CULTURA.SUL 82 - 3 JUL 2015

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Rota Omíada, a herança do al-Andalus

Espaço AGECAL: d.r.

p. 2

Festa da Pinha p. 3

Espaço ALFA: d.r.

Fotografar o Verão

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Sala de leitura: d.r.

O que eu (não) sei de livros

p. 8

Um olhar sobre o património:

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JULHO 2015 n.º 82

Escolas: Pontes para o acesso à cultura p. 10

Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o PÚBLICO 8.431 EXEMPLARES

www.issuu.com/postaldoalgarve

Festivais de Verão: Um roteiro pelos palcos da música p. 5


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03.07.2015

Cultura.Sul

Editorial

Missão Cultura

Teatro das Figuras

A Rota Omíada no Algarve: Projeto ENPI “UMAYYAD” foto: drcalg

Ricardo Claro

Editor ricardoc.postal@gmail.com

AGENDAR

O Teatro das Figuras cumpriu dez anos de função, quer como sala maior da cidade de Faro, quer como palco de referência da região. Uma década de serviço de uma sala de espectáculos que, advogam alguns, devia ser mais polivalente em termos de lugares disponiveís, uma vez que, a dimensão da plateia, dizem, é muitas vezes excessiva. As plateias não são excessivas por definição, são-no por falta de qualidade dos espectáculos, umas vezes, ou por falta de atractividade dos mesmos junto do público, outras tantas. Depois de um par de anos em que efectivamente o que teve para oferecer - em tempos magros do ponto de vista financeiro - foi muito pouco e de pouca atractividade e em que a lógica escolhida para a programação não vingou em termos de audiências, o Teatro das Figuras dá agora sinais de renascimento. Há uma lógica de programação que, feita por quem sabe e pensada para a transversalidade na abragência de públicos, devolveu à sala o movimento e as pessoas. Regressa-se assim ao que uma sala de referência deve ser, um palco de todos e para todos, do erudito ao mais popular, do clássico ao contemporâneo e aos desafios da modernidade. Uma década depois, a cidade está diferente e o seu teatro municipal também. Sem competir directamente com o Lethes, as duas salas completam-se, numa cidade e região que já deram provas de as poder preencher. Nos palcos da fantasia e do sonho, da arte e da temeridade dos actores, cantores, bailarinos, e performers valentes, há hoje um nome cada vez mais incontornável. Teatro das Figuras.

Direção Regional de Cultura do Algarve

Esta rota é um itinerário turístico-cultural que pretende dar a conhecer a profunda relação humana, cultural, artística e científica que se estabeleceu entre o Oriente e o Ocidente, assim como a transmissão do legado grego latino à Europa através de al-Andalus. O Algarve é o território português com um passado muçulmano mais prolongado, sendo o topónimo Algarve procedente do termo árabe al-Gharb (o Ocidente) um caso em que a etimologia das palavras nos fala sobre o passado de uma região. O limite geográfico do moderno território algarvio corresponde ao espaço que pertenceu à antiga diocese provincial visigótica e, sequentemente à küra (província) islâmica de Ossónoba, cuja capital era, inicialmente em Santa Maria do Ocidente (Faro) e acabou, a partir do Califado Omíada, sendo substituída enquanto capital pela medina de Xilb (Silves). A diocese visigótica de Ossónoba foi conquistada em 713,

O Castelo de Aljezur é um dos monumentos que integra a Rota Omíada para o Califado Omíada de Damasco, pelas tropas de Abd al-Aziz, filho de Musa, governador da Ifriqiya, atual Tunísia. A Rota dos Omíadas no Algarve faz parte do projeto internacional “Umayyad”, um projeto financiado pelo programa European Neighbourhood and Partnership Instrument (ENPI) dentro da convocatória Cross Border Cooperation. É liderado pela Fundação Pública Andaluza El Legado Andalusí e tem como parceiros, em Por-

tugal, a Direção Regional de Cultura do Algarve e o Turismo do Algarve. São parceiros do projeto sete países da bacia do Mediterrâneo: Portugal, Espanha, Itália, Tunísia, Egito, Líbano, e Jordânia. O objectivo do projeto é criar um grande itinerário turístico transnacional (Rota dos Omíadas/Umayyad Route) subdividido em rotas nacionais em cada um dos países sócios. O conjunto dos itinerários

tem como denominador comum o rico património legado pela dinastia Omíada, no seu período de expansão ao longo do Mediterrâneo. O plano de atuação do projeto “Umayyad” prevê a realização de ações coordenadas, em cada um dos sete países membros, que terão como finalidade oferecer aos futuros turistas uma oferta de qualidade baseada num património comum. Diferentes iniciativas relacionadas com a rota serão

desenvolvidas, como a participação de operadores turísticos locais e atividade de difusão e promoção, assim como a associação de outros atores no campo das atividades turísticas e culturais. Todas as atuações enquadradas pelo projecto pretendem criar uma maior coesão territorial através de um itinerário turístico-cultural sustentado e responsável que optimize a acessibilidade e as relações entre os países da bacia mediterrânica.

