Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o
JANEIRO 2020 n.º 134 www.issuu.com/postaldoalgarve
6.780 EXEMPLARES
ARTES VISUAIS •••
Saúl Neves de Jesus
Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; https://saul2017.wixsite.com/artes
Muito recentemente (dezembro de 2019) foi notícia que uma banana, colada à parede com fita-cola, com o título "Comedian" (“Comediante”), do artista italiano Maurizio Cattelan, foi vendida na 18ª edição da Feira de Arte de Miami (“Art Basel Miami Beach”) por 120 mil dólares (cerca de 108,5 mil euros), a um colecionador privado de Paris. Esta notícia foi ainda mais impulsionada pelo facto de o artista performativo nova-iorquino David Datuna a ter comido quando ela se encontrava em exposição no espaço da Galeria Emmanuel Perrotin nessa Feira de Miami. Datuna removeu a fita adesiva que colava a banana à parede da galeria e comeu-a em frente de dezenas de visitantes. Tratou-se duma performance deste artista, filmada e colocada na sua conta no Instagram, tendo sido intitulada pelo próprio como “Artista com fome”. A “fome” de Datuna parece ter sido sobretudo de protagonismo com esta situação, o que realmente conseguiu.
Como é que a arte pode fazer uma banana custar mais de 100.000 *euros? fotos d.r.
Imagem da obra "Comediante”, de Maurizio Cattelan (2019) • Ainda de acordo com a galeria, há três exemplares da obra. Assim, a mesma peça de arte, com bananas diferentes, foi comprada por três colecionadores diferentes e uma das bananas, que não acabou ingerida por visitantes, até custou mais: 150 mil dólares (cerca de 135 mil euros). Segundo um comunicado anterior da galeria, antes do anúncio da primeira venda, o artista teve a ideia de fazer uma escultura com uma banana, pois esta é um símbolo do comércio global. Embora tenha começado por fazer vários modelos, incluindo um
Imagem da obra "A nona hora", de Maurizio Cattelan (1999) • Era suposto ter sido preso, mas tal não aconteceu. Isto porque, segundo o diretor da Galeria Perrotin, "ele não destruiu a obra de arte”, pois aquilo que vale 120 mil dólares não é a banana e a fita adesiva, que é apenas a execução da ideia, mas sim a ideia, atestada pelo Certificado de Autenticidade, em que é indicado que os donos da obra são informados que podem substituir a banana, caso seja necessário.
de bronze, acabou por optar por uma banana “original”, comprada num supermercado local, cuja duração é limitada no tempo, o que acentuaria a ideia de consumismo. Consumismo e extravagância é também o que parece estar na origem da compra desta obra de arte. Mas o valor atingido por esta obra de arte tem também muito a ver com o histórico, o percurso do artista, a persistência e a con-
sistência do seu trabalho, a sua identidade, que pode permitir inferir a dimensão artística do mesmo. A obra “A fonte”, de Duchamp, em 1917, feita a partir dum urinol, é um exemplo da importância da dimensão histórica, pois foi um trabalho inserido numa originalidade e identidade que, de forma persistente, Duchamp desenvolveu, entrando para a história das artes visuais como o percursor da arte concetual, fazendo com que a ideia possa ser mais importante do que o produto final, ou melhor, o valor da obra de arte dependa da ideia subjacente. No caso de Maurizio Cattelan, embora não tendo frequentado qualquer escola de arte, tem já um histórico de irreverência criativa que lhe permitiu alcançar notoriedade no mundo das artes visuais. Desde logo, em 1999, com a obra "A nona hora", uma instalação que integrava uma estátua hiper-realista em cera do papa João Paulo II atingido por um meteorito vindo do céu que teria partido os vidros do teto, encontrando-se espalhados no chão. Assim, o representante de Cristo na Terra era vítima da principal lei que rege o universo, a Lei da Gravidade. Também em 2016, uma outra obra de Maurizio Cattelan, uma estátua de Hitler, intitulada “Ele”, criada em 2001, foi arrematada por 17,2 milhões de dólares (cerca de 15 milhões de euros) num leilão da Christie’s, em Nova Iorque. Nesta obra, Hitler surge representado do tama-
nho de uma criança, de joelhos, com as mãos entrelaçadas, dando a ideia de que se encontra a rezar. No mesmo ano, em 2016, Catellan substituiu uma sanita do Museu Guggenheim, em Nova Iorque, com uma réplica feita com 18 quilates de ouro, avaliada em 1 milhão de euros, intitulada “América”. Esta obra ganhou fama em 2018, quando o presidente Donald Trump solicitou ao Museu a pintura “Paisagem com Neve”, de VanGogh, para decorrar a Casa Branca, mas em resposta Nancy Spector, a diretora do Museu, lhe negou o pedido, tendo oferecido, em sua substituição, a sanita produzida por Maurizio Cattelan. Esta obra foi depois colocada na casa onde o antigo primeiro-ministro britânico Winston Churchill nasceu, o palácio de Blenheim em Oxfordshire, tendo sido entretanto roubada, não tendo sido ainda recuperada.
