d.r.
Missão Cultura:
Entrevista :
d.r.
Miguel Ângelo a solo
“Dez anos depois” p. 2
Momento:
d.r.
e em
versão pop
Algarve Nature Week 2015
p. 5
p. 7
Sala de leitura: d.r.
Coração acordeão: a poética de um fole vital p. 8
Espaço ao património:
d.r.
d.r.
MAIO 2015 n.º 80
Monchique, a Montanha Sagrada
Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o PÚBLICO
p. 10
7.869 EXEMPLARES
www.issuu.com/postaldoalgarve
Da minha biblioteca: Uma Viagem ao Algarve a duas vozes p. 11
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08.05.2015
Cultura.Sul
Editorial
Missão Cultura
A Europa e a Cultura
“Dez anos depois” Direção Regional de Cultura do Algarve
Ricardo Claro
Editor ricardoc.postal@gmail.com
AGENDAR
Celebra-se amanhã, 9 de Maio, o Dia da Europa ou Dia da União Europeia, uma data que parece mais política do que qualquer outra coisa, mas que celebra a data da Declaração Schuman, realizada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros de França, em Paris em 1950 e que ditou o arranque da criação daquilo que hoje conhecemos como União Europeia. Culturalmente esta data marca a criação de condições sem paralelo para a paz e para a segurança e defesa do património, nunca a Europa gozou de um tão longo período de ausência de conflitos bélicos de larga escala, excepção feita aos Balcãs. A União Europeia e os tratados e convenções assinados entre os países europeus da UE a 28 e outros Estados Europeus, determinaram políticas de conservação patrimonial, de fomento e defesa das identidades culturais e criaram espaço, com a queda de muitas ditaduras para um fluir livre da cultura como forma maior de comunicação entre os povos. Os orçamentos para a cultura continuam ainda hoje a representar uma ínfima parte das verbas alocadas aos deveres do Estado para com os cidadãos, mas a cultura é hoje, mais ampla, mais difundida, mais tranversal e acima de tudo, muito mais livre. Os avanços conquistados podem a muitos surgir como dados adquiridos fruto de uma vida na constância da sua existência, mas a verdade é que, num momento em que os direitos adquiridos se debatem com o totalitarismo das liberalidades de Governos e políticos desregrados, importa sublinhar sempre que há conquistas que não podem ser descuradas e que a liberdade e o direito à cultura são lutas permanentes contra quem as ouse desrespeitar.
Passaram dez anos desde que teve lugar o “Faro, Capital Nacional da Cultura” (Março de 2005); passaram dez anos desde que foi inaugurado o Teatro Municipal de Faro (Julho de 2005); passaram dez anos desde que foi assinada a Convenção de Faro, sob o título a Convenção Quadro do Conselho da Europa Relativa ao Valor do Património Cultural para a Sociedade (27 de Outubro de 2005). O que mudou? Os objetivos de “Faro, Capital Nacional da Cultura 2005” (FCNC) foram estabelecidos em Resolução do Conselho de Ministros nº 96/2004, de 19 de Julho, e afirmava que a FCNC pretendia alcançar fundamentalmente os seguintes objetivos: “1 - Resgatar a cidade e a região da marginalidade cultural, atraindo para as atividades culturais novos públicos e a grande massa da população que delas tem estado afastada; 2 - Apostar na continuidade e na consolidação dos projetos culturais existentes na cidade e na região, e contribuir para a elevação do nível cultural da sociedade algarvia; 3 - Projetar nacional e internacionalmente a cidade de Faro e a região do Algarve, ambas enquanto polos de turismo cultural e de atividades ligadas às
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indústrias da cultura e do lazer.” Por sua vez, reconhecendo a necessidade de colocar a pessoa e os valores humanos no centro de um conceito alargado e interdisciplinar de património cultural, a Convenção de Faro veio salientar o valor e as potencialidades de um património cultural bem gerido, enquanto fonte de desenvolvimento sustentável e também de qualidade de vida numa sociedade em constante evolução. A Convenção de Faro reconhece que cada pessoa, no respeito dos direitos e liberdades de outrem, tem o direito de se envolver com o património cultural da sua escolha, como expressão do direito de participar livremente na vida cultural consagrada na Declaração Universal dos Direitos do Homem das Nações Unidas (1948) e garantido pelo Pacto Internacional relativo aos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (1966). Cada um de nós possui uma responsabilidade individual e coletiva no processo contínuo de definição e gestão do património cultural. O património cultural tem também um contributo principal para o diálogo intercultural. O valor da actividade cultural para a vitalidade económica e para o desenvolvimento de comunidades sustentáveis tem sido reconhecido em vários documentos da UNESCO: as conclusões da Conferência Mundial sobre Políticas Culturais, de 1982, da Co-
demonstrar que as alterações verificadas nas políticas educativas e culturais, da segunda metade do século XX, tiveram um papel determinante nas características sócio demográficas, motivações e interesses das pessoas. Também sustentam a evidência de uma nova cultura de consumo em que produtores e mediadores culturais, e turísticos, desempenham um papel fundamental porque permitem colocar à fruição de todos (visitantes e residentes) a produção realizada. Para os destinos turísticos do Sul da Europa, em que a participação da população na fruição cultural é ainda reduzida e a produção muito frágil, a procura de produtos e serviços culturais por parte dos turistas (nacionais ou estrangeiros) constitui
um contributo que não pode ser negligenciado, para a sustentabilidade da região. Algumas cidades da região reúnem condições para constituir uma oferta cultural organizada em rede. Essa organização só traria benefícios, uma vez que não possuem, por si só, de forma isolada, uma capacidade de atração comparável a outras cidades históricas de renome internacional. A criação de uma marca regional, com base na identidade comum das cidades, reforçará certamente a identidade da região. Será fundamental introduzir uma prática sistemática de recolha de informação relativa aos públicos e visitantes da região, uma vez que as tendências de procura tendem à fragmentação. Todos os agentes regionais e locais, públicos e privados, devem assumir um papel activo na inventariação dos recursos, no conhecimento das diferentes comunidades (residentes e visitantes), na criação de condições de acolhimento, no apoio aos visitantes e na organização e promoção de actividades e eventos. Uma das vantagens desta abordagem será um reforço da notoriedade, da imagem e da identidade e a criação de uma cultura de excelência. A questão que permanece será: O que mudou? Será que os objectivos do FCNC e da Convenção foram concretizados? Como podemos consolidar estes percursos e estes objectivos?
preocupação laboral com os jovens que terminam a sua formação e não têm emprego. Falta respeito pelos jovens, quando responsáveis políticos os incentivam a emigrar, sangrando o país da parte mais ativa e sonhadora da sua população. Faltam programas escolares que respondam aos desafios do século XXI e integrem na formação dos jovens as extraordinárias potencialidades que a nova sociedade
da informação oferece. Aos jovens cabe-lhes usufruir dos recursos humanos e materiais que colocamos à sua disposição para desenvolverem as suas atividades, a nós, poder político, cabe-nos o mais difícil. Cabe-nos entender os sonhos e aspirações de uma geração que cresce ao som das dificuldades e, ainda assim, insiste em sonhar quando lhe deixam. Cabe-nos dar-lhes resposta e esperança.
Isabel Pires de Lima, então ministra da Cultura, na assinatura da Convenção de Faro missão Mundial sobre Cultura e Desenvolvimento denominado “Our creative diversity” de 1995, da Conferência Intergovernamental sobre Políticas Culturais de 1998 e do Conselho da Europa, intitulado “In from the Margins”, de 1997. Não esqueçamos também os diversos instrumentos do Conselho da Europa, designadamente: Convenção Cultural Europeia (1954); Convenção para a Salvaguarda do Património Arquitectónico da Europa (1985); Convenção Europeia para a Protecção do Património Arqueológico (1992, revista); e Convenção Europeia da Paisagem (2000). Novas políticas, novos consumos Os estudos científicos vieram
Juventude, artes e ideias
A juventude de hoje!
