Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o PÚBLICO
MARÇO 2015 | n.º 78 8.640 EXEMPLARES
www.issuu.com/postaldoalgarve d.r.
Espaço AGECAL:
Os seculares ‘jardins de sal’ do Algarve
Panorâmica:
d.r.
The Legendary Tigerman p. 6
p. 3
Letras e Leituras: d.r.
a entrevista antes de pisar o palco do TEMPO
p. 5
É possível falhar-se a vida?
p. 4
Espaço ALFA:
d.r.
Visitar o Algarve p. 7
O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N:
Março
d.r.
p. 9
d.r.
Espaço ao Património:
A cultura sai à rua p. 10
p. 5
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06.03.2015
Cultura.Sul
Editorial
Missão Cultura
A guerra ao património
Devolver à sociedade o conhecimento que os arqueólogos produzem
Ricardo Claro
Editor ricardoc.postal@gmail.com
AGENDAR
De cortar a respiração. Por momentos fiquei sem fôlego e não foi da surpresa face aos actos, que se repetem infelizmente e nos deixam a todos mais pobres. Não há muitas surpresas, na era da informação e do digital em que as imagens viajam à velocidade da luz, quanto aos desmandos a que determinados homens - a letra minúscula não é incidental - se dão a seu bel-prazer. O ataque do estado - a minúscula não é, novamente, incidental - Islâmico ao Museu de Mosul é a barbárie, regressada, sem respeito por ninguém. Num profundo desrespeito, inominado, sobre o património cultural de todos nós, o que surpreende a destruição das estátuas da época assíria, dos séculos VIII e VII antes de Cristo, o que os vis atacantes desconsideram é, acima de tudo, a sua própria herança cultural particular e o Islão e as suas Escrituras que tanto evocam. Não há, como é óbvio, perda maior nem ultraje mais relevante que a matança que a guerra - seja ela qual for - traz a quem a sofre. Não obstante, o atentado contra o património exibe o que de pior o ser humano - a sê-lo - pode mostrar. Sucumbiram os budas de Bamiyan, no Vale de Hazarajat, Afeganistão, ao desprezo incontível dos Talibãs e desta feita o espólio do Museu de Mosul. A menoridade a que se votam os que destroem a herança milenar de toda a humanidade não tem perdão, e há um vazio que se instala de cada vez que sabemos que só poderemos revisitar esse património em imagens. Um vazio de cortar o fôlego.
Direção Regional de Cultura do Algarve
Sendo o património arqueológico um recurso cultural das comunidades, a sua preservação é um dever público, a que se aplica a Lei 107/2001, de 8 de setembro. À parte a especificidade da investigação programada, é mais proveitoso para a preservação desse legado não intervir diretamente nos vestígios e garantir que qualquer intervenção no subsolo não afete os testemunhos ali existentes. Mas como é impossível compatibilizar a atividade humana com a preservação integral do meio físico, a Administração Pública aposta em procedimentos preventivos, fomentando invariavelmente trabalhos arqueológicos de salvaguarda. Uma prática que tem sido seguida no Algarve, de forma coerente, pela Direção Regional de Cultura. Ao longo das duas últimas décadas assistimos na região a uma crescente eficácia dos procedimentos de salvaguar-
da do património arqueológico desenvolvidos no âmbito das operações urbanísticas: seja através de metodologias de caraterização não invasivas (procedimentos geofísicos) ou pouco invasivas (procedimentos geoarqueológicos), que permitam caracterizar os vestígios soterrados, seja através de escavações arqueológicas que permitam a preservação física das estruturas arruinadas e a caraterização dos contextos a elas associados, seja através da «conservação pelo registo científico». Tornados sistematicamente obrigatórios por lei, e seguindo o princípio do «poluidor-pagador» (neste caso, do «destruidor-pagador»), os procedimentos preventivos deram origem em todo o país, desde finais do século XX, a um mercado de prestação de serviços especializados de arqueologia e ao aparecimento de uma atividade comercial com apreciável volume de negócios e crescente número de profissionais envolvidos. Da aplicação dos procedimentos preventivos resulta a produção de conhecimento
foto: drcalg/r.parreira
científico sobre a trajetória temporal dos lugares, dos territórios e das sociedades que os habitaram. Esse conhecimento é indispensável para poder caraterizar os lugares e os territórios como espaços de reconhecimento coletivo,
onde a informação sobre o passado impeça a perda de identidade. Se, por um lado, uma deficiente prática do exercício da arqueologia, se convertida em atividade puramente comercial, prejudica a qualidade do
conhecimento produzido, por outro lado a obrigatoriedade legal dos procedimentos preventivos só terá razão de ser se houver real retorno social desse conhecimento. Fornecendo ao promotor um elenco dos procedimentos preventivos obrigatórios, a incluir no caderno de encargos da operação urbanística que promove, criam-se condições para que da intervenção do arqueólogo resulte a utilidade científica dos dados obtidos e a produção de conhecimento, mesmo naqueles casos em que a intervenção se limita a uma tarefa exclusivamente técnica. Mas de pouca utilidade será acrescentar novas informações e produzir conhecimento se este não for partilhado: tornando os dados acessíveis em suporte digital à comunidade científica mas também publicando os resultados, ainda que sob a forma de dados semitratados, divulgando-os através dos museus, adotando formas de exposição inteligíveis fora do restrito círculo dos profissionais da arqueologia. Isto é, devolvendo o conhecimento à comunidade.
desde 2000. Pelo meio, dois grupos de referência que em épocas distintas assumiram a responsabilidade de manter o teatro em Olhão, o GATO, nos anos 60/70, e o Teatro da Vida, anos 80/90. A nível de formação, destaque para a Casa da Juventude do município, que desde a sua criação, em 2004, apostou fortemente nas Oficinas de Teatro, que envolveram até ao momento mais de uma centena de jovens, alguns
deles já com projectos individuais. A mais recente aposta foi a Residência Artística Comunitária que envolveu cerca de 60 pessoas de diversos grupos da comunidade Olhanense num projecto de formação teatral, mas acima de tudo pessoal e social. A nível de programação, o Auditório Municipal, que comemora este mês o seu sexto aniversário, tornou-se uma referência da região pela qualidade da sua programação, diversificada e para todos,
com uma aposta regular nas produções teatrais. Duas referências finais, para as entidades, associações e grupos amadores que, de forma mais ou menos regular, têm dado o seu contributo, tanto a nível da formação, como da criação própria e da programação teatral, em todo o concelho e para o público Olhanense, cuja adesão tem justificado a aposta do município e sido fonte de motivação para os promotores e fazedores de teatro da nossa terra.
