Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o
ABRIL 2021 n.º 149 7.227 EXEMPLARES
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ARTES VISUAIS
Pode a arte espontânea contribuir para a saúde mental? Ficha técnica Direção: GORDA, Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Responsáveis pelas secções: • Artes Visuais: Saúl Neves de Jesus • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Filosofia Dia-a-dia: Maria João Neves • Fios De História: Ramiro Santos • Letras e Literatura: Paulo Serra Colaboradores desta edição: Jéssica Sousa, Mauro Rodrigues Parceiro: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve FB: https://www.facebook.com/ Cultura.Sulpostaldoalgarve
EM CIMA Pintura “Campo de trigo com corvos” (Van Gogh, 1890) EM BAIXO Pintura “Floresta do lago” (José Luís Firmino, 2020) SAÚL NEVES DE JESUS Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; http://saul2017.wixsite.com/artes
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o último número procurámos identificar o enquadramento para as obras de arte produzidas por artistas que não têm formação académica em artes visuais, sendo feita uma retrospetiva de vários conceitos que foram surgindo na literatura, desde finais do século XIX, para enquadrar estas produções artísticas, nomeadamente o conceito mais abrangente de arte naïf. No entanto, de entre a expressão artística daqueles que não têm formação académica neste domínio, há o caso particular das pessoas com experiência de doença mental. De entre as várias designações propostas ao longo do século XX, como arte bruta, arte degenerativa, arte pura, arte visionária ou arte marginal, a designação de arte espontânea parece ser a mais abrangente e consensual para descrever a expressão artística de pessoas diagnosticadas com doença mental, tendo em conta que a espontaneidade é comum aos
processos envolvidos na produção artística em qualquer das designações propostas. Assim, o conceito de arte espontânea designa as obras que apresentam qualidades de expressão estética, na forma de desenho, pintura ou escultura, realizadas por pessoas diagnosticadas como sendo portadoras de doença mental. E a arte espontânea pode ter um papel muito importante para a estabilização e recuperação no âmbito da saúde mental, como aliás a arte terapia tem vindo a revelar. Foram vários os contributos realizados ao longo do século XX procurando destacar a importância da expressão artística de pessoas diagnosticadas com doença mental. Destes destacamos o trabalhos de Prinzhorn, que estudou as características de estruturação de obras produzidas por doentes mentais, tendo em 1922 publicado o livro “Obras artísticas de doentes mentais”. Em homenagem a Prinzhorn, em 2001 foi criado o “Sammlung Prinzhorn Museum”, alojado no Hospital Universitário Heidelberg, na Alemanha, onde pode ser admirada a coleção de obras de arte realizadas por pessoas com doença mental.
Por seu turno, no Brasil, a psiquiatra Nise da Silveira criou uma oficina de artes plásticas para doentes mentais, os quais podiam produzir de forma completamente livre e espontânea as suas obras. Em 1954, Nise fundou o “Museu de Imagens do Inconsciente” com as obras produzidas pelos “doentes-artistas”. Em Portugal têm sido várias as associações e instituições que têm desenvolvido um trabalho no âmbito da estabilização e recuperação de pessoas portadoras de doença mental através da expressão ao nível das artes visuais. Destacamos o trabalho recente realizado pela ReCriar Caminhos, uma Associação de Apoio ao Desenvolvimento Vocacional, Formação e Inclusão de Pessoas com doenças mentais, criada em 2008 e tendo obtido o estatuto de IPSS em 2010. Esta Associação promove atividades de reabilitação psicossocial procurando “recuperar e desenvolver talentos”. Recentemente, entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021, foi realizada em Coimbra a “II Exposição Nacional de Arte Espontânea”, organizada pela ReCriar Caminhos.
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Nesta exposição encontravam-se reunidos trabalhos provenientes de seis instituições portuguesas que possuem Centros de Atividades Ocupacionais destinados à estabilização e reabilitação de pessoas com doenças mentais, de entre elas a Associação de Saúde Mental do Algarve (ASMAL). No Prefácio do Catálogo desta exposição, Manuel Viegas Abreu destaca que as obras produzidas por pessoas diagnosticadas com doença mental nascem sobretudo devi-
do à necessidade de comunicar e podem ser interpretadas como mensagens, apelos ou pedidos de ajuda. E é fundamental ser tida em conta esta forma de expressão por estas pessoas, não apenas em termos de diagnostico, mas também pela
realização que esta expressividade lhes pode proporcionar. Num artigo anterior, intitulado “Qual a importância do reconhecimento da criatividade dos artistas?, tínhamos destacado que o reconhecimento ou não do trabalho criativo dos artistas pode ser um aspeto muito importante para compreender o desenvolvimento ou não de problemas de saúde mental. Talvez se Van Gogh tivesse sido reconhecido em vida, em vez de ter desenvolvido psicopatologia, teria sentido estímulo para a concretização da sua criatividade e de todo o seu potencial artístico, não se tendo suicidado. Várias investigações têm verificado a importância da realização do sujeito e do reconhecimento pelos outros como uma dimensão protetora para prevenir a depressão das pessoas em geral. Este reconhecimento é tanto mais importante em relação a pessoas que são mais vulneráveis do ponto de vista psicológico, pelo que é essencial o trabalho desenvolvido pela ReCriar Caminhos e pelas outras instituições e associações que procuram promover a expressão artística e o reconhecimento das obras produzidas por pessoas diagnosticadas com doença mental.
