Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o PÚBLICO
FEVEREIRO 2015 | n.º 77 8.081 EXEMPLARES
www.issuu.com/postaldoalgarve d.r.
Missão Cultura:
Saberes reinventados:
d.r.
Pespontos feitos mimos
DiVaM 2015 na rota do Mediterrâneo
p. 5
p. 6
p. 2
Momento: d.r.
Partilhar imagens... e algo mais
p. 7
Sala de leitura:
O rumor de Londres Da minha biblioteca:
Luis Ene: Ene coisas
d.r.
d.r.
p. 8
d.r.
p. 11
Colleen McCullough:
Beleza e indomabilidade no feminino… p. 4
p. 5
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06.02.2015
Cultura.Sul
Editorial
Missão Cultura
E o Óscar vai para...
Cultura e património em diálogo com o Mediterrâneo através do DiVaM 2015
Ricardo Claro
Editor ricardoc.postal@gmail.com
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Os prémios Óscar da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas regressam uma vez mais este ano à ribalta no próximo dia 22. Desde 1929 que os prémios Óscar distinguem aqueles filmes que, políticas e outras influências à parte, são considerados os melhores pelos ilustres ‘senadores’ da academia de Hollywood. Este ano na corrida à mais cobiçada de todas as estatuetas estão Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância), Boyhood - Momentos de uma Vida, O Jogo da Imitação, Grand Budapest Hotel, Selma - A Marcha da Liberdade, Sniper Americano, A Teoria de Tudo e Whiplash - Nos Limites. Cada uma das escolhas para nomeados para melhor filme tem argumentos quanto baste para figurar entre os candidatos ao prémio mais cobiçado da sétima arte. Não me dou a prognósticos ou antevisões de votações cujos segredos só os deuses dominam, mas sempre vos deixo como irrecusável uma proposta. Em O Jogo da Imitação, Benedict Cumberbatch dá corpo ao genial Alan Turing, responsável pela histórica descoberta do código da famosa máquina encriptadora enigma, usada durante a guerra pelos Nazis. A obra deste homossexual reprimido na Inglaterra da Segunda Guerra Mundial ficou décadas legada à sombra da vergonha de um reino, o de Sua Majestade Elizabete II, que só em 2013 concedeu ao seu ilustre súbdito o perdão real pela condenação por homosssexualidade de que foi alvo. Como se houvesse algo a perdoar. Imperdível, um filme que tem de tudo, história, vida, génio, engenho e muito para contar.
Direção Regional de Cultura do Algarve
DiVaM é o programa de Dinamização e Valorização dos Monumentos promovido pela Direção Regional de Cultura do Algarve (DRCAlg), pela primeira vez em 2014. A dinâmica desenvolveu-se nos Monumentos que lhe estão afetos: Castelo de Aljezur, Fortaleza de Sagres, Ermida de Nossa Senhora de Guadalupe, Monumentos Megalíticos de Alcalar, Villa Romana da Abicada, Castelo de Paderne, Castelo de Loulé e Ruínas Romanas de Milreu. Contando com a parceria de várias associações culturais e municípios algarvios, oferece à população um leque diversificado de eventos que abrangem música, teatro, intervenção teatral de rua, dança, performance e recriações históricas, procurando uma ampla diversidade na oferta cultural complementar destes Monumentos do Algarve, com o objetivo de levar as comunida-
des próximas a revisitar o seu património. Como lugares de memória, deseja-se que estes Monumentos sejam também lugares de vivências, de emoções: lugares de Bons Momentos. Em 2014, o Programa DiVaM integrou nas suas atividades as comemorações dos 40 Anos de Democracia, o Dia Internacional dos Monumentos e Sítios e as Jornadas Europeias do Património, num total de 69 eventos realizados ao longo do ano, com a colaboração de 18 associações culturais da região, em que participaram mais de 2500 pessoas. Reconhecendo as potencialidades e identidade própria de cada monumento, um dos objetivos do DiVaM correspondeu também ao desejo de promo-
associação cultural tertúlia algarvia ,
O programa cumpriu os seus principais objectivos: potencializar e valorizar os monumentos
afectos à DRCAlg e aproximar as comunidades ao seu património. Essa primeira edição permitiu, ainda, auscultar o potencial das associações participantes. Foi notório o reconhecimento, por parte dos agentes culturais envolvidos e do público participante, da existência de uma nova dinâmica enriquecedora e produtora de novas experiências culturais na região algarvia.
Em 2015 o DiVaM terá como tema central o “Património Imaterial e as Raízes Mediterrânicas” Para 2015, a programação DiVaM está a ser preparada em articulação com as associações culturais da região e terá como tema central o “Património Imaterial e as Raízes Mediterrânicas” e como base a marca “Bons Momentos” nos Monumentos do Algarve. Pretende-se construir um programa cultural dinâmico, enriquecedor e que promova “Bons Momentos” de descontração e lazer mas também de cultura, de cidadania, de promoção da identidade, de sentido de partilha de um património material e imaterial valiosíssimo, que nos pertence e do qual fazemos parte: o Mediterrâneo. Partilhando da visão de cultura de Helena Vaz da Silva, “(…) cultura como instrumento de felicidade, como arma para o civismo, como via para o entendimento dos povos(…)”, é este o espírito que se pretende para o DiVaM. A apresentação da programação 2015 será efetuada no dia 21 de março, Dia Mundial da Poesia, em local ainda a designar.
recebeu Leelah Alcorn, a adolescente transsexual que cometeu suicídio à custa dos maus tratos psicológicos que lhe infringiam os pais. E nós aqui no meio, com os problemas do costume e a exasperação já um sentimento neutro. E este ano, quando as esperanças para uma altura em que não se tivesse de voltar a lutar pelos direitos básicos do ser humano, e em que realmente se conseguisse alcançar algum progresso social ainda se mantiveram relativamente firmes na primeira semana de Janeiro, levaram um estalo de mão aberta na segunda semana com o atentado à revista satírica
Charlie Hebdo em França. O caso Charlie só nos veio lembrar de uma verdade dura e incontornável: o mundo está a ferro e fogo. As desgraças que enchem as páginas de jornal e redes sociais dia após dia não respeitam quaisquer ingénuas esperanças de Ano Novo que se murmurem à contagem decrescente. E o mundo não vai mudar por sonharmos intermitentemente com um utópico dia em que todos vivamos em paz e harmonia. Só a participação ativa consegue a mudança. E não falo de uma participação acéfala, baseada em ideais pré-concebidos e informação errónea de tabloides, de nada valem opiniões copy-paste papagueadas aqui e ali; nada disto contribui para a formação de
caráter de um indivíduo ou para qualquer tipo de avanço social. Só a crítica, o debate, o questionar ativo do que ocorre à nossa volta consegue munir-nos das armas para enfrentar o mundo com a nossa presença. Não vos venho desejar que continuem a sonhar passivamente para que a mudança que desejam ver no mundo aconteça. Venho antes desejar-vos força, perseverança e coragem, para que trabalhem, ajam, se informem, pensem e critiquem até se tornarem pessoas à altura dos vossos sonhos. Para que estes passem de sonhos a objetivos, e de objetivos a realidade. Nada disto ocorre pela passividade. Tudo passa por nos tornarmos, também nós, pessoas de ferro e fogo.
DiVaM 2014, Castelo de Aljezur: projeto artístico “Até onde a vista alcança” sua participação na dinamização cultural da sua região.