Salgadeiras romanas descobertas em 2014 sob o quarteirão do edifício Mabor, em Portimão, no âmbito de operação de regeneração urbana
Juventude, artes e ideias
Teatro em Olhão
João Evaristo
Cultura e Juventude CMO
Olhão tem grande tradição no que diz respeito à criação teatral. Já nos anos trinta eram reconhecidas as peças produzidas na nossa terra que integravam no seu elenco figuras
do teatro nacional, que aproveitavam os períodos de férias para se juntar aos nossos artistas locais em produções de grande sucesso. Dessa altura, destaque para a Pita e Fanga, uma Revista Olhanense que revolucionou a forma de fazer teatro e que ainda hoje é uma referência. Foi nessa revista que Vázinho, encenou, pela primeira vez, a Carta do Marítimo, recriada recentemente na peça Mê Menine e o Tê Pai, pela GORDA, com apresentações regulares
“CONCERTO COM MANUEL JOÃO VIEIRA” 6 MAR | 22h30 | Casa do Povo de Santo Estêvão - Tavira Conhecido pela sua irreverência e ousadia, este músico foi fundador e vocalista de diversas bandas, entre as quais ‘Ena Pá 2000’, ‘Irmãos Catita’ e ‘Corações de Atum’
“CRIAÇÕES VIVAS” Até 4 ABR | Posto Municipal de Exposições - Lagos Exposição reúne obras de Nina, Bradley, Philip e Birgit Felten, artesãos locais que pretendem mostrar os seus trabalhos em conjunto em três vertentes diferentes
Cultura.Sul
06.03.2015
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Grande ecrã Cineclube de Faro
Programação: cineclubefaro.blogspot.pt
IPJ | CICLO “1945 – 70 ANOS” | 21.30 HORAS 10 MAR | O ÚLTIMO DOS INJUSTOS, Claude Lanzmann, França/Áustria, 2013, 220’, M/12 17 MAR | O HOMEM DECENTE, Vanessa Lapa, Áustria/Israel, 2014, 94’, M/14 24 MAR | O ESPÍRITO DE 45, Ken Loach, Reino Unido, 2013, 94’, M/12 (TEATRO MUNICIPAL) 31 MAR | DR. ESTRANHOAMOR, Stanley Kubrick, EUA/Reino Unido, 1964, 94’, M/12 IPJ | ARQUITETURAS FILM FESTIVAL | 21.30 HORAS (1€ - sócios / 3€ - Público em Geral | Filmes premiados em 2014 | Sessões com aberturas realizadas por convidados especiais) 12 MAR | ATENÇÃO: ISTO PODE SER UM POEMA, Áureo Rosa and Luis H. Girarde; BICICLETA, Luís Vieira Campos; HOUSES FOR ALL, Gereon Wetzel 19 MAR | RUA DA ESTRADA, Graça Castanheira; WHITE CHIMNEY, Jani Peltonen; PRECISE POETRY – LINA BO BARDI’S ARCHITECTURE, Belinda Rukschcio 26 MAR | THE SINGER, Rafael Navarro Minon; BERNARDES, Paulo de Barros, Gustavo Gama Rodrigues
Programação em Tavira aguarda filmes premiados nos Óscares Enquanto esperamos para poder programar filmes como Boyhood, Birdman, The Theory of Everything, The Imitation Game, Whiplash, Still Alice e Citizenfour, todos galardoados com um ou mais óscares no passado dia 22 de Fevereiro, neste mês de Março apresentamos mais um programa diversificado, tanto em termos temáticos como ao nível de produção. Winter Sleep foi um dos nomeados para o óscar de Melhor Filme de Língua Estrangeira. Como sabemos, ganhou Ida, já exibido no nosso Cineclube em Outubro passado. Tal como em Fevereiro, também este mês iremos exibir um filme no sábado, dia 21: trata-se de The Judge (O Juiz), protagonizado pelo veterano Robert Duvall, realizador e actor principal do primeiro filme exibido pelo Cineclube
Cineclube de Tavira
Programação: www.cineclubetavira.com 281 971 546 | cinetavira@gmail.com SESSÕES REGULARES | CINE-TEATRO ANTÓNIO PINHEIRO | 21.30 HORAS fotos: d.r.
Cena de Winter Sleep de Tavira a 8 de Abril 1999: The Apostle. Duvall completou 84 anos no início de Janeiro... Por favor também não percam Rio, Eu Te Amo (depois de Paris, Je T’aime e New York,
I Love You) e o fascinante documentário ficcionado sobre (e da autoria de) Nick Cave, o músico e argumentista multifacetado. Cineclube de Tavira
12 MAR | KIS UYKUSU – WINTER SLEEP (SONO DE INVERNO), Nuri Bilge Ceylan – Turquia/França/Alemanha 2014 (196’) M/14 19 MAR | NÉ QUELQUE PART (DE QUALQUER LUGAR), Mohamed Hamidi – França/ Argélia 2013 (87’) M/14
21 MAR | THE JUDGE (O JUIZ), David Bobkin – E.U.A. 2014 (141’) M/14 26 MAR | 20.000 DAYS ON EARTH (NICK CAVE: 20.000 DIAS NA TERRA), Iain Forsyth e Jane Pollard – Reino Unido 2014 (97’) M/12
Espaço AGECAL
Os seculares ‘jardins de sal’ do Algarve, a salicultura como património cultural d.r.
Belmira Antunes
Investigadora de Turismo e Património Cultural Doutoranda em Turismo Convidada da AGECAL
Existe no sul de Portugal uma paisagem única e que faz parte da identidade cultural algarvia. Numa visão aérea, vislumbram-se quadradinhos azuis e brancos: são as salinas ou os “jardins de sal” do Algarve. O sal na tradição histórico-cultural algarvia Os saberes e os sabores da região algarvia sempre se relacionaram com o mar, o pescado e o seu recurso económico endógeno - a salicultura - a produção de sal. O sal, inerente à conserva de peixe capturado na própria costa, foi durante muito tempo exportado
para diversos países. Se até ao século XIX a salicultura foi um recurso relevante para o Algarve, a substituição do sal nas conservas de peixe pelo sistema em vácuo diminuiu a sua importância. De igual modo, o terramoto de 1755 provocou grandes estragos à atividade salineira da região, destruindo muitas salinas. Nos anos seguintes, até as salinas recuperarem, foi necessário comprar sal à vizinha Espanha. No entanto, em 1790, metade da produção de sal no país era oriunda do Algarve, sendo o maior centro produtor de Portugal. Ao longo dos séculos, embora com oscilações, o Algarve nunca deixou de produzir sal de forma tradicional. A realidade actual e perspetivas futuras Nos dias de hoje, existem dezenas de “jardins de sal” espalhados pelo Algarve, sendo Tavira o maior centro produtor de sal, seguindo-se Castro Marim e Olhão. Embora surjam as salinas industriais, continuam a existir as tradicionais, em que o modo de produzir sal é o mesmo de há décadas atrás. A empresa “Necton”, de Olhão, imple-
Inaugurada em 2014, também em Castro Marim, a “Casa do Sal” é um espaço cultural que permite uma maior divulgação cultural da salicultura tradicional algarvia. Todas estas iniciativas promovem a dinamização económico-cultural deste recurso, por vezes menosprezado. O porquê da especificidade do sal algarvio!
mentou em 2008 o projecto “ECOSALT” - rotulagem ecológica do sal marinho e da flor de sal, criando assim um produto “eco-friendly”, agregando inovação e tradição. Tavira, com a empresa “Rui Simeão”, foi pioneira na certificação da flor de sal (14 hectares de exploração) e é constantemente premiada mundialmente pela sua qualidade. Noutra zona do Algarve, Castro Marim, a empresa “Salmarim”, está recentemente a valorizar o sal algarvio ao nível da flor de sal e plantas associadas, bem como,
produtos inovadores que estão a ser investigados na Universidade do Algarve. A “salicórnia” é uma dessas plantas, cujo preço é de 25 euros por 100 gramas. Desde o ano passado que foi criado também pela Cooperativa “Terras de Sal”, outro produto criativo: o sal em spray, um produto mais saudável que possui menor teor em sódio. Também a empresa VATEL lançou no ano passado a gama específica: “Sal marinho tradicional do Algarve”, evidenciando a peculiaridade deste recurso endógeno algarvio.
As condições únicas do sul do país, ao nível orográfico (relevos pouco acentuados) e climatérico (a pouca chuva e vento e as temperaturas quentes), proporcionam um sal de elevada qualidade, contribuindo para a sua crescente valorização. O modo de produção tradicional, com a prevalência do recurso humano e não da maquinaria (o saber fazer dos marnotos), e as técnicas ancestrais usadas são outro dos traços característicos da salicultura algarvia. Outra das mais-valias do sal algarvio é ser produzido em áreas protegidas, o que lhe confere um inequívoco carácter de qualidade ambiental. Estes “jardins brancos”, locais de produção tradicional de sal, podem e devem ser conhecidos, visitados e divulgados por todos: entidades públicas e privadas, sociedade civil e visitantes. Descobrir a salicultura, como se continua a produzir o sal, de modo ancestral, e ter orgulho nele é perpetuar a nossa especificidade cultural regional!
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06.03.2015
Cultura.Sul
Letras e Leituras
Ficha Técnica:
Stoner, John Williams É possível falhar-se a vida?