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ESPAÇO AGECAL
Cultura e indústrias culturais JORGE QUEIROZ Sociólogo, sócio da AGECAL
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or Cultura entende-se o conjunto de valores espirituais e conhecimentos técnicos, que ao longo da história integram o quotidiano das sociedades humanas, realidades diversas como as línguas/ dialectos, hábitos de alimentação e de convívio colectivo, vestuários, convicções e práticas religiosas, as artes, tradições populares, o Direito, entre muitas outras. Charles P. Snow numa conferência muito debatida realizada em 1959 abordou as “duas culturas”, as humanidades e as ciências. A categorização teve outras formulações, nomeadamente quanto aos espaços, as “culturas de apartamento” e as “culturas de saída”. Surgiram conceitos como “cultura material e imaterial”, “cultura cultivada” ou erudita que exige formação e estudo, a “cultura popular” produ-
zida pelas próprias populações e a “cultura de massas” ou de consumo ligada aos fenómenos da urbanização e da influência dos media. As indústrias culturais (i.C.s) pertencem maioritariamente a este último grupo, visam a reprodutibilidade em grande escala, actividades que incluem a produção cultural e artística, a comercialização e consumo massificado. As relações entre cultura, enquanto conhecimento e desenvolvimento humano e as i.C.s são complementares, envolvem criação e tecnologia, na educação, no livro e na leitura, no audiovisual informativo e pedagógico. Se o acesso é livre e gratuito, as obras são criadas pelos autores, as produtoras e tipografias reproduzem-nas, os editores divulgam e comercializam. As indústrias culturais têm características particulares em relação a outras, resultado da fluidez dos mercados e variações de gosto, originando “marcas” e a reprodução em maior escala.
Nas indústrias culturais, do ponto de vista laboral, é mais acentuada a precariedade devido às conjunturas e concorrência entre mercados. Existe maior estabilidade de emprego em trabalhadores ligados a infraestruturas culturais de natureza pública ou comunitária, museus, bibliotecas, arquivos, teatros, centros de ciência, entre outros, que funcionam de forma continuada no desenvolvimento educativo das gerações, acesso aos bens culturais. O grau de formação e especialização são mais elevados que noutros sectores, nas estatísticas nacionais os trabalhadores da cultura surgem com níveis elevados de formação superior. As i.C.s exigem concentração de capital, promovem a novidade, notoriedade e diferenciação. Acentua-se nelas a competitividade, as estratégias de valorização da autoria e do produto, visando a liderança de mercados, acréscimo de consumidores e internacionalização. A utilização de publicidade nos meios de comunicação de massas,
TVs, rádios, imprensa e internet, são instrumentos de captação de públicos e de alargamento da atenção e influência. Em relação aos conteúdos, as actividades culturais e artísticas promovidas por instituições públicas, são normalmente menos voltadas para a experimentação e inovação que associações privadas e grupos criativos com maior informalidade nas relações. Até ao surgimento da actual crise sanitária mundial a “festivalização cultural” vinha aumentando em Portugal. O espectáculo ao vivo tendo custos de produção mais elevados consegue maiores benefícios para os promotores, financiado sobretudo por autarquias locais que procuram atrair cidades, o turismo e populações suburbanas. A livre concorrência é hoje problemática, o investimento e concentração de meios nas i.C.s mais poderosas dominou nas últimas décadas os circuitos de produção e os novos sistemas de comunicação,
distribuição e exibição, formatando o gosto das novas gerações, sendo escassas as produções de outras origens geográficas ou linguísticas. A globalização de uma cultura unipolar contraria as convenções da UNESCO, a protecção e valorização da diversidade cultural. Pela natureza espiritual e reflexão crítica sobre a realidade, importa que a cultura não seja apenas produto de lazer, de consumo passivo-emotivo, tendência que se tem vindo a acentuar. As políticas culturais, se correctamente desenhadas, promovem o conhecimento e reequilíbrios sociais, a cidadania e participação, valores humanistas e inclusão, sentimentos de pertença e afinidades, maior cooperação entre criadores e operadores artísticos, o Estado, autarquias e as instituições culturais, com o espaço público e as populações. * O autor não escreve segundo o acordo ortográfico
Arte prepara-se para invadir as ruas de Faro
Cursos de iniciação realizados em 2020 adaptados à nova realidade da Covid-19
JÉSSICA SOUSA | CRISTINA MENDONÇA Fotos: Eduardo Pinto
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or entre dunas e encantos da Ria Formosa, a fotografia vem a ganhar cada vez mais adeptos e fiéis no Algarve. A Associação Livre Fotógrafos do Algarve (ALFA) pretende inovar para aumentar o nível de procura e tem programada para o verão uma grande exposição de rua. As exposições coletivas e individuais organizadas pela associação
de pequena escala são recorrentes em anos anteriores na Galeria Arco, na Cidade Velha em Faro, mas este ano reinventam-se e prometem. A ALFA avança que uma exposição de rua de grande impacto na cidade será novidade este ano a partir do mês de junho. Segundo Carlos Cruz, presidente da direção da associação, “vamos tentar surpreender! Vamos lançar o desafio e estamos abertos a acolher projetos dos nossos sócios sobre diferentes temáticas: mar, Ria Formosa, biodiversidade, ou mesmo temas a serem escolhidos pelos próprios autores”. O Postal do Algarve
tem conhecimento que foram enviados convites a fotógrafos premiados. A associação conta atualmente com 70 sócios pagantes e cerca de 700 membros ativos e proporciona o ensino da fotografia através de formações, workshops, passeios fotográficos e exposições de teor coletivo ou individual. Com a pandemia houve uma diminuição do número de iniciativas, embora no ano passado tenham sido realizados cinco cursos de formação presencial que obedeceram a todas as regras sanitárias. O grupo teve de se adaptar à nova realidade e no ano presente iniciou um novo ciclo
de tertúlias virtuais, mas continua à espera que os cursos de curta duração voltem a fazer parte da agenda num regime misto que conjugue o online e presencial. O ensino da fotografia envolve uma componente teórica, mas também prática. Ao passar o conhecimento da fotografia via online aos formandos são encontradas dificuldades. A ALFA lamenta a limitação da sessão de dúvidas e respostas e o facto de não ser possível aplicar na prática os conteúdos lecionados através de saídas para fotografar e editar passo a passo. Em fase de iniciação, os cursos online pecam a nível de interesse
pela falta da parte prática. Para o nível mais avançado, as formações são mais vantajosas dado que são apresentados tutoriais que podem ser seguidos e, mais tarde, recriados pelos alunos. Com esta opção de ensino, ao estilo “on-demand”, o conteúdo consegue abranger um público infinito. A associação destina-se principalmente aos apaixonados por eternizar momentos que passam, do sul do país e de todas as idades. A ALFA afirma que não trabalha apenas para os interessados de Faro, mas sim “para toda a região” e conta com sócios em Lisboa e Huelva.