Ficha técnica Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saúl Neves de Jesus • Espaço ALFA: Raúl Grade |Coelho • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ao Património: Isabel Soares • Filosofia dia-a-dia: Maria João Neves • Letras e literatura: Paulo Serra • Missão Cultura: Direção Regional de Cultura do Algarve • Reflexões sobre urbanismo: Teresa Correia Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/ postaldoalgarve FB: www.facebook.com/ postaldoalgarve/ Tiragem: 6.780 exemplares
Talvez por isso mesmo, os próprios objetos adquiridos também tenham por vezes uma duração muito limitada no tempo. As obras de arte expressam a época em que são produzidas e, atualmente, a sociedade imediatista e consumista em que vivemos permite enquadrar o valor que estes produtos e performances artísticas conseguem atingir.
Imagem da obra "Ele", de Maurizio Cattelan (2001) • Assim, não há arte certa ou errada e não há uma maneira certa ou errada de comprar ou colecionar arte. Qualquer um pode colecionar tudo o que quiser, pela quantia que estiver disposto a gastar, desde que a tenha. Paradoxalmente, a posse de obras de arte não se alinha na tendência duma sociedade cada vez mais desprendida da posse de bens e mais focada no consumo imediatista e funcional dos objetos.
Imagem da obra "América", de Maurizio Cattelan (2016) • O mundo das artes visuais é complexo e leva-nos muitas vezes a perguntar “como é que isto é possível?”. E a possível resposta pode ser a seguinte: “É arte e em arte tudo parece ser possível! l
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LETRAS E LEITURAS •••
Voar no Quarto Escuro, de Márcia Balsas Paulo Serra
Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL
foto Gil Cardoso
Márcia Balsas venceu o Prémio Novos Talentos Fnac em 2018 com o conto "Ponto de Fuga" •
Voar no Quarto Escuro é o romance de estreia de Márcia Balsas •
Voar no Quarto Escuro parece ter começado como um livro de contos. Conta a história de Eduarda, uma viúva que se casa pela segunda vez como forma de refazer a vida, a sua e a da filha de 11 anos. Alice, que prepara o funeral da mãe e procura esconder desejos que há muito se tornaram óbvios. Celeste, que gosta de ser admirada, por homens e por mulheres, mas prefere manter-se à distância. Catarina, que coloca no afã da limpeza e do desvelo pelo senhor Antero um chamamento de amor não-correspondido. Adelaide, a médica que recorre ao prostituto de vinte anos para encontrar a intimidade que o marido lhe nega. Ema, a mulher de poder que gera uma criança morta, prenúncio de um casamento em ruína. Beatriz, dilacerada entre o não-sentir dos antidepressivos e a necessidade de sentir demasiado para poder escrever. Célia, a ama e testemunha de um casamento de revista entre duas vidas desencontradas. Cada trecho narrativo corresponde a uma personagem feminina. Cada texto designado pelo nome da personagem central. Mas Voar no Quarto Escuro, romance de estreia de Márcia Balsas, publicado pela Minotauro, não é um livro de contos. Assim o acusa o encadeamento temporal entre as micronarrativas que se complementam e iluminam reciprocamente, refractando a realidade destas mulheres a partir de
várias perspectivas; os nomes que começam a transitar de capítulo para capítulo; a forma como gradualmente na narrativa de uma das personagens se faz ouvir a voz de outra das oito mulheres, como se a narrativa começasse a oscilar entre a multitude de personagens e admitisse a impossibilidade de continuar a prender cada história num espaço estanque. Um romance que tem muito pouco de romântico, pois as relações interpessoais entre mulheres e homens são sempre desencontradas, áridas, impessoais. Até a relação meramente transaccional de Adelaide, talvez a personagem mais central de todas as oito, chega ao fim quando o jovem prostituto parece envolver-se amorosamente com o marido de outra das personagens. E quando há espaço para um canto de amor, este subsume-se a uma breve passagem quando Celeste sente que pode vir a apaixonar-se por Alice: «talvez prefira as mulheres, é maior a cumplicidade partilhada, os carinhos são mais compensadores, há uma meiguice que o corpo do homem não consegue dar» (p. 68). A unir estas mulheres atravessa-se uma vida de solidão, de dor psicológica e física, de silente desespero, em que o final enigmático do primeiro capítulo sobre Eduarda pode simbolizar o catalisador que desencadeia uma reacção em cadeia na vida de todas estas mulheres, cujas vidas se tocam
sem elas sequer o sentirem. Entre o clarão de um relâmpago e o disparo de uma bala, a morte de Eduarda, vítima de violência doméstica, e do seu agressor, no que se afigura um acto divino, pode revelar-se o fim de uma era de submissão e de convencionalismos mudos e simbolizar o sacrifício salvífico das vidas destas mulheres que restam para contar aquela que é também a sua história. Talvez nem todas as oito mulheres, Eduarda inclusive, consigam alcançar a salvação. Muitas vezes sentindo-se invisíveis, outras vezes transparentes, como uma «mulher-vidro» (p. 21), cada uma destas mães, filhas, amigas, colegas, amantes, profissionais, carrega a sua própria cruz e o seu segredo. Contudo, cada história é única e por isso não há aqui lugar nem sequer para o conforto de uma irmandade partilhada: «Poderá haver paralelismos nas suas vidas, pensa Adelaide, mas nenhuma se sente melhor por o ter percebido (...). Não há utilidade nessa informação, mais uma coincidência escusada. Noutras alturas, seria uma bandeira a perseguir, a amizade que teria de nascer, apenas por acreditar nessas inevitabilidades. Agora, inevitabilidade é outra coisa, para ela. É deixar correr, como o tempo» (p. 135). Márcia Balsas nasceu em Coimbra em 1977, autora do blogue literário Planeta Márcia, e venceu o Prémio Novos Talentos Fnac em 2018 com o conto «Ponto de Fuga». l
