuoso” (1490), e Miguel Ângelo, com a escultura “David” (1501-04), o corpo da mulher continuou a ser o principal objeto de inspiração artística, como foi o caso da escultura “Nascimento de Vénus”, de Sandro Botticelli (1485), em que a imagem da pureza e alguma vergonha feminina era evidente.
SEGUNDA
TERCEIRA
À ESQUERDA
FOTOS D.R.
Dentro desta abordagem do corpo feminino, o tema “3 Graças” tem sido recorrente ao longo dos tempos. Da mitologia grega até à arte contemporânea estas três figuras personificam os ideais de beleza feminina correspondentes às diferentes épocas e artistas.
Às “Graças”, consideradas deusas do amor, charme e fertilidade, era atribuído o poder de conferir aos artistas e poetas a habilidade para criar o belo.
Nas primeiras representações plásticas, as Graças apareciam vestidas, mas mais tarde foram representadas como jovens nuas, de mãos dadas. Foi especialmente durante a Renascença que este tema se tornou recorrente na pintura, ocorrendo materializações a partir de obras anteriores. Foi o caso da
pintura a óleo sobre cobre feita a partir da gravura de Agostino Carracci. Este tema foi também expresso por Rafael, por Rubens, por Delaunay, entre outros. Recentemente, em 2022, Pedro Cabrita Reis reinterpretou o tema “3 Graças”, através de 3 esculturas gigantes que foram expostas em Paris. Dentro do tema do corpo feminino têm ocorrido outras obras de artistas que se influenciaram ao longo do tempo. Por exemplo, a “Vênus de Urbino”, de Ticiano (1538), terá sido baseada na “Vênus Adormecida” (1510), de Giorgione, e é possivelmente a inspiração para “Olympia”, de Manet (1863). Ao longo da história, o corpo da mulher tem sido representado como símbolo de pureza, mas também de desejo, com algum erotismo mais ou menos explicito, como é o caso da pintura “O almoço na relva”, de Edouard Monet (1863), em que aparecem dois homens vestidos a conversar e uma mulher despida a olhar para o espetador, como que a envolve-lo ou a desafiá-lo. Esta abordagem da mulher como objeto de desejo sexual tem-se mantido até aos nossos dias, como expressa a pintura “Vivienne Westwood”, de Juergen Teller (2013). Neste âmbito, uma pintura que também se pode destacar foi feita por François Boucher, em 1752, intitulada “Louise O’Murphy”. Conta a história que, ao ver este quadro, o Rei Luís XV, da França, se apaixonou pela modelo, uma garota de 14 anos, tendo esta sido sua amante. A pintura “A Grande Odalisca”, de Jean-Auguste Ingres (1814) é outra obra recheada de evidente erotismo, sendo considerada um nu provocador. Mas esta abordagem do corpo da mulher nas obras de arte tem vindo a ser objeto de alguma contestação. Nesse sentido, as Guerrilla Girls, que se definem como “Gorilas justiceiras no mundo da arte”, decidiram dar uma cabeça de macaco à Odalisca de Ingres, tendo produzido o trabalho intitulado “Do women have to be naked to get into the Met Museum?” (“As mulheres têm de estar nuas para entrar no Museu Met?”) (1989). Esta era uma referência ao Metropolitan Museum, em Nova
York. Na altura, era referido que menos de 5% das obras expostas no museu eram de mulheres, enquanto 85% dos nus eram femininos. Numa iniciativa com propósito semelhante ao das Guerrilla Girls, Hannah Wilke havia criticado a tradição do nu de mulheres na arte na sua série fotográfica “SOS Starification Object Series” (1974). As imagens representam o corpo feminino marcado por objetos, que funcionam como uma alegoria do peso do olhar para o corpo feminino exposto. O objetivo da artista foi demonstrar a dor da mulher por ser contemplada apenas como mero objeto de desejo.
Assim, o corpo da mulher tem inspirado diferentes artistas ao longo da história de arte, sendo distintas as abordagens usadas, desde um símbolo de pureza, beleza e fertilidade, até um mero objeto erótico..
Ficha técnica
Direção GORDA, Associação Sócio-Cultural
Editor Henrique Dias Freire
Responsáveis pelas secções:
• Artes Visuais Saúl Neves de Jesus
• Café Filosófico Maria João Neves
• Bibliotecofilia Maria Luísa Francisco
• Império Júdice Fialho Luís de Menezes
• Letras e Literatura Paulo Serra
• Mas afinal o que é isso da cultura?
Paulo Larcher
• Os Dias Claros Jorge Queiroz
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Doutorada em Filosofia Contemporânea Investigadora da Universidade Nova de Lisboa
Chegará em breve o 8 de Março - Dia Internacional da Mulher - criado para que celebremos o feminino, nos congratulemos com os progressos feitos no sentido da igualdade de direitos mas, sobretudo, nos consciencializemos do muito que ainda há a fazer para acabar com a discriminação que grassa, sobretudo em países não democráticos.
Infelizmente, este é normalmente o dia em que mais me envergonho das mulheres. Saem em bandos pela noite, exibindo a suposta feminilidade de forma grotesca, como se de Carnaval se tratasse. Pisam e falam ruidosas e estapafúrdias, como se a liberdade fosse sinónimo de descontrolo e falta de gosto.
Pergunto-me: será que tanto estardalhaço esconde algo mais profundo? Tratar-se-á de gritos de insatisfação por vidas esvaziadas de sentido?
Será este o dia catártico, de uma forjada exibição de força que contrabalança um ano inteiro de frustrações e desalento? Se assim for, a noite de desvario servirá apenas para perpetuar tristes existências alienadas. Depois, estas supostas mulheres livres, provavelmente regressam às suas rotinas quem sabe se de obediência ou até de sujeição.
Devido ao comportamento descontrolado que exibem nesta noite estas mulheres são apelidadas de “selvagens”. O termo tem aqui um forte sentido pejorativo. Em Mulheres que correm com Lobos, a psicóloga americana de origem mexicana
Clarissa Pinkola Estés clarifica o sentido original desta palavra que significa “viver uma vida natural na qual a criatura tem integridade inata e barreiras saudáveis”.
Indo ainda mais longe, Clarissa afirma que o binómio mulher selvagem cria uma metáfora originária que faz com que as mulheres recordem quem são e o que
são. Aponta para uma força fundamental sem a qual as mulheres não conseguem viver: a energia da Mulher Loba. Clarissa afirma que, não importa sob que cultura é que uma mulher vive, ela percebe o binómio mulher selvagem intuitivamente.
“Quando as mulheres ouvem estas palavras, uma memória muito muito antiga é agitada e trazida de volta à vida. É a memória do nosso absoluto, inegável e irrevogável parentesco com o feminino selvagem, um relacionamento que pode ter ficado fantasmagórico por ter sido negligenciado, enterrado por demasiada domesticação, drenado pela cultura circundante ou já não compreendido. Podemos ter esquecido os seus nomes, podemos não responder quando ela chama o nosso, mas nos nossos ossos conhecemo-la, ansiamos por ela; sabemos que ela [a Mulher Loba] nos pertence e nós a ela.”