mes e está a ser filmado na Culatra, Hangares e Farol, com o apoio da Câmara Municipal de Olhão. A produção envolve para além de atores reconhecidos nacionalmente, como João Tempera e Duarte Gomes, atores da nossa região como João Evaristo e Tânia Silva e gente da terra que abraça assim este projeto, como são o caso de José Sabino e José Lézinho.

Segundo o produtor e realizador Miguel Munhá, esta é uma homenagem às ilhas da Ria Formosa, à cultura de toda essa peculiar região. Dentro desse contexto, dois irmãos (Marinho - o mais velho; Janeca - o mais novo) lutam por sonhos diferentes. Essa diferença de perspetivas irá fazer com que se comecem a criar conflitos na sua relação. Dividido entre o irmão e a ilha, Marinho sente

que tem de proteger a família e a tradição. Dividido entre a família e o seu futuro, Janeca sente precisar de fugir. “Hei-de morrer onde nasci” é uma história sobre relações familiares, tradições, as ilhas algarvias, e é também a tentativa de reflexão sobre o que é a alma de um determinado lugar - neste caso, a casa de Marinho e Janeca (que é uma mistura ficcionada das ilhas Culatra, Hangares e Farol).

Juventude, artes e ideias

Iniciativa Jady Batista

Coordenadora Jornal J

A Ria Formosa volta a ser cenário para a produção cinematográfica. Este é o reconhecimento das característi-

cas ideais que a nossa região possui, quer a nível das paisagens magníficas, quer das boas acessibilidades, condições climatéricas e a forma afável como a população recebe as equipas. Em contrapartida, estas iniciativas são uma excelente forma de promover a nossa região, dentro e fora do país. "Hei-de morrer onde nasci", de Miguel Munhá, é uma produção da Vagalume Fil-

“PORTUGAL, PAÍS DAS MARAVILHAS” 14 e 15 JUL | 21.30 | Centro Cultural de Lagos O Boa Esperança, apesar da crise já há algum tempo instalada e de tantas outras contrariedades, promete não poupar nas gargalhadas na sua Revista à Portuguesa

“NOVOS MUNDOS” Até 19 de Julho | Museu de Portimão Timo Dillner nasceu em Wismar na Alemanha em 1966, vive em Bensafrim, Lagos, há 16 anos. É um artista multifacetado que apresenta p������������� inturas, poemas, obras gráficas, esculturas e vídeo


Cultura.Sul

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Grande ecrã Cineclube de Faro

Programação: cineclubefaro.blogspot.pt Q - ESPAÇO CULTURAL (Jardins do antigo Magistério Primário) | 21.30 HORAS (* sessões gratuitas)

5 JUL* | LUZES DA CIDADE, C. Chaplin, EUA, 1931, 87’ 9 JUL | O PEDIDO DE EMPREGO, Pedro Caldas, Port, 7’ | DOIS DIAS, UMA NOITE, Jean-Pierre e Luc Dardenne, Bélg, 2014, 95’ 12 JUL | CORRENTE, Rodrigo Areias, Portugal, 15’ | A TERRA TREME, Luchino Visconti, Itá, 1948, 160’

16 JUL | CORO DOS AMANTES, Tiago Guedes, Port, 22’ | O PAÍS DAS MARAVILHAS, Alice Rohrwacher, Itá/Suí/Alem, 2014, 111' 19 JUL | LUMINITA, André Marques Port, 20’ | LEVIATÃ, Andrey Zvyagintsev, Fed Rus, 2014, 140’ 23 JUL | FUERA DE CUADRO, Márcio Laranjeira, Port/ Arge, 9’ | MR. TURNER, Mike Leigh, RU, 2014, 150’

Cinema no Convento do Carmo Já chegámos à 15ª edição da Mostra de Cinema Europeu de Tavira, um evento que conheceu a luz nos mágicos Claustros do Convento da Graça no ano 2000. A seguir será a vez da sua parente: a 10ª Mostra de Cinema Não-Europeu. O que desde o início pretendemos com estas festas de cinema é oferecer-vos um programa cuidadosamente composto por histórias sensíveis, de alta qualidade artística e estética, contadas através de imagem e som. No entanto, e infelizmente, a digitalização dos filmes disponíveis na rede de distribuição nacional (e no resto do mundo), a nossa incapacidade financeira e a total falta de apoios existentes para adquirirmos um sistema de projecção DCP (Digital Cinema Package), pela primeira vez limitou a nossa escolha. Em 2013 conseguimos exibir 13 dos 22 filmes no formato 35mm (celuloid), no ano passado apenas foram cinco, este ano nem um único...

fotos: d.r.