Paulo Serra
Investigador da UAlg associado ao CLEPUL
O romance Stoner, do professor universitário John Williams, foi publicado em 1965 mas parece ter ficado esquecido nas prateleiras desde então até que no ano de 2013 a livraria britânica Waterstones elegeu esta obra, em detrimento de outras muito mais recentes publicadas nesse mesmo ano, como o melhor livro do ano, e tem sido referenciado por diversos autores como uma obra-prima e um romance formidável. Numa era de imediatismo, de popularidade, de conquistas fáceis, de facilitismo, o romance Stoner é uma obra lenta, densa, belamente escrita, que nos apanha desde os primeiros parágrafos, apesar de não deixarmos de sentir como a vida da personagem parece enfadonha e triste. Os primeiros dois parágrafos constituem uma espécie de obituário da personagem principal: «William Stoner entrou para a Universidade do Missouri em 1910, aos dezanove anos. Oito anos depois, no auge da Primeira Guerra Mundial, doutorou-se e aceitou um cargo de docente nessa mesma universidade, onde lecionou até morrer, em 1956. Não passou do grau de assistente e poucos alunos se lembravam de Stoner com nitidez» (pág. 7). Depois desta introdução desanimadora, em que o leitor pode pensar que já tudo está dito sobre a história deste homem, o autor envolve-nos a partir das linhas seguintes na verdadeira história de vida de William Stoner. Um fio que vai tecendo lentamente, com uma escrita elegante e cuidada, sem grandes embelezamentos além da arte da simplicidade. Este jovem é filho de camponeses. Nasceu em 1891 numa pequena quinta no centro do Missouri. Apesar de nunca ter sequer alimentado essa esperança, os pais informam-no certo dia que abriu uma escola agrária na Universidade de Columbia e que ele irá fazer o curso durante os
próximos quatro anos. A proposta do pai é que ele arranje trabalho para poder pagar o quarto e a alimentação, pois vivem com dificuldades. Tanto que a primeira preocupação de William é perguntar ao pai se ele se consegue aguentar sozinho com a quinta, ao que o pai lhe responde numa pequena tirada que termina mais ou menos desta forma: «- (...) Vais prá universidade este outono. A tua mãe e eu cá nos arranjamos.» Foi o discurso mais longo que William ouvira da boca do pai. (pág. 10)». É desta forma luminosa mas contida que a narrativa vai fluindo... A vida de William sofre então essa profunda mudança, incorrendo num curso que não foi escolhido por si. Mas é também durante esse curso que Stoner encontra a sua vocação. Além das cadeiras do curso da escola agrária, William é obrigado como todos os alunos da universidade a frequentar igualmente um semestre de Literatura Inglesa, disciplina lecionada pelo professor Archer Sloane. Este indivíduo de meia-idade parecia «encarar a sua missão de docente com aparente desdém e desprezo, como se percebesse que entre o seu conhecimento e aquilo que podia dizer existia um fosso tão profundo que nem valia a pena tentar transpô-lo.» (pág. 13). A maioria dos alunos teme-o ou antipatiza com ele. Numa aula, o professor interpela William, a propósito de um soneto de Shakespeare, perguntando-lhe qual o significado do poema. Nesse momento percebemos que William, que não é propriamente descrito como um aluno brilhante, parece ficar sem palavras: «William Stoner percebeu que estava a suster a respiração há vários instantes. Soltou o ar suavemente dos pulmões, com a noção exacerbada do movimento da roupa no seu corpo enquanto expirava. Desviou os olhos de Sloane para a sala em redor. A luz entrava enviesada pelas janelas e pousava nos rostos dos colegas, de tal maneira que parecia irradiar de dentro deles e, em contraste com a penumbra» (pág. 16). A descrição continua desta forma, sem nunca termos acesso aos pensamentos do jovem estudante, pois é particularmente
Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Ricardo Claro
fotos: d.r.
John Williams publicou o romance ‘Stoner’ em 1965
por uma caracterização indireta de todo o cenário envolvente que subtilmente se começa a indiciar que aquela busca desesperada do rapaz pelas palavras certas que podem explicar por si só o significado de um soneto com mais de trezentos anos é, na verdade, o prenúncio de uma revelação, de uma transformação interior que moldará o destino da personagem, um momento cuja profundidade lembra o instantâneo literário em que Proust mergulha a madalena no chá e do qual brotam os seus sete livros de memórias. William parece tomar finalmente consciência de si próprio. Os últimos dois anos da sua vida em que frequentou o curso afiguram-se-lhe subitamente um sonho, como se tivesse passado por eles de forma autómata, com a mente completamente
desligada do corpo. Mas essa mesma verdade encontrada por William, que não é a do sentido do poema mas sim a da sua vida e destino, só lhe será revelada depois pelo professor: «- Ainda não percebeu, Sr. Stoner? - perguntou Sloane. - Ainda não descobriu essa verdade sobre si próprio, sobre a sua natureza? O senhor vai ser professor. (...) - Como é que sabe? Como é que pode ter a certeza? - É amor, Sr. Stoner - disse Sloane alegremente. - O senhor está enamorado. É tão simples quanto isso.» (pág. 23). E é a descoberta desse enamoramento pela literatura que guia o livro. Stoner é basicamente um livro, tendo aliás sido considerado uma narrativa autobiográfica, sobre o amor pela literatura e pelos livros bem como o amor
mundano pelo outro. Em última instância, é um caminho solitário, apesar de ser o amor a bússola que orienta os seus passos, como se sente logo depois de terminar o curso, quando um fosso se cria entre ele e os pais, embora estes tenham aceitado a sua decisão de prosseguir os estudos em letras. Depois do mestrado e do doutoramento, William torna-se leitor a tempo inteiro na universidade. A partir daí, prossegue a sua carreira, de forma modesta, quase apagada. Da mesma forma que vive a sua vida no geral de forma estóica, pois ao casar-se com a bela e enigmática Edith, essa relação rapidamente se revela uma profunda desilusão. Edith é aliás uma das figuras mais crípticas do romance e apesar do seu comportamento neurótico e rancoroso para com o marido, William parece ser sempre demasiado passivo até para a odiar. A própria filha do casal ficará marcada por esta relação disfuncional. Stoner encontrará de forma inesperada o verdadeiro amor quando se envolve com uma colega mais nova, Katherine, que, aliás, se revelará ser uma académica mais brilhante do que ele mas este caso amoroso irá alimentar guerras internas no seu meio académico. Nunca a voltará a ver, mesmo quando ela publica um livro, que lhe é dedicado. Stoner pode até ser considerada a história de alguém que falhou a vida, talvez um livro mais destinado a académicos ou amantes da literatura, mas não deixa de ser a história de alguém que encontrou algum sentido na vida e toca profundamente no coração de qualquer leitor.
Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Espaço Cultura: Direcção Regional de Cultura do Algarve • Da minha biblioteca: Adriana Nogueira • Grande ecrã: Cineclube de Faro Cineclube de Tavira • Juventude, artes e ideias: Jady Batista • Letras e literatura: Paulo Serra • Momento: Ana Omelete • O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N: Pedro Jubilot • Panorâmica: Ricardo Claro • Património: Isabel Soares • Sala de leitura: Paulo Pires • Um olhar sobre o património: Alexandre Ferreira Colaboradores desta edição: Belmira Antunes João Evaristo José Gameiro Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve, FNAC Forum Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com on-line em: www.postal.pt e-paper em: :www.issuu.com/postaldoalgarve
facebook: Cultura.Sul Tiragem: 8.640 exemplares
Cultura.Sul
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Panorâmica
The Legendary Tigerman promete entrega total no palco do TEMPO : .. Com uma imagem de marca que marcou indelevelmente a cena musical portuguesa contemporânea, The Legendary Tigerman aka (also known as) Paulo Furtado é hoje um nome incontornável da actualidade. É este artista singular que se apresenta amanhã no Teatro Municipal de Portimão (TEMPO), num concerto que pretende mostrar “True”, o seu último disco. Não se trata de uma obra nova, antes a incursão deste disco de The Legendary Tigerman por salas maiores músico durante os festivais Paulo Furtado promete, na de rockn’roll e uma entrega do país, num périplo que se de Verão e um pouco por entrevista que concedeu ao a 200%”. segue às apresentações do todo o mundo. Cultura.Sul, “um concerto Na calha para a sala maior fotos d r
concertos. Tenho sido muito afortunado.