A justaposição da mulher com este animal em particular deve-se ao facto de, no seu estado saudável, partilharem certas características psíquicas: “sentidos aguçados, espírito lúdico, e uma elevada capacidade de devoção.”
Hélène Grimaud, a talentosa pianista francesa que em 1999 criou o Wolf Conservation Center em South Salem, (Nova York, E.UA.) para a preservação destes animais, considera que talvez seja devido a esta afinidade que lobos e mulheres têm sido caçados e perseguidos, inspirando terror quanto mais aptos e inteligentes. No seu livro Variations Sauvages pode ler-se: “uma mesma violência predadora, vinda de um mal entendido, exerce-se contra os lobos e contra as mulheres. Sereias ou feiticeiras, elas foram punidas devido à sua relação primitiva, selvagem, essencial para com a natureza. (...) Algumas foram queimadas, outras banidas. Outras ainda, quando a sua sombra corre sob a lua, estendem-se e uivam como uma loba. São as que riem e amam sem constrangimentos, dão à luz e criam, alegram-se com
suas formas e com o sangue quente que escapa dos seus corpos; e conhecem instintivamente as virtudes de cada erva e o veneno dos frutos.” Segundo Clarissa, a vida selvagem e a mulher selvagem estão ambas em vias de extinção. Esta pode acontecer pela aniquilação completa do indivíduo ou pela sua manutenção no mundo, mas com uma existência horrivelmente reduzida, devido à perda de contacto com o nosso instinto e com a nossa intuição. Quando isto acontece entramos numa existência semi-destruída e os poderes que são naturais ao feminino não conseguem desenvolver-se. A mulher foi domesticada. Clarissa esclarece: “Quando se lhe corta a fonte natural a mulher é higienizada, e os seus instintos e ciclos naturais são perdidos, subsumidos pela cultura, pelo intelecto, ou pelo ego. A separação da natureza selvagem faz com que a personalidade da mulher se torne magra, espectral.”
Eis aqui alguns sintomas desta perda de conexão com a nossa natureza selvagem:
- Sentir-se seca, cansada, frágil, deprimida, confusa, amordaçada;
- Sentir-se amedrontada, fraca, sem inspiração, sem energia, de alma vazia, sem propósito, envergonhada, volátil, presa, sem criatividade, comprimida, enlouquecida;
- Sentir-se sem poder, em dúvida crónica, trémula, bloqueada, incapaz de seguir em frente;
- Perda da libido
- Más escolhas: companheiro, trabalho ou amizades que sugam a vida;
- Incapacidade para estabelecer limites
- Medo de morder de volta quando nada mais há a fazer, medo de enfrentar, medo de se fazer ouvir ou de se manifestar contra; Pelo contrário, uma mulher saudável é bastante parecida com uma loba: robusta, transborda de vitalidade, está consciente do seu território e defende-o, é criativa e apaixonada. Eis aqui alguns sintomas da vivência em integridade do selvagem feminino:
- Habitar o seu corpo com
segurança e orgulho independentemente dos dons ou limitações que este tenha;
- Falar e actuar em sua defesa quando necessário;
- Estar consciente e alerta;
- Mergulhar nos poderes inatos de sensibilidade e intuição;
- Entrar nos seus próprios círculos, encontrar onde se pertence;
- Erguer-se com dignidade; Clarissa garante que, se tendo perdido esta conexão a reencontramos de novo, vamos lutar para a preservar porque “com ela a criatividade floresce; os relacionamentos ganham significado, profundidade e saúde; os ciclos de sexualidade, criatividade, trabalho e lazer são reestabelecidos; deixamos de ser um alvo para os predadores; temos um direito igual, sob as leis da natureza, para crescer e prosperar. Agora o cansaço do fim do dia provém de trabalho e esforço satisfatório e não de estar calada num trabalho ou num relacionamento tacanho. Sabemos instintivamente quando as coisas devem morrer e quando as coisas precisam de viver;
sabemos quando ir embora, sabemos quando ficar.”
Gostava de terminar este artigo com uma história real que Hélène Grimaud relata no seu aqui já citado livro Variations Sauvages. Certa noite, em redor das duas da manhã, a pianista não conseguia conciliar o sono e resolveu ir dar uma volta com o seu cão. Afastou-se da zona residencial onde residia, na Flórida, adentrando-se numa zona de bosque. Foi então que se deparou com: “uma silhueta de um cão, porém, desde o primeiro olhar e apesar da noite, sabíamos instantaneamente que não se tratava de um cão. O animal tinha um caminhar indescritível, tenso, furtivo, como se avançasse dentro de um túnel de uma altura insuficiente. Os seus olhos tinham uma luz quase sobrenatural; transmitiam uma luz surda, violeta e selvagem. Bizarramente, cada um dos seus passos extinguia os sons à sua volta: não mais se ouviam os pássaros da noite, nem algum rastejar ou farfalhar de asas, apenas um silêncio tenso e apertado. Ela
olhou para mim e um arrepio percorreu-me - nem medo nem angustia, simplesmente um arrepio.” Pouco depois, a loba aproxima-se da sua mão e roça as omoplatas contra a sua palma, Hélène recorda: “Senti uma faísca deslumbrante, uma descarga por todo meu corpo, um contacto único que irradiava todo meu braço, o meu peito, e me enchia de doçura. De doçura apenas?
Sim, naquilo que há de mais imperioso e que despertou em mim um canto misterioso, o chamamento de uma força desconhecida e primordial.” E quem lê, também sente este chamamento?
Mulheres, não nos deixemos domesticar! Vamos honrar e nutrir a loba que há em nós.
Café Filosófico | 16 Mar |18:30-20:00
AP Maria Nova Lounge Hotel, Tavira Contribuição: 5€
Inscrições: filosofiamjn@gmail.com
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
para trás.
Oque nos terá dado para escrever (e fotografar) sobre locais tão afastados de uma estação ferroviária, incumprindo gravemente o nosso plano inicial que era falar exclusivamente de locais algarvios facilmente acessíveis usando apenas o comboio?
O que nos terá atraído em locais como Vilamoura, Vale do Lobo, Quinta do Lago…?
O fator desencadeante surgiu numa desafogada praça em Vilamoura, quando nos deparámos com uma esguia estátua toda em mármore branco, assente sobre um plano de água circular. Quem é? Quem não é? Fomos investigar. A estátua representava Artur Cupertino de Miranda. Esse nome fez soar uns vagos sininhos na minha cabeça: antigo regime… banca…
Felizmente que o António Homem Cardoso para além de fotógrafo é um repositório inesgotável de informações úteis pelo que, após muita conversa e várias idas à internet estou em condições de resumir em duas linhas uma história multicentenária. Desde a época romana ou anterior (fenícia?) e até 1297, data do foral outorgado por D. Dinis, Quarteira foi uma comunidade piscatória. Depois foi crescendo, crescendo, até se tornar numa cidade, uma das mais caóticas e deselegantes do Algarve, cujo destino ficou refém de uma mão cheia de patos bravos esfomeados de lucros.