“Toda a cultura é um diálogo com o seu tempo” Vergílio Ferreira ver a ligação da DRCAlg com os agentes culturais regionais não profissionais e de democratizar a
2014
Juventude, artes e ideias
Ferro e fogo
Mariana Ramos
Ciências da Comunicação
Chega aquela altura em que uma pessoa sente a obrigação de se debruçar sobre o tema do Ano Novo. Preferencialmente seria se falasse nele na mesma linha inspiradora e esperançosa dos já rotineiros textos de Ano Novo que lemos aqui e ali, que nos incitam
a que demos uma volta à nossa vida ao virar das 12 badaladas, que sonhemos alto e em grande para que os próximos trezentos e tal dias se tornem no capítulo de ouro do metafórico livro da vida. Mas vai-se tornando difícil ser-se otimista. Num panorama global, o mundo teve um ano que só leva a implorar para que não se repita. De um lado as manifestações de Hong Kong a clamar pelo seu direito de escolher quem os governa, do outro manifestações de Ferguson, EUA, a expor violência policial e os crimes racistas contra a população afro-americana, e a atenção internacional que
“APRENDIZA DE FEITICEIRA” Até 13 FEV | Sala de atendimento da EMARP Ana Paes Rosa é uma arquitecta que desempenha a sua profissão na Câmara de Lisboa e que, talvez, se considere aprendiza na arte de misturar e combinar cores, tons e técnicas para produção das suas obras
“OS SANTOS LENDÁRIOS” 15 FEV | 12.00 | Teatro das Figuras - Faro As lendas de Santo António, da Rainha Santa Isabel, de D. Nuno e de São Martinho são adaptadas para os mais novos, em histórias que são narradas e acompanhadas de música especialmente composta para este ciclo
Cultura.Sul
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Grande ecrã Cineclube de Faro
Programação: cineclubefaro.blogspot.pt IPJ | CICLO He(ART) | 21.30 HORAS 10 FEV | PASOLINI, Abel Ferrara, FRA, 2013, 86’, M/18 17 FEV | SONO DE INVERNO, Nuri Bilge Ceylan, TUR, 2014, 196’, M/14 SEDE| CICLO POESIA E TRANGRESSÃO | 21.30 HORAS 12 FEV | EDIPO RE, ITA/MAR, 1967, 104’ 19 FEV | TEOREMA, ITA, 968, 105’ 26 FEV | PORCILE, ITA/FRA, 1969, 99’ TEATRO MUNICIPAL DE FARO 24 FEV | OS MAIAS, João Botelho, POR, 2014, 139’, M/12 (15 horas, escolas, 2,5€ / aluno. 21.30 horas, público em geral, 2,5€ sócios CCF, 5€ público)
Celebrar Pasolini Novo mês, nova temporada de programação, o Cineclube de Faro apresenta um conjunto de quatro novos filmes, inéditos em Faro no cartaz de Fevereiro. Num ciclo em torno das artes e da sua relação com o cinema, o CCF apresentará nas suas sessões regulares das Terças–feiras Os Maias, de João Botelho, na sua versão integral, em sessão dupla, para escolas e público em geral, no Teatro Municipal de Faro a 24 de Fevereiro, com a presença do realizador. A 17 de Fevereiro, também a literatura e o cinema se encontram em Sono de Inverno, filme arrebatador de Nuri Bilge Ceylan vencedor da Palma de Ouro de Cannes 2014. A 10 de Fevereiro Abel Ferrara e a sua adaptação da trágica morte de Pier Paolo Pasolini e a abrir o mês, 20000 Dias na Terra, uma viagem poética pelo universo telúrico e apaixonante de Nicholas Edward Cave-Nick Cave. Na sede do CCF a senda das quintas em torno da cinematografia poética e transgressora de Pier Paolo Pasolini continua, com
Cineclube de Tavira fotos: d.r.
Programação: www.cineclubetavira.com 281 971 546 | cinetavira@gmail.com SESSÕES REGULARES | CINE-TEATRO ANTÓNIO PINHEIRO | 21.30 HORA 12 FEV | FADO CAMANÉ, Bruno de Almeida – Portugal 2014 (72’) M/6
O realizador Pier Paolo Pasolini a exibição de mais quatro obras, La Rabia, Edipo Rei, Teorema e Pocilga, sempre às 5ªs, na sede do CCF uma viagem gratuita pelas primeiras obras do italiano Pasolini, no ano em que se completam 40 anos desde a sua morte. Ainda a destacar a colaboração com a Fnac, que a 22 de Fevereiro pelas 18.30 conhece mais um
momento, desta feita com uma extensão do festival Porto/Post/ Doc, com a exibição do filme Cartas para Max, de Eric Baudelaire. Foco último para as alterações promovidas pelo CCF para os sócios (e não só) após a Assembleia Geral, que podem ser consultadas nas páginas web do CCF. Cineclube de Faro
19 FEV | ÄTA SOVA DÖ - EAT SLEEP DIE (COMER DORMIR MORRER), Gabriele Pichler – Suécia 2012 (104’) M/12 21 FEV | MOMMY (MAMÃ), Xavier Dolan – Canadá 2014 (139’) M/14 26 FEV | UROKI GARMONII – HARMONY LESSONS (LIÇÕES DE HARMONIA), Emir Baigazin – Cazaquistão/Alemanha/França 2013 (120’) M/16
Espaço AGECAL
Uma Europa cultural?
Jorge Queiroz Sociólogo, membro da AGECAL
Europa, uma bela mulher da cidade de Tiro raptada por Zeus, é um mito da antiguidade grega transformado em realidade. Se as civilizações mediterrânicas criaram a Europa e construíram os valores fundamentais da “civilização ocidental”, o contributo dos povos ibéricos foi relevante. Nos séculos XV e XVI levaram as suas culturas e costumes, a religião e a ciência, a tecnologia e produtos à descoberta de um mundo ainda em parte desconhecido, estabeleceram as grandes rotas comerciais. Quem nunca ouviu falar de Magalhães, Cristóvão Colombo, Pedro Álvares Cabral ou Vasco da Gama? Por esse facto o português (6ª) e o castelhano (3ª) são hoje das línguas mais faladas no planeta. Enquanto realidade económica e política a União Europeia nasceu das cinzas de duas guerras mundiais, as-
sumindo valores da paz, cooperação e desenvolvimento, no respeito pelos direitos humanos. Mas nem todos os Estados europeus pertencem a esta comunidade, hoje com 28 nações, mas em crise de identidade colectiva. Uma sociedade de nações constrói-se com valores e respeito mútuo. Um modelo de referência cívica, de liberdade democrática, de progresso e de respeito pelos povos foi a razão do sucesso da União Europeia. Sempre que a coesão social aumenta a conflitualidade diminui. Mas o diretório que comanda a UE parece querer contrariar essa equação básica. E a cultura? Não existe uma cultura europeia. A Europa é um complexo mosaico de grupos étnicos (eslavos, latinos e germânicos) e de culturas regionais, dezenas de idiomas, religiões monoteístas e suas ancestrais tradições simbólicas, a cristandade romana, ortodoxa e protestante, mas também expressões islâmicas (3%) e judaicas, sem esquecer um elevado número de europeus ateus e agnósticos. Esta diversidade é a grande riqueza da Europa, a origem da sua extraordinária monumentalidade e atracção, também a força da economia e do turismo, o continente mais
d.r.
Estátua representativa de Europa visitado de todos. A cultura, em sentido amplo, deveria pois estar no centro de toda a estratégia europeia. Ao contrário do que pensa a tecnocracia, são os valores culturais que comandam as sociedades, os que produzem adesão consciente dos cidadãos e geram economia sustentável. Entender a História Cultural da Europa e do próprio País seria a primeira e indispensável obrigação das políticas públicas para evitarmos o erro e o preconceito, estabelecendo relações mais simétricas e desenvol-
vimento partilhado. A Europa do Sul permitiu fragilidades e dependência económica pela cópia de um modelo cultural alheio, consentindo a desvalorização das suas riquíssimas culturas ancestrais. Este fenómeno ganhou terreno no pós-guerra pela influência do cinema, da televisão e do audiovisual, das indústrias culturais que trabalharam e trabalham com grandes meios na construção da imagem homogeneizadora que vende valores, comportamentos e produtos
que vão da música à alimentação, da língua às tradições. Assim surgiram em climas temperados do sul um Natal com neve, pinheiros e renas, um dia de bruxas, as noites brancas (versão comercial do sol da meia noite) e todos os meses um dia de “qualquer coisa” para o consumo de produtos na sua maioria importados. Ao contrário de uma cultura de imitação, as culturas mediterrânicas conservam enorme criatividade, serão fonte de inspiração para a criação contemporânea. A somar-se a tudo isto surgiu na Europa um discurso sobre povos “trabalhadores” e “preguiçosos” que é não só falso, provam-no a importação de mão-de-obra e de quadros do sul, como provoca fracturas e antagonismos. Ignora-se que as formas de vida são diferentes pisando-se a autoestima das populações. E os nacionalismos estão de regresso ao velho continente… Fernand Braudel, profundo conhecedor e investigador da história da Europa, escreveu um dia: “as civilizações não são mortais, sobrevivem às transformações e às catástrofes… renascem das cinzas”. Será bom não esquecer que as culturas são um “fogo sagrado”.
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Cultura.Sul
Letras e Leituras
Colleen McCullough, beleza e indomabilidade no feminino fotos: d.r.