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ESPAÇO ALFA
A inteligência artificial pode destruir a fotografia MAURO RODRIGUES Membro da ALFA – Associação Livre Fotógrafos do Algarve
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frase pode ser um pouco radical, mas a chamada inteligência artificial vem aí para mudar completamente as coisas, não só na fotografia e no vídeo, mas em muitos setores da sociedade. A inteligência artificial por enquanto é apenas um chavão de marketing e trata-se nada mais que estatística e comparação, não existe nada de inteligente e tem tudo de artificial. Os benefícios da internet e da cloud (nuvem) estão a criar a segunda grande revolução da sociedade de informação… e informação é precisamente no que a inteligência artificial se baseia, milhões e milhões de imagens são guardadas em servidores e depois comparadas por softwares especiais (neural networks) que “escolhem” o que lhes interessa e aplicam nas novas imagens, resultando daí um aglomerado estatístico e comparativo. Todas as empresas estão cada vez mais a adotar o termo AI (artificial intelligence) nos seus produtos e alguns exemplos dessa tecnologia estão a começar a aparecer e são extremamente populares. A conhecida “FaceApp” usa estes algoritmos de comparação para tornar a nossa cara 30 anos mais velho e os resultados são impressionantes. A “Deep Nostalgia” pega numa foto estática e fá-la voltar à vida, dando por exemplo a Mozart ou Albert Einstein “vida” novamente, eles piscam os olhos, olham para um lado ou outro, tudo isto resulta do processo e da facilidade com que a informação é manipulada, para o computador uma fotografia é apenas uma coleção de números, zeros e uns. A cor é um número, os olhos são números, o céu ou uma árvore são números e a alteração desses números de uma forma exata transformam como nós quisermos tudo sobre essas imagens e vídeo. E prova disso vai continuar a acontecer cada vez mais, como a “Remini app” que torna as fotografias desfocadas, novamente focadas com um detalhe nunca visto ou a impressionante e automática colorização de filmes antigos. A manipulação analógica já existia desde a invenção da fotografia na câmara escura, mas o computador
veio dar um novo leque de ferramentas à população. Por exemplo, se quisermos preencher o céu da nossa paisagem com nuvens, ou até mudar a altura do dia para um pôr-do-sol magnífico também já é possível com o software Luminar AI. Outras funcionalidades impressionantes são a aplicação instantânea de maquilhagem, tornar os lábios mais vivos ou os dentes brancos em vez de amarelos, mudar a iluminação original adicionando mais pontos de luz e até mesmo simular a desfocagem: “bokeh” como é conhecido, que as máquinas mais profissionais fazem. Tudo isto é feito através do computador e por isso são tudo simulações aproximadas da realidade. Realidade essa que irá ser consideravelmente mais fácil e automática de ser simulada. Mas irão as pessoas abraçar esta falsidade e manipulação ou regressar para algo mais “realista” e “genuíno” no futuro? As empresas e os interesses económicos vão abraçar certamente e a tendência é para ser ainda mais disruptiva, como foi o caso da empresa Data Grid que criou modelos virtuais através da sua rede especializada neurológica (neural network), tudo completo com poses, roupas… centenas de pessoas virtuais criadas a partir do nada… salvo seja, tudo fruto do processo estatístico e comparativo de milhões de exemplos reais. E algumas coisas já estão a ser comercializadas como foi o caso da Vogue que usou modelos 3D virtuais em algumas das suas capas de revista. As modelos Noonoouri e Shudu Gram não existem, só em computador, mas representam claramente uma pessoa quase indistinguível da realidade. O problemático disto é que estes seres digitais podem “ganhar vida” nas redes sociais, terem canais de youtube, terem filhos ou viajar, tudo virtualmente… tudo a favor do marketing e das vendas de produtos. Outro exemplo, “deep fakes”, onde um ator faz uma “performance” imitando um ator conhecido da vida real ou um Presidente da República, essa “performance” é depois manipulada digitalmente, com a cara da “pessoa real”, tornando-se indistinguível da realidade, incluindo a sua própria voz que é manipulada também, tornando esta falsa realidade num pau de dois bicos. Isto quando é feito em tom de brincadeira em que todas as partes estão informa-
Estas imagens não representam o verdadeiro Tom Cruise, é apenas um deep fake
FOTOS D.R.
A modelo 3D virtual “Margot” na última campanha da Balmain
das e foram feito acordos, está tudo bem, mas todos nós sabemos que esta tecnologia nas mãos erradas pode criar problemas sérios e destruir vidas reais e terá de ser, mais cedo ou mais tarde, regulamentada. A fotografia no seu longo caminho desde a sua invenção veio da no-
ção de mostrar a realidade como ela é para um universo totalmente fabricado e falso. A chamada inteligência artificial está a chegar não em forma de Robô ou Humanóide pensante como no filme “Terminator”, mas vai certamente mudar completamente o panorama de
muitos setores e postos de trabalho na indústria, vai mudar a forma como tiramos e vemos o conceito da fotografia e do vídeo, a inteligência artificial vai criar duas realidades, a (falsa) virtual e a real e pode tornar a fotografia como nós a conhecemos… num nicho.