O caso é que a área hoje em dia ocupada por Vilamoura e pela atual Quinta do Lago fazia parte, nos anos 60 do século passado do morgadio de Quarteira: 1700 hectares de boa terra, atravessada por uma ribeira e com uma enorme frente de mar. Pois aqui é que entra o banqueiro Cupertino de Miranda: em meados dos anos sessenta, levado por um sonho antigo decide comprar as terras do morgadio e iniciar uma urbanização de qualidade num Algarve desalinhado dos novos tempos, Meu lindo preguiçoso adormecido ao sol, como dizia o poeta olhanense João Lúcio que encontrámos numa crónica lá
É claro que muita coisa se entrepôs entre o sonho e a realidade: compras, vendas, alteração de proprietário e também mudanças políticas que inviabilizaram temporariamente o grande projecto de transformar esses terrenos num soberbo empreendimento articulado à volta de uma excelente marina, um bom casino e uma urbanização com regras claramente definidas. O belo sonho de Cupertino de Miranda não foi concretizado na sua totalidade pelo próprio mas por outros, o que não retira brilho ao imenso projeto.
Seria profundamente injusto não falar também do empresário André Jordan que soube, apesar das tormentosas marés da história socioeconómica portuguesa dos anos setenta, conceber e realizar em 650 hectares contíguos ao antigo morgadio da Quarteira o empreendimento mais caro e exclusivo de Portugal, a Quinta do Lago. No que se refere a Vilamoura, foi também Jordan que se associou à Lusotur - empresa que geria o empreendimentoe que o impulsionou com uma visão estratégica. Hoje em dia Vilamoura continua a apresentar um crescimento estruturado, baseado numa logística de qualidade e numa harmonia que até ao momento não foi desfeita. Como exemplo de perigos sempre presentes, veja-se o projeto - felizmente abandonado - de uma cidade lacustre a Oeste do morgadio, que obrigaria, entre outros impedimentos ambientais à canalização da ribeira da Quarteira!
Mas a ocupação deste vasto espaço não ficaria completa sem uma menção a Vale do Lobo, uma área de 450 hectares entalada entre a Quinta do Lago e a Quarteira que se inspirou no modelo de “empreendimento social para os ricos” (1), testado por Jordan na Quinta do Lago.
Pois é exatamente nesta questão ética - a do acesso ao luxo caro, confortável e exclusivo para uns poucos e a abrigos sobrelotados de medíocre qualidade para muitos outros - que reside a minha reflexão, ou seja, resvalei nesta crónica para a crítica social e agora tenho que me desenvencilhar como puder.
- António - pergunto eu - não achas um bocado ultrajante esta diferença entre quem tem muito e quem tem tão pouco? Entre os ricaços refastelados à larga na Quinta do Lago e as multidões que competem por umas semanas num T2 com vista para o parqueamento do quarteirão onde vão tentar encaixar a família?
O António não pareceu surpreendido com a minha pergunta, desconfiei até que não me tivesse ouvido por estar distraído com as suas máquinas, mas não, ele tinha ouvido muito bem, só que não lhe convinha entrar numa polémica sem solução à vista - Ricos e pobres - respondeu ele finalmente, enquanto delicadamente sacudia o pó de uma das suas objetivas - Reis e escravos. Honestos e ladrões. Espertos e estúpidos. Sortudos e azarentos. São as polaridades da vida, meu caro. Luz e Sombra, etc, etc. É a dinâmica da existência. É dessa tensão que se alimenta o “progresso”, que é uma palavra que tantas vezes mascara a desigualdade.
- Está certo, António, mas é para lutar contra isso, contra essas injustiças que os estados sociais existem. Talvez tenhas razão,
mas o facto é que no nosso País esse Estado, se existe, está muito bem escondido. Eu desejaria ardentemente que no mundo houvesse apenas ricos mas isso é um sonho irrealizável.
- Cá continuamos desde os tempos do Senhor Dom Afonso I, a ter nobres e servos; ricos e pobres - responde o António - mas também deixa que te diga: o homem que busca a felicidade, tanto a pode encontrar numa vivenda da Quinta do Lago como num T0 em Quarteira. Olha, o nosso Manuel da Fonseca nos anos sessenta bem que encontrou um pedacinho dessa felicidade nas quentes areias de Quarteira, como ele escreveu: Estendido na areia, não penso em mais nada. Nada. […] Sob o sol, a irradiante inquietação das cores vibra, desde o vermelho-claro das distantes arribas, a nascente, até ao oiro desmaiado do areal (2)
- Hum… - resmungo eu - apesar de tudo, parece-me mais provável ser-se feliz na abundância do que na pobreza.
- Estás a extremar as posições. Ocupar um T0 em Quarteira não é pobreza. Está muito longe disso. Significa até alguma prosperidade. É uma malta de
meio-termo, que está entre os poucos que têm muito e os muitos que têm quase nada e que vai alimentando este nosso querido Portugal.
Irritaram-me bastante estas lições de política social. Para além dessa questão da felicidade humana estar ou não na razão direta da conta bancária, outra questão talvez mais digna bailava no meu espírito. Tinha a ver com a propriedade de raiz da terra portuguesa. Após termos vendido as partes mais apetecíveis do Algarve a não nacionais o que nos restará: o Barrocal? As Serras? Perdoem-me caros leitores. Resvalei mesmo para terrenos movediços. Ora vamos lá mas é prepararmo-nos para a primavera que aí vem e para o verão que também há-de chegar.
- Totalmente de acordo - diz o sábio António - gozemos o Sol e o mar. Estarão lá para nós. Sempre!
(1) A frase irónica é do próprio André Jordan e significa que, embora os ricos também precisem de descanso, são obrigados a pagar por ele um preço condizente.
(2) Manuel da Fonseca, Crónicas Algarvias, Editorial Caminho, 2ª ed., Lisboa,1986, p. 163.
Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa luisa.algarve@gmail.com
Arubrica deste ano denomina-se “Bibliotecofilia” e é uma viagem pelo apaixonante mundo das bibliotecas.
Partilharemos curiosidades sobre as bibliotecas, sobre os edifícios onde estão instaladas e como se transformaram em bibliotecas. O legado das figuras paradigmáticas que são os seus patronos e por que é que foram escolhidos para lhes dar nome e ainda a forma como as bibliotecas cativam e surpreendem o leitor.