Paulo Serra
Investigador da UAlg associado ao CLEPUL
Colleen McCullough nasceu na Austrália e faleceu no dia 29 de Janeiro de 2015. Formou-se como neuropatologista e mais tarde foi investigadora e professora em Yale, durante dez anos. O seu romance de estreia foi Tim, que conta a improvável história de amizade e amor entre uma mulher e um jovem extremamente bonito mas que possui a inteligência de uma criança. Pássaros Feridos foi o livro que projetou a autora. Uma saga familiar, que corre três gerações e atravessa o século, tecida de sonhos e amores proibidos. Passada na Austrália, esta narrativa conta a história da sobrevivência de um rancho numa terra bela e árida. Pássaros Feridos foi depois adaptado ao pequeno ecrã, em formato de série, e é certamente lembrado pela história de amor de Meggie e do padre Ralph de Bricassart, de uma intensa ligação que mesmo camuflada perdura uma vida inteira. A Independência de uma Mulher parte da história sobejamente conhecida de Elizabeth Bennet, que se casou com o senhor Darcy, no romance Orgulho e Preconceito, de Jane Austen. Contudo, em vez de se centrar nas figuras centrais do romance, a autora procura desvendar o véu que cobre a vida de Mary, a irmã de Elizabeth, que se transforma numa mulher independente de obrigações familiares, e inspirada pela prosa de Argos, pseudónimo que oculta a verdadeira identidade deste cronista, Mary decide escrever um livro onde intenta fazer uma dura crítica social, expondo os males do seu país e o drama dos pobres. A saga «O Primeiro Homem de Roma», originalmente publicada pela Difel, cujo primeiro título foi reeditado, no ano passado, pela Bertrand sob o
Pássaros Feridos foi a obra que projetou Colleen McCullough
título «Os Senhores de Roma», figura como uma série à parte, onde se revela indubitavelmente a erudição e a capacidade de escrita desta senhora. O Primeiro Homem de Roma (publicado na Difel com o subtítulo O Amor e o Poder) acompanha o período do final da República e início do Império Romano. A autora entrelaça com mestria a vida íntima de grandes figuras históricas com a política, as questões de legislação discutidas no Senado, as rivalidades familiares entre os patrícios de Roma e narra fabulosas cenas bélicas numa história rica em pormenores da vida de Roma Antiga. Foi considerado um dos dez melhores livros do ano, quando originalmente publicado, fruto de uma investigação impecável e de um nível de pormenor meticuloso. Todos os volumes são densos tomos de quase mil páginas: A Coroa de Erva, Os Favoritos da Fortuna, As Mulheres de César, César, O Cavalo de Outubro, António e Cleópatra. Depois do ocaso de Mário e Sula, generais romanos que disputavam o título
de Primeiro Homem, acompanhamos simultaneamente, o crescimento e ascensão do jovem Caio César, sempre seguro de si e da sua ambição. É também particularmente interessante ver como todos estes grandes líderes estão sempre rodeados de grandes mulheres que muitas vezes os impulsionam também nas suas ações e decisões. Ao longo de cerca de 8000 páginas percorremos assim toda essa galeria épica de figuras histórias e outras menos conhecidas, que ainda hoje fazem parte da nossa cultura, como César, Servília, Catão, Bruto, Cleópatra, Marco António, Marco Crasso, Pompeu Magno, até que encerramos esta saga com Octávio Augusto, sobrinho e filho adotivo de César, escolhido deliberadamente para manter a unidade do Império. Em A Canção de Tróia, a autora regressa novamente à cultura clássica, apresentando um fresco repartido composto por várias pequenas histórias que traçam o retrato de diversas figuras da mitologia grega. Mais tarde, a autora des-
viou-se do romance histórico para o romance policial, com vários livros centrados na figura do polícia detective Carmine Delmonico: Um Passo à Frente, com um final deveras intrigante e inesperado, O Dia de Todos os Pecados, centrado no ano de 1967, em que num só dia, na pequena cidade de Holloman, ocorrem doze homicídios, e Crueldade a Nu, onde Delmonico tenta descobrir a identidade do perpetrador de diversas violações que se sucedem rapidamente. A autora escreveu vários outros romances, onde geralmente podemos encontrar jovens protagonistas “românticas” que lutam pela concretização dos seus sonhos e, nessa senda, definem a sua personalidade. Agridoce conta a história de dois pares de gémeas e tem como cenário a Austrália das décadas de 20 e 30. Edda quer ser médica, Tufts é uma jovem prática, que deseja ter sempre tudo organizado e repudia a ideia de casamento, Grace é uma jovem independente mas que deseja casar e Kitty está cansada de apenas ser reconhecida pela sua beleza. São conhecidas na Nova Gales do Sul pela sua beleza, espírito e ambição, mas conforme se aproximam da maturida-
de, as perspetivas limitadas da sua vida futura desmoralizam-nas. Todas elas decidem então inscrever-se numa formação em enfermagem, uma nova opção para as mulheres que, regra geral, se viam confinadas ao lar. As irmãs Latimer irão conhecer outras pessoas e encontrar desafios que em muito contribuirão para a sua maturidade, formação pessoal e a sua independência. Inevitavelmente, conhecerão homens de todos os quadrantes sociais, quer sejam agricultores, colegas no hospital e até mesmo homens com cargos públicos e políticos, e cada uma das irmãs terá de reavaliar as suas decisões e aspirações e decidir aquilo que é para elas mais importante. O título Agridoce talvez não seja muito feliz, remetendo os potenciais leitores para um título próprio de todo um novo gênero literário “cor-de-rosa” que enche as livrarias com uma série de histórias superficiais de paixão, mas Colleen McCullough é certamente uma autora que continua a despertar interesse e a arrebatar corações com uma escrita sensível. Aquando da sua publicação em Portugal, apresentou-se Agridoce como o primeiro romance épico da autora desde Pássaros Feridos, mas na verdade existiram ou-
tros dois grandes livros, intitulados A Viagem de Morgan e O Toque de Midas, separados entre si por gerações, embora ambos tracem um retrato histórico extremamente minucioso de como surgiu a Austrália. A Viagem de Morgan conta a aventura de Richard Morgan, um homem instruído que arranja trabalho numa destilaria de rum, contudo a sua inteligência e retidão deixá-lo-ão em apuros quando encontra canos escondidos que desviam ilegalmente centenas de galões de rum, para fugir aos impostos. O protagonista encontrar-se-á subitamente enredado numa teia de corrupção, sendo preso e enviado num dos vários navios de deportados rumo à nova colónia penal da Austrália. Aí assistimos ao quotidiano de um país que irá emergir do nada, ao mesmo tempo que os seus habitantes tentam resistir tanto a desastres naturais como às falsidades dos outros condenados. O livro podia quase ser lido como um romance de aventuras se não fosse o facto de assistir a esta história uma investigação exaustiva no que concerne aos mais variados aspetos da época, formando assim um microcosmos que representa os primórdios da nação australiana.
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Panorâmica
Reinventar profissões esquecidas: pespontos feitos mimo Ricardo Claro
Jornalista / Editor ricardoc.postal@gmail.com
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O regresso a profissões esquecidas na gaveta dos tempos, em grande parte do país, foi um dos poucos condões dos momentos difíceis que atravessamos. A sociedade consumista, do imediatismo, dos serviços, do pronto a vestir e do abandono das profissões tradicionais impôs a alguns misteres outrora de grande procura um abandono quase total. A partir de meados da década de oitenta, os anos noventa e a primeira década de dois mil que se lhe seguiram quiseram que o país evoluísse, tivesse novas necessidades e novas formas de as satisfazer e no borbulhar da aurora consumista desenfreada, feita de mil quereres e outras tantas respostas ao ritmo do agora fizeram cair quase no esquecimento o sapateiro que se fez ‘sapato no minuto’, a modista ou costureira que se fizeram ‘Cort&Cose’, ‘Retoucherie’ ou uma qualquer marca de prêt-a-porter. Esfumaram-se as pespontadeiras e os alfaiates, das casas de pasto não rezou a história engolidas pelas ‘comidas a peso’ e os ‘pronto-a-comer’. O homem dos biscates fez-se técnico certificado de um preciso parafuso de um electrodoméstico particular e qualquer arranjo em casa podia ter de ser realizado por uma panóplia inominada de especialistas. Massificada, repetitiva, sem alma, mesmíssima, a oferta do mercado fez-se na exacta medida daquilo que a maioria da procura desejava. Marca, baixo custo, uniformização e, não em poucos casos, verdadeiro desejo de carneirismo consumista. Nada a objectar, somos - os da minha geração - o produto acabado deste figurino que buscámos tantas vezes inadvertidamente e outras tantas de plena consciência. Somos, fomos e seremos em muitos casos apenas o que tivemos, temos e teremos de ser com todos os circunstancialismos que se nos surgem. Mas os apertos, o desemprego, a escassez, a nova perspectiva, a imposição
fotos: ricardo claro
e, não menos, a vontade reinventada de descobrir dão-nos hoje a provar o regresso de uns aos saberes fazer de outros tempos reinventados para os dias de hoje e de outros à procura de uma oferta alternativa, seja ela gourmet, taylor made, autêntica, artesanal, ecológica, orgânica ou tantos outros rótulos. Procuramos hoje, como nunca nos últimos 30 anos, identidade naquilo que compramos, respostas à nossa medida pessoal ou à medida da nossa carteira e em larga medida afastámo-nos do percurso em auto-estrada a caminho do consumismo desenfreado e generalista. Não deixamos as marcas, nem as lojas massificadas, mas juntámos a tudo isto por variadas razões, sejam de dificuldades económicas, sejam de escolha pessoal, uma pitada de sal na forma como consumimos. Em suma, diversificámos o ideário subjacente à procura. Fenómeno económico e cultural O resultado desta nova forma de estar - se é que se pode classificar verdadeiramente como nova - está, no caso do Algarve como no do resto de grande parte do país, a dar novos matizes ao tecido económico e empresarial e, simultaneamente, a determinar uma paleta mais diversificada da oferta.