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Se o disseres na montanha, de James Baldwin ta história retrata a luta interior de um jovem que teme e odeia o padrasto, ele próprio um homem imperfeito e violento, enquanto simultaneamente o encara como um modelo a seguir. Aliado a esse dilema, persiste ainda outra clivagem maior, um segredo ainda inominável mas que é já perceptível ao longo deste romance, mas que apenas irrompe numa outra obra do autor, que será publicada ainda neste ano de 2020 pela Alfaguara – O Quarto de Giovanni. Nunca é expresso de forma absoluta e incontornável, mas ao longo deste livro, especialmente na primeira parte, mais centrada na perspectiva de John, os indícios homoeróticos na relação entre John e Elisha são vários. John pensa em Elisha «que era alto e belo, que jogava basquetebol e que aos onze anos tinha sido salvo das impensáveis plantações do Sul» (p. 20). John assume que pecou. «Apesar dos santos, do pai e da mãe, dos avisos que ouviu desde o princípio dos seus dias. Pecara com as suas mãos um pecado difícil de perdoar. Na casa de banho da escola, a pensar em rapazes, mais velhos, maiores, valentes, que faziam apostas uns com os outros sobre quem Escritor viveu em Paris para se poder encontrar como homem negro e homossexual • conseguia o maior arco de urina, e viu acontecer Se o disseres na montanha foi o fosse, mas a frase tantas vezes repe- em si uma transformação de que não romance de estreia de James Bald- tida surgiu na sua mente como um se atrevia a falar.» (p. 21) Porém, a win, publicado em 1953 e só agora grande portão de ferro que se abre par da consciência de John do petraduzido por Isabel Lucas e publica- para ele e dá para um mundo onde cado que o marca, e que o diminui do entre nós pela Alfaguara. O autor as pessoas não viviam na escuridão aos olhos dos outros, em particular nasceu em 1924 em Nova Iorque, do pai (...)» (p. 22) do padrasto, reside também em si a cresceu no bairro de Harlem, e viajou Na manhã de um sábado de Março, percepção de que se demarca dos para Paris em busca de liberdade pa- em 1935, John reflecte na admoesta- outros por motivos diferentes, como ra se poder encontrar como homem ção pública que o seu amigo Elisha e aconteceu um dia quando aos 5 anos negro e homossexual. Ella Mae receberam num sermão de a directora da escola vê a sua caligraA narrativa centra-se no dia do domingo, acusados de corporizarem fia no quadro e lhe diz «És um rapaz décimo quarto aniversário de John o pecado entre a congregação. No muito esperto, John Grimes» (p. 23) Grimes, dia em que se cumpre tam- momento dessa denúncia pública Um rapaz esperto num mundo de bém o vaticínio de que John um dia termina a possibilidade de estes dois brancos, em que para combater a quando crescesse seria pregador tal jovens continuarem a encontrar-se, injustiça, como a falsa acusação que como o seu pai (na verdade, o pa- ainda que de forma inocente, a não recai sobre Richard, o verdadeiro pai drasto), que lhe diz ser feio, o mais ser um dia mais tarde ao abrigo do de John, Elizabeth, a sua mãe, manbaixo da turma, o rapaz que não tem casamento, para terem filhos e edu- tinha «a cabeça levantada, o olhar amigos. cá-los na igreja. E é também nesse em frente e sentia a pele assentar «A John, que se destacava na es- domingo, dias antes do seu aniversá- sobre os ossos como se usasse uma cola – mas não em matemática nem rio, que «John percebeu que aquela máscara» (p. 189). em basquetebol, como Elisha -, foi era a vida que o esperava – que teve «Olhou para as ruas calmas e soadito que teria um grande futuro. Que realmente consciência de alguma lheiras e, pela primeira vez na vida, poderia tornar-se o Grande Líder do coisa não muito distante, mas imi- odiou aquilo tudo – a cidade branca, Povo de Deus. John não estava assim nente, a aproximar-se de dia para o mundo branco. Naquele dia, não foi tão interessado no seu povo e menos dia» (p. 20). capaz de pensar numa única pessoa ainda em liderá-lo no que quer que Inspirada na sua própria vida, es- decente no mundo inteiro. Sentou-se fotos d.r.
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Se o disseres na montanha foi o romance de estreia de James Baldwin •
ali e esperou que um dia Deus, através de torturas inconcebíveis, os levasse à humilhação total e lhes fizesse saber que os rapazes negros e as raparigas negras, que tratavam com tanta condescendência, tanto desdém, e tão bom humor, tinham corações como os seres humanos, corações mais humanos do que os deles.» (p. 193) Um mundo fechado, em que um homem não pode fugir ao isolamento e à diferença que a cor da sua pele lhe impõe, John carrega ainda essa outra cruz, a de amar o seu semelhante.
Go tell it on the mountain é o nome de uma música gospel, sobre o nascimento de Cristo, aqui possivelmente associada à conversão de John, ao seu renascimento em Cristo. E como é próprio de um sermão, como o Sermão da Montanha que disserta sobre os valores e princípios de uma vida cristã, a prosa de James Baldwin entretece simbolismo e lirismo. E, neste caso, a fúria sexual de um jovem a desabrochar é temperada pelo erotismo da sublimação do desejo. l
Obra foi publicada em 1953 •
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REFLEXÕES SOBRE URBANISMO •••
O ordenamento do território e as serras fotos d.r.