As bibliotecas são espaços inesquecíveis, que marcam cada pessoa de um modo particular e que, de uma ou outra forma, não deixam ninguém indiferente. Os livros, o cheiro, as emoções, o ambiente, a localização e a vista das bibliotecas, tudo conta para marcar os leitores.
Recentemente t ê m-me acompanhado os livros de Alberto Manguel, que é um dos mais conceituados bibliófilos do mundo. F oi director da Biblioteca Nacional da Argentina, para além de ser ensaísta e romancista.
Na sua juventude teve o privilégio de acompanhar Jorge Luís Borges, quando este começou a perder a visão. Leu em voz alta, durante quatro anos, para esse grande escritor de dimensão universal.
Essa experiência de ser leitor de Jorge Luís Borges marcou Alberto Manguel e podemos ler as memórias do encontro entre dois génios num livro de 2020, editado pela Tinta da China, que se intitula Com Borges
A forma como Alberto Manguel comunica, quer por escrito, quer verbalmente, transmite uma cla-
reza de ideias e um acutilante sentido de humor, que pode também ser acompanhado no programa A Vida Privada dos Livros, na RTP2.
Alberto Manguel refere que muitas vezes sentiu que a sua biblioteca explicava quem era o seu eu e conferia-lhe um eu sempre em mudança, que se transformava constantemente ao longo dos anos. “Sei que a minha verdadeira história, toda ela, está lá, algures nas prateleiras, e tudo o que preciso é de tempo e de sorte para a encontrar.”
Neste fascinante mundo das bibliotecas e dos livros há tanto por descobrir. Cada visita e cada leitura podem expandir a nossa criatividade e levar-nos até ao infinito…
Um dos livros que mais gostei de ler durante a pandemia foi O Infinito num Junco, de Irene Vellejo, e que permite viajar por diversos países ao longo de vários séculos.
No livro referido, a páginas tantas, estamos no antigo Egipto, onde o Faraó Rammsés II mandou colocar por cima da entrada da sua biblioteca a placa: “Remédios para a alma”. Depois estamos na Idade Média na Biblioteca da Abadia de Saint Gall (uma das bibliotecas monásticas mais antigas do mundo) onde se encontra a inscrição: “Dispensário da Alma”.
Ao viajar até uma nova cidade ou vila procuro conhecer a cultura da localidade e quase sempre a primeira visita é à biblioteca e ao posto de turismo.
Diz a biblioterapeuta Sandra Barão Nobre que as bibliotecas e os livros nos levam “para fora cá dentro”. E refere que o Turismo de Portugal deveria permitir que se colocasse este slogan por cima da entrada das bibliotecas.
Por sua vez, o escritor Valter Hugo Mãe diz que “As bibliotecas são como aeroportos. São lugares de viagem. Entramos
numa biblioteca como quem está a ponto de partir. E nada é pequeno quando tem uma biblioteca. O mundo inteiro pode ser convocado à força dos seus livros”.
Curiosamente, há um aeroporto que tem uma biblioteca. Fica nos Países Baixos, perto de Amesterdão, trata-se do Aeroporto Internacional de Schiphol, cuja biblioteca foi inaugurada em 2010. Tem 1200 livros em cerca de 20 línguas. “Quando fazemos check in numa biblioteca , quando nos dirigimos para a porta de embarque que é uma estante e quando tomamos o nosso lugar nas páginas do livro escolhido, estão criadas as condições para pelo menos dois tipos de voo para o exterior: às vezes saímos literalmente da nossa cidade ou do nosso país; outras vezes
saímos figurativamente de nós mesmos.” Sandra Barão Nobre Esta frase é tão rica que não poderia deixar de partilhá-la e lê-la faz-nos voar para o exterior, mas também para o nosso interior.
Tal como as bibliotecas, os festivais literários também me encantam, porque quase sempre me parecem bibliotecas a céu aberto.
Recordo o Folio, Festival Literário Internacional de Óbidos que transforma a localidade numa encantadora vila literária, durante mais de uma semana.
Recentemente estive no Festival Literário da Póvoa de Varzim, designado Correntes D’Escritas, e acabei por comprar mais livros do que esperava, mas como a viagem não foi de avião não houve problema com o peso da bagagem literária!
Gosto de ler os meus livros e de
sublinhá-los ou até fazer anotações, mas também requisito na biblioteca para me obrigar a ter prazos de leitura, porque há datas não muito longas para a devolução dos livros.
O mais importante para além de ler livros é entrar no espaço vivo da leitura. E essa será sempre uma viagem que nos pode levar por caminhos e interpretações diferentes, porque num livro há sempre tantos destinos possíveis!
Tenho passado grande parte da minha vida em bibliotecas e será muito especial revisitá-las nos próximos tempos para a escrita destas crónicas.
Até à próxima biblioteca e boas leituras! *A
“Toda a biblioteca é uma viagem. Todo o livro é um passaporte sem data de caducidade.”
Irene Vallejo in O Infinito num Junco
LUÍS DE MENEZES
Investigador e Documentalista
Afábrica de conservas de peixe em azeite e molhos de Lagos, situava-se no sítio da Aldeia, rua da Estalagem (posteriormente rua António Crisógono dos Santos), freguesia de S. Sebastião, concelho de Lagos, distrito de Faro, tendo concessão de alvará n.º 188 de 163-1923.
Foi instalada e construída em 1904, sendo destinada à exploração da indústria de conservas de peixe em azeite e molhos (sardinha), conforme processo inicial iniciado por Júdice Fialho, começando a laborar em Dezembro desse ano. A licença de exploração foi concedida a 26-11-1904.