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FILOSOFIA DIA-A-DIA
Filosofia Dia a Dia: Ética e Saúde Pública MARIA JOÃO NEVES PH.D Consultora Filosófica
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travessamos, neste momento, o décimo quarto estado de emergência decretado desde o início da pandemia. Contamos assim com 210 dias de confinamento, que correspondem a 7 meses de restrições, concretizadas na suspensão parcial dos nossos direitos, liberdades e garantias como cidadãos. Quer isto dizer que já há mais de meio ano que vemos a nossa, já de si coartada liberdade, muito reduzida. Entre todas as liberdade interditas há uma verdadeiramente acutilante: a proibição da actividade profissional de certos sectores. Aqui no Algarve, por exemplo, alguns outrora trabalhadores nas áreas do turismo e da restauração vivem situações desesperadas. Nuno Alves, responsável pelo Banco Alimentar do Algarve, em declarações ao POSTAL em Fevereiro passado, distinguiu a pobreza estrutural que estima ser da ordem dos 18 a 20 por cento, das pessoas “cuja situação de pandemia levou à perda parcial ou total dos rendimentos, provocando um crescimento global da operação de assistência às famílias necessitadas da ordem dos 74,2 por cento”. A aquisição da imunidade de grupo parece ser a via de esperança para o retorno a alguma normalidade, portanto, a vacinação é urgente! Contudo, o processo avança muito lentamente. E esta lentidão não tem que ver com a nossa capacidade de resposta mas sim com a escassez de vacinas. É de conhecimento generalizado o atraso no fornecimento das quantidades contratadas, devido à incapacidade de produção. Pergunto-me, pois, como é possível a manutenção das patentes da vacinas contra a covid-19 quando está em causa a sobrevivência de tantos seres humanos? Tedros Adhanom Ghebreyesus, director-geral da OMS, escreveu um artigo de opinião no jornal britânico The Guardian (01/03/2021) onde aponta várias alternativas: “Quer se trate da partilha de doses, transferência de tecnologia ou licenciamento voluntário, como a própria iniciativa Covid-19 Technology Access Pool da OMS incentiva, ou renúncia aos direitos de propriedade intelectual, precisamos fazer todos os esforços possíveis.” De facto, existe em vários países, e Portugal é um deles, capacidade científica e técnica para produção de vacinas. Se a tecnologia fosse partilhada, a vacina poderia estar a ser produzida em todos os quadrantes do globo e teríamos uma imunida-
de mundial em tempo record! A manutenção das patentes garante o monopólio e, por conseguinte, o lucro das grandes farmacêuticas envolvidas na produção da vacina contra a covid-19. Obvia-se o facto de ter existido muito investimento público para o desenvolvimento científico e testagem, portanto, os cidadãos já pagaram antecipadamente muitos destes custos. O especialista em patentes, Vítor Palmela Fidalgo, em declarações à Rádio Renascença (23/03/2020) esclareceu que no caso da vacina se trata de propriedade industrial e defende que “o Estado português tem meios que permitem fazer face a esta circunstância, através das chamadas licenças obrigatórias ou compulsórias”, pois o Código de Propriedade Industrial refere, expressamente, a possibilidade de atribuir licenças obrigatórias por razões de saúde pública. Estando na presidência do conselho da União Europeia, será que o Governo português não poderia interceder neste sentido? Por seu lado, António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, em declarações à RTP (29/03/2021) criticou o armazenamento excessivo de vacinas por parte dos países ricos, defendendo que estas devem ser consideradas bem público mundial. Aliás, advertiu que se não formos rápidos a imunizar a população mundial podemos correr graves riscos. É muito possível que se o vírus não for erradicado globalmente se desenvolvam novas mutações resistentes às actuais vacinas, que voltam a colocar os países presumivelmente imunizados em situação vulnerável. Uma vez mais, daqui se deduz que a conduta inteligente e eficiente seria partilhar o conhecimento técnico que permitisse produzir vacinas na maior quantidade e rapidez possível. O investigador J. Wolff, num artigo intitulado, “Global Justice and Health: The Basis of the Global Health Duty,” publicado em 2012 expõe 3 tipos de razões para o entendimento da saúde pública como transcendendo os estados-nação: interesse próprio; considerações humanitárias; e justiça, direitos e deveres. O exemplo paradigmático do interesse próprio nacional é a motivação de cada país para prevenir e conter doenças infecciosas. É do interesse das nações mais ricas fornecer apoio financeiro e técnico aos países mais pobres para aumentar sua capacidade de vigilância e resposta rápida e fornecer assistência de emergência quando surgem surtos. Prevenir e conter doenças infecciosas à medida que surgem é
Tedros Adhanom Ghebreyesus, director-geral da Organização Mundial da Saúde, e António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas FOTO D.R.