Teresa Correia
Arquitecta / urbanista arq.teresa.correia@gmail.com
Serras: riqueza ou pobreza? As serras algarvias, assim como outras no país, são fonte de riqueza ou de pobreza e abandono? Esta questão parece ser uma provocação, mas na realidade a riqueza natural e paisagística das nossas serras é tão relevante como as lindas praias do litoral e normalmente pouco tem sido explorada. Muito pelo contrário, tem existido um estímulo constante para a desertificação destas áreas, o que faz com que haja tendencialmente um abandono. Este estímulo ao empobrecimento traduz-se na redução de equipamentos sociais nos poucos aglomerados rurais, à sua não consagração como espaços urbanos nos PDM´s, e também com uma legislação cada vez mais restritiva na ampliação de habitações em espaços rurais, com a questão dos incêndios florestais como pano de fundo. A economia florestal e o desenvolvimento rural é fundamental para o crescimento de qualquer país, sobretudo de fracos recursos como Portugal. Quais as verdadeiras medidas tomadas, por exemplo, no Planeamento Urbanístico? Apenas uma visão um tanto cega, uniforme e contínua, como a constituição de manchas de REN, com a classificação do tipo “espaços florestais”, e pouco coerentes com a política das estruturas mais pequenas de espaços diferenciados, por exemplo, de alguns polos de desenvolvimento como parques empresariais destinados à água natural como em Monchique, ou turísticos.
O agravamento das alterações climáticas levará à construção de barragens •
proporcionada. Estas medidas só são possíveis, com vontade política, e com origem nas fontes financiamento de administração central. Os trilhos pedestres, através por exemplo da Rota Algarviana, são também uma estrutura de suporte ao turismo e vão ao encontro da natureza de forma sublime. O comércio de produtos da região, como seja, queijos, doces próprios da zona, assim como peças de artesanato do tipo vergas, cortiça ou elementos em madeira são exemplos de sustentabilidade económica própria dos espaços serranos. As autarquias procuram também promover estas pequenas economias, pelas feiras e outros espaços de encontro, que permitam a divulgação.
estrutura de apoio ao socorro e ao combate aos incêndios, com uma rede de acessos bem definida. Embora esta medida seja de difícil implementação, será fundamental com o agravamento das alterações climáticas. O impacto ambiental negativo das barragens será naturalmente contrariado pelo bem maior do desenvolvimento de espaços naturais e de apoio até aos espaços florestais e agrícolas, assim como às povoações. As serras merecem ser valorizadas para que possamos manter a nossa identidade, a nossa paisagem, as nossas floresta e, com isso, também a sobrevivência das nossas economias rurais.
O posicionamento das autarquias com serras As autarquias focam a sua preocupação nas populações, sobretudo no que diz respeito ao apoio aos idosos, e ao transporte de forma a evitar o isolamento social. Embora estas medidas sejam positivas, este tipo de problema estrutural de sub-desenvolvimento dos nossos espaços rurais só se resolve com medidas extraordinárias, com investimentos em infraestruturas de apoio, sejam estas: rodoviárias com ligações fáceis, como com barragens, promovendo os espaços fluviais e turísticos, como com um correto ordenamento do território, proporcionando a defesa da paisagem como um bem público, mas permitindo a dinâmica económica numa escala
As praias fluviais são grandes atrações turísticas •
A esperança: a serra, a água e a floresta A esperança baseia-se num maior conhecimento do nosso território, com um estudo mais completo relativo ao correto desenvolvimento florestal, uma correta gestão da água, nomeadamente com a construção de pequenas barragens, e ainda uma
O turismo no Algarve desempenha para a região o pilar fundamental da nossa economia, o nosso ouro, aquele que permitiu a saída do subdesenvolvimento de grande parte da população. Este turismo que nos alimenta, nos dá a riqueza, nos dá emprego, faz movimentar o pequeno comércio, a restauração, a hotelaria, os serviços de animação turística, a grande dinâmica de golfe, entre outros.