Cristina Cadeirinhas e Vanessa André apostaram na costura Há quem veja o fenómeno dos novos negócios, tascas, mercearias, lojas gourmet, lojas de artesanato e o comércio de produtos autóctones e de criações por
medida, como um fenómeno de reacção à debilidade da oferta laboral e da economia. Será, mas é também uma reinvenção da forma de fazer de outros tempos e a recuperação de um saber fazer e de uma identidade que há menos de dez anos diríamos condenados ao esquecimento. O Cultura.Sul já abordou a temática na área das mercearias e restauração e a reincidência, desta feita na área da costura, firma-se na convicção de que este é também um fenómeno cultural que tendo a crise por esteiro se revela um dos lados positivos de um desastroso fado que temos de ultrapassar. Há destas coisas e do mau se pode retirar o bom, na mesma medida em que se dança ao som da música. Cristina Cadeirinhas e Vanessa André são o exemplo de quem aproveitou esta onda e se fez ao desafio de recuperar uma profissão a caminho do esquecimento, reinventando-a conceptualmente. A costura regressa ao léxico das profissões
Vanessa André a costurar um porta desenhos e lápis “COISAS DA MINHA AVÓ” Até 27 FEV | Casa dos Condes - Alcoutim Francisco Brás apresenta um espólio com mais de cem anos, com peças da época da sua avó. A iniciativa pretende mostrar a riqueza etnográfica do concelho de Alcoutim
A costura regressa assim ao léxico das profissões de hoje também pelas mãos destas duas mulheres que fazem na bai-
xa de Faro da marca Pipoca’s o seu sustento e o seu trabalho, abraçando uma forma diferente de ganhar a vida. São pespontos feitos mimo que fazem nascer de tecidos escolhidos com dotes de imaginário infantil e muito trabalho as peças que tornam esta marca um fenómeno em crescimento no mercado de produtos para bebés e petizes na primeira infância. Já não se pedala, que os motores das máquinas de costura calaram o ritmado das velhas singer, já se saiu para fora de portas mesmo antes de abrir as da loja, com o on-line a garantir a fatia de leão das encomendas, já se cresceu para o nacional e se internacionalizou, mesmo antes de se vender no Algarve. Não se é a costureirinha dos filmes do Estado Novo, mas antes são mulheres de negócios, com formação superior e projectos bem desenhados para o crescimento e sustentabilidade, que se fazem nas terras do empreendedorismo empresárias de sucesso. Nos escaparates há babetes, fraldas, lençóis para alcofa de empreita, muda fraldas e tudo para o enxoval dos recém nascidos. Nas prateleiras exibem-se as forras para o ovinho, os sacos do bebé, as almofadas de amamentação, as toucas e os gorros. Enquanto as paredes do atelier mostram os brinquedos, os quadros decorativos, os cavalinhos de pau e um sem fim de propostas. A terapeuta da fala e a professora, feitas costureiras à medida dos sonhos dos bebés, das babadas mães e pais e dos amigos e familiares exaltantes com os novos rebentos, descobriram um nicho de mercado com fraca oferta na região e apostam forte no saber costurar para criar cada objecto à medida do cliente, numa clara aposta no tradicional fazer por medida. Exclusividade é a palavra de ordem num negócio onde a tradição do chulear, do casear, das aplicações de vivos e bordados se faz nova e frutífera. Alinhava-se assim o sustento de famílias, gera-se riqueza, recuperam-se tradições e dá-se perenidade à cultura e identidade de uma assentada, num mar de pespontos feitos mimo e negócio. A tradição já não é o que era, mas ainda dá provas de ter muito a dizer. Nomeadamente, que velhos são os trapos, porque as profissões são intemporais.
“OLHARES” Até 28 FEV | Biblioteca Municipal de Olhão Maria Odete Fernandes apresenta 19 painéis de fotografias que representam as suas viagens pelo Mundo, mostrando através da sua objectiva a forma como “olhou” para esses lugares
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Cultura.Sul
Artes visuais
As obras com texto escrito podem ser arte visual? Saul Neves de Jesus
Professor catedrático da UAlg, Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora
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Palavras, frases e até poemas são muitas vezes integrados na arte visual contemporânea. A questão que por vezes se coloca perante estes trabalhos é se se trata de arte visual ou de arte escrita. Respondemos que se trata claramente de arte visual. No entanto, para uma compreensão desta resposta é importante conhecer como começou a surgir o texto escrito nas artes visuais. Destacaríamos que, nos anos 60, com a emergência da arte concetual, começou a ser frequente a utilização de texto nos trabalhos produzidos. Inclusivamente, muitos artistas conceptuais usaram praticamente só palavras no final dos anos 60, porque pretendiam desmaterializar o objeto da arte e porque pretendiam comunicar ideias ao público. Um trabalho concetual clássico com utilização de palavras foi apresentado por Kosuth, “Uma e três cadeiras” (1965), em que foi exposta uma cadeira real, uma fotografia de uma cadeira e a definição de cadeira, retirada de um dicionário. Alguns chegavam mesmo a argumentar que todos os trabalhos artísticos são essencialmente linguísticos, de tal forma que, em 1968, alguns artistas conceptuais criaram a revista “Art-Language”, na qual se procurava evidenciar “a linguagem como arte”: “such discussion was not language about art, but language as art” (Godfrey, 1998). Como exemplo de trabalhos da arte concetual em que eram utilizadas palavras, não só expressando o pensamento do artista, mas também procurando levar
o espetador a pensar, através da colocação de questões, temos o quadro “What this painting aims to do?” (“Qual é o objetivo desta pintura?”), de John Baldessari (1969). As palavras são também utilizadas em trabalhos mais recentes, nomeadamente em “Where am I?” (“Onde estou?”), de Annette Lemieux (1988). Mas esta estimulação ao pensamento do espetador era feita também com pequenas frases, sem interrogações, como por exemplo no trabalho “Any moment” (“Qualquer momento”), de Victor Burgin (1970). Os números também eram por vezes utilizados, em particular no trabalho de Dan Graham (1970), “March 31, 1966” (“31 de março de 1966”). No entanto, convém salientar que, não obstante a grande ênfase dada pelos concetualistas à utilização das palavras, estas já eram utilizadas anteriormente por diversos artistas. Por exemplo, já em “Un coup de dés” (“Um lance de dados”), de Stéphane Mallarmé (1897), era apresentado um poema numa página inteira, encontrando-se as letras com diferentes tamanhos e as linhas dispersas como elementos numa pintura. Também em “Grande foule sur la Piazza del Popolo” (“Grande multidão na praça de Popollo”), Francesco Cangiullo (1914), tal como outros Futuristas, procurava dispor palavras no espaço para as transformar em imagens, neste caso tentando sugerir a
agitação de uma multidão reunida numa praça. Por seu turno, Miró também inseriu números, palavras ou frases nos seus quadros, nomeadamente em “Photo, ceci est la couleur de mês rêves” (1925). A poesia visual foi também uma modalidade utilizada por alguns artistas, bastando que existisse uma informação organizada artisticamente através de elementos gráficos ou visuais. Assim, os símbolos linguísticos estão distribuídos de tal forma que o elemento visual assume a função organizadora da obra. Considera-se que o poema visual mais antigo foi “O ovo”, de Rodes (300 aC), pois o texto distribuía-se em formato de ovo. No entanto, foi em França, em 1962, que o poeta Pierre Garnier criou o movimento Espacialismo, lançando o seu “Manifesto por uma nova poesia visual e fónica” (“Manifeste pour une poésie nouvelle visuelle et phonique”), propondo uma nova poesia que explorasse o aspeto visual ou sonoro, isto é, uma poesia “para ver-se” ou “para ouvir-se”. De uma forma diferente, isto é não pretendendo que a escrita poética seja colocada de forma a ser criada uma imagem, outros artistas integram poesia nas suas pinturas. Um exemplo de integração da poesia na pintura ocorre no quadro “Auto-retrato com cabelo cortado” (1940) de Frida Kahlo. Esta pintora mexicana havia-se separado pouco
Pintura “Photo, ceci est la couleur de mês rêves”, de Miró (1925) “CONCERTO PELA ORQUESTRA CLÁSSICA DO SUL” 26 FEV | 18.00 | Igreja Matriz de Alcoutim Orquestra apresenta o ciclo “A Sinfonia Clássica”, com obras de Works by Jerónimo Francisco de Lima, Wagner e Mozart
fotos: d.r.