Ricardo Claro
Jornalista / Editor
Cultura.Sul (C.S) - Em “True” que ‘verdade’ é que se mostra ao público? The Legendary Tigerman (TLT) - No início era um “statement” que tinha a ver com o meu percurso, com uma procura de verdade e amor por aquilo que faço. Mais tarde compreendi que era também um recado para mim mesmo, que tinha que estar atento para não me desviar do meu caminho. C.S - Classificou “True” como um disco “mais negro, mas não desesperançado”. Este ‘mais negro’ a que se refere expressa-se como? Na comparação com trabalhos anteriores? TLT - Tem a ver com alguns momentos mais pesados, quer do ponto de vista pessoal, quer do ponto de vista social, creio, que vivi... Mas talvez isso estivesse mais na minha cabeça, acho que no fundo o disco não é assim tão negro... Tem muito rockn’roll e momentos bastante bonitos. C.S - E onde mora a esperança? TLT - A esperança reside na obra em si, e aonde ela me leva. Consegui construir mais um disco, exactamente como queria, com arranjos tão bonitos da Rita Redshoes, do Filipe Melo e do João Cabrita, e ele chegou a tantas pessoas em todo o mundo e durante o ano passado consegui mostrá-lo em vários continentes para pessoas que sorriam muito no final dos
C.S - Afasta-se em “True” da ideia de solitário polifónico associada ao ‘one man band’, recorrendo à participação de outros artistas em palco. A escolha assenta na abertura de novos horizontes para a música de The Legendary Tigerman ou numa escapadela ao percurso solitário para um regresso, mais tarde, ao formato que o destacou na cena musical portuguesa? TLT - Acho que com o “True”, de certa forma esgotei, neste momento, o meu interesse no formato one man band puro. Creio que neste momento tenho espaço para explorar outros formatos, e creio que será isso que vou fazer, para já. C.S - A parceria com outros músicos serve antes de mais a sonoridade dos temas ou uma necessidade criativa?
TLT - Creio que um pouco de tudo, no que diz respeito aos arranjos do disco e mais tarde na apresentação ao vivo... é uma liberdade incrível poder escolher se toco sozinho, se toco em trio ou em quarteto, e vestir as canções de maneiras diferentes conforme essas escolhas. C.S - Depois de uma tournée pela Europa por outros continentes, “True” apresenta-se agora a Portugal, novamente, mas em salas de espectáculos e fora do circuito dos concertos de Verão, há diferenças nesta ‘nova vida’ dos espectáculos decorrentes do disco? TLT - Sim, como dizia antes, os espetáculos desta tour estão a ser feitos em formato trio, o que nos permite ter uma grande liberdade de improvisação e ter um concerto diferente todas as noites. Provavelmente farei outras opções para os festivais de Verão e outros concertos
ao ar livre. C.S - Como classifica ou sente a reacção dos diferentes públicos estrangeiros a quem apresentou “True”? TLT - Foi incrível, em todo o lado. É inacreditável o que aconteceu este ano passado, com tanta gente nos concertos, Do México a Macau, a tour no Brasil, a volta aos palcos de França e concertos esgotados em Londres. E sentir que as pessoas estão ali pela música, fundamentalmente, e saiem dos concertos a sorrir, é muito bom. C.S - Quem já o viu em palco apercebe-se de uma espécie de ‘presença fora do tempo’ Como se estivesse num outro estado paralelo a ouvir música formidável. Há um êxtase solitário com o que se apresenta em palco? TLT - Não sei, há realmente algo de
de Portimão está “um set que tem mudado um pouco todas as noites, mas que é uma espécie de viagem por todos os discos, até chegar ao “True””. Já não teremos um puro one man band em palco, mas um The Legendary Tigerman diverso, em partilha de criação e de palco. The Legendary Tigerman é muito mais do que uma marcante imagem camaleónica, é uma paleta de sonoridades entre os blues e o rockn’roll sempre pronta a surpreender. Desta feita, por terras do Arade, a dar o melhor de si para o público algarvio. mágico no palco e na relação que se constrói durante um concerto, algo que não é totalmente explicável, e raramente é similar. Não há nada melhor do que sentir essa união com o público, sentir que se levou as pessoas a outros sítios durante esse tempo que temos juntos. C.S - Há um lado menos conhecido do Paulo Furtado na criação de bandas sonoras para cinema e de música para teatro. Como é que estabelece a comparação entre este trabalho e a versão mais notória e pública de The Legendary Tigerman? TLT - É um trabalho muito interessante, ter a música ao serviço de uma coisa maior, ter essa desfoque numa coisa que normalmente é o centro das atenções. Felizmente tenho feito cada vez mais, e cada vez mais se torna interessante para mim. E há uma capacidade que a música tem de ampliar a visão e os pensamentos dos outros, é surpreendente. C.S - O que pode esperar o público do concerto de Portimão que já não tenha podido ver em anteriores apresentações de “True”? TLT - Bem, podem esperar um concerto de rockn’roll e uma entrega a 200%... O set tem mudado um pouco todas as noites, mas é uma espécie de viagem por todos os discos, até chegar ao “True”, claro.
The Legendary Tigerman, vai estar em Portimão já amanhã, no TEMPO
C.S - Como é que antecipa o futuro próximo enquanto The Legendary Tigerman, o que se segue nesta saga quase solitária? TLT - Para já, muitos concertos, um pouco por todo o mundo, mais uma banda sonora para cinema em co-autoria com Rita Redshoes e dois projectos para teatro no final do ano, vai ser um ano pouco solitário, curiosamente.
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06.03.2015
Cultura.Sul
Artes visuais
Um artista pode ser enquadrado em diferentes estilos artísticos?
Saul Neves de Jesus
Professor catedrático da UAlg, Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora
AGENDAR
Uma abordagem que muitas vezes é feita pelo público da arte diz respeito à categorização dos artistas num determinado movimento ou estilo, dizendo por exemplo que Van Gogh era impressionista, que Picasso era cubista, ou que Dali era Surrealista. Isto não tem muito sentido, tal como não tem sentido limitar um artista a apenas um instrumento ou técnica artística, pois a maioria dos artistas experimentam as várias técnicas existentes na sua época, numa perspetiva de experimentação no processo de produção artística. Além disso, a tentativa de categorizar um artista num determinado movimento, pode não corresponder à análise que o próprio artista faz da sua obra e das influências que teve. Por exemplo, Frida Kahlo referiu em dada circunstância: “eu fui considerada surrealista. Isso não é correcto. Eu nunca pintei sonhos. O que eu retratei foi a minha realidade” (Stremmel, 2005). Também nos parece ter pouco sentido associar um artista a apenas um movimento de arte concreto, porque a arte deve ser analisada pela época em que é produzida e tendo em conta que os artistas, na sua maioria, antes de assumirem a sua identidade artística, que marca a especificidade e originalidade maior do seu trabalho, passaram pela influência de vários estilos e movimentos que caracterizavam a arte durante o período em que a produziram. Por exemplo, Francis Picabia terá sido influenciado pelo impressionismo e pelo fauvismo, passou pelo cubismo e, já nos EUA, foi membro do
grupo Dada, tendo vindo a lançar o primeiro número da revista dadaista “391” em Barcelona, enquanto posteriormente, em França, participou no movimento surrealista, vindo a criar com André Breton a revista “491”. Um outro exemplo de um artista que experienciou diversos estilos foi Miró, inicialmente influenciado nos seus trabalhos pelo impressionismo e pelo cubismo, revelou também uma clara influência surrealista em “O Carnaval de Arlequim” (1924-25), sendo considerado que “os sonhos gravados na memória constituem a fonte de inspiração deste quadro” (Mink, 2006), enquanto nos seus quadros “Azul II” e “Azul III” (1961) denota a influência do expressionismo abstracto, depois de uma estada nos EUA, e nas suas esculturas “Sua majestade” e “Jovem rapariga a evadir-se” (1968) parece aproximar-se da Pop Art. Inclusivamente, Warhol terá referido o seguinte, em 1963: “Como é que você pode dizer que um estilo é melhor do que outro? Você deve ser capaz de ser um expressionista abstrato na próxima semana, ou um artista pop, ou um realista, sem sentir que desistiu de alguma coisa” (Danto, 2011). O próprio Picasso chegou a afirmar: “Estou sempre em movimento (…) Fora com o estilo! Será que Deus tem um estilo específico?” (Gantefuhrer-Trier, 2005). Numa outra obra, em relação à diversidade de estilos que praticou e aos meios de produção artística que utilizou, afirmou o seguinte:
fotos: d.r.