Porém, com os mercados concorrentes do mediterrâneo, do Norte de África, estamos nós preparados para uma diminuição da receita que possa advir ? O turismo necessita de um apoio claro do Governo, em infraestruturas de saúde, de segurança e de transportes. O setor privado tem feito a sua parte na aposta de hotéis de qualidade, mas falta criar uma cultura de acolhimento digno, com infraestruturas de transporte modernas e ligações fáceis aos centros e aos aeroportos, com uma ferrovia leve e flexível, com equipamentos de saúde públicos, e espaços públicos valorizados. Esta parte só ao Estado diz respeito, e parece tardar, ano após ano. Com a agitada discussão sobre o Brexit, será fácil prever que a redução do número de turistas ingleses está também à vista de todos, provocando um repensar sobre o que afinal temos como seguro e os nossos destinos. O ambiente de grande beleza, o clima, a gastronomia e a natureza amistosa do nosso povo são caraterísticas únicas que poderemos sempre valorizar no Algarve, mas não é suficiente para todas as crises. Será fundamental pensar antecipadamente e procurar novos mercados. O ordenamento do território e o turismo A sustentabilidade do território é tantas vezes questionada pela pressão turística, tendo sido o Algarve durante décadas julgado pela má utilização dos seus recursos, pela densificação excessiva. Embora haja exemplos infelizes, ainda assim, foram conseguidas melhorias significativas de infraestruturação, de contemplação da natureza, de valorização dos nossos núcleos históricos,
não podendo referir que tudo seja mau. O ordenamento do território, por orientação governamental, teve em consideração este desígnio do Algarve e procurou promover essa atividade pela exceção. Em quase todos os regulamentos urbanísticos consegue-se verificar que houve uma intenção de promover esta atividade, como exceção à proibição, permitindo a construção ou a ampliação no caso do turismo em espaço rural, nos estabelecimentos hoteleiros Isolados, ou nos núcleos de desenvolvimento turísticos. A residência habitacional local das populações não foi tão grandemente valorizada, mas sobretudo o aspeto de desenvolvimento económico do turismo. Será certamente relevante e fará sentido, mas consideram-se também adequadas outras funções para além desta, como a habitação, o aglomerado rural, o pequeno centro urbano que muitas vezes se localiza em cruzamentos de estrada e pequenos locais históricos de vivência, como um poço, ou uma capela. O equilíbrio entre a população residente e o turista Hoje, temos o debate sobre a capacidade da população residente em resistir ao turismo nos centros históricos, onde parece que o espaço do cidadão comum está a ser invadido ou desalojado. Embora possam existir excessos, em muitos casos, esta situação ainda está longe de provocar danos irreversíveis, pelo menos, no caso do Algarve. Aqui, faz tempo que tínhamos as camas paralelas e a densificação no Verão, e estamos habituados. Aprendemos a lidar com as multidões há décadas, e não existe nenhum algarvio que se incomode, porque sabe que essa é uma realidade que lhe permite viver e crescer economicamente. Crescemos nesta ambiência e os nossos locais serão sempre nossos, porque no fim da época balnear, estamos sozinhos. Esta situação é muito particular no Algarve e foge completamente à realidade de Lisboa e do Porto, por exemplo. A especificidade da nossa região devia ser ponderada em questões de restrições ao direito de instalar um alojamento local, porque já o fazíamos antes, mesmo sem ser dessa forma. Em termos de planeamento, faltará mais o regular no pormenor, na defesa do nosso património arquitetónico e da nossa memória coletiva. Na ausência destes documentos, o turismo poderá facilmente invadir e criar algum ruído e perturbação, o que seria evitável com uma visão urbanística das nossas cidades. l
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ESPAÇO AGECAL •••
Cidades algarvias, complementaridades necessárias Jorge Queiroz
Sociólogo, sócio da AGECAL
Se olharmos o Algarve no mapa do continente vemos um pequeno Portugal na horizontal, “deitado”… Jorge Gaspar observou no livro “As regiões portuguesas” (MPAT, Lisboa,1993) que “… de facto, aqui encontramos ‘rodando os eixos’, as principais componentes do País, em formato reduzido: as duas unidades geológicas mais marcantes – orla sedimentar e maciço antigo,…” O Algarve é uma região com estruturação urbana muito antiga, “a última riviera mediterrânica” na perspectiva de Orlando Ribeiro. Anteriores à nacionalidade existiam no continente oito cidades, sendo Silves a cidade mais antiga do Algarve. Foi a capital da região no período do Al Andalus, quando a partir do castelo medieval dominava
vastos territórios e ali governava uma aristocracia muçulmana do Magrebe, cujos conflitos internos originaram taifas e debilitação dos poderes. No decorrer deste século três centros urbanos do Algarve celebrarão 500 anos de elevação a cidade. A primeira urbe algarvia desde a fundação de Portugal a ser elevada a cidade foi Tavira a 16 de Março de 1520 por carta de D. Manuel I, seguir-se-ão Faro (1540-2040) por decisão de D. João III e três décadas mais tarde Lagos distinguida por D. Sebastião (1573- 2073). Tornaram-se cidades Portimão em 1773 e já no século XX a “vila da restauração” Olhão (1985), Albufeira (1986), Loulé e Vila Real de Santo António (1988), Quarteira (1999) e Lagoa (2001). As relações entre as cidades algarvias com o mundo rural foram sempre vantajosas. O campo abastecia as cidades de produtos sazonais, abundantes e frescos, havia merca-
dos e feiras regulares, o Algarve era uma importante região exportadora. Para escoar a abundância de figo a Feira Real em Tavira passou no século XVI de mês e meio a três meses, de Setembro a finais de Novembro… Na segunda metade do seculo XX ocorreram grandes alterações do modelo económico, tecnológicas, demográficas e de urbanização. A rede de centros urbanos algarvios pela sua dimensão equilibrada, é importante para o futuro, porque capaz de dar coesão e sustentabilidade a uma região que pede estratégia supramunicipal que articule o seu elevado potencial com a capacidade política de estabelecer prioridades, sobretudo de planear e solucionar com eficácia. Os maiores problemas do País são demográficos, de ordenamento do território, de planeamento e gestão integrada de recursos. Num relatório do INE pode ler-se, “a densidade populacional diminuiu,
entre 2011 e 2016, em 273 dos 308 municípios que compõem o território nacional” e “apenas 34 municípios registaram uma evolução positiva da população…” in RETRATO TERRITORIAL DE PORTUGAL, 2017. A explicação das causas será indispensável. A cultura, como realidade definidora de valores e herança para a continuidade, dimensão integrante e insubstituível de qualquer processo do desenvolvimento inclusivo, terá ser percebida como diferenciadora, como transmissão de conhecimentos e valorização humana, sendo por demais evidente que o Algarve carece de um diagnóstico dos seus recursos culturais, de um plano estratégico de base científica e acções concertadas visando a especialização, complementaridade entre territórios e cidades. Seria difícil fazê-lo? Não, nem teria custos muito elevados. O Algarve possui cidades com pa-