António Pina
Presidente da Câmara de Olhão
Eis que chegamos, em Olhão, a mais um mês de MOSTRA-TE, mais um mês da Juventude. A Ju-
ventude é hoje um tema central, não só no discurso, como também na atividade política. Nem sempre foi assim. Sou de uma geração que, em termos de apoio à Juventude, foi muito beneficiada em relação à dos meus pais, e ao longo de toda a minha vida política tenho defendido e tentado implementar cada vez mais estruturas onde os jovens se possam encontrar e
desenvolver os seus projetos. Avançámos muito, e fizemo-lo em pouco tempo. Há mais espaços de encontro e intercâmbio de ideias e projetos, há maior oferta lúdica, cultural e desportiva, há maior sensibilidade para uma idade especial na vida de todos, onde as questões são mais do que as respostas, as dúvidas muito maiores que as certezas. Falta fazer muito. Falta mais
“DIAS DE FADO” 16 MAI | 21h30 | Centro Cultural de Lagos Três fadistas interpretam os mais mediáticos fados que a diva cantou ao longo da sua carreira, tais como “Estranha forma de vida”, “Ai Mouraria”, Maria Lisboa ou “Povo que Lavas no rio”
“NOVOS MUNDOS” De 23 de Maio a 19 de Julho | Museu de Portimão Timo Dillner nasceu em Wismar na Alemanha em 1966, vive em Bensafrim, Lagos, há 16 anos. ´e um artista multifacetado que apresenta pinturas, poemas, obras gráficas, esculturas e vídeo
Cultura.Sul
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Grande ecrã Cineclube de Faro
Programação: cineclubefaro.blogspot.pt IPDJ | 21.30 HORAS 12 MAI | O PEQUENO QUINQUIN, Bruno Dumont, França, 2014, 197’, M/12 19 MAI | MAMÃ, Xavier Dolan, Canadá, 2014, 134’, M/14 26 MAI | OUTRA FORMA DE LUTA, João Pinto Nogueira, Portugal, 2014, 80’, M/12
A TELA AOS SÓCIOS: UMA QUESTÃO CINECLUBISTA | 21.30 HORAS | SEDE CCF 14 MAI | CASANOVA, Federico Fellini, Itália, 1976, 155’
21 MAI | QUERELLE, Rainer Werner Fassbinder, França/Alemanha, 1982, 104’, M/18 28 MAI | JLG POR JLG, Jean-Luc Godard, França, 1995, 53’, M/12 FILME FRANCÊS DO MÊS | BIBLIOTECA MUNICIPAL FARO - 21H30 - ENTRADA LIVRE 22 MAI | Un Poison Violent, Katell Quillevere, França, 2010, 92
Tavira prepara mostras anuais de cinema Já estamos em plena preparação das nossas anuais Mostras de Cinema, que irão decorrer no local habitual, os belos Claustros do Convento do Carmo, de 17 a 27 de Julho (Europeu) e de 7 a 17 de Agosto (Não Europeu). Eventos ideais para descobrir e/ou rever filmes de grande qualidade e sensibilidade, num ambiente agradável e atraente em todos os sentidos, apenas comparável com um cenário do filme de Giuseppe Tornatore: Nuovo Cinema Paradiso... Entretanto, também não nos esquecemos de trazer a Tavira a nossa oferta semanal de filmes diferentes dos que passam nos centros comerciais. E neste mês de Maio propomos mais uma sessão extraordinária no sábado, dia 23: Cairo 678, um filme egípcio surpreendente, com a estreia como realizador do argumentista Mohamed Diab. Um entre centenas de fil-
Cineclube de Tavira
Programação: www.cineclubetavira.com 281 971 546 | cinetavira@gmail.com fotos: d.r.
SESSÕES REGULARES | CINE-TEATRO ANTÓNIO PINHEIRO | 21.30 HORAS 14 MAI | GETT (O PROCESSO DE VIVIANE AMSALEM), Ronit e Shlomi Elkabetz – Israel/Al/F 2014 (115’) M/14
21 MAI | I LOVE KUDURO, Mário Patrocínio - Port/Angola 2014 (96’) M/12 23 MAI | 678 (CAIRO 678), Mohamed Diab - Egípto 2010 (100’) M/14 28 MAI | LES COMBATTANTS (OS COMBATENTES), Thomas Cailley - França 2014 (98’) M/12
Cena do filme ‘Cairo 678’, que representa a estreia na realização do argumentista Mohamed Diab mes de grande qualidade (e de baixo orçamento - apenas dois milhões de dólares) que nunca chegaram a estrear em Portugal, apesar de terem pernas
para andar! Iremos exibi-lo no nosso Cineclube com legendagem dupla: português e inglês. Por favor não o percam! Cineclube de Tavira
Espaço AGECAL
Redescobrir a matéria: os trabalhos em cana no Baixo Guadiana
Pedro Pires Técnico de Património Cultural e pós-graduado em Património Imaterial, membro do CEPAC/UAlg, onvidado da AGECAL
O território do Baixo Guadiana algarvio, raiano e de matriz mediterrânica, compreende os concelhos sotaventinos de Vila Real de Santo António, Castro Marim e Alcoutim. A maior densidade populacional no litoral e barrocal é contraposta pelo povoamento disperso na serra, na sua maioria constituída por montes, marcados pela obstinada ruralidade e habituados a sobreviver com os recursos naturais disponíveis. A humanização do território, fruto do convívio de séculos com povos diferentes e do aproveitamento desses recursos, levou ao desenvolvimento de artes e saberes fundamentais para a sub-
sistência das suas gentes. Mais serrana que costeira, a paisagem do Baixo Guadiana, seca e xistosa, é atravessada pelas tortuosas ribeiras afluentes do Guadiana: Vascão, Foupana, Odeleite, Beliche e Rio Seco, em cujas várzeas crescem os canaviais, de onde se extrai a cana utilizada para fazer os cestos ou canastras, outrora fundamentais para o armazenamento das frutas colhidas nos pomares ribeirinhos e no transporte do peixe capturado na própria ribeira. A cestaria, um ofício transmitido entre gerações ao longo de várias décadas, marcou a aldeia de Odeleite que, segundo os habitantes, via as ruas cheias de gente que trabalhava a cana, dia e noite, para dar forma aos cestos e engordar o orçamento familiar. Até as mulheres trabalhavam os cestos, facto pouco comum, pela cestaria ser um ofício efectuado quase exclusivamente por homens. A alteração do contexto social, bem como a evolução dos materiais, tornou barato e acessível o uso do cartão e do plástico, que substituíram os cestos e as canastras em cana, hoje objectos particulares de fruição
“Os homens precisaram do testemunho dos seus antepassados e cada época precisou dos conhecimentos anteriores para poder criar e inovar” Xavier Greffe, 1986 d.r.
turística. A cestaria perdeu assim a sua função original, de uso quotidiano, e tornou-se num elemento cultural, valorizado, símbolo do
“saber fazer” da comunidade do Baixo Guadiana. Todavia, a cana continua a ser associada às mais diversas activi-
dades desenvolvidas no território. Na agricultura, é utilizada no varejo e na apanha de frutos secos e da azeitona, nas hortas para sustentar o crescimento de trepadeiras, como o feijoeiro, o tomateiro de armar e a ervilheira. A preservação dos gestos, usos e modos de trabalhar a cana é fundamental, de maneira a que a sua continuidade e consequente redescoberta face à contemporaneidade seja feita de forma sustentável e com recurso às técnicas tradicionais. A participação das comunidades, detentoras do saber, é essencial, seja no processo de investigação ou na procura de novos usos. Numa época em que o turismo de carácter cultural cresce, a dinamização das artes e ofícios próprios da cana, agora também objecto de cultura e lazer, passará, em parte, pela divulgação em tertúlias ou palestras, mas também na formação de novos artífices, apostando na originalidade e em novos produtos, sem que se descaracterizem os materiais e as técnicas tradicionais.
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Cultura.Sul
Letras e Leituras
Tocar tambor como quem grita - Günter Grass fotos: d.r.