Pintura “O Carnaval de Arlequim”, de Miró (1924-25) “Os diferentes estilos que usei na minha arte não podem ser considerados como uma evolução ou como degraus de um caminho para um ideal desconhecido na pintura. Tudo o que fiz foi feito para o presente e na esperança de que permaneça sempre no presente” (Walther, 2006). Mesmo em relação à arte concetual, Godfrey (1998) afirmava que não pode ser definida em termos de alguma técnica ou estilo específico (“It can not be defined in terms of any medium or style. Art can take many forms: photographs, videos, posters, billboards, charts, plans and, especially, language itsel”). Assim, esta atitude concetual traduz-se na procura da síntese através da imagem e na ênfase da ideia
Pintura “Azul II”, de Miró (1961) “ESTAMOS TODOS?” 7 MAR | 21.30 | Teatro das Figuras - Faro Comédia com o incontornável José Pedro Gomes, que se desdobra em múltiplas personagens, cada uma mais hilariante que a outra
prévia e do significado dos trabalhos produzidos, podendo ser utilizadas as modalidades de expressão ou as técnicas que o artista considerar necessárias ou adequadas para aquilo que pretende partilhar com o público, através da arte. Inclusivamente, nos anos 90, surgiu um movimento de Arte Integrativa procurando contribuir para acentuar a perspectiva de liberdade, flexibilidade e integração de várias técnicas ou formas de expressão no trabalho artístico produzido (Ciornai, 2004). O mundo das artes visuais a
partir do final do século XX tem sido caracterizado pelo Pluralismo, não havendo uma opção historicamente correta ou uma maneira específica de fazer arte. Conforme refere Artur Danto (2011), fazendo como que um balanço sobre o “estado da arte”: “Em 1984 publiquei um ensaio categoricamente chamado de “O fim da arte”, que argumentava não que a arte iria parar, mas que uma razão para fazer arte já não tinha validade. Senti que a minha visão significava uma libertação das tiranias da história. Senti que havíamos ingressado precisamente
Escultura “Jovem rapariga a evadir-se”, de Miró (1968)
naquele mundo de empreendimento pluralista (…) Pensei que havíamos entrado na fase pós-histórica da arte em que já não existia mais a possibilidade da direção historicamente correta. Esse seria, então, um período de Pluralismo profundo (…) Verdade ou falsidade são incompatíveis com Pluralismo. Mas não há verdade ou falsidade na arte, o que significa que o Pluralismo é, finalmente, inevitável”. No mesmo sentido pronuncia-se Santaella (2009), ao afirmar que a característica principal da arte contemporânea se encontra na “avalanche pluralista e radicalmente diversificada de tendências estéticas”. A mesma autora conclui o seu artigo intitulado “O pluralismo pós-utópico da arte”, da seguinte forma: “Em suma: longe de ser sintomática de uma situação de caos, a multiplicidade das práticas artísticas contemporâneas está sendo, ao contrário, demonstrativa do grau de liberdade de que goza o artista, desprendido das amarras da arte padronizada, engessada em parâmetros oficiais”. Atualmente verifica-se uma grande diversidade de meios e de produtos artísticos, em que se destaca a utilização das novas tecnologias e a arte interativa. Por exemplo, em termos de arte interativa, em 1997, o artista americano Peter Halley havia criado uma instalação em que os espetadores usavam computadores para alterar as imagens e as cores que o artista tinha escolhido, levantando-se a questão sobre quem seria então o artista. Esta é mais uma questão atual, à qual o próprio mundo da arte procura responder, constituindo este mais um desafio no seu processo de desenvolvimento... Nota: Este artigo integra o livro “Construção de um percurso multidisciplinar, integrativo e de síntese nas Artes Visuais”, de Saul Neves de Jesus (snjesus@ualg.pt)
“HISTÓRIAS ANTIGAS DE VÁRIOS POVOS” Até 17 ABR | Pólo Museológico de Alte – Loulé Conjunto de esculturas em cerâmica, da autoria de Maya dos Termos, que “contam” histórias antigas de vários povos
Cultura.Sul
06.03.2015
Momento
Bisca de Nove, num Jardim Algarvio Foto de Ana Omelete
Espaço ALFA
Mostra fotográfica ‘Visitar Concelhos Algarvios’ Portimão em Abril, Faro será dedicado em Maio e para finalizar Lagos brilhará em Junho.
Raúl Grade Coelho Membro da ALFA
O mês de Março é dedicado às fotografias sobre Olhão. É este o tema da mostra fotográfica ‘Visitar Concelhos Algarvios’. Será assim ao longo de seis meses, prolongando-se até ao início do Verão. Esta é uma forma de vermos os diferentes olhares que se têm sobre a região algarvia. Fotografias de festas, monumentos, das ruas, da natureza e de tudo o que a vossa imaginação vos pedir. Um concelho do Algarve em cada mês Cada mês é dedicado a um município. Albufeira foi em Janeiro, Tavira em Fevereiro, Olhão é agora em Março,
Um convite à participação de todos neste projecto da Associação Livre Fotógrafos do Algarve Todos podem participar. Basta enviar a foto do mês para mostra.fotografica. alfa@gmail.com e identificar o nome do autor, bem como o número de sócio, caso seja. A mostra é aberta a sócios e a não sócios da Associação Livre Fotógrafos do Algarve - ALFA. Todos os meses a ALFA destaca a foto do mês que será exibida em www.alfa. pt e no final, em Julho, serão entregues prémios aos participantes ,num encontro que se realizará na nossa sede em Faro. Está também prevista a exposicão coletiva de todas as fotos participantes por vários locais. Pode aproveitar e fotografar agora Olhão! A sua participação é grátis!
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06.03.2015
Cultura.Sul
Um olhar sobre o património
Sala de leitura
Comunicar o património
Como uma onda no “mar” de Londres
Alexandre Ferreira
Licenciado em Património Cultural pela UAlg
“Longe da vista, longe do coração”. Sendo um provérbio fatalista, não deixa de conter em si uma certa dose de verdade quando aplicado ao património cultural. E tão somente porque, ainda que conhecendo a existência de determinado elemento patrimonial, é unicamente através da sua
cepção que a comunidade tem acerca do seu património, quer na maneira como se relaciona com ele. Efectivamente, qualquer que seja a intervenção no Património, esta não acaba com a intervenção física no edifício ou sítio. Ela continua de forma perene e constante, sendo que este momento poderá originar um rejuvenescimento do bem intervencionado, por forma a cativar a atenção daqueles com predisposição para tal, mas também, e aí reside o desafio, cativar os que desconhecem ou que não se interessam. Porque sem pessoas, o património deixa de fazer sentido. O marketing e as suas ferra-
em que ele está inserido, sendo necessário um levantamento dos diversos públicos alvo, da sua concorrência, das oportunidades passíveis de serem aproveitadas, assim como das ameaças que podem prejudicar o seu desenvolvimento. Concretizada esta primeira análise, já terá sido elaborado um panorama claro sobre o elemento e respectiva entidade administradora e também do contexto onde está inserido, podendo assim ser definido um objectivo claro para a estratégia de marketing, o qual não poderá estar dissociado da razão de ser do elemento patrimonial e dos pressupostos que levaram d.r.
Campanha incentivou os visitantes a tirar fotografias interagindo com as peças fruição que uma relação afectiva será construída. E como é que deixamos de ter o património “longe da vista”? Comunicando-o! Mas não criemos ilusões. Esta comunicação não pode ser feita ad hoc, sob pena de a sua eficácia ser diminuta ou até nula. Pelo contrário, deverá obedecer a uma estratégia, a qual deverá ser minuciosamente elaborada para atingir os efeitos pretendidos. E é aqui que o marketing, aplicado ao património num sentido mais estrito, com os seus processos e metodologias pode contribuir para um salto qualitativo, e porque não afectivo, quer na per-
mentas deverão ser incorporados nas estratégias ligadas à salvaguarda, protecção e recuperação do património cultural, contribuindo para a constituição de um corpo coeso e coerente (do elemento em si mesmo e da instituição que o administra), através de uma auto-análise que terá que definir a representação que se quer assumida pelo elemento patrimonial, com os seus pontos fortes e as suas fraquezas; qual o propósito da sua protecção; e a definição de como, e a que níveis, é que essa mesma protecção se pode efectivar. Por outro lado, também será necessária uma análise ao contexto
à determinação da necessidade da sua salvaguarda, protecção e recuperação. O passo seguinte será o da elaboração da estratégia de marketing, o qual iremos desenvolver na próxima edição. Deixo no entanto o caro leitor com a imagem de uma campanha do Metropolitan Museum of Art que, quebrando alguns tabus, incentivou os seus visitantes a tirarem fotografias interagindo ou mimetizando com as peças expostas por forma a criar a campanha “It’s Time we Met” (2009), incentivando desta forma a que o museu fosse (re) descoberto pela comunidade.