Pintura “Auto-retrato com cabelo cortado”, de Frida Kahlo (1940) (vista parcial) tempo antes do seu marido, o pintor Diego Rivera, quando pin-
Técnica mista “Terra Natal: Homenagem a Olhão”, de Saul de Jesus (2010)
tou este quadro, no qual coloca também a letra de uma canção popular mexicana: “Olha, quando te amava, era por causa do teu cabelo. Agora que cortaste o cabelo, já não te amo”. Além disso, muitos dos artistas visuais também realizaram trabalhos no âmbito da arte escrita, em particular na poesia, mesmo que não incluíssem palavras ou frases nos seus trabalhos. Por exemplo, Kandinsky escreveu poemas que fazem referência a cores e linhas, aproximando-se daquilo que também fazia através da arte visual. Esta proximidade entre a arte visual e a arte escrita encontra-se bem sintetizada na frase de Leonardo Da Vinci: “A pintura é uma poesia que se vê” (Pedrosa, 2009). A quebra de barreiras entre modalidades artísticas tem permitido a emergência de criações contemporâneas que por vezes suscitam dúvidas no público, não compreendendo porque é que uma obra é considerada desenho, quando parece escultura, ou escultura, quando parece música. Assim, por exemplo, temos a modalidade “escultura
sonora” seguida por alguns artistas na atualidade, assumindo-se como “sound sculpture artists” (Bill Fontana, 2012). É o caso do artista e fotógrafo alemão Martin Klimas que trabalha com respingos de tintas coloridas através da reverberação do som, ou até do “escultor sonoro” português João Oliveira que exibiu a “5ª Sound”, uma instalação com galinhas e um teclado musical, e ainda uma performance com chávenas, nas esplanadas do centro histórico de Guimarães, no âmbito do programa da Capital Europeia da Cultura, em 2012. Sem formação académica em artes, João Oliveira afirmava que “O mundo, para mim, é uma ópera de sons”. A questão de fundo aqui diz respeito à liberdade de expressão dos artistas contemporâneos, que utilizam diversas técnicas artísticas e, com o apoio das novas tecnologias, produzem instalações, arte digital, vídeo arte, etc. Desta forma, os artistas procuram conciliar as tradições artísticas tradicionais com as técnicas contemporâneas. No entanto, convém salientar que esta utilização de diversos meios na produção artística foi uma característica comum a muitos dos artistas desde o início do século XX, os quais realizavam trabalhos nas várias artes visuais conhecidas na sua época, nomeadamente na pintura, na escultura, no desenho, na gravura e na fotografia, não se limitando à utilização de uma única técnica. A curiosidade e a experienciação sempre têm feito parte do processo criativo dos artistas, pelo que é comum a utilização dos meios permitidos em cada época, não obstante depois, em termos de história de arte, poderem ficar mais conhecidos pela utilização de uma determinada técnica ou estilo artístico. Nota: Este artigo integra o livro “Construção de um percurso multidisciplinar, integrativo e de síntese nas Artes Visuais”, de Saul Neves de Jesus (snjesus@ualg.pt)
“MARIA CAMPINA, A LOULETANA QUE PÔS SALZBURGO DE PÉ” Até 31 MAR | Cine-Teatro Louletano A presente exposição pretende valorizar o projecto de vida de Maria Campina, ou seja, a sua dedicação à música e à pedagogia musical, deixando ao mundo um legado incontornável
Cultura.Sul
06.02.2015
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Momento
Partilhando imagens... e algo mais Foto de Ana Omelete
Um olhar sobre o património
E o leitor, não quer ser um mecenas?
Alexandre Ferreira
Licenciado em Património Cultural pela UAlg
As recentes notícias relativas à Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva, decorrentes de toda a turbulência em torno do BES e da família Espírito Santo, vieram colocar na praça pública pelas piores razões o Mecenato Cultural e o papel que o Estado Português adopta na defesa de um património cultural nacional que se reveste de características únicas. Únicas, porque em 1953 o banqueiro que dá o nome à Fundação (não o que está agora no seio da amálgama que se chama BES) oferece ao Estado não só uma valiosa colecção de artes plásticas e decorativas mas também a própria Fundação, com o seu museu já constituído no Palácio Azurara em Lisboa, naquela que terá sido uma das primeiras iniciativas de
Mecenato Cultural do nosso país. Exposta que está a toda a insegurança que se vive em torno do BES/Novo Banco o futuro da própria Fundação é desconhecido, colocando em causa duas escolas técnicas, dezoito oficinas tradicionais e o museu de artes decorativas do século XVIII, já para não falar dos técnicos especializados que ali trabalham. Incertezas que se agudizam com a indefinição acerca do que o Estado Português pretende fazer. Importa referir que o Mecenato Cultural, com raízes no Renascimento, onde o poder recorria à protecção de artistas e das artes para demonstrar a sua supremacia, consubstancia-se nos dias de hoje em apoios, sob a forma de donativos ou, desde o início deste ano, sob a forma de cedência de recursos humanos do mecenas à entidade beneficiária. Estes apoios conferem ao mecenas o direito a benefícios fiscais, os quais foram alargados neste início de ano. Não por acaso, os casos mais conhecidos de Mecenato Cultural estão associados a grandes empresas através das suas Fundações: Fundação EDP, Fundação Millenium BCP e o extinto BES com o seu apoio à fotografia, o qual tran-
foto: lijealso
Imagem da fachada do Museu de Artes Decorativas sitou para o NOVO BANCO Photo e cujos nomeados foram divulgados no final do mês de Janeiro. Mas o Mecenato Cultural não está só ao alcance das grandes empresas. Casos há, em que particulares assumem o seu papel de Mecenas promovendo a requalificação do património que de outra forma continuaria
abandonado e em ruínas, como o caso do Forte de Albarquel em Setúbal, o qual vai ser recuperado por uma fundação de uma cidadã inglesa e, uma vez terminada a requalificação, irá ser disponibilizado à comunidade como núcleo museológico, galeria de exposições e eventos culturais.
É certo que não está ao alcance de todos, particulares ou empresas, constituírem-se como mecenas. Mas este facto não invalida que aqueles que não tenham essa possibilidade sejam interventivos na protecção e sensibilização para o Património Cultural. Poderá começar com um simples passeio no qual se vão contando aos filhos, aos netos, aos amigos, as belas histórias que determinado local nos faz recordar ou as lendas que desde tenra idade povoam o nosso imaginário ou até mesmo aquele marco histórico que achámos curioso quando o descobrimos. Ou até mesmo juntarmo-nos a um grupo de pessoas que comunguem do desejo e da paixão pela história da nossa comunidade? Com um singelo acto como este, estamos a criar e a transmitir significado. E é do significado que nascem os laços afectivos, os quais posteriormente nos dão o ímpeto para proteger e preservar o que nos é querido. E já agora, porque não um passeio até ao Promontório de Sagres, o qual está a ser alvo de uma intervenção de fundo no âmbito do Projecto de Requalificação e Valorização, e verificar in situ o porquê de ter sido submetida a sua candidatura à Marca do Património Europeu.