Paulo Serra
Investigador da UAlg associado ao CLEPUL
O escritor alemão Günter Grass, Prémio Nobel da Literatura em 1999, morreu aos 87 anos, em Abril de 2015. Considerado uma das mais importantes figuras da cultura alemã do pós-guerra, Günter Grass tornou-se persona non grata quando confessou, na sua trilogia autobiográfica, iniciada com Descascando a Cebola (2007), que narra a sua vida entre 1939 e 1959, como se alistou voluntariamente nas SS. No espírito desse processo de descascar a cebola de forma a revelar o núcleo da verdade, Grass escreve como aos 15 anos se apresentou voluntariamente para o serviço militar na Alemanha nazi e como aos 17 passou a envergar o uniforme das Waffen-SS. E este episódio que ocupa apenas duas páginas no conjunto da sua vida acabou por despertar grande polémica. O Tambor de Lata, o seu romance de estreia, só foi novamente publicado entre nós no cinquentenário da sua publicação original (1959), numa tradução melhorada pela D. Quixote. O livro foi considerado escandaloso e pornográfico, mas a verdade é que narra de forma cómica, alegórica e fantástica a história da Alemanha desde o final do século XIX até 1960. A obra é repleta de histórias picarescas e cómicas, atravessada por elementos fantásticos e mágicos, num registo fluído, eivado de jogos de linguagem e de algum barroquismo de linguagem, próximo do carnavalesco, cujo estilo lembra afinal Gabriel García Márquez e talvez por isso mesmo alguns críticos tenham apontado a obra como um exemplo europeu do realismo mágico. O narrador, na primeira pessoa, confessa logo nas primeiras linhas que está internado num «asilo de alienados» (pág. 13). Mas o autor, justamente numa época em que se prenunciava a morte do romance, dá novo ímpeto à arte da narrativa e não deixa de ironizar: «Pode-se começar uma história pelo meio e criar confusão, avançando e recuando com ousadia. Pode-se assumir uma pose moderna
(...). Também se pode afirmar logo de início que hoje em dia é impossível escrever um romance, mas depois, por assim dizer dissimuladamente, produzir um bestseller bem espesso para o autor se apresentar por fim como o último dos romancistas.» (pp. 15-16). E será sempre a ironizar, para poder falar de assuntos sérios e delicados do pós-guerra, que a narrativa de Oskar vai discorrendo, a partir de um início desde logo cativante e estranhamente desconcertante: «Começo muito antes de mim; porque ninguém deveria escrever a sua vida sem arranjar paciência para recordar, antes da própria existência, pelo menos metade dos avós.» (pág. 16). Oskar conta então a história da sua avó materna, Anna Bronski, e de como ela se sentou num batatal, em 1899, com as suas quatro saias, cor de casca de batata, cuja ordem ia trocando consoante o dia da semana, de forma a que a saia melhor ficasse sempre por cima das outras, e de como Joseph Koljaiczek, procurado por ser um incendiário, se esconde de dois polícias debaixo das suas saias. Enquanto a polícia procura desesperadamente o homem e interroga a mulher sentada frente a uma fogueira, a comer batatas assadas, esta deixa sair fundos suspiros enquanto aponta para outra direção. No final do primeiro capítulo, quando os polícias finalmente desistem de procurar o foragido, Anna Bronski ergue-se, descobrindo Joseph Koljaiczek, que estava enrodilhado no chão, mas logo se levanta, fecha a braguilha, e a partir desse momento «não lhe largou mais as saias» (pág. 24). O maravilhoso patente nesta obra está especialmente contido em torno de Oskar que nasce em 1924 com a inteligência de um adulto e uns enormes olhos azuis. No dia do seu terceiro aniversário, Oskar recebe um tambor de lata, e nesse mesmo dia, ao ouvir o pai dizer-lhe que quando chegar a adulto será ele a tomar conta da loja da família, ele decide parar de crescer, como forma de evitar as responsabilidades e pesos ou expectativas próprias de uma idade adulta. Ao longo da sua vida, Oskar irá tocar uma série de tambores, que nas suas mãos ganham um triplo poder: invocatório, pois enquanto Oskar o percute isso permite-lhe regressar ao passado e resgatar as suas memórias, como faz no final da sua vida, enquanto
Günter Grass, Prémio Nobel da Literatura em 1999 está no asilo e procura escrever as suas memórias; protestatório, como arma de contestação ao que lhe impõem; encantatório, ao jeito do flautista de Hamelin, pois seduz e hipnotiza as pessoas com o som do seu tamborzinho de brinquedo. Oskar tem ainda outra capacidade extraordinária: uma voz «vitricida», que parte vidro de forma tão eficaz como uma arma supersónica. Esta recusa de Oskar em crescer e tornar-se adulto, apesar de possuir as capacidades cognitivas de um, simboliza a sua negação de fazer parte de um mundo que ele considera estar a enlouquecer, consoante se avizinha a Segunda Grande Guerra, e o rufar do seu tambor representa o seu protesto face à passividade da época, face ao que a História preparava, e que por muito imaginável que parecesse acabou por se tornar realidade. Este é, aliás, o princípio subjacente ao realismo mágico: a forma como o mundano e o fantástico se interligam de forma comum, em
que os factos mais incríveis não despertam grande estranheza no leitor, se bem que aqui não se trate de eventos mágicos como o levitar de tapetes, mas sim de outros factos absolutamente incríveis, como o extermínio de milhares de pessoas, aparentemente aceite de forma natural. Existe todavia uma certa ambiguidade na leitura da obra pois chega a indiciar-se a possibilidade de que Oskar, afinal, não é uma criança, mas sim um anão, o que pode invalidar a questão do maravilhoso, embora não anule a estranheza e a singularidade que envolve este romance. Este rapaz incorre também em brincadeiras sexuais precoces com Maria, a mulher que cuidava dele e que depois casará com o pai, pelo que quando nasce Kurt não se sabe bem se será filho ou neto do marido. Além da sua natureza física diferente, a diferença de Oskar face à sociedade que o envolve está igualmente patente no seu comportamento e nos papéis
que assume ao longo da sua vida: como chefe de um gangue que assalta lojas, graças ao poder da sua voz que pulverizava facilmente as monstras; quando se junta a uma trupe circense de anões que entretém as tropas na linha da frente; em Düsseldorf, Oskar torna-se músico de jazz, sempre acompanhado do seu tambor... A (in)sanidade mental do narrador nunca chega a ser claramente confirmada ou desmentida, ao longo desta densa narrativa de quase setecentas páginas, em que o pequeno Oskar percorre a história alemã desde
1899 até 1954. A título de curiosidade, Günter Grass visitava regularmente o Algarve, onde possuía uma casa em Portimão, e expunha a sua obra como artista plástico no Centro Cultural de São Lourenço. No seu dário de viagens, Em Viagem - De Uma Alemanha à Outra (1990), o autor escreve sobre o Vale das Eiras, onde tinha uma casa, desde 1980, sem televisão. Grass gostava de receber, de cozinhar, de desenhar as suas gravuras a tinta de choco, de lula ou de polvo, e de se ocupar das suas plantas.
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Panorâmica
Miguel Ângelo: a solo e definitivamente pop fotos: d.r.
Há vozes inconfundíveis e Miguel Ângelo é uma delas. Associada necessariamente aos Delfins, banda de que foi vocalista por 25 anos, a voz do cantor está hoje plasmada nos álbuns que fazem parte da carreira a solo que decidiu trilhar após o fim do agrupamento que lhe deu a fama. “Primeiro” e, mais recentemente, “Segundo”, são os discos de uma trilogia que o escritor, compositor e músico quer que sejam a base de uma carreira a solo sólida. Definitivamente pop, “sempre gostei das voltas que a música pop(ular) dá, dos que vou mais fundo ao mergulhar na privacidade das minhas sensações e pensamentos.
“Timidez” é mais fragmentado que os capítulos da nova trilogia. Nessa altura não planeei nenhum início de carreira a solo, até porque os Delfins eram a minha nave-mãe e por isso nunca encarei o “Timidez” como o início de um percurso a solo, sem no entanto lhe querer retirar a devida importância.
que descrevi em cima. Precisava de muita verdade nas novas canções, de uma nova abordagem na escrita de letras e de uma sonoridade nua e crua que soasse intemporal.
Cultura.Sul (C.S) - Estará hoje (dia 8 de Maio, data de saída do Cultura. Sul em banca) num concerto em Pêra, Silves, apresentado como acústico. O que podem os espectadores esperar para o concerto desta noite? Miguel Ângelo (MA) - Neste concerto íntimo apresentarei algumas das novas canções de “Segundo”, mas também viajarei por outras ligadas à minha carreira. Nestes ambientes mais próximos, além das canções cantadas existem as histórias contadas e a participação directa do público, o que tornará certamente a noite muito especial.
C.S - “Primeiro” é encarado como um verdadeiro ‘statement of purpose’ de um futuro a solo. É isto de facto? Como é que vê hoje a reacção do público a esta escolha? MA - Vejo muito bem face ao feedback que recebo, mas tenho a noção que estou a construir algo, a iniciar um novo percurso, independentemente de sucessos ou falhanços passados. Essa declaração de intenções, quando anunciei não só o “Primeiro” como o “Segundo” e o “Terceiro”, tem a ver com isso, com a necessidade de construir um conjunto sólido de novas canções que me acompanhem nos próximos anos, dando-me autonomia.