Segunda a sua descrição de 1922, esta entidade fabril possuía: 3 caldeiras a vapor; 1 estufa; 2 cofres para cozer peixe; 1 motor; 6 cravadeiras; 1 fabricante; 1 contramestre; 3 empregados de escritório, nacionais; 1 empregado estrangeiro da secção de salga de peixe e 200 operários.1
A fábrica Júdice Fialho em Lagos, não era um só edifício mas um complexo de imóveis, onde se situavam: a sala de descabeço, o enchimento, o armazém do sal, a estiva, o armazém de vazio e demais valências daquela unidade fabril (com os terreiros de secagem das aparas - para produção de óleos ou farinha de peixe) e chaminé (que evidenciavam a zona da caldeira e eventualmente dos autoclaves). Em 1927, a fábrica de conservas de Lagos, tinha 110 operárias e 30 operários.2
Na vistoria realizada à fábrica de Lagos pela Inspeção Geral de Fiscalização do Consórcio Português de Conservas de Sardinha a
15-2-1933, constavam 3 caldeiras a vapor (1 tipo C-F, 1 tipo C-F de João Perez e 1 tipo C-F de Pierre Dumorá), 2 cozedores (1 de 1m,25 de comprimento, 1m,22 de largura e 1m,52 de altura, e 1 outro de 1m,26 de comprimento, 1m,29 de largura e 1m,60 de altura), 1 esterilizador (de 3m,56 de comprimento, 1m,28 de largura e 1m,78 de altura), 2 tanques para Banho-Maria a fogo directo (iguais de 1m,84 x 0,95 x 0,94) e 6 cravadeiras (2 Karger Hammer (Matador), 1 Vulcano, 1 Promitente (Matador) e 2 Street & C.ª (Matador)). As áreas calculadas nessa vistoria para esta fábrica eram em solo coberto de 7.724m2, galerias ou pavimentos superiores 501m2 e terreno livre 2.546m2. Produzia 10.115 caixas com o peso líquido de 242.760 kl em 1929, 15.309 caixas com o peso líquido de 367.368 kl em 1930, 21.190 caixas com o peso líquido de 508.560 kl em 1931, 9.631 caixas com o peso líquido de 231.144 kl em 1932, no total de 56.243 caixas
Excerto do anteplano de urbanização de Lagos de 1957 e vista áerea circundante da fábrica de conservas de peixe em azeite de Júdice Fialho em Lagos em 1947, in CCDR Algarve, in Francisco Capelo - Fototeca Municipal de Lagos - Cem anos de Indústria Conserveira em Lagos - a memória em imagens - 1º Congresso da Associação de Municípios Terras do InfanteCentro Cultural de Lagos - 23 de Março 2019, pp. 22 e 23
e peso líquido de 1.349.832 kl entre 1929-1934.3
Por despachos ministeriais do Subsecretário de Estado ou do Ministro do Comércio e Indústria era esta fábrica autorizada: a 153-1935, a instalar uma máquina de azeitar; e a 4-5-1936, a instalar um motor vertical a óleos pesados, sendo publicado no Diário do Governo n.º 118 de 21-5-1936; em 1953, temos conhecimento da instalação de 2 novas caldeiras em substituição das aí existentes.4
Esta empresa tinha os seguintes equipamentos e máquinas no ano de 1939: «Recebia energia para iluminação dos serviços municipais da Câmara de Lagos; tinha 3 geradores de vapor; 1 motor de vapor de 6 C.V.; 1 motor de combustão interna de 7/9 C.V.; 1 dínamo de 8 KW; máquinas operatórias para fabricação de conservas: 6 cravadeiras matador; 1 cravadeira para lata redonda; 1 máquina de azeitar; 2 cofres para cozimento de peixe; 1 cofre para estufagem de peixe.
Na secção de fabricação de Guano existiam 2 prensas Mabille e 2 comedores de desperdício de peixe. Finalmente em utensílios diversos, eram assinaladas 2 bombas de vapor sobre o poço; 2 caldeiras para banho-maria; 1 tanque para lavar grelhas; 3 burricos de alimentação de caldeiras e 1 burrico»
A fábrica de conservas de peixe em azeite de Lagos, deixa de laborar no ano de 1959, sendo o seu alvará transferido para a fábrica de conservas de peixe em molhos de Matosinhos, por despacho ministerial de 28-11-1959.5 Nesse diploma, estavam sublinhadas as condições que se deviam cumprir na transferência: pagar as indemnizações dos trabalhadores da fábrica de Lagos e o prazo de transferência e instalação da fábrica de Matosinhos, devia concluir-se em 18 meses.6
Esta fábrica produzia em 1933 e 1934, 2.088 e 8.234 caixas respectivamente (em 1935 produzia 30 caixas por hora, com as crava-
As religiões, como as línguas, são elementos centrais na definição de uma cultura, tema recorrente no actual debate sobre “valores civilizacionais” e as causas dos conflitos. Na visão do “homo religiosus” nada do que existe é natural, mas uma criação divina. O céu, as constelações, o sol e a lua, a pedra e o rio, as estações do ano, a fertilidade da terra-mãe, os humanos e as outras espécies, tudo é sacro e transcendente.
“No centro encontram-se dois eixos: o sagrado e o símbolo” escreveu Mircea Eliade (1907-1986), nos seus estudos sobre religiões e comportamentos religiosos. A História das Religiões e das Religiões Comparadas, procura análises não influenciadas pelas convicções do investigador.
A Teologia, o estudo de Deus, centra-se na fundamentação e interpretação filosófico-normati-
va de uma determinada religião. Em várias épocas as religiões obtiveram reconhecimento e engrandeceram-se pela capacidade de teorização e argumentação dos teólogos.
A Sociologia da Religião, trata o fenómeno social religioso, as crenças e as práticas, contém a sociografia, quantificação das dimensões espaciais, demográficas, através de conquistas e colonizações o cristianismo e o islamismo expandiram-se para regiões exteriores às origens geoculturais, sendo o judaísmo exclusivamente étnico.
As religiões emergentes afirmaram-se pela diferenciação, absorção e incorporação de cultos preexistentes, usando idênticos conceitos.
Existe um substrato mediterrânico ancestral anterior ao surgimento da civilização helénica, o culto das deusas-mãe, da fertilidade, o ciclo geração/regeneração que se prolongou nas sociedades subsequentes … Vários autores referem a luta contra a fome e a descoberta da agricultura como origem dos
cultos agrários da Antiguidade. Deméter, deusa grega das estações do ano, da fertilidade e das colheitas foi entre outros exemplos, uma explicação mística e pedagógica do mundo natural. Quando Perséfone, a irmã, deusa das flores e dos perfumes, foi raptada por Hades, deus da morte e da escuridão, Deméter mandou parar o crescimento das plantas, logo surgiu a fome. O acordo com o raptor estabeleceu que Perséfone ficaria três quartos do ano com a irmã e Hades com o restante período, isto é, durante o inverno, tempo frio, chuvoso e escuro.
O Panteão dos deuses gregos e romanos, genealógico, extenso e pleno de vivências dramáticas, teve a função de explicar as leis da natureza, os comportamentos humanos, o significado da vida. O festival dedicado a Deméter eram as “Eleusinas”, o seu equivalente romano a “Cerealia” celebrava a deusa Ceres, ocorria no início da Primavera e durava sete dias, tal como hoje continuam a ser celebradas as festividades pascais inseridas nos calendários religioso
e civil.
As religiões da Lusitânia no período pré-romano, foram investigadas no século XVI por André de Resende (1500-1573), teólogo e arqueólogo, e pelo monge Frei Bernardo de Brito (1569-1617) historiador alcobacense e de Cister.
A partir do iluminismo e do romantismo novecentista, surgiram tentativas de explicação científica das origens da nacionalidade e da “raça” e celebrações ideológico-nacionalistas e místicas de acontecimentos e figuras históricas.
A história e cultura portuguesas foram sempre questionadas e polémicas, Alexandre Herculano defendeu a inexistência de qualquer vínculo entre a sociedade portuguesa e as tribos que habitaram a Península, Portugal é segundo Herculano “uma realidade medieval da Reconquista”.