Cineclube de Tavira

Programação: www.cineclubetavira.com 281 971 546 | cinetavira@gmail.com 14ª MOSTRA DE CINEMA EUROPEU - AR LIVRE | CLAUSTROS DO CONVENTO DO CARMO – 21.30 HORAS 17 JUL | PRIDE (ORGULHO), Matthew Warchus, Reino Unido 2014 (120’) M/12

Imagem do filme 'Alentejo, Alentejo', de Sérgio Tréfaut, que integra a mostra tavirense de cinema Mesmo assim, e remando plenamente com os remos ao nosso alcance, eis a nossa proposta de curtas e longas delícias para este Verão, algumas exibidas pela primeira vez em solo português. Convidamo-vos a

juntarem-se a nós, diariamente, a partir das 20.30 horas, nestes belos Claustros do Convento do Carmo. Espero que tanto a nossa selecção como o ambiente criado mais uma vez vos agrade! Cineclube de Tavira

18 JUL | THE IMITATION GAME (O JOGO DA IMITAÇÃO), Morten Tyldum – Reino Unido/E.U.A. 2014 (114’) M/12 19 JUL | DEUX JOURS, UNE NUIT (DOIS DIAS, UMA NOITE), Jean-Pierre e Luc Dardenne – Bélgica/França/Itália 2012 (95’) M/12 23 JUL | ALENTEJO, ALENTEJO, Sérgio Tréfaut – Portugal 2014 (98’) M/12 24 JUL | IDA, Pawel Pawlikovski – Polónia/Dinamarca 2013 (82’) M/14

Espaço AGECAL

A Cultura no Algarve: Tradição e a Festa da Pinha d.r.

Marco Taveira

Licenciado em Património Cultural pela Universidade do Algarve Convidado da AGECAL

As tradições, segundo Joaquim Pais de Brito, são “coisas que antes de o ser já o eram”. As tradições admitem um momento em que certo grupo lhes dá nome apontando práticas, maneiras de fazer ou dizer, refazerem e serem pertença do grupo. Os costumes e que ainda hoje se praticam para manter a incorporação do passado, ligam-se ao presente através das ritualizações de práticas, como é referido por Joaquim Pais de Brito, “devem ter lugar como processo formal e meio de legitimar ou dar pleno sentido a determinado contexto da vida dos indivíduos ou do grupo”. Há tradições que se encaminham para a marcação de determinadas datas do calendário repetidas em cada ciclo. As festividades populares têm a sua origem nos velhos cultos naturalísticos, em que estas festas são atribuídas

aos ciclos astrais e das estações, aos efeitos na natureza que sensibilizaram os criadores. Algumas celebrações, como por exemplo a Festa da Pinha, fazem parte dessas festividades cíclicas que englobam um conjunto de acontecimentos evocativos que se organizam

e repetem anualmente. Aos diferentes ciclos correspondem diferentes rituais e significados, que dão origem a festividades profanas e religiosas. Nos dias de celebração integram-se comportamentos que durante o ano não se manifestam. É durante o tempo festivo que o homem sai da rotina

habitual para entrar num tempo que parece não ter fim. Com o passar dos tempos, algumas das celebrações foram sendo utilizadas de modo abusivo, até se perder a consciência do seu significado original, apenas perduraram como provas de empenho na tradição ou com fi-

nalidades comerciais. A tradição da Festa da Pinha celebrada em Maio corresponde ao ciclo da Primavera. As celebrações, festejadas nessa altura, possuem importante significado sociológico, de reafirmação das sociabilidades e vivências comunitárias. A secular Festa da Pinha de Estoi assinala o regresso dos “almocreves” das viagens pelo interior do País, para onde levaram os produtos algarvios, venderam ou trocaram. Os almocreves são agentes de comunicação entre as comunidades e cruciais para o abastecimento de bens às vilas e cidades, em que os próprios transportam figo, alfarroba, amêndoa, peixe que era transportado do Algarve para o Alentejo, e também existem produtos que vinham do Alentejo para o Algarve, trigo, e cortiça. No final da tarde de 2 de Maio transportam o alecrim e a pinha, oferecendo produtos à Sr.ª de Ao Pé da Cruz, recebidos com os archotes na noite. O aspecto central comum aos diferentes rituais aliados a este ciclo é o peso que neles acolhe o conjunto de práticas relacionadas com o elemento vegetal e a floração. Actualmente, a Festa da Pinha continua a mobilizar o povo estoiense. Vai ganhando dimensão, sendo uma das festas mais carismáticas de toda a região do Algarve.