C.S - Ontem, em Silves, no âmbito da iniciativa “Lado B”, participou desta tertúlia que tenta revelar uma outra perspectiva sobre os artistas portugueses. Há um ‘lado b’ de Miguel Ângelo neste percurso a solo que iniciou em 2012, com o “Primeiro”, face ao conhecido percurso com os Delfins? MA - O Labo B de cada um é o complemento do Lado A, mas não quer dizer que tenha menos importância. O que está menos exposto roda nesse lado B: as origens, as influências, a presença determinante dos outros nas nossas vidas... Normalmente, é um lado mais obscuro, mais calmo e pessoal. Na minha carreira a solo baseio-me mais no meu lado pessoal do que quando estava com os Delfins, por razões óbvias. É também nos meus romances
C.S - “Timidez”, lançado quatro anos antes, a solo mas com os Delfins ainda ‘no activo’ é C.S - “Segundo” é o seu novo muito diverso de disco, mais pop, já consegue “Primeiro”. Neste percepcionar a reacção do seu último temos o repúblico? A capa do mais recente disco de Miguel Ângelo gisto determinador MA - As reacções estão para do que pretende já a ser melhores do que em rede 2004 - quando os Delfins faziam a lação ao “Primeiro”, na generalidade. para este caminho a solo? MA - “Timidez” foi lançado no final sua tour unplugged – iniciei uma nova Acho que está a chegar a mais gente, dos anos 90, quando os Delfins se afas- abordagem à composição de canções, a conseguir entrar nalguns sítios onde taram dos estúdios de gravação por ao ponto de basear nela a minha car- o “Primeiro” não entrou. Está a vencer alguns anos. Foi a maneira de dar res- reira a solo. Devido a isso aproximei-me preconceitos, o que já é uma vitória posta ao pedido para a escrita da ban- muito da música folk - nova e velha - e e penso que é um disco para palcos da sonora do filme Zona J e também de até de algum country mais ou menos maiores, mais eléctrico e mais enérgico. gravar algumas das canções que tinha alternativo. “Ray’s Bar” tem muito a ver na gaveta, às quais juntei mais umas ver- com isso, o EP foi gravado numa sala de C.S - A trilogia que integra estes sões de canções favoritas. Embora sen- estar e quer em escrita, quer em sono- dois primeiros trabalhos completardo fruto de uma escolha muito pessoal, ridade aproxima-se muito do conceito -se-á com que registo musical? Tem
Ricardo Claro
Jornalista / Editor
C.S - “Ray’s Bar” é por muitos desconhecido, mas é para si mais um caminho desenhado no âmbito desta segunda fase da carreira? MA - Quando peguei acidentalmente numa guitarra acústica, por volta
C.S - Sente necessidade de se afastar de forma marcante, em termos de registo, face ao som dos Delfins a que está indelevelmente ligado? MA - Já senti mais, na realidade. Em “Timidez” claramente, até porque o grupo ainda existia, e em “Primeiro” talvez até inconscientemente! Mas chega-se a uma altura em que a fuga de nós próprios se torna inconsequente e produz efeitos contrários. O velho sonho de estar bem com Deus e o Diabo já queimou muitas pestanas... Com 30 anos de carreira tudo se resume ao nosso essencial, à nossa verdade e vontade. Não quer dizer que não se experimentem novas sonoridades, novos caminhos, mas com a distância olha-se para trás e consegue reconhecer-se uma matriz da qual é impossível afastarmo-nos de modo natural.
círculos em espiral por cima de si própria”, para Miguel Ângelo o que importa é muito mais do que o rótulo, “enquadro-me na grande tradição da escrita de canções, com a ambição que essas canções não sejam apenas uma banda sonora distante ou música de dança no elevador e na aula de ginástica. Ambiciono que as canções fiquem e falem por si, depois de partir”. Música para ouvir, repetir e deixar entranhar, numa das vozes mais reconhecidas da cena musical portuguesa contemporânea. ideia já? MA - Esta trilogia destina-se a criar uma base sólida de canções que me permitam seguir uma carreira a solo, reconhecida e apreciada, completando e aumentando a história que tive durante 25 anos com os Delfins. “Terceiro” encerrará essa trilogia, num futuro próximo. C.S - Como é que vê a produção de escrita para canções e a composição na cena musical da actualidade em Portugal? MA - Há na realidade poucos compositores e autores que escrevam para terceiros, o que deixa muitos bons intérpretes - a maior parte revelados em programas de televisão – sem nada para cantar ou acrescentar. À excepção do Fado, na música portuguesa impera o conceito de cantautor, muito ligado ao facto da sobrevivência e resistência profissional dependerem da actividade musical ao vivo. No entanto, já se escreve mais e melhor em português do que há alguns anos... C.S - Depois de dois discos a solo, onde é que se vê enquadrado no panorama musical, independentemente dos chamados rótulos comercialmente válidos? MA - Sempre gostei das voltas que a música pop(ular) dá, dos círculos em espiral por cima de si própria. As referências são quase tudo para mim. São o que é importante renovar e comunicar, até porque partimos todos dos mesmos princípios humanistas, na sociedade ocidental. Enquadro-me na grande tradição da escrita de canções, com a ambição que essas canções não sejam apenas uma banda sonora distante ou música de dança no elevador e na aula de ginástica. Ambiciono que as canções fiquem e falem por si, depois de partir.
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Cultura.Sul
Artes visuais
As descobertas na ciência podem ser fonte de inspiração artística?
Saul Neves de Jesus
Professor catedrático da UAlg; Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora
AGENDAR
Um aspeto pouco abordado nas relações entre a arte e a ciência diz respeito a conceitos ou descobertas científicas poderem servir como fonte inspiradora das criações artísticas. Diversos têm sido os artistas que consideram que a obra de arte “é filha do seu tempo”. Nesse sentido, a produção artística pode ser influenciada por múltiplos fatores, em particular pelas descobertas da ciência no período em que a criação artística ocorre. Por exemplo, as ideias de Goethe sobre as cores tiveram um importante impacto sobre o trabalho de Turner, o qual produziu inclusivamente uma pintura intitulada “Luz e Cor (Teoria de Goethe)” (1843). A Teoria da Relatividade de Einstein tem sido uma das descobertas que mais tem procurado ser expressa na produção artística. Em particular, há várias publicações que destacam a influência da Teoria da Relatividade na pintura surrealista de Remedios Varo, nomeadamente pelo físico Alan Friedman (2000), no artigo “Física influencia a arte: evidências na pintura surrealista de Remedios Varo” (“Physics influences art: evidence in surreal painting of Remedios Varo”). Mas considera-se que a teoria da relatividade de Einstein está também presente em obras doutros artistas, em particular Picasso, Mondrian, Kandisnky, Marinete e Salvador Dali. Este último parece ter sido aquele que melhor expressa a influência desta teoria nalguns dos seus trabalhos. Neste âmbito, destaca-se a sua pintu-
ra “A persistência da memória” (1931), em que coloca três relógios no mesmo espaço, sugerindo que no mesmo espaço se expressam diferentes temporalidades. Isto não obstante Dali referir que a inspiração para o desenho dos “relógios moles” tenha surgido quando estava a comer um queijo Camembert derretido (Úbeda, Marquès & Pons, 2004). Da análise feita sobre a influência que as descobertas ocorridas na ciência tiveram na produção realizada pelos artistas, enquanto tema dos trabalhos destes, concluímos que Dali foi provavelmente o artista em cuja obra, ao longo de todo o seu percurso e de forma intencional e sistemática, foram integrados temas estudados no âmbito científico, correspondendo a importantes descobertas ocorridas durante o século XX em diversos domínios científicos. Nesse sentido, abordou nos seus trabalhos artísticos temas como a bomba atómica ou a elucidação da estrutura do DNA, sendo até considerado que tinha uma “obsessão pela ciência” (op. cit., 2004). Para Dali existia, antes de tudo, metafísica, a qual se diversificava em ciência e em arte. Considerava que o único grande conhecedor de arte e metafísica era Leonardo Da Vinci e, tal como os artistas do Renascimento, aspirava associar arte e ciência. Assim, a sua obra reflete as principais teorias e descobertas científicas do século XX, indo os seus interesses desde a matemática, a física e a genética, até à psicologia e à psicanálise. A Psicologia, sobretudo na sua componente de Psicanálise, era uma das ciências em que Dali mais se apoiava, como revela o seu quadro “O enigma do desejo” (1929), em que repete a palavra “Ma mere” inúmeras vezes em espaços que representam a força do inconsciente. E a influência da psicanálise vai estar presente ao longo do percurso
d.r.