Paulo Pires
Programador cultural no Município de Silves esteoficiodepoeta@gmail.com (continuação)
Virginia Woolf personificou bem a andarilha urbana, confessando que a cidade de Londres lhe devolvia inteiramente a intensidade com que a ela se entregava: “Londres atrai perpetuamente, estimula, dá-me uma peça, uma história e um poema, sem qualquer incómodo para além de andar pelas ruas… Caminhar sozinha em Londres é o meu maior descanso”. Continuando o périplo pela sua obra Londres [que abordámos parcialmente no último artigo], chegamos à Câmara dos Comuns, espaço que, nas suas palavras, nada apresenta de “venerável, ou de gasto pelo tempo, ou de musical, ou de cerimonioso”, afigurando-se como uma assembleia de aspecto informal e desleixado em que os políticos, aparentemente, pouco se diferenciam dos cidadãos comuns. A escritora compara mesmo os Comuns a um “bando de pássaros num campo de terra lavrada. Nunca pousam senão por breves minutos; alguns passam o tempo a esvoaçar, enquanto outros parecem estar sempre de regresso aos seus assentos”. Sobre essa alegre e por vezes viva disputa por “uma semente, um verme ou algum grão recém-desenterrado”, Virginia vai ainda mais longe na sua visão finamente satírica e desencantada relativamente ao mundo da política: […] todos eles estão bem alimentados e tiveram, sem dúvida, uma excelente educação. Mas com a sua tagarelice, as suas gargalhadas, o seu humor, a sua impaciência e o seu irrespeito, não formam uma assembleia mais judiciosa, ou mais digna, ou mais respeitável do que qualquer agrupamento de cidadãos reunidos para tratar de assuntos paroquiais ou atribuir prémios em feiras de gado. Mas a lucidez sensível de Woolf fá-la ver mais além e mais fundo, captando a psicologia (intemporal, dizemos nós) de um
lugar/contexto que tem tanto de simples como de complexo, feito de contradições, códigos tácitos, estranheza, labirintos e daquela “extraordinária irracionalidade” que, no fundo, subjaz às relações humanas e à vida em geral: Sentimos que os Comuns constituem um corpo com carácter próprio, que existe há muito tempo e tem as suas leis e liberdades próprias. É irreverente, à sua maneira; e como tal, presumimos nós, há-de
Nas entrelinhas vislumbra-se a crítica face a quem atrasa o avanço da democracia e afasta os cidadãos do sonho e do progresso a que aspiram. Daí Virginia desejar que a democracia chegasse apenas dali a cem anos, quando estivessem todos debaixo de terra; ou então que algum “estupendo golpe de génio” conseguisse conciliar o eterno binómio: o vasto e homogéneo edifício/o poderoso d.r.
A escritora Virginia Woolf ser também reverente, à sua maneira. Obedece, de certo modo, a um código próprio. Quem desrespeitar este código será impiedosamente punido; quem o respeitar será facilmente perdoado. Mas aquilo que se condena e aquilo que se perdoa é segredo a que só tem acesso quem conhece esta Câmara por dentro. A única coisa de que podemos estar certos é que um segredo existe. Esse “indefinível atributo” é, na opinião da literata, uma condição fundamental para o sucesso nesse mundo, pois a virtude, a paixão, a finura de espírito, a invectiva, o talento e a bravura, só por isso, não parecem ser suficientes, e até se afiguram descartáveis: “O homem excepcional seria morto à bicada por todos estes alegres pardais”. Woolf constata mesmo o fim dos dias do indivíduo e do poder pessoal, que deram, assim, lugar às comissões obcecadas em despachar com celeridade os assuntos humanos. E ironiza, apelando à reconstrução do mundo como um esplêndido edifício público e ao abandono do erguer de estátuas onde se inscrevem virtudes impossíveis.
“sistema” vs. o pequeno, frágil e singular indivíduo. Para fechar a viagem, o retrato apaixonado de uma figura feminina: a Sra. Crowe. Oscar Wilde dizia que um homem que consegue dominar uma conversação em Londres é capaz de dominar o mundo, e a afirmação bem poderia aplicar-se a esta anfitriã cuja arte maior era a conversa – despida de intimidades, particularidades e de demasiada profundidade/inteligência – sobre as novidades, numa espécie de coleccionismo de relações humanas. No fundo, o ritual realizado todos os dias da semana, entre as cinco e as sete, na sua sala de estar era uma “versão nobilitada da bisbilhotice de aldeia”, que parecia reduzir a vasta metrópole à dimensão de uma aldeia com igreja, solar e umas vinte e cinco casas. Saramago escreveu no Memorial do Convento que, além dos sonhos, é a conversa das mulheres que segura o mundo na sua órbita (?). A verdade é que, para Woolf, sem a Sra. Crowe Londres nunca mais seria a mesma…
Cultura.Sul
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O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N
Março João de Deus
Pedro Jubilot
pedromalves2014@hotmail.com canalsonora.blogs.sapo.pt
Primavera
E Se Não For?
fotos: d.r.
Em março reinventa-se o tempo num novo ciclo que se abre. A hora dos relógios será forçada a alterar-se. Mas é o equinócio que anuncia a mudança para a estação em que as temperaturas voltam a subir nas suas mínimas e máximas. E o eclipse solar total trará uma das maiores marés dos últimos anos… e consigo mais vida, mais liberdade, mais esperança, e muita poesia.
do da imprensa local elogiosas referências…. Noutro inverno igualmente tempestuoso sentei-me por ali também a tomar café, naquelas saudosas mesas, e escrevi-lhe esta microbiometria: « existir. mas muito mais do que existir, é amar. o sangue do outro. do tempo de se libertarem no mundo as ideias presas na garganta, de tudo o que escorre do segundo sexo, para poder gritar pedaços de suor, lamber as próprias lágrimas. existindo, vive-se. e vivendo, ama-se, sofre-se e existe-se em essência.»…
Nasceu a 8 de Março de 1830, na terra algarvia de São Bartolomeu de Messines, como filho de modestos comerciantes e foi batizado sob o nome de João de Deus de Nogueira Ramos aquele que viria a ser considerado o poeta do amor: «Vi esse corpo de ave,/ Que parece que vai/ Levado como o Sol ou como a Lua/ Sem encontrar beleza igual à sua;/Majestoso e suave,/Que surpreende e atrai!» (Adoração)
É o primeiro livro de Marco Mackaaij que nasceu nos Países Baixos em 1970 e vive em Portugal desde 1995. Este professor de Matemática na Universidade do Algarve diz que escrever poesia é «Pensar com os poros, suar com o cérebro». O lançamento do livro pela editora CanalSonora terá lugar no dia 14 de março pelas 17h, em Armação de Pera, no Olivalmar Beach Café, com apresentação de Paulo Pires.
gentes e dos seus costumes. Uma visão contemporânea da identidade algarvia, procurando no património as raízes da essência do povo e da cultura do Algarve.
Poesia & Companhia Com a organização da ArQuente, este festival regressa à cidade velha de Faro, estendendo-se por diversos locais, desde a sede da associação a espaços como a Fábrica da Cerveja, os claustros do Museu Municipal e restaurantes da zona da Sé. Esta segunda edição que decorrerá entre 19 e 22 de Março terá exposições, performance, debate, música, leituras, concerto spoken word, poetas convidados como Vasco Gato, Beatriz Hierro Lopez ou Luna Miguel e uma feira de livro de poesia.
Dia Mundial da Poesia 21 de Março
Viver sem poesia? Faço-o todos os dias, a escrever poemas. De resto nunca.
Retratos Cinéticos
Simone de Beauvoir
«Sízigia» A colectânea de poesia e fotografia da editora CanalSonora (nov, 2014), que mostra 37 autores que se movem na região, terá hoje 6 de março, em Faro pelas 18h, na biblioteca municipal António Ramos Rosa, o fecho de um ciclo de apresentações públicas, a cargo do seu editor Pedro Jubilot e conta com a presença de vários dos autores, que farão leituras dos textos, como este ‘Oxímoro’ de Luís Ene:
AGENDAR
O poema é uma prática de silêncio. O poema, como cada uma das suas palavras, tem sempre um lado de fora e um lado de dentro. O poema nunca é parte de coisa alguma, o poema é sempre um todo. Ele sabia que assim é. Ele sabia que só o grito do poema permite verdadeiramente ouvir o silêncio que sempre o compõe.