trimónios multifacetados resultantes de civilizações da antiguidade, outras do período muçulmano e medieval cristão, cidades quinhentistas como Tavira, Faro e Lagos, núcleos piscatórios ao longo da costa e uma “cidade total” iluminista como Vila Real de Santo António, a novecentista, piscatória e popular cidade de Olhão. Nenhuma outra região portuguesa possui uma unidade regional natural tão evidente e uma rede de centros urbanos de pequena e média dimensão “em linha” que se poderiam articular num modelo dinâmico, exemplar pela qualidade do desenvolvimento humano e sustentabilidade dos territórios. Isso só será possível com uma visão integrada supramunicipal e a criação da autarquia regional. Na década que agora começa, o mundo evidencia o esgotamento do modelo dominante. Tal como o próprio País, o Algarve tem de se repensar… l pub
DOIS MINUTOS PARA OS DIREITOS HUMANOS 2. ARÁBIA SAUDITA
1. HONG KONG
© AFP/Getty Images
O ano começou com um novo protesto e a detenção de 287 pessoas, incluindo três observadores de direitos humanos. Mais uma vez, a polícia mostrou ao mundo o desdém pela liberdade de expressão e reunião, dispersando com violência os manifestantes pacíficos. As autoridades de Hong Kong devem realizar uma investigação rápida, independente e eficaz sobre todas as alegações de uso excessivo da força aplicada pelos agentes nos últimos seis meses.
A condenação à morte dos suspeitos do homicídio de Jamal Khashoggi ignora o envolvimento das autoridades sauditas no crime e não esclarece onde se encontram os restos mortais do jornalista. A Amnistia Internacional nota ainda que o julgamento foi realizado à porta fechada, sem a presença de observadores independentes. Recorrentemente, os tribunais da Arábia Saudita negam o acesso dos réus a advogados e sentenciam execuções em processos injustos.
4. COREIA DO SUL
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Junte-se a nós. Saiba como em www.amnistia.pt/ativismo
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Os objetores de consciência vão continuar a ser punidos por recusar cumprir o serviço militar obrigatório devido a uma nova lei. O diploma prevê que quem cita motivos religiosos ou outros será obrigado a trabalhar em instituições correcionais, durante três anos. Anteriormente, a legislação estipulava penas de prisão de 18 meses. Contudo, em 2018, dois tribunais superiores sul-coreanos reconheceram o direito à objeção de consciência no país.
3. ISRAEL A decisão da procuradora-chefe do Tribunal Penal Internacional (TPI), Fatou Bensouda, de abrir uma investigação contra Israel por crimes de guerra nos territórios palestinianos ocupados é um passo histórico. No entanto, falta confirmar que o TPI tem jurisdição sobre a Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental. Ao longo dos anos, a Amnistia Internacional documentou violações de direitos humanos cometidas pelo Estado israelita e também por grupos armados palestinianos.
5. LÍBIA A guarda costeira já não vai receber os seis barcos prometidos por França, após uma campanha que contou com a colaboração da Amnistia Internacional. Paris cedeu à pressão pública e cancelou a entrega, no final do ano passado. Se o plano não tivesse sido abortado, as autoridades líbias ficariam dotadas de novos meios para fazer regressar migrantes e refugiados resgatados ao largo da costa do país, onde existe o risco de serem detidos, torturados ou abusados.
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MARCA D'ÁGUA •••
Dar vida ao Sal: potencialidades turísticas foto d.r.
Maria Luísa Francisco Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa luisa.algarve@gmail.com
Dez toneladas de sal serviram de suporte ao Presépio de Sal exposto na Casa do Sal. Os 110m2 de sal ganharam vida com mais de 4.500 figuras alusivas à história do nascimento de Jesus e à cultura e ofícios tradicionais de Castro Marim. Durante a visita ocorreu-me que poderia existir no Algarve uma Capital do Sal. Pelo menos três localidades da Região têm ligação ao Sal: Castro Marim, Tavira e Loulé. Criar uma Rota do Sal com um percurso pelas localidades com ligação ao Sal, tornando o Algarve num destino dos três S’s: um destino turístico de Sol, Sal e Serra. Talvez até mais um quarto S, acrescentando assim a Simpatia! O Algarve tem imensas potencialidades, o Sol tem estado garantido, a Serra tem estado a ser cada vez mais valorizada e o Sal, esse “ouro branco”, que para além de ser exportado e levar o nome do Algarve e de Portugal até outros países, poderá estar cada vez mais ligado ao turismo. Em Castro Marim, para além da produção de sal, existe um SPA salino em que a terapia passa pelo envolvimento do corpo em sal e argila salgada e ainda um banho flutuante em águas ricas em sais minerais, o que constitui uma oferta turística diferenciada. Em Tavira existe sal com Denominação de Origem Protegida (DOP), produzido com recurso a técnicas pub
O sal é a única "rocha" comestível pelo ser humano e faz parte da nossa cultura e da Dieta Mediterrânica •
ancestrais. O sal marinho colhido manualmente nas salinas de Tavira é obtido a partir de água do Oceano Atlântico. Após a conquista do sotavento algarvio, D. Afonso III reservou para a Coroa Portuguesa, no Foral de 1266 a Tavira, “todas as salinas cheias e por encher em Tavira e seu termo”, acabando estas por desempenhar um papel importante na Expansão Portuguesa. Em Loulé existem as minas de Sal-Gema que já foram usadas para fins culturais, tendo sido apresentada a exposição "Timeless Territories" e realizado um concerto de Mário Laginha. É a única mina portuguesa visitável que se localiza abaixo do nível do mar. Trata-se de um espaço localizado a 230 metros de profundidade e permite observar formações geológicas com milhões de anos. Para além da extração de sal tem
presentemente actividade turística com visitas guiadas diárias. O Sal da Vida O sal faz parte da nossa vida diária, se não ingerirmos sal perecemos e se ingerirmos sal a mais também perecemos. O sal é a única "rocha" comestível pelo ser humano e faz parte da nossa cultura e da Dieta Mediterrânica. Os Romanos usavam o sal não só para conservar os alimentos, mas também como forma de pagamento, usando o termo salarium argentum, que significa “pagamento em sal”. Daí a palavra salário ter origem na palavra sal. No Império Romano, os soldados eram pagos com sal. Naquela época, o sal era uma iguaria muito valiosa e podia ser trocada por outros alimentos, vestimentas, armas, etc.