Obra “A persistência da memória” (1931), de Salvador Dali artístico de Dali, tendo inclusivamente feito o “Retrato de Freud” (1937). Um outro quadro que se destaca na sua obra foi realizado uns anos mais tarde, “Sonho causado pelo voo de uma abelha à volta de uma romã, um segundo antes de despertar” (1944), em que o cenário do sonho ocupa quase toda a tela, aparecendo a abelha à volta da romã apenas como um pormenor quase impercetível. Aliás, muitos dos trabalhos realizados no âmbito do surrealismo têm conteúdos oníricos na sua base. Dali coloca nas pinturas o inconsciente, o universo submergido revelado pelas teorias de Freud e os símbolos referidos por Freud na “Interpretação dos sonhos” (1900), livro considerado como a “bíblia” de Dali (Barnes, 2009). O próprio Dali referia: “Eu trabalho constantemente no momento de dormir. As minhas melhores ideias vêm dos meus sonhos e a atividade mais Dalineana produz-se enquanto durmo” (op. cit., 2004). A importância do dormir no processo criativo é também expressa na sua pintura “Sono” (1937). No âmbito das ditas “ciências
“LIFE IS A SECOND OF LOVE” 8 MAI | 21.30 | Centro Cultural de Lagos Concerto revelará Rita Redshoes num registo mais próximo e intimista do habitual, em que os novos temas conviverão com os menos recentes
exatas”, nos anos 30 Dali foi influenciado pelo Princípio da Incerteza de Eisenberg (1927), um enunciado da Mecânica Quântica, segundo o qual pode haver interferência sobre o objeto quando tentamos avaliá-lo. Neste sentido, o que se vê depende do próprio observador, pois o observador determina a própria realidade com a sua observação. Este pressuposto coincide com as conclusões também obtidas pelas investigações realizadas no âmbito da teoria da forma (Gestalt), tendo Dali destacado a importância deste aspeto em várias obras. Vejam-se os seus trabalhos “O enigma interminável» (1938) e “Rosto deitado» (1935), bem como “O rosto de Mae West” (1934-35). Nos anos 40, surge um interesse particular pela Física Nuclear, pelo que nos seus quadros os objetos decompõem-se em partículas que flutuam no espaço como átomos. É o caso das obras “A separação do átomo” (1947), “Equilibrio intra-atómico duma pluma de cisne” (1947), “Galáctea de esferas” (1952) e “Desintegração da persistência da memória” (1952/54). Em relação a este
último, Dali referiu que “após vinte anos de absoluta imobilidade, desintegraram-se agora os relógios moles dinamicamente” (Maddox, 1990). Este retomar de alguns temas trabalhados anteriormente, traduz um sentido evolutivo na forma de os abordar ao longo do seu percurso, indo integrando novas perspetivas e influências. Conforme referiu Dali: “A era atómica moderna é muito elegante. Não há nada tão alegre como a colisão e explosão dos conflitos intra-atómicos da Física Nuclear. A minha maior alegria é contemplar estes terríveis conflitos dos eletrões e dos átomos, todos saltando e bailando numa sensação eurítmica extraordinária” (op. cit., 2004). Em 1953, na revista “Nature” (vol.171, nº4356) é publicado o artigo “A estrutura molecular do ácido nucleico”, por Watson e Crick, os quais ganharam o Prémio Nobel, em 1962, pela descoberta da estrutura do ADN. Nesse período, Dali afirmou: “Hoje a única estrutura legítima é a estrutura molecular do ácido desoxirribonucleico” (op. cit., 2004). Inspirado nesta teoria
pintou, por exemplo, “Paisagem de borboletas (O Grande Masturbador numa paisagem surrealista com ADN)” (1957) e “Galacidalacidesoxyribonucleidoácido” (1963). Dali conheceu pessoalmente Watson em 1965, tal como havia conhecido Freud em 1938, ou Ilya Prigogine, Prémio Nobel da Química (1977). Isto porque Dali gostava de aprofundar as teorias propostas através do diálogo com os próprios autores das descobertas científicas. Nas matemáticas, conheceu René Thom, vencedor da Medalha Fields, com os seus trabalhos sobre a teoria das catástrofes, sendo considerado que as curvas das suas equações estão presentes no último quadro de Dali, “A cauda da andorinha” (1983). Também conheceu Thomas Banchoff, que trabalhava com princípios da matemática sobre objetos a quatro dimensões, sendo especializado em geometria diferencial, procurando desenvolver métodos gráficos em computador. O quadro “Em busca da quarta dimensão” (1979) traduz a influência deste cientista. Dali, que não acreditava na morte (“Não creio na minha própria morte. Não creio na morte em geral e em particular na morte de Dali”; op. cit., 2004), morreu em 1989, tendo na sua mesa de cabeceira livros dos cientistas Stephen Hawking, Matila Ghyka e Erwin Schrodinger, traduzindo a sua “intimidade” com a ciência até ao fim da sua vida. Nota: Este artigo integra o livro “Construção de um percurso multidisciplinar, integrativo e de síntese nas Artes Visuais”, de Saul Neves de Jesus (snjesus@ualg.pt), podendo ser adquirido na Fnac de Faro (Fórum Algarve). Todas as receitas obtidas com a venda deste livro revertem a favor da compra de uma mesa de gravura para o curso de Artes Visuais da Universidade do Algarve
“ALBUFEIRA, UMA COSTA DIVERSIFICADA” Até 30 MAI | Galeria de Arte Pintor Samora Barros – Albufeira Ricardo Belela mostra, através das suas fotografias, a magnífica costa do concelho de Albufeira, onde começam as praias rochosas e acabam os grandes areais do sotavento algarvio
Cultura.Sul
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Momento
Algarve Nature Week 2015 Foto de Ana Omelete
Espaço ALFA
Desporto e fotografia, ambos ligados por momentos decisivos
Mauro Rodrigues Membro da ALFA
Eu nunca fui de fazer fotografia de desporto, foram poucas as oportunidades que procurei, os meus interesses gravitam mais para os outros géneros, mas não quer dizer que não goste de a fazer. A fotografia de desporto requer teleobjetivas mais caras, no mínimo 300mm para cima, se quisermos fotografar com a proximidade que desejamos e a fotografia tem tudo a ver com proximidade. Ser criativo neste género pode ser um grande desafio, uma vez que poderemos estar limitados por diversos factores. Além da relação proximidade/distância, temos que lidar com a restrição do espaço em que nos podemos movimentar. Se estamos juntamente com o público, que vem em massa para estes eventos, a compactação é tal que se tor-
na difícil escolher os melhores sítios. Se estamos dentro do recinto das provas, os lugares destinados aos fotógrafos são igualmente pré-definidos e geralmente os ângulos não são os melhores e temos igualmente que competir o espaço com os outros fotógrafos. Em alguns casos, temos que lidar com os mesmos factores meteorológicos que os concorrentes, calor, frio, vento, chuva, poeira ou lama, está tudo lá para nos dificultar a nossa visão e, claro, testar ao limite os equipamentos fotográficos, por isso tomem algumas precauções nesse sentido, nomeadamente, sacos de proteção e panos para limpar as lentes. Mas em última instância, o resultado final vai depender imensamente destes dois fatores seguintes, a obrigação de leitura da antecipação da ação e a sorte, que dada à velocidade que os acontecimentos fluem, irá ser determinante. Para nós, a criatividade do ângulo, proximidade, antecipação e sorte, fazem a fotografia... a técnica, precisão e esforço extremo fazem o atleta! Tudo isto converge para um momento decisivo que geralmente não dura mais de um milésimo de segundo.