Opositor das ideias de Herculano, José Leite de Vasconcellos (1858-1941), médico, etnógrafo, arqueólogo, defendeu a relevância das religiosidades locais no artigo “O deus lusitano Endovellico” (1890),
iniciando “As religiões da Lusitânia”, obra em três volumes (1913).
Moisés Espírito Santo, sociólogo e etnólogo das religiões em “As origens do cristianismo português” fundamenta a matriz oriental e norte-africana do esoterismo ibérico, a influência de Astarté, deusa fenícia da lua e da fertilidade. A continuidade de simbologias aparece em diferentes épocas e religiosidades.
A ascensão e institucionalização do cristianismo na Península Ibérica ocorreu no período da colonização romana. O Concílio de Eliberi ou Elvira no séc. IV, perto de Granada, foi a primeira reunião magna da alta hierarquia cristã na Península Ibérica, reuniu 40 dioceses africanas e peninsulares, com presença entre outros dos bispos de Ossonoba/Faro, de Évora e Mérida.
A origem mística de Portugal, contida no mito fundador do aparecimento de Cristo a Afonso Henriques em Ourique, convive a partir do século XIX com a história científica e o racionalismo.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
> deiras existentes) e conseguia em 1924 gerar 30.000 caixas.7
Segundo Ana Rita Silva de Serra Faria e o Arquivo Júdice Fialho, esta unidade fabril produzia 7.193 caixas de conservas de peixe em 1938, 9.297 em 1939, 7.645 em 1940, 1.084 em 1941, 4.280 em 1942, 6.159 em 1943, 3.787 em 1944, 1.621 em 1945.8
Segundo a planta de conservas de peixe da Júdice Fialho em Lagos, esta era constituída: 1 - entrada e ruas de serviço da fábrica, 2enxugadores de peixe e casa da bomba e poço, 3 - hangar para enxugar peixe, 4 - casa do descabeçar, a-geradores de vapores de 20 cavalos, b-cozedores de peixe, c-chaminé de tijolo, 5 - casa de enlatar, 6 - pátio, 7 - depósito de lata vazia, 8 - casa de máquinas: matadouro, balanças, tesouras, 9 - retrete e urinol, 10 - casa de soldadores, 11 - casa de azeitar o peixe e tinas de azeite, 12 - adega de azeite, 13 - casa de ebulição depósito de lata cheia e estufas, 14 - depósito
de lata cheia, 15 e 16 - depósito de desperdício seco de peixe, 17 - escada para o escritório, 18 - depósito de rações para o gado, 19 - depósito de utensílios para barcos, 20 - depósito de sal, 21 - forja e depósito de ferro, 22 - casa do gasómetro de acetileno, 23 - tanque para depósito de azeite de peixe, 24 - prensas para prensar o desperdício de peixe, 25 - eirado, 26 - terreno para um armazém, 27 - cocheira, 28 -armazém de tinas de salga de peixe, 29 - armazéns das estivas italiana e espanhola, 30 - tanques de alvenaria para água, 31 - hangar com caldeira para estanhar grelhas, 32 - nora mourisca com passeio, 33 - residência das mestres das estivas, 34 - palheiro, 35 - cavalariça, 36 - palheiro, 37 - terreno hortado, 38 - 1º andar no armazém n.º 14 para depósito de madeiras para caixas, 39 - residência do mestre da fábrica. 1º andar das casas 18 e 20, 40 - 1º andar do n.º 16.escritório da fábrica, 41 - aparelho do gasógeno Piersam.
cf. Para a fábrica de conservas de peixe em azeite e molhos de Lagos, consulte-se a monografia de Luís Miguel Pulido Garcia Cardoso de MenezesJoão António Júdice Fialho (1859-1934) e o Império Fialho (1892-1981), Lisboa: Academia dos Ignotos, 2022, pp. 46-49; e Arquivo Distrital de Faro (ADF), Cota: 5ª CIProc. 583: Processo n.º 7 Unif., alvará n.º 188, documento 2 de 16-3-1922, referindo no processo inicial assinado por João António Júdice Fialho, que se destinava a laboração duma fábrica de salga, conserva e preparação de peixe; e Jorge Miguel Robalo Duarte Serra - O Nascimento de um império conserveiro: “A Casa Fialho” (1892-1939) [Texto Policopiado], tese de Mestrado em História Contemporânea pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade do Porto, 2007, pp. 62-63.
2cf. Informação de Francisco Castelo via e-mail de 2-7-2020.
3cf. Ministério do Mar, Direção-Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos (DGRM), Arquivo do Instituto de Conservas de Peixe (19361986), Júdice Fialho, Conservas de Peixe, SARL, Portimão (S. José). Fab. 4.701.109, 1934.
4cf. Ministério do Mar, DGRM, Arquivo do Instituto de Conservas de Peixe (1936-1986), Júdice Fialho, Conservas de Peixe, SARL. Portimão (S. Francisco). Fab. 4.701.108, 1934 e Portimão (S. José). Fab. 4.701.109, 1934.
5cf. Francisco Capelo - Fototeca Municipal de Lagos
- Cem anos de Indústria Conserveira em Lagos - a memória em imagens - 1º Congresso da Associação de Municípios Terras do Infante - Centro Cultural de Lagos - 23 de Março 2019, pp. 22 e 23.
6cf. Arquivo Distrital de Faro (ADF), Cota: 5ª CIProc. 583: Processo Nº 7 Unif. - Alvará n.º 188. doc. S/N de 16 de Maio de 1960.
7cf. ADF, Cota: 5ª CIProc. 583: Processo n.º 7 Unif.Alvará n.º 188, documento 24 v.º, de 10-2-1939 e Jorge Miguel Robalo Duarte Serra, op. cit., p. 99. 8cf. Ana Rita Silva de Serra Faria - A organização contabilística numa empresa da indústria de conservas de peixe entre o final do século XIX e a primeira metade do séc. XX: o caso Júdice Fialho”, Tese de Mestrado, Universidade do Algarve / Universidade Técnica de Lisboa, Faro, 2001, Anexos, quadro II. 7, op. cit., p. 15.
Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do Centro de Investigação em Artes e Comunicação (CIAC)
Crónicas de um Livreiro, de Martin Latham, com tradução de Jorge Melícias, chegou às livrarias portuguesas com o selo das Edições 70. Foi considerado livro do ano em 2020 para o Spectator e para o Evening Standard. Com uma belíssima e original capa, a preto e branco, onde figuram algumas grandes figuras literárias, este livro reúne um conjunto de ensaios dedicados ao mundo dos livros assinados pelo mais antigo livreiro da Waterstones, a principal cadeia de livrarias inglesa.
tem com os livros seria, para um visitante de outra galáxia, uma das mais estranhas que contamos.»