Há uma expressão latina ligada ao sal: Cum grano salis que por vezes, em certos casos, ainda se usa. Literalmente significa “com um grão de sal” e quer dizer que um assunto deve ser tratado com ponderação, com uma pitada de bom senso. O sal também dá vida à poesia! Temos na nossa memória colectiva estas palavras de intensa carga histórico-poética: “Ó mar salgado quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal…” com as quais Fernando Pessoa inicia o seu poema Mar Português. Lugares de Sal Fazendo uma pesquisa sobre lugares ligados ao sal, encontram-se belas imagens do maior Salar do mundo. Fica no sudoeste da Bolívia e são 10.000 Km de puro sal, conhecido por Salar de Uyuni, a
particularidade é ter um hotel de sal. Na Europa existe um hotel e um SPA dentro das minas de Wieliczka, na Polónia, inclusivamente existem capelas dentro das minas. Em Loulé, em 2009, esteve equacionada a hipótese da abertura de um hotel na mina, mas o projecto está em stand-by. E muito mais haveria a dizer sobre o sal, mas fica esta pitada para despertar o interesse sobre tão importante produto natural, que faz parte de nós. Fisicamente também somos sal, aliás “somos o sal da terra” como se pode ler na Bíblia. Que este novo ano seja temperado Cum grano salis, com a pitada de sal que, sem excesso, nem omissão, faz de nós o sal da terra dando ponderação e equilíbrio às nossas decisões de 2020. l
17 de janeiro de 2020
CULTURA • SUL
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FILOSOFIA DIA-A-DIA •••
Sobre o Sucesso e o Fracasso fotos d.r.
Maria João Neves Ph.D Consultora Filosófica
Durante as festividades do Natal e Ano Novo famílias e amigos reúnem-se aproveitando para “pôr a escrita em dia”. Pergunta-se pelos filhos, pelos netos, todos querem saber como lhes corre a vida. E se a vida corre bem, é um prazer ir a estas reuniões familiares dar as boas novas. Ficamos então a saber que o primo sicrano tem um emprego fabuloso, que o primo beltrano foi promovido e vai tratar da sua reforma num sítio fantástico, e que a sempre bem sucedida prima encontrou agora um pretendente à sua altura. Se as coisas correm mal, o desejo é de que esta época infernal acabe depressa! Talvez o lar tenha ficado destroçado, ou a saúde escasseie, ou a situação profissional vá de mal a pior! Não se quer ser recordado da situação difícil que se atravessa, e menos ainda suster os olhares de pena ou de incredulidade que podem surgir. O desejo de sucesso, de realização profissional, agoniza a vida de tanta gente que talvez mereça que nos detenhamos a reflectir sobre este assunto. Como seriam os Natais de Van Gogh? Antes de se tornar pintor, o jovem Vincent nascido em 1853 numa família de posição social elevada, foi vendedor de arte tendo tido oportunidade de viajar bastante e de conhecer bem a produção artística do seu tempo. Começa a pintar em 1881 e muda-se para Paris em 1886 onde se relaciona com eminentes artistas da época, entre eles Paul Gauguin, Émile Bernard ou Henri de Toulouse-Lautrec; aliás, chega a expôr ao lado destes dois últimos. Gauguin, por seu lado, chegará a habitar com Van Gogh na Casa Amarela em Arles e a pintar um retrato de Vincent: “O pintor de girassóis” em 1888. O seu irmão mais novo, Theo, bem posicionado no mercado da arte, proporcionou-lhe diversos contactos e apoiou-o financeiramente durante toda a vida. Apesar de se encontrar num meio favorável, Vincent Van Gogh nunca vendeu um quadro! O seu desespero levou-o a cortar parte da orelha esquerda e, finalmente, a cometer suicídio apontando uma arma contra o peito em 1890. Foi considerado pelos seus contemporâneos um louco e um fracassado. Um século depois o seu quadro Retrato de Dr. Gachet, entra na lista dos 10 quadros mais caros de sempre, tendo sido vendido por 148,3 milhões de dó-
Johann Sebastian Bach nunca obteve reconhecimento como compositor em vida •