A pensadora francesa (Paris,1908-1986) esteve em Faro (diz-se que tomou chá no Café Aliança) para a conferência “A Vida Literária em França, da Ocupação à Libertação”, pronunciada a 9 de Março de 1945 no Instituto Francês, a convite do Prof. Lionel de Roulet, obten“CONCERTO PELA ORQUESTRA CLÁSSICA DO SUL” 15 MAR | 15.00 | Teatro das Figuras - Faro Neste concerto ‘Santo António, O Santo Casamenteiro’ terá o protagonismo e a Orquestra Clássica do Sul será conduzida pelo Maestro John Avery, que é também o autor da obra
É uma obra híbrida, que junta livro de fotografia e edição discográfica num só objecto. Idealizado pelo trio Orblua, dos músicos Carlos Norton, Nuno Murta e Inês Graça, conta ainda com a sensibilidade fotográfica de Jorge Jubilot. Será apresentado no teatro das Figuras em Faro a 19 de março. Segundo a banda de Faro este disco com 11 temas onde são convidados Janita Salomé e os Gaiteiros de Lisboa, celebra a região algarvia, sendo cada tema uma imagem do Algarve, da cultura e das tradições, das suas
A Casa Álvaro de Campos em Tavira celebra o dia com uma série de eventos ligados à poesia que inclui instalação poética, exposição de arte digital, apresentação de livro, leitura aberta de poesia, e concerto com O Poema (A)Corda, grupo com base artística em Nuno Mangas-Viegas e João Sousa, que se estreia no Algarve. Na Casa do Sal em Castro Marim, será apresentada a colecção de textos poéticos de 23 autores intitulada ‘Apontamentos da Margem’, onde participam entre outros Pedro Oliveira Tavares, Lena Cristina ou João Pereira que apontou assim: Quem me dera que o grito que prometo / no poema que não escrevi, soubesse à transcendência da espuma/das tardes que, no raiar das manhãs, são os átomos / de um compósito que viaja para o nome que /não é a pessoa que sou.
“BUSTOS DE PRESIDENTES DA REPÚBLICA” 16 MAR a 17 ABR | Paços do Concelho de Loulé Exposição da totalidade dos Presidentes da República, da autoria do barrista barcelense Joaquim Esteves, mestre que se notabilizou em termos artísticos, na olaria, figurado e na caricatura
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Cultura.Sul
Espaço ao Património
Entre a comunidade e o museu, a cultura sai à rua!
José Gameiro
Director científico do Museu de Portimão
Observatórios culturais atentos às transformações sociais, os museus projectam as pequenas e as grandes sínteses históricas das suas comunidades, salvaguardando e divulgando a diversidade e a imensa riqueza temática do seu património cultural e natural. Nos últimos anos, tem-se vindo a registar no nosso País uma crescente importância em relação ao Património Cultural Imaterial (PCI), de acordo com o estipulado pela Convenção da Unesco para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial de 2003, que o define como “(…) as práticas, representações, expressões, conhecimentos e aptidões – bem como os instrumentos, objectos, artefactos e espaços culturais que lhe estão associados – que as comunidades, os grupos e, sendo o caso, os indivíduos reconheçam como fazendo parte integrante do seu património cultural”. Neste contexto, cabe aos museus um papel privilegiado para o estudo, divulgação, e valorização do PCI, devendo conferir prioridade ao contacto directo com as comunidades e os grupos sociais que habitam os seus territórios de actuação e os espaços identitários das suas vivências, sempre em permanente evolução. No caso do Museu de Portimão, que se define como Museu de Sociedade, Território e Identidade, o trabalho de investigação
direcciona-se prioritariamente para o seu Município, procurando traduzir as dinâmicas existentes nessa geografia física e humana, entre a Serra de Monchique e o Oceano Atlântico, no intenso cruzamento histórico das culturas mediterrânicas que marcaram esta região. Quando em Maio de 2008, as portas do Museu de Portimão se abriram ao público no edifício da antiga fábrica de conservas “Feu Hermanos”, na margem direita do rio Arade, já o Município de Portimão (e a própria região algarvia) tinha sofrido, a partir da década de 70, do século XX, uma significativa alteração económica, social e cultural do seu modelo de desenvolvimento local que, de um inicial contexto agrícola, passando pelo aproveitamento mais intenso dos seus recursos marítimos, pela indústria conserveira e alguma actividade portuária, daria lugar à realidade do turismo e à oferta dos serviços a ele associados. Face a este novo cenário de mudança, para um paradigma de acentuada monocultura, havia que estabelecer prioridades na pesquisa e recolha patrimonial, uma vez que, actividades até então imprescindíveis para o crescimento da cidade, sobretudo a partir de finais do século XIX e início do século XX, estavam a ser “absorvidos” por uma nova realidade. “O Museu bate à porta da nossa história” Neste âmbito, surge o projecto antropológico “O Museu bate à porta da nossa história”, como resposta às necessidades de iniciar um trabalho permanente de recolha etnográfica do património cultural (material e imaterial), a desenvolver prio-
Trabalhando a empreita de palma
fotos: d.r.
Ritual da desfolhada do milho, ao início da noite, no adro da Igreja da Mexilhoeira Grande ritariamente junto das comunidades rural e marítima, nos seus bairros e residências, de forma a estabelecer uma maior ligação com estes autênticos “professores não formais”, com os seus testemunhos, representações e histórias de vida. Esta actividade e os resultados obtidos permitiram a construção de um mapa sócio laboral, bastante diversificado, do Município e das suas três freguesias (Portimão, Mexilhoeira Grande e Alvor), uma vez que o ponto de partida de todas estas temáticas de investigação, foi o “trabalho”, o universo laboral subjacente a cada uma das actividades mencionadas, com um enfoque quer na descrição de processos operatórios e saberes-fazer, quer nas condições de trabalho, vivências e sociabilidades relacionadas com as profissões, artes, ofícios e actividades exercidas.
A cultura sai à rua! Apesar da forte representação das actividades ligadas ao mar, como a pesca, a indústria conserveira ou a construção naval, a investigação e a recolha de campo foi igualmente desenvolvida e alargada à matriz rural da freguesia da Mexilhoeira Grande, onde se contemplaram várias valências patrimoniais, desde as arqueológicas, arquitectónicas, etnográficas e imateriais, procurando-se igualmente conhecer que tipo de actividades e modos de ruralidade ainda hoje estão presentes, qual o seu calendário natural e as transformações verificadas. Nesse sentido e através do referido projecto “O Museu bate à porta da nossa história”, procedeu-se a uma intensa recolha etnográfica naquela freguesia, na qual se procuraram identificar
A concertina a acompanhar a desfolhada
memórias de profissões, saberes, artes e ofícios, técnicas e materiais e formas de arquitectura popular, economia doméstica, tecnologias ligadas às antigas práticas agrícolas, tradição oral, testemunhos e narrativas sobre a utilização quotidiana dos recursos naturais e da ria de Alvor, crenças, mezinhas, práticas sociais e festividades. Com base nos resultados alcançados, fruto da contínua interacção entre a equipa do Museu e a comunidade da Mexilhoeira Grande, ganhou forma a ideia de reunir a diversidade do património cultural, os seus principais agentes e protagonistas locais, o seu melhor conhecimento e apropriação pública, desta realidade patrimonial tão significativa, mas simultaneamente algo dispersa e pouco perceptível, na sua dimensão
e autenticidade. Retomando o espírito das antigas festas de trabalho colectivas e das reuniões populares da comunidade, determinadas pelo calendário rural, esta iniciativa e reencontro entre gerações, designado “A nossa cultura sai à rua” foi a forma de celebrar em Setembro de 2014, as Jornadas Europeias do Património, no contexto do próprio espaço exterior da vila da Mexilhoeira Grande, ao longo das suas ruas e no largo da Igreja. Deste modo foi possível percorrer as ruas da freguesia, descobrir a história das suas gentes, as formas e cores da arquitectura popular, as antigas profissões, conhecer as artes, os saberes e provar os sabores herdados e que durante décadas fazem parte do dia-a-dia de diferentes gerações. Oficinas de taipa e adobe, pinturas com pigmentos naturais e cal, cerâmica, moinhos de papel, jogos ambientais e lúdicos tradicionais, como o pião, os berlindes, a malha, a corda, a macaca, os jogos do burro e das cinco pedrinhas, puderam ser utilizados e mais facilmente apreendidos. A moagem e o pão, empreita, vime, cortiça, “atabua”, rendas, ervas e mezinhas, doçaria, medronho, mel, vinho, queijo, biscoitos, foram também alguns exemplos desses sabores e trabalhos apresentados. No final da noite, com a recriação da festa popular da desfolhada do milho, com os seus rituais musicais, a que não faltaram os tradicionais biscoitos fritos, terminaria este primeiro encontro entre a comunidade, a sua cultura e o património local, com a promessa de se voltarem a reunir em 2015.