1ª Etapa da Taça de Portugal de Downhill - São Brás de Alportel - 2015
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Cultura.Sul
Sala de leitura
Coração acordeão: a poética de um fole vital
Paulo Pires
Programador cultural no Município de Silves esteoficiodepoeta@gmail.com
No princípio era o ar… Para Anaxímenes de Mileto, filósofo grego do séc.VI a.C., era essa a substância básica da existência, o princípio único criador, omnipresente e essencial ao crescimento de todas as coisas. O acordeão vive desse sopro vital, dos ditames de um fole (im)previsível que parece conter a vida toda lá dentro: sereno ou ofegante, relaxado ou contraído, sonoro ou (mais) silencioso – como o pulsar de um coração, que precisa desse “vento” que lhe insufla o fôlego primordial. A analogia não é inocente, bebida na feliz metáfora de Alexandre O’Neill presente no poema “Acordeão”, de 1946, o qual o poeta remata com o sincrético verso “coração acordeão”. É esse acordeão – que consegue afinar pelo diapasão do coração e sabe como tocar nas teclas mais sensíveis dessa misteriosa e palpitante “escala cromática” invisível aos olhos – que inebriou músicos como Édith Piaf ou Ja-
cques Brel, entre muitos outros. No tema “L’accordéon de la vie”, que Brel gravou em 1953 e estreou no Olympia de Paris em 1964 (valendo-lhe uma ovação em pé de três minutos), surge o irrepetível acordeão do velho músico, que faz o público sonhar, chorar, dançar, e que tem o condão de percorrer os quatro cantos da vida e do amor. E há mesmo um neologismo da lavra de Brel, quando, a certo passo, a letra nos relembra que a vida, para que a possamos perdoar, acordeona para nós. “L’accordéoniste”, um dos primeiros sucessos de Piaf (datado de 1940 e composto por Michel Emer), por seu lado, conta a história de uma prostituta que não conseguia ficar indiferente ao apelo magnético do pequeno rapaz alegre que tocava acordeão, cuja sonoridade emanada pelos seus dedos finos e longos de artista parecia penetrar-lhe a pele deixando-a num misto de tensão e euforia, emocionada, sem fôlego, em catarse purificadora, num tempo suspenso. Essa música (a “java”) acalentava-lhe na alma o sonho de uma vida a dois, livre e sem constrangimentos, depois da terrível guerra, num regresso que tragicamente não aconteceria… Cerram-se os olhos por momentos e a esperança, o desencanto, a ironia, a melancolia, a (violentíssima) ternura, a ale-
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gria ganham no acordeão uma dimensão singular de expressividade e densidade psicológicas através dessa fascinante mecânica, plena de essência e complexidade (feita de ar, fole, palhetas, caixas harmónicas de madeira e “corredores” ora abertos ora oclusos – como os labirintos da subjectividade humana), que ora alinha, ora solavanca/questiona e “desarruma” o corpo e o espírito. Nos anos 50 do século passado o reputado fotógrafo Robert Doisneau andou dias a fio pelas
ruas parisienses seguindo o chamamento voluptuoso de uma acordeonista e de uma cantora que espalhavam pela multidão o plangente lamento “Tu ne peux pas t’figurer comme je t’aime” (tema de Suzy Delair, com Paul Miskari). Impressionou-lhe o contraste de atitude entre as duas figuras e, sobretudo, o aparente desapego e indiferença com que a jovem instrumentista derramava a poderosa melodia, numa postura quase luxuriante, ociosa, levemente impiedosa, a
Se vires como se alonga em minhas mãos a música entendes o que eu digo acordeão da lua David Mourão-Ferreira qual lhe conferia um encanto bruxuleante capaz até de atear uma grande fogueira em plena Idade Média, como Doisneau escreveria. O magnetismo da presença, a força profunda e ardente (felina) do olhar e o desprendimento envolvente da acordeonista – e porque o impacto performativo de um instrumento é indissociável desse precioso diálogo corporal, técnico, cénico-visual e emocional com o mesmo – confluíam assim numa melopeia anestesiante que inundava ruas, bares e becos, hipnotizando a curiosa e atenta lente de Doisneau. Seria uma das suas fotografias mais icónicas, captada de 1953 em Paris. O imaginário colectivo e a tradição portugueses estão, aliás, repletos de indivíduos que, de acordeão ou concertina na mão, se tornaram numa espécie de deuses, de figuras míticas, que cativavam pelo sentido poético, estético, lírico das suas vivências. A imagem do acordeonista cego (alguém que tem os olhos na ponta dos dedos) tem, neste particular, uma especial ressonância na memória popular, pela sua presença assídua e emblemática em festas, feiras e mercados (e nas ruas) onde
tocava, cantava e/ou vendia folhetos de cordel, entusiasmando até muitos futuros praticantes para a fruição da música. Como se a cegueira lhe conferisse, pela sensibilidade e vivência inerentes, ainda mais verdade, ocultação (apelativa) e envolvência à sua música, fazendo-nos parar para ouvir/sentir o gemer, o grito do seu fole-salvação, a máquina de vento que carrega consigo e que parece falar como uma orquestra. Para os antigos os ventos simbolizavam transições do passado para o futuro. Em tempos mais recentes, muitos têm sido os novos fôlegos criativos na arte de reinventar o acordeão. Um exemplo marcante (entre outros possíveis): Yann Tiersen, na banda sonora d’O fabuloso destino de Amélie Poulain (2001), soube, como poucos, acordeonar a vida, neste caso uma história arrebatadora de nostalgia, solidão trágica, descoberta, reencontro, sonho, pequenos gestos e amor. No fundo, uma (intemporal) valsa do destino modulada por uma musicalidade rente à pele e ao coração, que nos guia pelas nossas mais insondáveis e cativantes ruas interiores… (a 6 de Maio assinala-se o Dia Mundial do Acordeão)
Um olhar sobre o património
Por um Museu participativo, participe você também!
Alexandre Ferreira
Licenciado em Património Cultural pela UAlg
No próximo dia 18 de maio irá celebrar-se o Dia Internacional dos Museus. Esta celebração proporciona, anualmente, uma oferta diversificada de actividades abertas à sociedade, subordinadas a um tema. O tema deste ano é “Museus para uma sociedade sustentável”, através do qual se pretende promover a reflexão sobre a actuação humana e as suas repercussões sobre o meio em que actua,
promovendo igualmente o debate sobre o papel dos museus no processo de transição para uma sociedade sustentável. Este último objectivo é bastante revelador e inquietante ao mesmo tempo. Revelador porque assume que, apesar de todos os avanços - tecnológicos e não só - ainda estamos longe de ser uma sociedade sustentável; e inquietante porque ainda assim, somos diariamente confrontados com situações que nos “esfregam na cara” que ainda estamos muito longe deste sonho. E atenção! Quando falamos em desenvolvimento sustentável não nos retiremos da equação, porque afinal de contas nós próprios sofremos as repercussões dos nossos gestos e atitudes. E o que tudo isto tem a ver com museus? Pode ter tudo a
ver ou então pode não ter nada a ver. Depende do museu e do que ele queira para si próprio. Longe vão os tempos em que os museus eram vistos como cápsulas do tempo, nas quais estavam encapsulados os objectos e artefactos que fizeram a nossa história. Repositório do passado, que se apresentava aborrecido e desprovido de interesse, ao longo dos últimos anos foi sendo reinterpretado, reanalisado e apresentado de diversas formas com o objectivo de cativar um maior número de visitantes. Nesta reinvenção do museu, enquanto espaço de lazer e conhecimento, o envolvimento da comunidade onde está inserido é de significativa importância. E este envolvimento tem que ser transversal a essa comunidade, ou seja, abrangen-
do todas as faixas etárias, desde os “pequenotes” até aos seus avós, com objectivos de actuação concretos para cada uma delas e acima de tudo correspondendo às suas necessidades concretas, que podem estar directa ou indirectamente ligadas à Museologia. Directa ou indirectamente porque o papel de um Museu deve, e à priori tem todas as condições para o fazer, desempenhar um papel activo na educação e transmissão do conhecimento sobre o qual ele trata, mas também deve promover uma participação activa na comunidade, despoletando a reflexão e o pensamento crítico e criativo, tendo por base o incentivar o adquirir consciência sobre o que fomos e o que somos com o intuito de promover
a reflexão sobre o que queremos ser. E desta forma o Museu, enquanto entidade viva da sociedade, deixa de ser algo do passado para se transformar numa entidade de futuro. Com uma visão aberta para o exterior, com um olhar escrutinador e uma postura interventiva acerca dos diversos fenómenos sociais, políticos e culturais, como não poderia deixar de ser, os níveis de envolvimento de, para e com a comunidade serão certamente diferentes. Como ficou provado com três casos recentes e sintomáticos deste tipo de envolvimento: nos EUA e na Austrália, no seguimento da morte de negros às mãos da polícia e do assassinato de três jovens muçulmanos (EUA) e no seguimento de um caso de sequestro por parte de um refugiado ira-
niano (Austrália), os profissionais dos museus chamaram a si um papel activo e interventivo na discussão das problemáticas associadas a estes eventos. Estas acções, só por si, fortalecem o sentimento de pertença para com o Museu e para com a comunidade, numa relação de dois sentidos, contribuindo então para que o nosso desenvolvimento se não sustentável, pelo menos que seja consciente. Aproveito ainda para desafiá-lo: dia 16 de maio celebra-se a Noite Europeia dos Museus e, durante a qual, os visitantes serão desafiados a descobrir estes espaços em horários menos convencionais. Mas não se assuste. Os museus não mordem! Aventure-se, parta à descoberta e se for caso disso, surpreenda-se!
Cultura.Sul
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O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N
Maio -se aos seus pares no fundo, num descanso. Até que as correntes das estações os repuxem mais para lá da sua vasa...
Cada dia é uma canção Pedro Jubilot
pedromalves2014@hotmail.com canalsonora.blogs.sapo.pt
Em terra de silêncio fotos: d.r.
Cada dia é uma canção que se junta a este álbum de litoral. Hoje de um instrumental feito de vento a bater nas portadas, a puxar nuvens para a faixa costeira e que sopram as notas molhadas sobre as pautas de areias, as terragens dos caminhos, e das flores do tempo que faz agora.
é título do livro de Diego Mesa (Ayamonte,1962), inspirado na «Viagem a Portugal» de José Saramago, que Cristina Felício apresentará na noite de sábado, 9 de maio, na Casa Álvaro de Campos em Tavira, pelas 21h45, e que contará com leituras de textos por alunos da escola secundária de Tavira e ainda com o fadista Tiago Nené.