do interesse de todos. É também do interesse de todas as nações a partilha global de dados de vigilância e de amostras biológicas por meio de mecanismos mantidos pela OMS. Quase 200 países são signatários do Regulamento Sanitário Internacional, que, entre outras coisas, os obriga a fazê-lo. No entanto, é aqui que podem surgir choques sérios entre o interesse próprio e a justiça global. Bio-amostras partilhadas são usadas para desenvolver vacinas, meios de diagnóstico e tratamentos que, dependendo do contexto, podem ser disponibilizados primeiro ou apenas acessíveis em países de rendimento mais alto, onde essas contra-medidas provavelmente serão financiadas e desenvolvidas. Com respeito às considerações humanitárias e justiça global cabe perguntar: será correcto ficar parado e permitir que outros sofram quando temos os recursos para ajudar? Temos ou não o dever humanitário de ajudar aqueles que se encontram em circunstâncias desesperadas? Esses deveres transcendem as fronteiras nacionais. Os serviços, materiais e pessoal de saúde pública estão frequentemente entre as respostas mais importantes em crises humanitárias, não apenas em surtos e epidemias, mas também em desastres naturais, guerras e conflitos violentos, populações deslocadas e migrações em massa, fomes e secas. Organizações humanitárias de saúde e profissio-
nais de saúde são regularmente confrontados com desafios éticos que incluem, por exemplo, tensões entre princípios humanitários de imparcialidade e neutralidade e compromissos éticos com a distribuição justa de recursos de saúde limitados, tal como apresentam os investigadores Broussard, et al., no artigo “Challenges to ethical obligations and humanitarian principles in conflict settings: a systematic review,” publicado em 2019. No que concerne à Saúde Pública, Justiça Global, Direitos e Deveres são sobejamente conhecidas as diferenças gritantes na saúde entre as populações que vivem em países ricos e as populações que vivem em países de baixo e médio rendimento. Será justo que os países ricos produzam e armazenem apenas a quantidade de vacinas necessária para proteger as suas próprias populações, quando os países pobres não têm uma capacidade comparável? Enquanto os surtos crescem em países pobres e as mortes aumentam, os países ricos podem continuar a reservar o seu suprimento de vacinas para sua própria população? Os regimes de propriedade intelectual e os acordos comerciais internacionais fornecem uma proteção tremenda para as empresas farmacêuticas em países ricos, com o resultado de que muitos medicamentos e produtos biológicos custam muito além do que os países pobres podem pagar. Que legitimi-
dade tem isto? Por outro lado, somente os países ricos têm recursos financeiros e humanos para fazer investimentos consideráveis em investigação biomédica. Esses países têm ou não a obrigação moral de alocar recursos para resolver os principais problemas de saúde dos mais desfavorecidos? Sabemos que a melhoria da saúde dos pobres do mundo está indelevelmente ligada a melhorias económicas, sociais, educacionais e ambientais, e as reivindicações de justiça relacionadas à saúde não são facilmente separáveis das reivindicações de justiça que surgem nesses outros contextos. Se considerarmos a saúde como um direito fundamental, conforme codificado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, e encararmos as desigualdades entre as pessoas que vivem em nações ricas e as que vivem no resto do mundo, então, quer entendida como questão de justiça, quer como preocupação humanitária, a ética da saúde pública não nos permite baixar os braços! * A autora não escreve segundo o acordo ortográfico Nota de Redação: Na passada edição do Cultura.Sul, na legenda que ilustrava a foto da rubrica Filosofia Dia a Dia, onde se lia “O Oráculo dos Elfos” devia ler-se “O Oráculo de Delfos”. Pelo lapso pedimos desculpa à autora do artigo e aos nossos leitores
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FIOS DE HISTÓRIA
O Cabo do Medo
Bojador: não havia notícia de quem tivesse de lá voltado. Os ventos fortes dominantes do quadrante norte abortavam qualquer tentativa de regresso. Gil Eanes venceu o medo e trouxe como prova um braçado de rosas de Santa Maria
RAMIRO SANTOS Jornalista ramirojsantos@gmail.com Nos tempos em que o mar era um segredo, o mundo acabava ali. Além dele era o desconhecido. Quem ousasse passar o Bojador era engolido e nunca mais voltava. A terra enfiava por baixo da linha do equador e desaparecia. As águas eram ferventes e povoadas de monstros marinhos. À parte o exagero das lendas do mar tenebroso, a verdade é que com o conhecimento, os meios e os instrumentos disponíveis, a tarefa não era assim tão fácil como hoje pode parecer. E existiam razões da geografia, do regime dos ventos e da configuração da costa daquela zona da África Ocidental que explicavam os receios e as dificuldades. E os árabes, temendo uma invasão europeia, ajudavam à festa carregando nas cores negras de uma aventura sem regresso. O cabo era rodeado de recifes pontiagudos envoltos em denso nevoeiro e de bancos de areia que se estendiam por uma distância de cinco léguas da costa com apenas poucos metros de profundidade. Os que o haviam tentado ultrapassar, por ali ficaram encalhados e engolidos. E não havia notícia de quem tivesse de lá voltado. Os ventos fortes dominantes do quadrante norte abortavam qualquer tentativa de regresso. Era uma viagem sem retorno e condenada ao fracasso. Para se compreender melhor as dificuldades que se colocavam aos marinheiros de então, basta atentar nesta descrição, que há alguns anos tive o privilégio de escutar da voz do mestre Arnaldo, 40 anos de mar e que conhece o Cabo Não e o Bojador como as palmas das suas mãos: “O monstro é o mar. Toda a costa é tormentosa feita de altos e fundões a esconderem os perigos dos recifes e línguas de areia até 25 quilómetros da costa, onde o mar tem apenas poucas braças de profundidade. Se aquilo para nós com os barcos e a maquinaria e instrumentos de navegação, ainda é difícil, imaginemos o que seria para eles. As correntes e os ventos são fortíssimos e eles tinham que navegar a remos junto à costa ou em zigue zague, a bolinar se o pudessem fazer no regresso. Para lá, iam com vento à popa e no regresso tinham de vir aproados. No inverno ainda vinham bem, mas se viessem no verão era muito mais difícil porque atravessavam a nortada toda. Se não tinham velas que pudessem bolinar seguiam à deriva até que o vento virasse. Gil Eanes foi para lá com vento pelas costas e no regresso apanhou a nortada. E com uma barca de um