lares. Foi adquirido pelo empresário japonês Ryoei Sato em 1990. Como seriam os natais de Johann Sebastian Bach? Extremamente musicais, certamente. O compositor, nascido em 1685 e falecido em 1750, alcançou um lugar de destaque na Alemanha de então tendo ocupado o cargo de Kantor da Igreja de São Tomás e Director Musical da cidade de Leipzig. O seu virtuosismo no cravo foi amplamente reconhecido, bem como a sua excelência como maestro, cantor e violinista. Contudo, o grande pai Bach nunca obteve reconhecimento como compositor. É algo difícil de conceber! Hoje em dia todas as escolas do ensino especializado da música têm como obrigatórias obras de Bach o grande mestre do contra-ponto e da arte da fuga por muitos considerados o maior compositor da época barroca. No entanto, as suas obras obtiveram um êxito muito limitado em vida e foram completamente esquecidas após a sua morte. Mais uma vez foi necessário que passasse um século! Foi um outro compositor, Felix Mendelssohn, quem no inicio do Séc. XIX deu a obra de Bach a conhecer. Porém, quanto tempo é necessário para avaliar justamente uma obra de arte? Em ambos os exemplos foi necessário muito mais tempo do que aquele de que dispuseram os seus criadores. Podemos apreciar o quanto a vida foi injusta para com estes dois génios. Embora exista uma grande diferença entre ambos: Bach desfrutou de empregos bem remunerados, que lhe permitiram sustentar uma extensa família e ainda ter tempo para se dedicar a compor. Van Gogh viveu em condições muito precárias, não obteve qualquer retorno financeiro da sua actividade de pintor; valeu-lhe a enorme caridade do
seu irmão mais novo que sempre o ajudou. Será que conseguimos imaginar um mundo sem a música de Bach, ou sem a pintura de Vang Gogh? Existem almas cujo génio, de tão avançado, precisa que passem 100 anos até que o mundo se digne reconhecer o seu valor! Se estas almas não tivessem persistido na sua labuta, independentemente do reconhecimento desejado mas não alcançado e, mais ainda, no caso de Van Gogh, independentemente do retorno financeiro que nunca aconteceu, toda a humanidade teria ficado a perder!
Vivemos num mundo orientado para os resultados, só se ouve falar de índices de produtividade. Estes tendem a ignorar os processos, que são assim esvaziados do seu significado intrínseco. Nesta lógica nociva os processos carecem de valor em si mesmos, passando a sua validade a depender do atingir ou não a meta que se propõem. Se os fins não são atingidos fracassa-se. A palavra fracasso deriva do Italiano frangere, que significa quebrar e quassare, que se pode traduzir por sacudir, chacoalhar, bater repetidamente, ameaçar, e quebrar. Fracassa-se, portanto,
do o tempo que se empregou até ali chegar. O momento da falha como que quebra um frasco que contém um veneno poderoso que contamina todo o tempo empenhado no objectivo que agora se viu gorado. Este procedimento mental, tão frequente, é uma receita efectiva para a infelicidade! O que é que terá feito com que Van Gogh tenha continuado a pintar apesar de nunca ter vendido um quadro? O que é que terá feito com que Bach continuasse a compor apesar das suas composições não obterem êxito? Talvez a escolha de ambos não dependesse do resultado da actividade a que que se dedicaram mas tivessem eles encontrado um valor intrínseco no desenvolvimento da actividade em si mesma. Talvez o prazer inerente ao acto de pintar ou ao acto de compor os nutrisse e isso bastou! Ou talvez não tivessem podido deixar de o fazer, porque um dependia de pintar e outro de compor tanto como de respirar! Se desviarmos a atenção da finalidade para a actividade podemos avaliar se aquilo em que despendemos o nosso tempo, aquilo em que nos empenhamos nos nutre ou não. Se nos emanciparmos do resultado, se lhe tirarmos a relevância, seremos melhores juízes do emprego no nosso tempo. Mas se, apesar de tudo, não conseguirmos deixar de ter expectativas e de orientar as nossas forças rumo a uma meta exterior, então, nesse caso limite, disponhamo-nos a fracassar com graça! Ou
O pintor Vincent Van Gogh foi considerado pelos seus contemporâneos um louco e um fracassado •
Afinal o que é que determina o sucesso ou o fracasso de uma vida? O substantivo sucesso tem origem no latim successus, que significa entrada; abertura; vinda; bom resultado; êxito. Relaciona-se também por via do latim com suceder, no sentido de acontecer. Fracassa-se, portanto, quando aquilo que se esperava, ou desejava, não acontece.
quando aquilo que sucede frustra as expectativas ao não se atingir o fim pretendido. A lógica nociva determina também que ao fracassar, todo o tempo despendido na actividade que se vinha desempenhando seja considerado vão. Quer dizer, é feita uma avaliação com efeitos retroactivos: não apenas o momento do fracasso é negativo mas também to-
como diz Samuel Beckett: “Não importa. Tente outra vez. Fracasse outra vez. Fracasse melhor.” Estes são os meus votos para o ano que entra: desenvolvamos a arte de fracassar e obteremos leveza e alegria como efeito secundário! l Inscrições para o Café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com