Sessão da tarde
Já não sei bem onde (acho que foi num filme) recolhi esta citação do escritor norte-americano John Updike, mas captou-me pelo facto de se aplicar tão bem ao que eu penso e sinto apesar de continuar a amar o local onde em dias subia às açoteias e mirantes observando o horizonte das horas azuis sem fim. As ilhas eram mundos a conquistar em breve. Depois descia à rua e corria livremente…
Lugar de segredos
Sul, Sol e Sal
Em 1975, António de Macedo (escritor, cineasta e prof. universitário; Lisboa 1931), realizou o filme «O Princípio da Sabedoria», cujos exteriores foram rodados maioritariamente em Estoi, esse pedaço esquecido em terra de silêncio, junto ao palácio rococó que em 1909 o arquiteto Domingos da Silva Meira encheu de escultura e que há pouco voltou a ser resgatado ao abandono e destruição.
Um seixo
Durante este mês a Galeria Sul, Sol e Sal (r. vasco da gama, 18 - Olhão) estará no Real Marina Hotel & Spa (Olhão) a mostrar uma exposição colectiva - retrospectiva da sua atividade iniciada em dezembro último. Fotografias de António Jorge Nunes, Paulo Côrte Real e Jorge Jubilot; uma instalação de Joana Rocha e cerâmica de Lucia Minder
«Viagem ao Algarve»
Tardes de diversão e cultura com fados acontecem no Ginásio Clube de Faro (r. ivens, 12), numa organização da Associação de Fado do Algarve, que vem promovendo quinzenalmente aos domingos à tarde sessões de fado em que tomam parte associados que desejem cantar nesta tertúlia, evento que se inicia às 16h30 e pode ser visitado na página facebook da associação.
Crescer
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Um seixo saltita na água parada e salpica gotas com brilho. Tanta emoção, que se evapora, e mergulha enfim, juntando-
«Viagem ao Algarve» (los libros del estraperlo, 2014 – tradução de António Cabrita) “QUIM ROSCAS E ZECA ESTACIONÂNCIO” 30 MAI | 21.30 | Centro Cultural de Lagos João Rodrigues e Pedro Alves encontram-se no leque de humoristas mais populares em Portugal, celebrizados pelos personagens “Quim e Zé” do programa da RTP – Telerural
“Existe algo de opressivo nos locais onde crescemos. Gostámos de lá ter vivido e gostamos de lá voltar, mas viver ali seria muito estranho”.
Sento-me numa pedra junto ao canavial, e no silêncio possível por estes dias, consigo ouvir as passagens do vento. Contemplo a ribeira e a água em serena queda. Se um dia reparar ou souber que ela já não corre por entre as pedras far-te-ei saber que… me fui deste… outrora lugar de segredos a que chamam ‘Pego do Inferno’, estranho nome para um sítio que se faz valer de um elemento tão vital.
“CONCERTO DE RUI MASSENA” 8 MAI | 21.30 | Teatro das Figuras - Faro O maestro estreia-se nos palcos como compositor e pianista, acompanhado pelo violino de Gaspar Santos em dois temas
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Cultura.Sul
Espaço ao Património
Ficha Técnica:
Monchique, a Montanha Sagrada fotos: d.r.
dos tempos, os usos e costumes dos habitantes deste território. A Montanha Sagrada
Fábio Capela
Arqueólogo estagiário no Município de Monchique
No âmbito da minha atividade enquanto arqueólogo estagiário da Câmara Municipal de Monchique, participei num conjunto de iniciativas subordinadas à gestão do património concelhio, tendo em vista o estudo, a salvaguarda e a valorização do seu património cultural, bem como a sensibilização e a educação patrimonial da população monchiquense. Nesse sentido, partilho aqui alguns apontamentos sobre o potencial científico e as particularidades do património histórico-arqueológico existente no espaço concelhio de Monchique, assim como algumas reflexões sobre as atividades de índole cultural que tenho desenvolvido nesta maravilhosa e peculiar região serrana. Breve contextualização da Serra de Monchique O território concelhio de Monchique situa-se em pleno coração do barlavento algarvio, estando implantado numa área que apresenta uma interessante mistura de características mediterrânicas e atlânticas. A Serra de Monchique constitui uma incontornável referência na paisagem, tanto para as comunidades que habitaram o atual sul de Portugal, como para os navegadores que navegaram pelas águas que rodeiam o extremo sudoeste do velho continente. Ademais, integra uma linha de fronteira natural entre o atual Algarve e o Alentejo, “funcionando”, desde tempos antigos, como uma importante zona de passagem, grosso modo, entre o litoral e o interior. Além de ser uma serra imponente – a mais alta do sul de Portugal –, detentora de boas condições naturais de defesa e de locais propícios para o controlo dos territórios envolventes, também possui uma assinalável abundância de água e uma variada fauna e flora. Assume-se, também, como um território de fortes tradições místicas, especialmente religiosas. Existem diferenças notáveis entre o concelho de Monchique e os concelhos circundantes, as quais influenciaram, ao longo
Desde tempos remotos que a Serra de Monchique atraiu diferentes povos, em muito devido à copiosidade dos seus recursos naturais, com especial destaque para a qualidade das águas que brotam do seu subsolo. Prova disso, é o fato de ter existido um modesto balneário termal romano nas pitorescas Caldas de Monchique. Embora tenham promovido a sua monumentalização, os romanos não foram os primeiros a frequentar este emblemático local, visto que subsistem, na sua envolvência, várias necrópoles e sepulturas atribuídas, especialmente, aos períodos Neolítico e Idade do Bronze. Importa salientar que o testemunho mais antigo que se refere diretamente às águas da Serra de Monchique provém de uma inscrição epigráfica consagrada às “Águas Sagradas”, patente numa ara romana que foi encontrada no local onde, outrora, existiu o balneário termal romano. Um pouco por todo o espaço concelhio subsistem vestígios patrimoniais do passado, o que indica que este território não passou despercebido às várias comunidades e aos distintos momentos civilizacionais que se sucederam ao longo de milénios no sudoeste peninsular. Através da análise de fontes escritas sabemos que, durante a ocupação islâmica da Península Ibérica, a Serra de Monchique era denominada por Munt Sãqir – cuja tradução significa “Montanha Sagrada”. Embora não se conheçam referências diretas à denominação romana desta serra, existem indícios de que seria designada por Mons Sacer, portanto a “Montanha Sagrada”.
Inscrição epigráfica consagrada às ‘Águas Sagradas’ da ‘Montanha Sagrada’ Gestão e educação patrimonial, arqueologia e turismo cultural A “idade de ouro” da arqueologia no espaço concelhio de Monchique circunscreve-se à década de 1940. Ao longo dessa incontornável década foram identificados diversos sítios arqueológicos, especialmente monumentos sepulcrais, tendo sido realizadas as primeiras escavações arqueológicas nesta serra. A partir da década seguinte constatou-se uma assinalável escassez de investigações arqueológicas sistemáticas neste espaço concelhio. Todavia, ao longo dos últimos anos essa tendência
tem vindo a ser alterada, tendo-se assistido a alguns passos no sentido da identificação, estudo, proteção e valorização do património cultural concelhio, bem como para a sensibilização e educação patrimonial da população monchiquense. Conquanto constituam pequenos passos são, porém, fundamentais para a abertura de novos e prósperos horizontes, tendo em vista a valorização do património concelhio e, concomitantemente, o desenvolvimento do turismo cultural e o retorno socioeconómico para a população monchiquense – os principais interessados na sua história e herança cultural.
Cerro do Castelo de Alferce. Acção de sensibilização e educação patrimonial
Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural A partir do ano transato sucederam-se várias iniciativas direcionadas para a educação e sensibilização patrimonial da população monchiquense. A título de exemplo, salienta-se a realização de várias palestras no âmbito do Ciclo de Conferências “História, Memória e Património do Concelho de Monchique”, a execução de visitas guiadas ao património histórico-arqueológico concelhio e a concretização de exposições relacionadas com o património cultural concelhio. O principal intuito dessas iniciativas relacionou-se com a aproximação entre o conhecimento científico e a população local, sublinhando-se a crescente adesão e envolvimento da comunidade concelhia – especialmente escolar e sénior. Nos últimos anos verificou-se o desenvolvimento do turismo cultural e do turismo de natureza no Algarve, como novas “ferramentas” de atração turística para “combater” o velho paradigma do turismo de praia. No entanto, para valorizar um território é fundamental identificar e entender as suas realidades e as suas particularidades, respeitando-o e “explorando” de um modo não destrutivo as suas potencialidades. Com efeito, é desejável a convivência entre o património e o turismo, através de uma estratégia centrada na sustentabilidade. Para tal, é necessário continuar a fomentar a aproximação entre a comunidade científica e a população local, o diálogo entre os órgãos de várias tutelas e das universidades e os órgãos de poder local, honrar e incentivar as atividades tradicionais desta região serrana, envolver a comunidade local e a população em geral. Ainda há um longo caminho a percorrer no que respeita ao conhecimento e à valorização do património cultural da “Montanha Sagrada”, tendo em vista a sustentável “exploração” socioeconómica dos seus recursos patrimoniais. Entre as várias carências, destaca-se a inexistência de uma Carta do Património Cultural concelhio e de um Museu de âmbito municipal. Na incontornável obra intitulada Estudos Arqueológicos nas Caldas de Monchique, é referido que “(…) toda a região serrana do Algarve é copioso filão a explorar cientificamente”, afirmação que continua atual volvidos mais de sessenta anos, particularmente no respeitante ao património histórico-arqueológico do concelho de Monchique.