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mastro e uma vela redonda, não era tarefa fácil de manobrar...” Este relato do mestre Arnaldo, de experiência feito, corresponde, no essencial, ao que contava Zurara na sua Crónica da Guiné: “Diziam os mareantes que despois deste cabo, não há aí gente nem povoação alguma: a terra não é menos arenosa que os desertos da Líbia, onde não há água, nem árvore, nem herva verde; e o mar é tão baixo, que a uma légua de terra não há fundo mais do que uma braça. As correntes são tamanhas, que navio que lá passe, jamais nunca poderá tornar”. Por isso mesmo, os aventureiros preferiam outras águas mais tranquilas e lucrativas. A grande maioria ficava-se pelas Canárias, mares de
Granada e pelo litoral africano, nos limites então conhecidos e aconselhados, onde praticavam o corso e apresavam cativos que vendiam como escravos a preços que justificavam as despesas de viagem. O Bojador parecia então aos olhos dos navegantes das barcas algarvias, um obstáculo intransponível. Mas D. Henrique sabia que o mundo não acabava ali. Muito teimou convencê-los que aquilo não era bem como soava. E não deviam dar ouvidos às histórias pouco tranquilizadoras de marinheiros estrangeiros que nada sabiam daqueles mares desconhecidos. Zurara, citando o Infante, acrescentava: “quando são tirados da carreira de Flandres, ou de alguns outros portos para que comummente na-
vegam, não sabem mais ter agulha nem carta de marear”. E de tanto insistir, acabou por levar Gil Eanes a encher-se de coragem e a fazer-se de novo ao mar, depois de uma primeira viagem fracassada, com promessas de generosas recompensas. Finalmente, em maio de 1434, - após 15 tentativas em 12 anos, feitas por outros navegadores portugueses - Gil Eanes “aparelhou uma barca de 30 toneladas, com um só mastro, uma única vela redonda, parcialmente coberta e também movida a remos. A sua tripulação era de apenas quinze homens. Com ela, ao chegar às proximidades do Cabo do Medo, decidiu manobrar para oeste afastando-se da costa africana. Após um dia inteiro de navegação longe da costa, depa-
rou com uma baía plácida de ventos amenos, e então dobrou para sudeste e logo percebeu que havia deixado o Cabo Bojador para atrás”. E ao invés de monstros e outros medos, encontrou uma terra desolada e deserta. Sem vivalma! E como não quis fazer o regresso de mãos vazias, sem uma prova que pudesse convencer os incrédulos de que lá tinha estado e voltado, colheu umas ervas silvestre que trouxe consigo para oferecer ao rei e ao infante. Eram as rosas de Santa Maria. E assim se abriram as portas ao mistério*! Fontes: “Crónica dos Feitos da Guiné”, Gomes Eanes de Zurara; “Obra Poética”, *João José Cochofel; “Navegantes, Viajantes e Aventureiros Portugueses”, Luis Albuquerque; outras
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Teolinda Gersão celebra 40 anos de vida literária
PAULO SERRA Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL
Apneia, o mais recente romance de Tânia Ganho foi publicado o ano passado pela Casa das Letras e é agora um dos nomeados na categoria Melhor Livro de Ficção Lusófona do Prémio Bertrand Livreiros. Obra de ficção literária que assenta em casos verídicos e experiências reais vividas no Tribunal de Família e Menores de Lisboa e junto do Ministério Público, da Polícia de Segurança Pública, do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e do Departamento de Investigação e Acção Penal. Através de Adriana e Alessandro, um casal luso-italiano, e do seu filho Edoardo, Tânia Ganho dá voz às vítimas de violência doméstica e de abusos sexuais, sobretudo às crianças que se tornam, muitas vezes, arma de arremesso entre os pais. Numa trama tão densa e asfixiante quanto sóbria, a autora desfia o fio da história de Adriana, conforme ela desce a um labirinto negro em que a sua sanidade se torna cada vez mais ténue (e a arte pode ser a única salvação), enredando o leitor numa teia psicológica de manipulação e medo, em que nem Adriana nem nós conseguimos enxergar a realidade e reconhecer o inimigo. Tânia Ganho nasceu em 1973, em Coimbra. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, trabalhou durante vários anos em legendagem para televisão e cinema. Foi assistente convidada na Universidade de Coimbra, onde leccionou tradução literária, área a que se dedica há mais de 20 anos. Traduziu autores como Hervé Le Tellier, Angela Davis, Siri Hustvedt, Maya Angelou, Leila Slimani, Chimamanda Adichie, Amor Towles, David Lodge e Alan Hollinghurst, entre muitos outros. É autora dos romances A Vida sem Ti (2005), Cuba Libre (2007), A Lucidez do Amor (2010) e A Mulher-Casa (2012) e tem vários contos publicados na revista Egoísta. P Este é um livro denso, pesado. Diria mesmo que pode custar ao leitor lê-lo. Talvez tanto como lhe custou escrevê-lo?
R Custou-me muito escrever Apneia, não só por abordar questões tão delicadas e complexas como a violência psicológica e o abuso de menores, mas também por sentir que tinha de encontrar o tom certo, o tom justo. Não queria que o livro parecesse um manifesto contra a guarda partilhada, nem um texto sensacionalista sobre
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Através da sua obra, Tânia Ganho dá voz às vítimas de violência doméstica e de abusos sexuais FOTOS D.R.
Entrevista à escritora Tânia Ganho
Só escrevo quando consigo pôr-me na pele das minhas personagens o sofrimento de uma criança e de uma mulher. Queria que a narrativa fosse sóbria, sem cair no melodrama. Creio que tinha em mente livros como Os Níveis da Vida do Julian Barnes e O Ano do Pensamento Mágico e Noites Azuis da Joan Didion, que se destacam pela contenção. A Didion consegue comover-nos sem nunca ser histriónica, e eu tinha esse objectivo em mente.
O processo de escrita levou anos? Quase tantos como os do tempo durante o qual o processo de Adriana se arrasta? P
R Demorei cerca de sete anos a concluir o livro, porque levei muito tempo a decidir como é que ia contar a história, de que ponto de vista. Cheguei a pensar escrever da perspectiva do Alessandro, ou do Edoardo, mas foi a voz da Adriana que acabou por se impor e, a partir daí, o processo tor-
nou-se mais fluído. O tema era tão avassalador, que precisei de anos para processar o material que tinha recolhido e as emoções que me havia suscitado.
artistas, como Cindy Sherman, Frida Kahlo, Marina Abramovic, Helena Almeida, Francesca Woodman... Li a poesia completa de Anne Sexton, li biografias de Sexton e Plath.