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Cultura.Sul

Letras e Leituras

Os Interessantes – O romance de uma geração

Paulo Serra

Investigador da UAlg associado ao CLEPUL

Meg Wolitzer nasceu em Nova Iorque, em 1959, onde vive atualmente. Estudou Escrita Criativa no Smith College e é licenciada pela Brown University. É autora de 30 romances, dois deles já adaptados ao cinema, estando mais dois, segundo parece, em fase de pré-produção para a sua adaptação. Destes últimos Os Interessantes é o seu mais recente romance. Os Interessantes, o seu décimo romance, foi publicado em 2014 pela Teorema, considerado o «Melhor Livro do Ano» pelo The New York Times. Juntamente com A Mulher, o outro também em fase de pré-produção, são as duas únicas obras da autora publicadas em Portugal. Os seus romances inserem-se normalmente numa linha feminista, a excepção é Os Interessantes, um romance de formação de identidade que representa o retrato de uma geração. Numa noite de verão de 1974, seis adolescentes conhecem-se num campo de férias, o «Spirit-in-the-Woods». Cathy, Jonah, Goodman, Ethan e Ash - três rapazes e duas raparigas -, todos de Manhattan, aos quais se irá juntar, como que por acidente, Julie: «Numa noite amena no início de julho daquele ano há tanto evaporado, os Interessantes reuniram-se pela primeira vez. Só tinham 15, 16 anos, e começaram a utilizar esse nome com uma ironia titubeante. Julie Jacobson, uma intrusa que até podia ser excêntrica, fora convidada por motivos inexplicáveis e agora encontrava-se sentada a um canto do chão por varrer, tentando posicionar-se de forma a não incomodar e ao mesmo tempo não parecer patética, o que era um equilíbrio difícil de conseguir.» (p. 11). Estes jovens são filhos da revolução sexual marcada pela depressão consequente do arrastamento da guerra do Vietname e, como é habitual a Meg Wolitzer, o romance centra-se na perspectiva de Julie, uma protagonista feminina, como o parágrafo inicial demonstra, mas somente para através dela se retratar toda

uma geração que atravessa as questões políticas da época, em que no «final desse Verão, Nixon haveria de abandonar o cargo, deixando um rasto viscoso de lema atrás de si» (p. 14), passando pelo grassar da epidemia da SIDA, até chegar ao terror do 11 de Setembro e à recessão económica. Na sua condição de “estrangeira” àquele modo de vida de um grupo de jovens privilegiados da “cidade”, e que por isso mesmo podem considerar as artes como área para as suas aspirações profissionais, Julie demarca-se por vários aspectos: mora nos subúrbios, em Underhill, numa casa igual a tantas outras da classe média-baixa americana, o que a constrange de a convidar algum dos novos amigos; o pai falecera meses antes vítima de cancro; filha de uma mulher recém-viúva, sem ambições além das de criar as filhas. Julie ingressa no campo de férias graças à sugestão da sua professora de inglês, que sabe haver uma vaga e ser possível aceitá-la como bolseira, até porque ninguém da sua vizinhança ia para campos daquele género, não só porque não tinham dinheiro, mas porque isso nem sequer lhes teria ocorrido: «Todos ficavam na terra e iam ao despojado centro de ocupação de tempos livres, passavam os dias longos com os corpos oleados na piscina municipal, empregavam-se na geladaria Carvel ou preguiçavam nas casas húmidas» (p. 16).

fotos: d.r.

Meg Wolitzer é autora de 30 romances Em contraste, ali todos os jovens aspiram a grandes feitos e trabalham já no sentido de os alcançar: «Aqueles adolescentes à sua volta, todos eles da cidade de Nova Iorque, eram como realeza e estrelas do cinema francês, com um toque de qualquer coisa papal. (...) Em suma, naquele verão de 1974, quando ela ou qualquer um deles se distraía da concentração profunda e apática das suas peças de um só ato, acetatos para animação, sequências de dança e guitarras acústicas, acabava a fitar uma porta aberta para um futuro horrível, pelo que a regra consistia em desviar apressadamente o olhar» (p. 13). O romance serve assim tam-

bém uma intenção crítica, por vezes satírica, de modo a descrever a actualidade americana. Curiosamente, a própria personagem não é muito simpática no início do romance, dada a inveja que sente em relação ao novo círculo de amigos, que inesperadamente a irá acompanhar ao longo do resto da sua vida, e a sua ânsia em querer enquadrar-se, pois continua sempre insegura e a achar que a qualquer momento Ash Wolf se aperceba de que foi um erro a terem convidado a juntar-se àquele grupo. Julie passa entretanto a ser Jules, conforme os colegas a apelidam, o que no fundo está associado a um reconhecimen-