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06.02.2015
Cultura.Sul
Sala de leitura
O rumor de Londres Paulo Pires
Programador cultural no Município de Silves esteoficiodepoeta@gmail.com
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Melville dizia que havia dois lugares no mundo em que uma pessoa podia desaparecer por completo, sem deixar vestígio: a cidade de Londres e os mares do Sul. É precisamente nessa urbe, complexa e inquietante, que deambulam as personagens e leitores de Virginia Woolf, como Mrs. Dalloway, num dia em que sai para a rua para comprar flores, ou Orlando, que retorna à cidade várias vezes ao longo da sua secular existência de mulher e homem. Se as cidades também são o que delas fazem a pedra e o concreto, os (pequenos) gestos, sentires e visões dos seus habitantes e visitantes, por seu lado, tornam-se indissociáveis da construção de uma identidade, de um imaginário, de uma geografia afectiva urbana. Os labirintos e fascínios da moderna Londres – aquela que o poeta romântico inglês Shelley considerava uma cidade muito parecida com o Inferno, pelo aspecto populoso e pelo fumo – foram um dos principais nutrientes literários de Virginia Woolf, que navegava nas suas ruas como uma espécie de onda, plena de lucidez e poeticidade. Várias obras da escritora reflectem isso, como o romance The Years (1937) ou o ensaio-guia The London Scene (ou simplesmente Londres, na competente tradução de José Miguel Silva para a Relógio d’Água), de 1931. As cenas londrinas que Woolf teceu na Primavera desse ano (destinadas à publicação na revista Good Housekeeping) revisitam a beleza da imponência e do simples, do genial e do comum, “sem ter sequer de mexer um dedo”
(nas palavras da escritora num diário de 1924). Uma cidade que se apodera das vidas privadas e as transporta sem esforço, onde as pessoas entram e saem ligeiras e divertidas como coelhos – como se lê nas mesmas memórias dos anos 20. Na aludida obra Londres, o itinerário inicia-se no lugar porventura mais simbólico da urbe (ponto de partida e chegada, de rotina e novidade, de esperança e incerteza, de sorrisos e lágrimas, de trabalho e capital): as docas – espécie de caixa-de-ressonância de uma cidade acordada e de íman de uma capital aberta ao mundo. Para Woolf o porto de Londres afigura-se como um ponto obrigatório de ancoragem, que tem o condão de atrair a galeria mais cativante (e improvável) de exemplares: navios grandes e pequenos, maltratados e esplêndidos, românticos, caprichosos e livres, “vindos do silêncio, do perigo e da solidão”. Num tom poético-modernista, a escritora justifica assim aquela dança vertiginosa (do sal) dos dias: “Somos nós – com os nossos gostos, as nossas modas e necessidades – que fazemos com que os guindastes balancem e mergulhem, somos nós que atraímos do mar alto os navios. […] O comércio observa-nos com ansiedade, a fim de perceber que novos desejos se formam em nós, que novas aversões”.
fotos: d.r.
Virginia Woolf: Londres como viagem ao fundo de si mesma Próxima paragem: Oxford Street. E um recado à navegação moralista e ao seu previsível repúdio pela frágil, “contida, indolente e impiedosa maré” daquela avenida londrina: “[…] talvez eles estejam equivocados no seu desprezo, como nós estaríamos se perguntássemos ao lírio se queria ser fundido em bronze ou à margarida se queria que as suas pétalas fossem de
A “moderna Babilónia”: Londres em 1930 “AMÁLIA POR JÚLIO RESENDE” 21 FEV | 21.30 | Teatro das Figuras - Faro Trata-se do projecto a solo do pianista Júlio Resende e a sua primeira incursão pelo universo do Fado, concretizada em trabalho discográfico
imperecível esmalte”. Virginia esmiuça mesmo a sua visão sobre este tópico, naquela que é uma das reflexões mais bem conseguidas da obra: O encanto da moderna Londres está em ser feita não para durar, mas para passar. O seu vidrado, a sua transparência, as suas ondas de gesso colorido proporcionam um prazer distinto e alcançam objectivos distintos dos que eram desejados pelos antigos construtores e seus clientes, a nobreza de Inglaterra. O orgulho destes exigia essa ilusão de permanência. O nosso, pelo contrário, parece comprazer-se em demonstrar que somos capazes de construir com pedras e tijolos tão transitórios como os nossos desejos. Nós não edificamos para os nossos descendentes, que tanto poderão vir a morar nas nuvens como debaixo da terra, mas para nós próprios e para as nossas necessidades. Nós arrasamos e reconstruímos tal como esperamos ser arrasados e reconstruídos. Um impulso, esse, que favorece a criação e a fertilidade. Assim se estimula
a descoberta e se alerta a invenção. Seguem-se os sítios onde podemos pendurar o chapéu, como diria o viajante Bruce Chatwin. Virginia Woolf perscruta então as casas dos grandes escritores, como Dickens, Johnson (o mesmo que afirmou um dia que “quem está cansado de Londres está cansado da vida”), Carlyle ou John Keats, “pois os escritores deixam nos seus bens uma marca mais indelével do que a maior parte das outras pessoas” e inscrevem/projectam, de modo singular, a sua identidade no espaço privado. Segundo a nossa guia, nenhuma biografia é mais esclarecedora do que uma hora passada na residência de Thomas Carlyle, onde havia uma bomba de água no rés-do-chão e uma banheira de latão amarelo três pisos acima: “Tanto o marido como a mulher eram pessoas de génio; amavam-se um ao outro. Mas o amor, o génio – que podem eles contra o carun-
cho, as banheiras de latão, ou uma bomba de água no rés-do-chão?”. E Woolf questiona-se mesmo se metade das discussões daquele casal não teria sido evitada, suavizando imensamente as suas vidas, se aquela casa fosse dotada de todas as comodidades modernas. Uma paragem inevitável para privilegiar a espiritualidade: abadias e catedrais. A primeira impressão ao entrar nas igrejas da cidade é a de que os mortos usufruíam de um espaço muito maior do que aquele que os vivos têm actualmente ao seu dispor. E xdá-se o exemplo de um homem do século XVIII que foi enterrado dentro da igreja e cuja lista de virtudes ocupa toda uma parede (a mesma área que hoje permitiria instalar um escritório completo com uma avultada renda). “Nos nossos dias, um homem assim obscuro teria direito apenas a uma lápide de tamanho regulamentar, colocada entre um milhar de outras, e as suas grandes e divinas virtudes teriam que ficar por reconhecer”. Neste trajecto é impossível ficar indiferente à suspensão e “libertação da pressa e do esforço” que a espaçosa e serena Catedral de St. Paul transmite, “mais do que qualquer outro edifício no mundo”, a qual contrasta com a severa, estreita e animada Abadia de Westminster, onde reina uma brilhante, selecta e distinta assembleia cujos “mortos, se é que mortos estão, viveram plenamente” e “onde não há um centímetro de parede que não fale, não proclame, não ilustre”. Londres tem, para Virginia Woolf, essa dualidade magnética: uma cidade de túmulos, de sossego e garantia de repouso; mas também uma urbe “mergulhada em pleno na rápida torrente da vida humana”, intranquila, amontoada, tumultuosa. [continua na próxima edição]
“POTES” Até 13 FEV | Junta de Freguesia de Pechão O tema da exposição surgiu da paixão de Maria do Ó (Maria Odete Fernandes da Fonseca Neves) por potes, decidindo passar para a tela os muitos potes que tem descoberto nas viagens que tem realizado pelo mundo
Cultura.Sul
06.02.2015
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O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N
Fevereiro lendário exposto à vista de todos…. Poder-se-á então dizer…: – Fevereiro acaba sempre por ser o mais frio e aborrecido dos meses, mesmo que determinando o fecho do escuro dos dias pequenos, e preparando o crescendo das horas, em que tal como a natureza, recuperamos o caminho para a luz.
Pedro Jubilot
pedromalves2014@hotmail.com canalsonora.blogs.sapo.pt
reiro a sua primeira grande iniciativa, tendo já confirmados Francisco Fanhais, Vitorino, Janita Salomé, João Afonso, Filipa Pais, Afonso Dias, Tânia Silva, Luis Galrito, António Hilário. E que venham mais cinco….
Já vai longo…
Farpa Lab
O poeta n’O Poeta, na rua do poeta fotos: d.r.
Inaugurou a 22 de Janeiro com uma exposição colectiva. Está situado no terraço do Mercado Municipal de Faro, com o seu amplo espaço interior e uma vista urbana invejável com rastos da Ria Formosa no horizonte, torna-se o sítio perfeito para a recepção das mais variadas exposições de arte contemporânea, servindo de motor para a promoção de artistas emergentes, com maior incidência nos artistas regionais, assim como para apresentar e promover obras de diversos outros artistas nacionais e internacionais consagrados. Tendo o Atelier da Policromia como suporte, a Galeria estará receptiva a candidaturas para exposição de todo o tipo de movimento artístico como são os do Desenho, da Pintura, da Escultura, da Performance, Instalação e dos demais.
Estímulo Hoje ao fim da tarde (18h30), num renovado bar - ‘O Poeta’ (r. poeta emiliano da costa, 26-tavira) - que dá grande destaque ao seu subtítulo: ‘Cultura a Retalho’, Pedro Jubilot apresenta o mais recente livro de poesia do autor Fernando Cabrita. «Lejos de Sefarad/ Longe de Sefarad», nº 5 de Los Libros del Estraperlo, traz os Poemas da/de la Cidade de Lucena, em edição bilingue, como todos os livros deviam ser…
Fevereiro
O homem fica por estes dias sentado num tronco que está frente à casa, manhã após tarde, olhando um céu passando os seus flocos brancos, à espera que estes escureçam, e que nos sopros de ar lhe tragam a tão desejada precipitação pluviométrica para as terras onde os cultivos requerem pacientemente um pouco de estímulo ao desenvolvimento da sua agricultura, que ainda que pequena não a entende de contemplação estética.
pela Edições Mandil no final de 2014. O livro reúne artigos anteriormente publicados em diversos órgãos de comunicação regionais, nomeadamente, no Jornal do Baixo Guadiana. Estes textos apresentam-se como pequenos contributos para a História Local e Regional, referentes a diferentes épocas, desde a Antiguidade à Contemporaneidade. O seu lançamento teve o apoio institucional da Direcção Regional da Cultura do Algarve e da Liga dos Amigos do Mestre Manuel Cabanas.