Para os amantes de livros
Crónicas de um Livreiro reparte-se por 13 grandes capítulos que se subdividem em pequenas subsecções. Da actual “literatura” de conforto aos folhetins, que contribuíram para efectivamente aumentar a literacia e as horas de leitura entre as classes baixas, alimentando quer a transformação da sociedade quer o desenvolvimento do romance; da arte de bem recomendar uma leitura, aliciando sem impor; dos vendedores ambulantes aos mercados de livros ao ar livre, um pouco por todo o mundo – designadamente, nas margens do Sena; do (afinal!?) mito da biblioteca de Alexandria às bibliotecas em
Uma das crónicas começa mais ou menos assim: «Há um livro que, em 800 anos, não se moveu um centímetro. Está no túmulo de Leonor da Aquitânia, na Abadia de Fontevraud, perto de Poitiers. Toda a sua vida turbulenta ficou para trás e agora jaz em profundo repouso, segurando uma Bíblia aberta. Descansa da mesma forma que todos nós na cama quando, depois de uma conversa ou de um chá, nos tornamos um só com um livro, perdidos num mundo privado. A história de amor que a humanidade
banhos públicos; da figura erótica (ou sádico-masoquista) da bibliotecária à Classificação Decimal de Dewey, director das bibliotecas do estado de Nova Iorque de 1888 a 1906, uma figura tão metódica em termos de organização quanto duvidosa em termos pessoais; de uma biblioteca arquitectada por Miguel Ângelo com uma escadaria vista num sonho (que terá sido um pesadelo para construir), às bibliotecas no Japão, concebidas pelo multipremiado Toyo Ito, passando pelos morcegos man-
tidos na Biblioteca de Mafra – como um sistema eficiente e ecológico de controlo de pragas de livros –, estas várias crónicas dispersam-nos no tempo e no espaço, sob prismas e cambiantes diversos, em torno de um tema comum: os livros e a leitura. Trata-se de um daqueles preciosos livros que entra no género de livros dedicados aos amantes de livros. Não é por acaso que o autor começa justamente o livro a dissertar sobre os amantes de livros, considerando como a bibliofilia toma mesmo, nalguns casos, nomeadamente entre as mulheres, contornos de sensualidade. Livreiro há trinta e cinco anos, Martin Latham fala com conhecimento de causa dos clientes que tocam, acariciam, cheiram os livros e, especialmente as mulheres, muitas vezes os chegam mesmo a beijar – quem nunca beijou um livro de que gostou particularmente no momento de o fechar ao terminar a leitura que se acuse. Crónicas de um Livreiro, ainda que o título parece remeter para uma memória pessoal, é, afinal, uma memória colectiva da leitura. Mesmo para quem leu Uma História da Leitura , de Alberto Manguel, recentemente reeditado pelas Edições Tinta-da-china, é garantido que fará novas descobertas nestas páginas onde o autor, num jeito erudito, a que não falta humor, revela um conhecimento prodigioso sobre a história do livro. Estas crónicas desenham assim o percurso da nossa relação amorosa com os livros; traçam o perfil da nossa possessividade face ao livro, como objecto a manter como algo pristino, sem dano ou mácula; ajudam a identificar se somos daqueles clientes que exigem um desconto perante a mais pequena marca nas páginas ou na capa, ou se pagam alegremente o mesmo valor de origem por um livro danificado (como tantas vezes hoje acontece nas livrarias); permitem compreender se somos leitores que preferem manter as margens das páginas intactas e imaculadas, ou se, por outro lado, somos escrevinhadores incansáveis amantes da marginália, que não dispensam um lápis na mão, ao ponto de, como Jacques Derrida, ter as suas próprias anotações impressas na edição do seu livro (as notas de rodapé não lhe seriam suficientes para o devido efeito); ou poderemos mesmo ser como James Frazer que, ao rever uma obra sua (um texto fundador da antropologia), inicialmente publicada em 2 volumes, mandou imprimir um exemplar único com páginas em branco intercaladas para acrescentos, o que acabou por resultar numa edição final de 12 volumes.
Ao longo destas páginas de leitura permanentemente apaixonante, as pequenas crónicas do autor tocam-nos a todos. Quer sejamos amantes de bibliotecas, que, como afirma o autor, são um refúgio mítico para onde todos nós vamos em sonhos, quer sejamos inveterados colecionadores de livros, que gostam de os organizar em estantes e prateleiras, se bem que, raras vezes, por classificação ou assunto – como acontece nas bibliotecas –, mas quase sempre pela cor ou até pelo formato… Sabe-se pelo menos de um caso de quem tivesse serrado os livros para garantir que ficavam todos com a mesma altura. Mas para evitar este tipo de problemas de bricabraque livresco, a Edições 70 acaba de publicar uma novidade justamente sobre Como organizar uma Biblioteca, de Roberto Calasso.
aqui e agora usa um nome que lhe foi dado. Somos produtos de grandes migrações, falamos o poliglotismo dos invasores. Não é de admirar que desejemos tanto ler histórias, e que, periodicamente, precisemos de vaguear” (p. 101).
Quer optemos por nos enroscarmos num recanto de leitura onde ninguém nos encontre, em vãos de janelas ou patamares de escadas, quer escolhamos nos enroscarmos na cama sob os lençóis com uma lanterna e ler pela noite dentro, esta é a curiosa história da sua/nossa obsessão pelos livros. Crónicas de um Livreiro é um livro fácil de ler, embora mais difícil de classificar. Um misto de ensaio, livro de memórias, história cultural? Um livro que interliga de curiosidades, anedotas do ofício e factos?
O que resulta claro é que o autor nunca pretende ser fastidioso – e o seu humor, em diversos momentos, diverte mesmo. Estes textos, afinal, constituem também, uma declaração de amor ao seu ofício, e, muito pontualmente, em certas passagens mais renitentes, podemos sim encontrar fragmentos das memórias do livreiro: “Juntei-me à Waterstones Booksellers em 1988 e fui enviado por Tim Waterstone para trabalhar na livraria de High Street Kensington, a curta distância do Palácio de Kensington. Era uma bonita livraria de três andares localizada numa esquina onde nos podíamos cruzar com David Hockney ou Van Morrison, Mick Jagger ou Madonna” (p. 167)
Martin Latham, doutorado em História da Índia no King’s College, ensinou na Universidade de Hertfordshire antes de se voltar para a venda de livros. Foi livreiro durante mais de três décadas. Orgulha-se de ser o responsável pela maior reivindicação de fundos de
“Seja o que for que a biblioteca signifique para nós, ansiamos por ela imaginativamente. Sabemos que somos mais do que um, a pessoa que
ORetrato de Casamento, de Maggie O’Farrell, com tradução de Inês Dias, é uma das grandes estreias literárias deste ano, que, tal como o anterior romance da autora, Hamnet, surge publicado pela Relógio d’Água. Depois da época vitoriana com Shakespeare, Maggie O’Farrell revisita agora uma outra época prodigiosa, a Itália renascentista, através da vida da jovem duquesa Lucrezia de’ Medici, numa corte turbulenta. Corre o ano de 1560 em Florença. Lucrezia é a terceira filha do grão-duque e sente-se quase num limbo entre os seus vários irmãos. A mãe é conhecida como La Fecundissima e todos os filhos da família governante têm os destinos traçados a partir do momento em que nascem; os pais, emissários, secretários e conselheiros assim o congeminam. Mas a infância e a inocência de Lucrezia conhecem um fim abrupto, quando a sua irmã mais velha, Maria, morre, na véspera do casamento com Alfonso II d’Este, o soberano de Ferrara, Modena e Reggio. Ainda que Sofia, a sua ama, tente adiar por dois anos a sua entrada oficial na idade adulta, com estratagemas de meandros femininos, Lucrezia terá de ocupar o lugar da irmã morta e vê-se lançada na ribalta política. Compreende então o fim a que realmente se destina uma jovem da sua estirpe: ser tratada como um bem. E, mais importante, gerar um herdeiro que assegure o futuro da dinastia de Ferrara.