'Os Interessantes' foi considerado o Melhor livro do Ano pelo The New York Times

to daqueles que ela olha como superiores de como ela própria é um adulto em potência e já não uma criança. É sintomático que seja nesse mesmo verão que Jules tenha descoberto a ironia: «A ironia era uma novidade para si e sabia-lhe inesperadamente bem, como uma fruta de verão até então indisponível. Em breve, ela e os outros seriam irónicos durante grande parte do tempo, incapazes de responderem a uma pergunta inocente sem carregarem as palavras com um pequeno ajuste mordaz.» (p. 12). E um dos recursos de Jules para melhor assegurar a sua inserção será justamente um certo humor auto-depreciativo, tornando-se sarcástica em relação a si própria, ao mesmo tempo que começa a acalentar a esperança de se tornar uma actriz de comédia, dado o sucesso que obtém na peça representada no Spirit-in-the-Woods. Ethan Figman, um rapaz feio, mas cuja confiança o torna atraente, eternamente apaixonado por Jules, e um génio da animação, envolvido na história que ele próprio criou sobre um rapaz que entra num mundo paralelo a partir de uma caixa de sapatos debaixo da sua cama; Cathy Kiplinger, uma jovem dançarina que se encontra em luta contra o tempo e contra as transformações que daí advêm sobre o seu corpo, em crescimento nas partes erradas; Jonah Bay, filho de uma famosa cantora folk, o

jovem belo que se revelará homossexual mais tarde, ele próprio dotado para a música, mas cujo talento lhe foi roubado; Ash Wolf, uma bela jovem de boas famílias, que se tornará a melhor amiga de Jules, e o seu irmão, Goodman Wolf, que não parece ter nenhum talento óbvio além do seu carisma e poder de atração irrefutável. Décadas mais tarde, a amizade entre eles mantém-se, embora tudo o resto tenha mudado. Jules resigna-se a ser terapeuta e casa com Dennis Boyd, um simples técnico de radiologia mas um homem sólido que lhe transmite segurança e com quem descobriu o amor que nunca conseguiu dedicar a Ethan; Goodman foge do país devido a ser suspeita de um crime que ameaça o seu futuro e coloca em perigo a relação de amizade entre todo o grupo; Cathy abandona a dança e o grupo, e torna-se uma empresária; Jonah dedica-se à engenharia mecânica; Ethan é o criador de uma série de televisão de sucesso e Ash, a sua esposa, é uma encenadora aclamada. Este é um romance intenso e envolvente sobre o crescimento pessoal, a formação da identidade, a aceitação de quem somos afinal, marcado pela nostalgia e pelo sentimento de perda: perda de pessoas, do talento, da ideia que temos do nosso futuro bem como da nossa identidade passada.


Cultura.Sul

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Panorâmica

Música para todos nos festivais de Verão De acordo com a APORFEST, este ano há 38 novos festivais e não se realizam 28 daqueles que marcaram o calendário de 2014, enquanto seis destes eventos prometem ter mais de 25 mil visitantes por dia. Lisboa é a cidade com mais festivais agendados, 20 ao todo, enquanto o Porto se fica por metade, dez festivais.

Ricardo Claro

Jornalista / Editor ricardoc.postal@gmail.com

O Verão é assim por terras lusas há já muitos anos, chega recheado de festivais com sonoridades de todos os tipos e para todos os gostos. Há músicas para todos nos festivais de música e há festivais para todas as bolsas, num conjunto de propostas que salpica de destinos musicais o mapa nacional do litoral ao interior e das pequenas localidades às grandes cidades. Até meados de Junho, e de acordo com os dados da Associação Portuguesa de Festivais de Música (APORFEST), estavam confirmados 138 festivais de música, de norte a sul do país e também nas ilhas. O Algarve não é, não obstante ser uma das regiões mais movimentadas do país na época alta, um dos destinos mais pródigos no que toca a este género de festivais, mas tem no seu cartaz de Verão - agora que o Festival MED já se realizou - algumas propostas com programas musicais atractivos, entre as quais o Festival do Marisco em Olhão e a Concentração de Motos de Faro, além da sempre incontornável Fatacil e do Festival F, nestes dois casos ainda com o cartaz por definir.