P Até porque o livro denota muita pesquisa, inclusivamente no trabalho artístico de Adriana, assim como nas constantes citações de autoras-mulheres.
P Dessas autoras, foca-se, sobretudo na obra de Sexton que cita recorrentemente.
R A pesquisa ocupou-me mais tempo do que a escrita. Só escrevo quando consigo pôr-me na pele das minhas personagens, ter a certeza do que pensam, sentem, fazem... Para criar a personagem do Alessandro e conseguir compreendê-lo, tive de ler muito sobre perversos-narcisistas e manipuladores, queria que ele fosse plausível e não a caricatura de um monstro. E a Adriana só ganhou realmente forma quando mergulhei a fundo na pintura da Cristina Troufa e na obra de outras
R Os versos de Anne Sexton que vou citando ao longo de Apneia dão voz aos sentimentos que, por vezes, Adriana não consegue exprimir. E na sua poesia confessional, Sexton faz exactamente o mesmo que Adriana pretende fazer na pintura: diluir as fronteiras entre o público e o privado, virar a intimidade do avesso e expô-la, contar histórias pessoais dando-lhes um carácter universal. Os poemas de Sexton são janelas que se abrem para o interior de Adriana e nos mostram o que ela sente: “Estou a afundar-me um pouco, mas sempre nadando”. Ilus-
tram o desespero e, ao mesmo tempo, a tenacidade desta mulher. Além de que Sexton dá o mote para o tema da doença mental que começa a cercar Adriana, durante o processo litigioso. Sexton e Plath escreveram e viveram no limiar entre a sanidade e a loucura, e toda a história de Adriana é um aproximar constante da beira do precipício. Julgo que o leitor sente, muitas vezes, que basta um empurrão para que Adriana caia e se afogue. Nestes processos judiciais tão longos, que se arrastam durante anos, é preciso uma enorme resistência física e mental para não baixar os braços e desistir de lutar. P Ao ler Apneia fica a sensação de que a autora se esconde atrás de um narrador frio, objetivo, distante até. No entanto, o sentimento é de tal forma opressivo, conforme entramos na pele de Adriana, que as duas se parecem
CULTURA.SUL
Postal, 9 de abril de 2021
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LETRAS & LEITURAS
confundir mais do que aparenta… R Quando escrevo, vivo dentro das personagens e as personagens habitam-me, é natural que as fronteiras se esbatam. Criei a personagem da Mara, de A Mulher-Casa, enquanto vivia em Paris e, a dada altura, já dava por mim a ver tudo através dos olhos dela. Ia a exposições que achava que ela gostaria de ver, visitava lojas de tecidos e chapelarias, porque era isso que ela faria. O meu trabalho de construção das personagens é muito semelhante ao de um actor que se prepara para um papel num filme. Cheguei a ir a uma loja Dior, em Paris, provar vestidos que a Mara adorava. Para dar vida à Adriana de Apneia, passei horas a olhar para os quadros da Cristina Troufa, fui ao Porto visitar o atelier dela, estudei a sua tese de mestrado que dá uma série de pistas para outras artistas, li muitos acórdãos e textos sobre guarda partilhada, alienação parental...
No tribunal de família e menores, quando a nossa vida e a dos nossos filhos está nas mãos de desconhecidos, o sentimento de impotência é avassalador Falando em objetividade e imparcialidade, a própria Adriana consegue muitas vezes ser estóica, como forma de proteger Edoardo, o filho. Porque, como a Tânia já teve oportunidade de manifestar, numa luta de custódia parental a criança é sempre vítima. A força da protagonista chega a ser impressionante. P
R Como escreveu a Maggie O’Farrell, «nunca subestimem uma mãe em guerra». O’Farrell usa esta expressão em Estou Viva, Estou Viva, Estou Viva, referindo-se à sua luta, enquanto mãe, contra a doença da filha. Adriana não está em guerra com Alessandro, está numa espécie de missão para proteger o filho da maldade do pai e da inépcia do tribunal. Tem de ser forte (estóica, como dizes), senão fica sem o filho, ou porque o tribunal lho tira, ou porque Alessandro o rapta, ou simplesmente porque o próprio Edoardo se vira contra ela. Acima de tudo, tem de ser lúcida, para não ferir ainda mais o filho. Ela não quer ser igual a Alessandro, ela faz ponto de honra em ser verdadeira e correcta, caso contrário Edoardo enlouqueceria debaixo de fogo cruzado.