O livro inicia com uma jovem Lucrezia convencida de que o noivo a quer matar, sentindo-se encurralada num casamento meramente contratual, tão diferente do dos pais que se casaram por amor, algo pouco próprio à época. A narrativa, apesar de contada na terceira pessoa, desenrola-se sob a perspetiva da protagonista, pelo que apenas podemos contar com a credibilidade das suas convicções. Não sabemos, portanto, até que ponto podemos crer efetivamente se ela, arrancada à infância, apenas se sente encurralada num casamento infeliz, ou se de facto o marido conspira contra si. A confirmar as suspeitas de Lucrezia, temos o burburinho que corre de que Alfonso é como Jano, com duas personalidades. Após as núpcias, o seu comportamento revelar-se-á gradualmente instável, ora agressivo, ora afectuoso. Entretanto, confirma-se como um político impiedoso, temido pela própria família, toda composta por mulheres,
ao mesmo tempo que revela grande sensibilidade estética, fazendo-se rodear de músicos e artistas. Aquilo que se sabe, e que a autora nos revelou logo numa nota introdutória, é que Lucrezia estaria morta antes de cumprir um ano de casamento.
Fera enjaulada
Na infância de Lucrezia conhecemo-la como uma criança muito diferente dos seus vários irmãos, o que se confirma inclusive pelo hiato de alguns anos que distam entre ela e os outros, quer os mais novos quer os mais velhos, uma jovem dotada de uma prodigiosa inteligência, com um jeito inato para o desenho. Além disso, Lucrezia será acometida da obsessão de poder ver de perto um tigre-fêmea, a mais recente aquisição na coleção de animais exóticos do grão-duque, seu pai. Um animal aprisionado, de uma beleza indomável, com quem sentirá uma profunda e estranha afinidade da única vez que consegue
avistar a fabulosa criatura, até porque, infelizmente, esta não viverá por muito tempo… Essa afinidade não surge por acaso. São, na verdade, recorrentes os paralelismos ora implícitos ora explícitos ao casamento como uma prisão, como por exemplo no primeiro momento em que Lucrezia entra no quarto às escuras e se sobressalta, confundindo a cama com uma jaula – um símbolo que se torna recorrente no livro. Note-se aliás que é quando Lucrezia está a trabalhar numa pintura em miniatura de um estorninho, que o conselheiro-chefe de Cosimo, o seu pai, tenta saber se ela já tem as regras, o que significa estar pronta para casar. É o pássaro morto que a jovem observa, conforme a embaraçosa conversa se desenrola entre o homem e a ama, refletindo como a liberdade fora tolhida: a dela; a do pássaro que encontrara nessa manhã no mezanino, e que provavelmente esvoaçara durante toda a noite incapaz de encontrar uma saída; e a da pintura que ela iria criar, a partir do modelo do pássaro pousado a seu lado, a que pretendia conferir nova vida, mas que o homem, impressionado pela qualidade do trabalho, arrebatou, quase sem pedir licença.
A arte como vida
Será através da pintura, de cujas aulas beneficiou em criança, que a protagonista encontra um escape.
“Pinta durante muito tempo. (…) Passa da taça para o mel, para as pregas e rugas da toalha. Vai traçando o seu rumo no meio dos objetos, da forma como interagem uns com os outros, dos espaços e conversas entre eles, reduzindo-se ao tamanho de um besouro para poder atravessar as reentrâncias entre os pêssegos ou os hexágonos interligados do favo de mel.” (p. 220)
Uma arte que convém manter oculta dos olhos de estranhos, em particular do marido, da mesma forma que uma natureza morta pode tapar uma pintura secreta. É natural que a pintura seja omnipresente na narrativa, inclusivamente na técnica descritiva, uma vez que a época aqui retratada remonta justamente ao apogeu da arte pictórica.
“Vai passeando junto às paredes, contemplando uma e outra vez o fresco que representa os doze trabalhos de Hércules (…). O índigo e a azurite que deve ter misturado ali, naquela mesma sala, a pedido de um dos antepassados de Alfonso, já se esbateram e desbotaram com o tempo; é quase como se as cores se tivessem retirado para o interior da parede, para se esconderem, para aguardarem a passagem dos séculos. Lucrezia imagina-as a regressar, todas ao mesmo tempo, ao seu tom original e vivo, após um sinal mágico, após a repetição de uma senha secreta.” (p. 211)
tor e a preparação da realização do retrato de casamento que dá título ao livro. É também a partir daí que as analepses se tornam menos frequentes e se imprime novo ritmo à intriga até atingir o clímax.
Maggie O’Farrell nasceu em 1972 na Irlanda do Norte. Cresceu no País de Gales e na Escócia. Teve várias profissões: jornalista no The Independent on Sunday; professora de Escrita Criativa na Universidade de Warwick e na Goldsmith’s College, em Londres. É autora de nove romances, vários deles premiados. Venceu, em 2010, o Costa Book Award com The Hand That First Held Mine Além de Hamnet, tem vários li-
Nota-se ainda, subtilmente, nesta e outras passagens indícios de um romance histórico que nos coloca a partir de uma perspetiva inegavelmente contemporânea. Um romance belíssimo que, não obstante revisitar uma época recorrentemente trabalhada, consegue diversas proezas, nomeadamente a de arrebatar o leitor numa prosa lírica e apaixonada que, convenhamos, ganha revigorado fôlego na segunda metade do romance, com a chegada do pin-
vros publicados em Portugal, o último dos quais publicado pela Elsinore: Estou viva, estou viva, estou viva (2018). Os restantes títulos, publicados há anos pela Editorial Presença, encontram-se infelizmente esgotados: Antes de nos Encontrarmos; Incertezas do Coração; Depois de Tu Partires; O Estranho Desaparecimento de Esme Lennox A sua obra está traduzida em mais de trinta línguas. Vive atualmente com a família em Edimburgo.