… das marés vivas
Perdoem-me os apreciadores de lareiras, dos cházinhos quentinhos, das sopas grossas, da mantinha no sofá… mas o inverno já vai demasiado longo, aborrecido, desconfortável e limitativo, pelo menos por aqui junto à costa. Como acontece com muita espécie na natureza, apetece hibernar, parar para descansar, rejuvenescer para o tempo que está por chegar, que é aquele que interessa.
A colectânea «Sízigia» (CanalSonora editora, 2014), que mostra 37 autores do Algarve, nas áreas da poesia e fotografia, terá novas apresentações nas bibliotecas Municipais de Silves e Faro, a 14 de Fevereiro (16h) e 6 de Março (18h), respectivamente. Nela se pode ler, de Sara Monteiro: A inesperada viagem Em vez de seguir pelos sensatos trilhos, o comboio, numa cabriola infantil, talvez tomado por uma espontânea alegria de viver faz um pequeno desvio e segue pela ria entrando no sapal.
Subsídios
Bem (H)AJA
Depois dos ahs e ohs de espanto, admiramos o mergulhão, o colhereiro, o ostraceiro, e outras brancas, pretas, azuis. As aves protegidas nem olham para nós soberanas e indiferentes rainhas formosas da ria. E depois das ilhas, do desvario o comboio retoma aos trilhos e larga-nos na estação.
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Fevereiro acaba por ser o mais longo dos meses, mesmo que muita gente não o aceite, desmentindo-o categoricamente perante o ca-
O recém-formado núcleo do Algarve da AJA - Associação José Afonso, dinamiza em Tavira (cinema António Pinheiro), no dia 14 de feve“O LAGO DOS CISNES” 6 e 7 FEV | 21.00 | Teatro das Figuras - Faro A Companhia Nacional de Bailado regressa ao palco farense com uma produção estreada em Fevereiro de 2013. A partitura de Tchaikovski será interpretada ao vivo pela Orquestra Clássica do Sul
«Subsídios para a História do Baixo Guadiana e dos Algarves Daquém e Dalém-mar», é a mais recente obra de Fernando Pessanha, lançada
Aqui fui quase feliz por duas vezes E agora feliz, sem sombra, sempre que a piso.
“PINTURA DE ANTERO ANASTÁCIO” Até 6 MAR | Antigos Paços do Concelho de Lagos O artista apresenta um conjunto de obras, mostrando o seu estilo: de influências surrealistas e com a luminosidade que consegue passar para as telas
10 06.02.2015
Cultura.Sul
Espaço ao Património
Ficha Técnica:
O que comiam os nossos avós? Um projecto educativo sobre a alimentação no sotavento algarvio
Catarina Oliveira
Arqueóloga; responsável pelo Centro de Investigação e Informação do Património de Cacela/Câmara Municipal de Vila Real de Santo António
É reconhecido hoje a museus e instituições de carácter cultural um papel cada vez mais importante no estímulo de aprendizagens não formais. Os museus fazem-no, na maior parte das vezes, a partir das suas colecções. No Centro de Investigação e Informação do Património de Cacela/ CMVRSA, em Vila Real de Santo António, temo-lo também feito a partir do território, das pessoas que o habitam e suas memórias. Na área da educação para o património, para além da oferta regular de oficinas e visitas ao património local, é através de projectos temáticos que vimos garantindo, a partir das crianças e jovens, o envolvimento de toda a comunidade no conhecimento, preservação e valorização do seu património. Destacamos aqui o último projecto, dinamizado entre 2011 e 2012, com devolução de resultados através de edição em 2013. “O que comiam os nossos avós? Alimentação no Sotavento Algarvio” explorou, com as escolas do concelho de Vila Real de Santo António, antigas tradições alimentares, na sua ligação ao território, ciclo agrícola e calendário festivo. Desenvolvido antes do reconhecimento da Dieta Mediterrânica em Portugal, como Património Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco, pode ser inspirador e motivador para escolas e municípios que pretendam envolver as comunidades no conhecimento e salvaguarda destes patrimónios. A cozinha no Sotavento Algarvio, estreitamente ligada ao grande universo da alimentação mediterrânica, é resultado de antigas heranças: a exploração dos recursos do mar e da
ria; o labor nas hortas e pomares do barrocal com variedade de hortícolas, citrinos e frutos secos (figo, amêndoa e alfarroba); tradições serranas ligadas à pastorícia, ao mel, aos antigos ciclos do pão e do porco, à caça e à utilização de ervas na aromatização dos comeres. De que forma o que comemos se relaciona com os recursos disponíveis no território e a sua exploração? Que trocas de produtos se estabeleciam entre os pescadores do litoral, os camponeses do barrocal e os montanheiros? Como é que a sazonalidade e o ciclo agrícola marcavam a alimentação ao longo do ano? Como se conservavam os alimentos do mar e da terra? O que se comia e como se comia nos dias festivos? Como eram as nossas cozinhas e que recipientes e utensílios se usavam na preparação dos alimentos e às refeições? O que resta do nosso antigo receituário na memória dos mais velhos e de que forma esses saberes estão a ser transmitidos aos mais novos? Foram algumas das questões a que crianças, professores e familiares procuraram dar resposta ao longo de dois anos. O projecto iniciou-se com a apresentação de um diaporama sobre as tradições alimentares para alunos e professores, onde as questões elencadas foram exploradas de forma dinâmica, em contexto de sala de aula. Seguiu-se o trabalho de pesquisa escola-comunidade, envolvendo o registo (escrito, oral ou vídeo) e levantamento de tradições alimentares antigas, pelas próprias crianças junto da comunidade local. Para o efeito preparámos e entregámos fichas de recolha e guiões de entrevista, de acordo com as novas preocupações e metodologias de levantamento do património cultural imaterial. Um guião preparado para o 1º, 2º e 3º ano orientou-se para a recolha de uma receita (seus ingredientes, origem, contextos de aprendizagem, confecção e degustação). Outro mais completo, para crianças e jovens a partir do 4º ano de escolaridade, orientava uma conversa em torno de questões mais abrangentes ligadas à alimentação na região. Nesta fase do
projecto, diríamos que a mais importante, a criança transforma-se num “pequeno-investigador” e assume-se como sujeito activo da construção do conhecimento. Em paralelo, todas as turmas fizeram saídas de campo que propiciaram o envolvimento (minds-on e hands-on) nos procedimentos ligados à recolha/apanha dos produtos, sua transformação e confecção (o pão, o azeite, o porco, a sardinha, o atum e a sua conserva, o figo, os citrinos, o leite e o queijo, o mel, os doces de amêndoa, as compotas). Propiciou-se a abertura dos sentidos às texturas, cheiros e sabores e ofereceu-se a possibilidade de contacto directo com os detentores destes antigos saberes: a senhora que amassa e coze o pão no seu forno de lenha, o produtor de mel, a avó que faz compotas a partir dos frutos da estação, a queijaria tradicional onde o leite de cabra é transformado em queijo, o dono de uma das poucas conserveiras ainda em funcionamento, a senhora que confecciona caracóis temperados com tomilho, poejo e orégãos, pescadores que regressam do mar com as embarcações carregadas de peixe, … O projecto contou também com sessões de conto popular e tradições orais relacionados com a alimentação, e com as oficinas “Casas de fogo” onde as crianças foram desafiadas a criar miniaturas de antigas cozinhas da nossa região, desde a estrutura das chaminés ao mobiliário e utensílios. No “Mini-curso de cozinha dos nossos avós” para pais e filhos, numa cantina escolar, avós partilharam e confeccionaram com os mais novos, ao longo de quatro aulas, receitas de comeres característicos
fotos: d.r.
da região: açorda de galinha, carapaus alimados, xarém com conquilhas, griséus com ovos, doces de laranja, amêndoa e figo,… E que bem que souberam a todos, quando degustados ao almoço! A encerrar o projecto, já no final de 2013, foi editado o livro “O que comiam os nossos avós? A alimentação no sotavento algarvio”, reunindo tradições, receitas, ilustrações e experiências realizadas pelas crianças. Escrito a muitas vozes e ilustrado a muitas mãos, representa a devolução à comunidade de um trabalho colectivo que envolveu alunos, pais, avós, professores, auxiliares de acção educativa e os técnicos de património cultural do CIIPC/CMVRSA. Ao longo de todo o processo, o CIIPC assumiu-se como mediador, como propiciador de experiências (ouvir, ver, mexer, experimentar), instrumentos de pesquisa, leituras diversas. Mais que transmitir conhecimentos, lançámos questões, desafios. Na definição da metodologia e actividades associadas procurámos ter presente que as crianças aprendem melhor quando lhes é pedida uma participação activa no processo, quando o objecto de estudo lhes está próximo no tempo e no espaço e quando usam os vários sentidos na sua exploração. Neste e noutros projectos – neste momento está a ser dinamizada uma nova proposta sobre a Arquitectura Popular Algarvia “As casas dos nossos avós” - o território, seus usos antigos, valores naturais e culturais e aqueles que o habitam, têm sido pontos de partida para o desenvolvimento de dinâmicas de aprendizagem e fruição criativa a partir do património.
Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Ricardo Claro Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Missão Cultura: Direcção Regional de Cultura do Algarve • Da minha biblioteca: Adriana Nogueira • Grande ecrã: Cineclube de Faro Cineclube de Tavira • Juventude, artes e ideias: Jady Batista • Letras e Leituras: Paulo Serra • Momento: Ana Omelete • O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N: Pedro Jubilot • Panorâmica: Ricardo Claro • Espaço ao Património: Isabel Soares • Sala de leitura: Paulo Pires • Um olhar sobre o património: Alexandre Ferreira Colaboradores desta edição: Catarina Oliveira Mariana Ramos Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve, FNAC Forum Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag@gmail.com on-line em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve
facebook: Cultura.Sul Tiragem: 8.081 exemplares
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Cultura.Sul
Da minha biblioteca
Luís Ene – Ene coisas fotos: d.r.
Adriana Nogueira
Classicista Professora da Univ. do Algarve adriana.nogueira.cultura.sul@gmail.com
Quando conheci pessoalmente Luís Ene (de Nogueira), não associei imediatamente o seu nome ao do autor do livro Blogs (que escreveu em parceria com Paulo Querido), editado por Centro Atlântico, em 2003, que tanto tinha ajudado os utilizadores que, então, se estavam a iniciar na blogosfera. Esta faceta que começo por referir é importante, na medida em que mostra o empe2nho que Luís Ene manifestou, desde cedo, pelo mundo virtual como suporte para a escrita literária. Ele próprio autor de vários blogues (que foi abrindo e fechando à medida que os projetos se iam completando), ainda mantém o «Ene Coisas» (luis-ene.blogspot. pt), onde podemos ler alguns dos seus poemas, micronarrativas, ensaios, destaques informativos, enfim, ene coisas.
O escritor Luís Ene é autor de vários Blogs uma esfregona, conferindo uma nota bizarra ao ambiente. Uma cadeira, dois chuis, um suspeito e um balde com uma esfregona, intérpretes invulgares de um bailado minimalista» (p.19-20). Foi um livro que, ao terminar de o ler, deixou logo saudades. Lembro-me de me ter apetecido continuar a conviver com aquelas personagens (até porque foram deixadas pistas em aberto). Acho que quando acabar de escrever esta crónica, vou relê-lo. Há livros assim, que nos viciam.
O romance
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Com Justa Medida, Luís Ene ganhou o 1º prémio do concurso Novos Talentos (da publicação eletrónica Educare. pt), o que lhe valeu ter o livro editado, em papel, pela Porto Editora, em 2002. Poder-se-ia dizer que é um policial (tem polícias, ladrões, advogados e tribunais), bem doseado com romance e reflexões de natureza moral e filosófica: «Repete-se a história, é verdade que há quem o diga, e quem o contradiga, como em tudo, a história não se repete, acredite-se, mas repetem-se as estórias, pelo menos na sua aparência redutora, que é como na maior parte das vezes são vistas e percebidas, por ligeireza, desconhecimento ou necessidade de abreviar» (p.102); «Aprendeu que o amor depende mais, senão apenas,
A microficção
de quem ama, e não de quem é amado, uma vez que o amador inventa a coisa amada, pouco importando se ela existe ou não» (p.103). Uma narrativa no passado, focalizada nas personagens, que se vão abrindo perante o leitor, deixando que este (nós) veja o que se passa consigo, alterna com um narrador externo, que usa o presente do indicativo, fazendo-nos crer
que apenas descreve o que vê, numa aproximação do texto à linguagem dos guiões de cinema: «O interrogatório dura há várias horas, numa conversa de surdos-mudos. A sala, minúscula, sem janelas, mobilada apenas com uma cadeira, meticulosamente colocada ao centro, deve ser normalmente usada como sala de arrumações. A um canto vê-se um balde com
“FLORES POLACAS EM PORTUGAL” Até 14 FEV | Centro de Experimentação e Criação Artística de Loulé Exposição de artistas polacos que criam em Portugal e que, pelas cores, visões, formas, memórias e sonhos, constituem um ramo de ‘Flores Polacas em Portugal’
Microficção, micronarrativa, microconto. Estes são os nomes por que são conhecidas as narrativas breves (algumas muito breves mesmo) que ocupam um lugar importante na criação literária de Luís Ene, que, sobre o assuntou, escreveu também um ensaio intitulado «A microficção em Portugal, um género bastardo?». Parte do seu blogue «mil e uma pequenas histórias» (213 histórias, para ser mais precisa) também foi publicada em papel, com o mesmo título (por Leiturascom.net, em 2005), mas a totalidade continua disponí-
vel online (1000euma.blogspot. pt). Os textos variam muito de tamanho, sendo uns mais filosóficos que outros, uns mais humorísticos que outros, mais emotivos que outros. Em muitos, encontra-se o gosto pelo experimentalismo: como será escrever com poucas palavras? («45. Mudou do dia para a noite. Foi uma mudança indesejada. De dia estava vivo e à noite estava morto.» p.55); como será jogar com o som e com a grafia? («178. Foi sempre um homem mo10to e 10temido, 10ta maneira nunca se deixou 10truir e chegou = a si mesmo aos 40.» p.187); como será começar uma frase da mesma forma com que a frase anterior termina? («68. Personagem: ele. Ele ia. Ia pensando. Pensando na vida. Vida sem sentido. Sem sentido não é possível viver. Não é possível viver assim. Assim ia ele. Ele: personagem.» p.78). Num outro blogue, «Infinitésimo» (in-finitesimo.blogspot.pt), explora as potencialidades deste recurso. Tem outras publicações de microficção, mas destaco apenas esta que saiu em 2010, em edição Cão Danado: Saudades de Água. Memórias de Faro. Nesta
obra, fotografias antigas da cidade, a preto e branco, intercalam um texto de sensações, memórias, balanços: «O Ponto Preciso. Entre a tasca dos viveiristas e mariscadores e o quartel dos Bombeiros Voluntários, entre a vergonha e a alegria do encontro e da separação, é nesse ponto preciso que estamos e sempre estaremos. Entre o que foi e o que podia ter sido» (p.54). Na contracapa, confirma: «Aquilo que recordo não é o que aconteceu, mas aquilo que me aconteceu. Aquilo que recordo não é o que ontem foi, mas aquilo que ainda hoje é, em mim». Para quem se quer aventurar neste tipo de criação, indica uma receita de como fazer aforismos, que aqui vos deixo: «De um dicionário de Língua Portuguesa qualquer retire uma mancheia de palavras, por exemplo: azul, cadeira, descansar, poeta. Coloque-as num copo misturador, junte uma pitada de sintaxe e outras coisas que tais. Agite até ficar tudo muito bem misturado. No final, deite o preparado com muito cuidado numa folha de papel branco. Está pronto, por exemplo: a cadeira do poeta descansa no azul. Se não lhe agradar, pode sempre repetir a operação, juntando ou não mais palavras. Serve-se a frio, a qualquer hora do dia e em qualquer ocasião. É ideal para impressionar os amigos. Deve beber-se de um trago.» A poesia Acima de tudo, Luís Ene é um poeta. Um poeta ativista. Um ativista da poesia. Promove encontros, festivais, programas de rádio, performances, enfim, uma série de iniciativas que dão voz aos poetas e à poesia. Onde ler o que escreve? Onde ouvi-lo? É segui-lo no mundo virtual (luis-ene.blogspot.pt) e descobrir onde vai haver uma próxima atividade ou ler um poema recente. Vale sempre a pena. ENIGMA Porque em tudo procuras um sentido quando és tu que dás um sentido a tudo?
“FILME: UMA QUESTÃO DE CONFIANÇA” 18 FEV | 21.00 | Biblioteca Municipal de Lagos Maria é uma rapariga de 16 anos. No dia em que anuncia aos pais que está grávida e pretende desistir do liceu, o pai morre instantaneamente de ataque cardíaco, o namorado acaba com ela e a mãe expulsa-a de casa
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