Construindo uma cadeira com a “atabua”
06.03.2015 11
Cultura.Sul
Da minha biblioteca
Milton Hatoum – Dois Irmãos fotos: d.r.
Adriana Nogueira
Classicista Professora da Univ. do Algarve adriana.nogueira.cultura.sul@gmail.com
AGENDAR
Até há pouco tempo nunca tinha lido nada de Milton Hatoum. Mas, emprestado por uma amiga, li Dois Irmãos e perguntei-me por que razão não tinha ouvido falar dele antes. Às vezes ando distraída e deixo passar várias informações literárias em revistas, jornais e rádio (televisão não tenho). Deve ter sido numa dessas alturas que o seu nome foi falado, até porque as notícias das suas vitórias de prémios literários foram difundidas no nosso país. Tendo passado por diversas profissões (arquiteto, professor de literatura, cronista), Milton Hatoum não é um desconhecido em Portugal e muito menos no Brasil. Por cá, a sua obra (quatro romances e um livro de contos) está publicada na Cotovia (Relato de um certo Oriente – 1999; Dois irmãos – 2000; Cinzas do norte – 2005 e os contos A cidade ilhada – 2009) e na Teorema (Órfãos do El Dourado – 2009). No Brasil, todos os romances foram premiados: três deles com o prestigiado prémio Jabuti de Literatura e um, Cinzas do norte, com o importante Prémio Portugal Telecom de Literatura. Dois irmãos é um livro pequeno, mas muito intenso. Depois de terminarmos a leitura ainda ficamos com as personagens e os seus dramas de vida na nossa memória. Passado em Manaus, acompanha a história da família de Zana e Halim, um casal de libaneses emigrados no Brasil. A ação acompanha décadas da família (os gémeos teriam nascido em 1925), principalmente do período que medeia a Segunda Guerra até à ditadura militar, pelo olhar de uma personagem secundária, que sabe de muitas destas histórias em segunda mão, através das conversas com
Dois irmãos, de Milton Hatoum, narra uma história de ódio familiar diversas personagens, principalmente Halim e a índia Domingas que, vimos a saber, é sua mãe. Tudo nos é revelado aos poucos, como se o narrador (cujo nome, Nael, só sabemos quase no fim) nos fosse contando à medida que se vai lembrando, recuando e avançando no relato. Caim e Abel Na cultura ocidental, desavenças entre dois irmãos fazem-nos pensar em Caim e Abel. De alguma maneira, estes dois gémeos da história, Yaqub e Omar, filhos de Halim e Zana, apesar de pertencentes a uma cultura diferente (a libanesa, já contaminada com a brasileira), também têm ciúmes um do outro e competem, não pelo amor de Deus, mas pelo amor das mulheres da sua vida. Essa disputa que sempre existiu entre os dois extremou-se depois do afastamento de Yaqub, por uns anos, para o Líbano, também por causa de uma mulher. Ciumento, e apenas com 13 anos, Omar rasga-lhe a cara. Essa cicatriz, que Yaqub nunca ocultou, é um traço distintivo, também simbólico, da diferença exterior
que este quer marcar em relação ao gémeo, de quem não poderia ser, interiormente, mais distinto: ele é bom aluno, outro é expulso da escola, este é calado, outro expansivo, este é independente e outro dependente. Mas, apesar de todos os defeitos apontados a Omar, também vemos nele uma vítima, um prisioneiro do amor das mulheres da família. As mulheres de Omar O título do livro remete para as personagens que motivam a história, os gémeos, mas também se poderia chamar Amor de mãe, visto que a personagem mais forte é a de Zana. Apesar de tentar esconder e não admitir a sua preferência por um dos filhos, estabelece com o mais novo, o Caçula (Omar), uma relação de tal modo doentia que, não fosse a paixão que tem pelo marido ser manifesta, dir-se-ia quase incestuosa. Com o seu amor sufoca-o, dificultando-lhe a relação com a restante família e, principalmente, com outras mulheres: «Todas foram vítimas de Zana. Todas, menos duas (…). As outras, assanhadas e oferecidas,
“CERÂMICAS DE ALCOUTIM” Até 26 MAR | Casa dos Condes - Alcoutim Exposição mostra uma retrospectiva do trabalho realizado pela artista plástica Isabel Ferreira ao longo de 18 anos da sua actividade como ceramista
não foram páreo para Zana, nem de longe ameaçavam o amor da mãe. Nem chegavam a duelar, não foi preciso. Além disso, não tinham nome, quer dizer, o Caçula só as chamava de queridinha ou princesa, para deleite da rainha-mãe, jamais destronada. Mas a mulher daquela noite tinha um nome: Dália. (…) Só ela atraía os olhares (…) e nós – aturdidos com os giros sensuais daquele corpo que nos desviou da noite –, nós invejávamos o Caçula, o gémeo disputado. Mas Omar cometia o erro de trair a mulher que nunca o havia traído» (p.76). Mais do que a questão que separa os dois irmãos, este é o maior drama desta história: uma mãe que não consegue libertar o filho, que não o deixa crescer, com um amor asfixiante e destruidor. Além da mãe, Omar tem de lidar também com o amor de Rânia, a irmã mais nova, que não encontra nenhum companheiro que consiga competir com os irmãos, por quem nutre um amor infinito. Também esse amor doentio, sem o ser efetivamente, parece incestuoso, como o narrador dá
a entender, neste caso mais claramente: quando o Caçula queria dinheiro, ia-lho pedir. Ela rabujava, mas «Ele ouvia a ladainha e começava a acariciar a irmã: um beijo nas mãos um afago no pescoço, uma lambida no lóbulo de cada orelha. Enlaçava-a, carregava-a no colo, olhando para ela como um conquistador cheio de desejo. As palavras que adoraria ouvir de um homem ela ouviu de Omar, ‘o irmão que nunca ficou longe de ti, que nunca te abandonou, mana’, ele sussurrava. Rânia se derretia, sensual e manhosa, e a voz dela, mais pausada, ia cedendo um pouquinho, até balbuciar, concordar: Está bem, mano, te dou uma mesadinha, assim tu te divertes por aí» (p.133). A outra mulher da casa é Domingas, que nunca saiu da casa que a acolheu, quase criança, como criada, estabelecendo uma relação de lealdade inquestionada. O narrador vem a descobrir que seu filho é neto de Zana e Halim: «Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha vindo (…). Minha infância, sem nenhum
sinal da origem. Era como esquecer uma criança dentro de um barco num rio deserto, até que uma das margens o acolhe. Anos depois, desconfiei: um dos gémeos era meu pai» (p.54). Halim Sobre um livro chamado Dois irmãos, pouco aqui escrevo sobre eles. Pode parecer estranho, mas faço-o intencionalmente, para não tirar à leitura o prazer da descoberta. Por isso, escolhi, para fechar este texto, escrever algumas palavras sobre o pai, a única pessoa que vai transmitindo algum equilíbrio e sensatez, com desejos e anseios simples, que tudo o que sempre quis na vida foi amar a sua mulher, viver tranquilamente (sem filhos, o que não foi possível), conviver com os amigos e aproveitar sossegadamente os bons momentos que a existência pode proporcionar. Não sendo este um livro feliz, esta personagem é a que conseguiu viver mais perto da felicidade. Só que a «vida vai andando em linha reta, de repente dá uma cambalhota, a linha dá um nó sem ponta. Foi assim…» (p.135).
“CORPO RESTRITO” Até 3 MAI | Museu Municipal de Faro Exposição fotográfica de Vasco Célio, com imagens inéditas dos objectos sobre modelos, Jóias da Fotografia, com o objectivo de colocar em diálogo os novos conceitos da Joalharia Contemporânea de Autor
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