Editor: Ricardo Claro Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Espaço Cultura: Direcção Regional de Cultura do Algarve • Da minha biblioteca: Adriana Nogueira • Grande ecrã: Cineclube de Faro Cineclube de Tavira • Juventude, artes e ideias: Jady Batista • Letras e literatura: Paulo Serra • Momento: Ana Omelete • O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N: Pedro Jubilot • Panorâmica: Ricardo Claro • Património: Isabel Soares • Sala de leitura: Paulo Pires • Um olhar sobre o património: Alexandre Ferreira Colaboradores desta edição: António Pina Fábio Capela Pedro Pires Mauro Rodrigues Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve, FNAC Forum Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com on-line em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve
facebook: Cultura.Sul Tiragem: 7.869 exemplares
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Cultura.Sul
Da minha biblioteca
Uma Viagem ao Algarve a duas vozes d.r.
Adriana Nogueira
Classicista Professora da Univ. do Algarve adriana.nogueira.cultura.sul@gmail.com
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Depois de ler o livro de Diego Mesa, vêm à memória desta cronista uns versos de Camões: «Transforma-se o amador na cousa amada/ por virtude do muito imaginar». Ao ler o livro de José Saramago, Viagem a Portugal (1981), o mesmo terá acontecido a Diego Mesa, escritor natural de Ayamonte e grande apaixonado pelo nosso país, que mantém um blogue intitulado http://aulajosesaramago. wordpress.com, onde divulga o trabalho que se vai fazendo em prol da disseminação da obra do Nobel da Literatura português, que o inspirou a refazer os seus passos. Escrito na terceira pessoa, Saramago designa a personagem que percorre o país de lés a lés como «o viajante». E este viajante vai ser, para Diego Mesa, «o outro viajante», já que, assumindo uma personagem equivalente, adota um estilo e retórica reconhecíveis para o leitor. Tomando como ponto de partida o último capítulo, «De Algarve e sol, pão seco e pão mole», que ocupa 18 páginas na edição da Viagem a Portugal, do Círculo de Leitores, e fazendo dele o seu guia de viagem, um novo viajante percorre esta terra, de uma ponta a outra, de carro e de comboio, revisitando os lugares ali mencionados. Naturalmente que, passados mais de 30 anos desde a 1ª edição daquela obra, muitas coisas se alteraram e é bom saber que, na sua maioria, para melhor. Os passos citados de José Saramago aparecem em itálico no texto de Diego Mesa, que muito bem os enquadra. Não se pense, porém, que este novo viajante apenas repete o
que o outro visitou. É verdade que o usa como guia, mas também faz dele a sua inspiração para novos percursos, como a visita mais demorada a Portimão ou a viagem de comboio entre Vila Real de Santo António e Lagos. Além disso, a Viagem ao Algarve tem algumas breves (e úteis) notas de rodapé e, no final, uma boa bibliografia que poderá ajudar o leitor interessado em aprofundar mais o assunto. Para que fique perfeito, só fal-
obras ainda não teriam começado. E, sim, havia, nessa época, um espaço para o gado, o qual ainda hoje pode ser percebido, numa zona deixada empedrada. A inauguração oficial deste restauro aconteceu apenas em 2003. Uma visita a Portimão
Diego Mesa, escritor natural de Ayamonte
ta que a próxima edição tenha uma boa revisão de texto. Precisando de selecionar alguns excertos para aqui constarem, deixou-se esta cronista levar pelo seu interesse especial por ruínas e museus, apresentando dois apontamentos sobre estes tipos de espaços. As ruínas romanas de Milreu Sobre Estoi, diz Saramago (que ali terá estado, provavel-
mente, entre 1979 e 1981, datas em que viajou para escrever o livro): «As ruínas da vila romana de Milreu […] estão sujas e abandonadas. Contudo, pelo que ainda conserva, é das mais completas que se encontram no País. O viajante percorreu-as sob um sol de justiça, viu conforme soube, mas sente a falta de alguém que identifique os lugares, as dependências, alguém que ensine a olhar. Mas aquilo que teve mais dificuldade em entender foi uma casa arruinada que está no plano mais alto: lá dentro há man-
“ALGARVE EM PRETO E BRANCO” Até 30 MAI | Posto Municipal de Exposições de Lagos Exposição de Alexandre Manuel. A sua paixão é fotografar paisagens da região costeira algarvia, onde grava as maravilhas naturais em constante movimento.
jedouras baixas, e estas cortes de gado dão diretamente para habitações que seriam de gente. Por onde entrava o gado? […]». Já Diego Mesa viu, felizmente, uma outra realidade: «hoje em dia o recinto está devidamente cercado e na entrada foi construído um edifício que serve de receção ao visitante, simples e funcional, com painéis que explicam a história das ruínas. Tem a sorte de vir acompanhado por dois amigos arqueólogos que lhe identificam os lugares, as dependências, que o ensinam a olhar o que a vista alcança, ao contrário do outro viajante […]. Da casa arruinada de que faz menção o outro viajante também não há rasto […], a não ser que se trate do edifício novo que se situa no nível mais alto mas que está fechado, pelo que este viajante não pode ver o que o outro viajante viu e muito menos responder às suas
dúvidas. Pelo menos hoje. Porque amanhã saberá que em meados do século XV ou inícios do XVI, sobre as velhas e abandonadas ruínas romanas, foi construída uma casa, hoje restaurada por ser um ‘único e precioso exemplo algarvio de arquitectura civil com contrafortes cilíndricos’». De facto, Milreu está uma obra condigna: quem agora visitar o sítio tem à sua disposição painéis explicativos sobre os diversos espaços que se podem ver ao ar livre e no interior da Casa Rural. E, para poder também acrescentar alguma coisa, esta cronista pediu ao arqueólogo João Bernardes, docente da Universidade do Algarve, que lhe esclarecesse algumas dúvidas, ao que ele gentilmente acedeu, explicando que a casa esteve habitada até meados do século XX. O Estado, entretanto, comprou o espaço e, quando Saramago terá visitado o local, as
José Saramago pouco diz sobre Portimão, tendo-lhe dedicado apenas um parágrafo com 19 linhas. Como o «viajante foi à igreja matriz e achou-a fechada», fica-se pelo «melhor dela [que] está à vista de toda a gente, e é o pórtico» e parte para Lagos. O viajante espanhol tem mais sorte e encontra a igreja aberta, mas como está a ser celebrada missa e «está cheia a igreja, a abarrotar», vê, igualmente, apenas o exterior. No entanto, não se vai logo embora e nessa noite fica alojado na cidade. Mais uma vez se considera com sorte, porque, da cafetaria do hotel, abrigado do temporal que entretanto se fazia sentir, pôde apreciar o «espetáculo da chuva golpeando com força os vidros» e os «raios que iluminavam o céu de Portimão com a sua luz muito intensa». No dia seguinte foi visitar «o museu que está implantado numa antiga fábrica de conservas, no porto […]. Aplaude, este viajante, o sentimento, a sensibilidade demonstrada na recuperação do material que conformava a vida dentro da fábrica, e menos o cheiro característico da mesma, quase não lhe falta nenhum detalhe». Este livrinho tem o tamanho ideal para servir de guia de bolso e um conteúdo que nos deleita: ficamos com vontade de sair de casa e de visitar estes lugares que nos são apresentados com muito carinho por Diego Mesa, cujo modo como relata a simpatia das pessoas que com ele se cruzam, a simplicidade com que pequenas contrariedades são resolvidas, os pormenores artísticos que aprecia, diz muito do seu amor por estas terras e estas gentes. E esta cronista termina, fazendo coro com Saramago: «É preciso recomeçar a viagem. Sempre».
“LACUNAS” Até 12 JUN | Museu Municipal de Loulé As peças de Ricardo Lopes nascem da vontade de explorar a relação entre as formas, os seus significados e os espaços que ocupam em todas as dimensões físicas e metafísicas da nossa existência
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