NOS ALIVE

As propostas para o Algarve O Algarve apresenta para já dois eventos de grande dimensão regional com cartazes definidos. No caso de festival do Marisco, que anualmente leva à cidade cubista dezenas de milhar de visitantes, a agenda é marcadamente portuguesa, como de costume, excepção feita à brasileira Daniela Mercury. Ao palco do Jardim Pescador Olhanense sobem este ano Anselmo Ralph, Mickael Carreira, José Cid, Fado & Further, com a participação de Júlio Resende, Ana Moura e Ana Bacalhau e, ainda, Richie Campbell. Longe de ser um festival de música e com uma identidade muito própria, a Concentração de Motas de Faro não deixa todos os anos de apresentar, a quem escolhe entrar no universo motard do Vale das Almas, um cartaz atractivo. Aos Blind Zero, juntam-se este ano em palco os The Stranglers, bem como os La madre que los parió, os Hot Stuff, Sam Alone & The Gravediggers e os ‘gaiteiros’ Red Hopt Chilli Pippers. Na região, mais do que festivais

SUPER BOCK SUPER ROCK

de grande dimensão, na calha estão este ano, como sempre, eventos que prometem animação um pouco por toda a parte, longe das multidões imensas que alguns festivais de música atraem e dos grandes patrocínios de marcas sobejamente conhecidas, o Algarve aposta em eventos de menor dimensão e em eventos com programação variada que vai muito além da música por si só. Certo é que seja no Algarve ou em qualquer dos festivais de música do país, a música vai oferecer aos portugueses muito para ouvir. O Cultura.Sul apresenta algumas propostas diversificadas do que o país e a região têm este ano para oferecer, entre Julho e Agosto, a quem procurar a música por companhia nestes dias de estio. Sonoridades mil, para um público nacional já habituado a estas andanças festivaleiras. Agora basta escolher o género de música e ambiente e fazer-se ao caminho porque o Verão esse, é sol de pouca dura e os festivais também.

Músicas do Mundo Sines

MÊDA +

ANDANÇAS

MEO SUDOESTE

9*, 10 e 11 JUL

16, 17 e 18 JUL Passeio

17 a 25 JUL

23, 24 e 25 de JUL

3 a 9 AGO

5 a 9 AGO

ÔÔ Destaques: The Prodigy; Blasted Mechanism; James Blake; Magazino; Disclosure (Live); The Jesus & Mary Chain; Dead Combo

ÔÔ Destaques: Sting; Xinobi; Duquesa; Blur; dEUS; Jorge Palma & Sérgio Godinho; Florence and The Machine; Modernos

ÔÔ Destaques: Alo Wala; Capicua; Cuncordu e Tenore de Orosei; Flat Earth Society; Niladri Kumar; Paolo Angeli

ÔÔ Destaques: D’Alva; Diabo na Cruz; Sam Alone; A Cepa Torta; Club Banditz; Tales and Melodies; Blue Trash Can; Low Torque

ÔÔ Destaques: Lengalenga - Gaiteiros de Sendim; String Fling, Paulo Bastos; Samba sem fronteiras; Tugoslavic Orkestar; Winga Kan

ÔÔ Destaques: Dimitri Vegas and Like Mike; Emeli Sandé; Diogo Piçarra; D.A.M.A.; Buraka Som Sistema; Agir; Regula Steve Aoki

ÔÔ Bilhetes: (* Esgotado) Diário: 55€ 2 dias: 89 €

ÔÔ Bilhetes: Diário: 50€ 3 dias: 95 €

ÔÔ Bilhetes: Preços de bilheteira ainda não disponíveis

ÔÔ Bilhetes: Entrada livre

ÔÔ Bilhetes: Diário: 24 € 7 dias: 106 €

ÔÔ Bilhetes: Diário: 48 € 5 dias: 95 €

Passeio Marítimo de Algés

Marítimo de Algés

Sines / Porto Covo

Mêda

Castelo de Vide

Zambujeira do Mar

34ª Concentração de Motas de Faro

FESTIVAL DO MARISCO

16 a 19 de JUL | Vale das Almas - Faro

10 a 15 de AGO | Jardim Pescador Olhanense

ÔÔ Destaques: Blind Zero; The Stranglers; La madre que los parió; Hot Stuff; Sam Alone & The Gravediggers; Red Hopt Chilli Pippers

ÔÔ Destaques: Anselmo Ralph; Fado & Further; Richie Campbell; Mickael Carreira; José Cid; Daniela Mercury

ÔÔ Bilhetes: 45 € | 30 € dia 18 (sábado) sem refreições

Bilhetes: Dia 10 -12 € | dias 11, 12, 13, 14 - 9 € | dia 15 - 10 €


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Cultura.Sul

Artes visuais

Qual a importância do reconhecimento da criatividade dos artistas? Saul Neves de Jesus

Professor catedrático da UAlg; Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora

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Os contributos da Psicologia para a Arte variaram ao longo do século XX, acompanhando a própria evolução da investigação no âmbito da Psicologia. No entanto, o estudo dos próprios artistas tem permanecido constante ao longo do tempo, procurando contribuir para a compreensão do comportamento e da personalidade destes. A este nível, os estudos concluem que os artistas são mais criativos do que a população em geral (Csikszentmihalyi, 1996), mas também salientam o risco mais elevado de perturbações depressivas (Kaufman & Sexton, 2006) e de suicídio nos artistas (Andersen, Hawgood, Klive, Kolves, & De Leo, 2010), comparativamente à média da população. Parece, assim, haver uma relação paradoxal da arte, em termos de produção artística, com a psicopatologia e até mesmo o suicídio. Se, por um lado, parece ser mais elevada em artistas a prevalência destas situações que podem traduzir crises psicológicas, também, por outro lado, se verifica que a arte pode constituir um instrumento para ultrapassar ou superar estas situações de crise, sendo a arte terapia um exemplo disso. Há evidências empíricas, mas também biográficas, de que os sujeitos mais criativos são também aqueles mais susceptíveis de apresentar problemas de saúde mental (Papworth & James, 2003), ou uma predisposição para a doença bipolar afectiva, depressão e suicídio (Kaufman & Sexton, 2006; Rihmer, Gonda

& Rihmer, 2006). Numa das investigações cujos resultados são mais representativos, pois foi utilizada uma amostra de 55.474 sujeitos, Voracek (2006) verificou que a criatividade e o suicídio estão significativamente relacionados. Face aos resultados obtidos nestas investigações, uma questão de fundo que podemos colocar, é se o risco de doenças mentais nos artistas é por serem artistas ou é por serem criativos? A análise doutros grupos que apresentam elevada criatividade, como é o caso dos cientistas, pode ajudar a clarificar esta questão. Diversas investigações têm permitido identificar algumas características que distinguem os artistas da população em geral, mas que também são obtidas nos cientistas, em particular a elevada criatividade. Einstein chegou mesmo a referir que “a imaginação é mais importante do que o conhecimento”, aproximando as características dos cientistas às dos artistas (Araújo-Jorge, 2004). Além disso, muitos cientistas são simultaneamente artistas. Em particular, Root-Bernstein e Root-Bernstein (1999) enumeraram 73 cientistas reconhecidos que também eram artistas, nos mais diversos domínios da arte (visual, escrita ou musical). Segundo estes autores, há uma “imaginação criativa universal”, pelo que aprender a pensar criativamente numa área, pode permitir compreender o pensamento criativo em todas as outras. Esta perspectiva encontra apoio na Teoria das Inteligências Múltiplas de Gardner (1994), ao considerar que somos todos inteligentes e criativos, embora de forma diferente. Segundo esta teoria, a inteligência é considerada como a capacidade para resolver problemas e projetar algo útil num dado contexto cultural, distinguindo-se entre oito tipos de inteligência, as quais se encontram presentes em todos os sujeitos, só que com domi-

nâncias diferentes. Os processos criativos utilizados por artistas são muitas vezes idênticos aos utilizados pelos cientistas. Por exemplo, há artistas, mesmo não surrealistas, que utilizam o período de sono, incluindo o sonho, para criar, pois têm “acordares criativos” com a ideia daquilo que pretendem produzir. E não são só os artistas visuais que utilizam o período de sono para desenvolver acordares criativos. Também os escritores, sobretudo os poetas, o fazem, chegando alguns a dormir com um caderno e uma caneta ao lado da cama para escreverem notas ou fazerem esboços com as ideias que têm quando acordam. Este processo é também utilizado por muitos investigadores e cientistas, sendo conhecidos os casos de Hadamard e de Poincaré, no âmbito da invenção matemática (Jesus, 1988, 2007). Tal como têm sido identificadas semelhanças nos processos criativos entre artistas e cientistas, também têm sido observados problemas de saúde mental em cientistas, da

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Pintura 'Auto-retrato com a orelha cortada', de Van Gogh (1889) mesma forma que se têm verificado com os artistas (Monreal, 2000), pelo que não nos parece ter sentido atribuir, de forma direta e linear, perturbações emocionais ou doenças do foro mental aos artistas.