Contudo, o mais desconcertante, e aflitivo do livro, é assistir a momentos-chave em P
que Adriana perde a capacidade de expressão. Foi intencional fazer a protagonista ficar quase sempre sem palavras quando a acusam de coisas inconcebíveis? R Foi, foi intencional. Estamos habituados a ver séries e filmes com cenas de tribunal, em que nos julgamentos os advogados são sempre brilhantes e toda a gente faz discursos longos e comoventes. Eu quis mostrar precisamente o oposto: no tribunal de família e menores, quando a nossa vida e a dos nossos filhos está nas mãos de desconhecidos, o sentimento de impotência é avassalador, sobretudo para as vítimas de violência doméstica. Foram «programadas» durante toda a relação para serem submissas, acatarem ordens, calarem os seus sentimentos, não protestarem sob pena de sofrerem as consequências; portanto, terem de se exprimir perante os magistrados, na presença do agressor, e de se defender de acusações horríveis, sabendo que podem perder os filhos, é de uma violência brutal. São poucas as pessoas que, nestas circunstâncias, conseguem manter o dom da palavra. Adriana balbucia, mete os pés pelas mãos, repete o que a advogada lhe disse... é incapaz de um discurso coerente, firme, porque está desfeita. Ela vê a sua própria vida como que através de um vidro, como se estivesse dentro de um aquário, e as palavras têm dificuldade em atravessar a barreira da água. P Curiosamente o livro dá a sensação, por vezes, de poder ser tomado como um guia. Como se revelasse estratégias relativas a casos deste género, de violência doméstica e abusos sexuais. R Cada caso é um caso, mas há conselhos que se repetem nos consultórios dos bons psicólogos e psiquiatras: nunca dizer mal do outro progenitor aos filhos, nunca lhes mentir deliberadamente, nunca manipular as crianças, nunca comprar afectos e lealdades com prendas, nunca escrever e-mails a quente... O livro não pretende ser um guia, mas as situações que descrevo são muito comuns e se o que descrevo em Apneia ajudar algumas pessoas a não entrarem em guerra e a não magoarem os filhos, óptimo. Mas é um romance e pode ser lido só pelas peripécias do enredo e não nessa óptica mais «pedagógica». P Ainda acerca da violência, foi uma opção deliberada focar-se num casal cuja relação é pautada não pela agressão física mas pela violência psicológica? Esta é aliás tão subtil que nem Adriana se parece aperceber, apenas em relances desconexos do passado que parecem quase inocentes. R Quis explorar a violência psicológica, porque é subtil e insidiosa, infiltra-se nas nossas vidas e quando damos por ela, por vezes já ela nos ti-
rou a auto-estima e despojou da força suficiente para a enfrentarmos. É uma violência ministrada a conta-gotas, é um constante jogo de dominação. O agressor avança e recua, sabe perfeitamente como dar com uma mão e tirar com a outra. Por isso vemos pessoas que nos pareciam fortes e luminosas tornarem-se apagadas e fracas sob o domínio de alguém: porque é um processo lento e discreto. A violência física, pelo contrário, é óbvia, não há nada de ambíguo num estalo ou num pontapé. P A cronologia aparenta ser um pouco desordenada na primeira parte do livro. Há avanços e recuos na idade da criança. R A cronologia só se torna «ordenada» quando Adriana perde o medo e recupera o controlo sobre a sua vida. Até aí, a narrativa acompanha o estado tumultuoso e toldado de Adriana, que não tem uma noção muito clara do que lhe está a acontecer, ela tem dificuldade em raciocinar com clareza. Os pensamentos de Adriana são como legos espalhados pelo chão e ela tropeça neles, magoa-se, apanha alguns, esquece outros.
de Alessandro, a multitude de crianças, …), que tão subtilmente desconcertam o leitor, ao mesmo tempo que nunca o deixam deter-se por muito tempo a reflectir, foram depois interligados e originaram um desfecho imprevisto? R Quando comecei a escrever o livro sabia que queria falar sobre violência psicológica em contexto familiar, mas não fazia ideia de que acabaria por abordar um tema tão doloroso como o do abuso de menores. As pistas estão lá todas, desde as primeiras páginas, e há um crescendo que só podia desembocar neste desfecho, mas eu própria demorei a perceber que estava tudo interligado. A partir do momento em que tomei consciência disso, voltei ao princípio e só depois de confirmar que havia ali um fio condutor e coerente é que escrevi os dois últimos capítulos. Quase que por imposição das próprias personagens.
ser submetido a uma lavagem cerebral regular. Era esse constante ouvir dizer mal da mãe que suscitava tanta violência nele; Edoardo era uma criança esgaçada, forçada a escolher entre o pai e a mãe, como se não pudesse amar ambos, ser leal a ambos. Alessandro obrigou-o a «matar» a mãe dentro de si. As crianças que sofrem este tipo de pressão por parte de um progenitor sentem-se destroçadas e, quando ainda não têm capacidade de se exprimir com maturidade, reagem de maneira visceral, por vezes violenta. Li muito sobre este tema e ouvi vários relatos de casos semelhantes, em que as crianças se tornam «órfãs» de pais vivos («pais» no sentido de pai ou mãe). P Hoje, à luz das várias leituras e conversas em torno do livro, mudaria o final de Apneia?
R Não, não mudava. Cheguei a delinear dois finais diferentes, ambos de
Não fazia ideia de que acabaria por abordar um tema tão doloroso como o do abuso de menores P Como já falámos, este livro leva-nos a uma apneia, deixando-nos quase sem respiração em certos momentos. O único instante de acalmia é quando somos transportados para a Ilha, onde até o tom narrativo se altera, a combinar com o cenário idílico. Ilha essa, algures a 6 milhas de distância da cidade, mas nunca nomeada…
Os momentos na ilha são bolhas de oxigénio. A ilha é o espaço onde o tempo se suspende e onde Adriana consegue respirar, deixar para trás a violência da sua relação com Alessandro. Gosto muito de ilhas, sempre foram sinónimo, para mim, de serenidade e lentidão. Correspondem a uma imagem idealizada (e ingénua) de refúgio. Quando visitei a Berlenga pela primeira vez, percebi que era o cenário ideal para encarnar essa ideia de porto seguro, mas queria que fosse uma espécie de lugar mítico e não uma referência específica no mapa, por isso nunca lhe dou nome. R
P Num projeto com este fôlego, e com o desfecho imprevisto da história, esse horizonte já estava previsto quando começou a escrever? Ou os sinais presentes ao longo do livro (a misoginia
Romance é um dos nomeados na categoria Melhor Livro de Ficção Lusófona do Prémio Bertrand Livreiros P O comportamento de Edoardo, que nos primeiros dois terços do livro, é dual, quase bipolar, com a mãe, só se torna estável quando dirige toda a raiva contra uma só pessoa. Testemunhou ou ouviu casos similares? R O comportamento de Edoardo torna-se estável quando ele pára de
um realismo que deixaria os leitores desfeitos e, depois, deixei-os de molho e não pensei nisso durante uns tempos. No fim, foram as personagens que elegeram o seu destino, foram elas que exigiram justiça poética. Por vezes, a literatura oferece-nos o final que a realidade não nos dá. Creio que todas as personagens precisavam de paz, até Alessandro.