Pintura 'Auto-retrato mole com fatia de bacon assado', de Salvador Dali (1941)

“MOTIM DA COR | COLORFUL RIOT” Até 25 JUL | Galeria Municipal de Albufeira Exposição de pintura colectiva. Pedro Águas domina a Arte Expressionista, Figurativa e Surreal e o mar é uma das suas grandes fontes de inspiração. Cláudia Marques dedica-se à Arte Expressionista Abstracta

Parece-nos que o reconhecimento ou não do trabalho criativo dos artistas pode ser um aspeto muito importante para compreender o desenvolvimento ou não de problemas de saúde mental. Aliás, várias investigações verificaram a importância da realização do sujeito e do reconhecimento pelos outros como uma dimensão protetora para prevenir a depressão nos sujeitos criativos. Assim, não obstante as perturbações apresentadas por alguns artistas, como Goethe, Mozart, Beethoven e Dalí, o reconhecimento pelo seu trabalho permitiu-lhes continuar a criar e a produzir, alternando os períodos mais difíceis com períodos de auto-realização e de elevada produção artística criativa. Por seu turno, Van Gogh apresentou episódios de psicose que interferiram com a sua criatividade, tal como pode ser revelado pelo conteúdo de algumas das centenas de cartas escritas ao seu irmão. Segundo Monroe (1978), Van Gogh apresentou uma pro-

dução artística que traduzia uma combinação de criatividade e persistência, associada a stresse constante e abuso de absinto. Ao contrário dos anteriores, Van Gogh pintou várias centenas de quadros, mas apenas vendeu um único quadro em vida, tendo sido internado num hospital psiquiátrico nos últimos tempos da sua vida e tendo-se suicidado aos 37 anos de idade. Esta situação de alguma psicopatologia do próprio artista, podendo levar ao suicídio, como resultado de falta de reconhecimento pela sua obra, pode ser encontrada também em Ernst Kirschner (considerado o “pai” do expressionismo alemão), por exemplo, que se suicidou pouco depois de grande parte das suas obras terem sido destruídas pelo regime nazi, traduzindo a falta de reconhecimento das mesmas. Os exemplos indicados ilustram a importância do reconhecimento social da produção artística realizada, podendo marcar a fronteira entre o “génio” e o “louco”. Talvez se Van Gogh tivesse sido reconhecido em vida, em vez de ter desenvolvido psicopatologia, pudesse ter sentido estímulo para a concretização da sua criatividade e de todo o seu potencial artístico, não se tendo suicidado. Assim, podemo-nos perguntar o que seria de Van Gogh se tivesse obtido reconhecimento logo em vida e o que faria Dalí se não tivesse obtido desde logo esse reconhecimento? Nota: Este artigo integra o livro “Construção de um percurso multidisciplinar, integrativo e de síntese nas Artes Visuais”, de Saul Neves de Jesus (snjesus@ualg.pt). Todas as receitas obtidas com a venda deste livro revertem a favor da compra de uma mesa de gravura para o curso de Artes Visuais da Universidade do Algarve. Pode ser adquirido na Fnac de Faro (Forum Algarve) ou em Fnac online (http://www.fnac.pt/)

“PINTURAS DE ROMAN MARKOV” Até 6 de JUL | Espaço de atendimento da EMARP As inspirações e principal tema das obras de Roman Markov são as paisagens e as gentes, pelas quais se enamora, ao longo das suas viagens


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Espaço ALFA

Fotografar o Verão Raúl Grade Coelho Membro da ALFA

Está na altura do ano em que aumenta o número de fotógrafos que tiram imagens a tudo o que os rodeia. Quer seja por se encontrarem de férias, quer seja pelas festas que todos os anos se comemoram para além da beleza da paisagem nesta época. Destaque para o sol algarvio na nossa região. São muitas as máquinas fotográficas disponíveis, uns optando pelas mais avançadas que o mercado oferece mas também são muitos os que ficam felizes com as pequenas compactas. Hoje em dia há uma nova moda. São muitos os telemó-

veis que em qualquer festa são erguidos para captar o momento. Quer isto dizer que o gosto pela imagem aumentou? Não sei se será totalmente verdade. Que o número de fotógrafos aumenta durante o Verão disso não tenho dúvidas. Que os conhecimentos aliados à fotografia aumentaram isso já é um pouco relativo. Aumentar o número de fotógrafos não significa aumentar a qualidade das imagens captadas. Essa é uma da funções que associações como a ALFA – Associação Livre Fotógrafos do Algarve desenvolve. É assim feito o convite a todos os fotógrafos que queiram aprofundar um pouco os conhecimentos e participar nos nossos passeios temáticos que vejam as informações em www.alfa.pt. Não esqueçam de fotografar o Verão. pub

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Sala de leitura

O que eu (não) sei de livros Paulo Pires

Programador cultural no Município de Silves esteoficiodepoeta@gmail.com

Um título aparentemente pretensioso para esta breve reflexão (porventura politicamente incorrecta) em torno de labirintos e fascínios, dúvidas e (poucas) certezas, mitos e realidades que povoam o cativante universo dos livros e da leitura, evocando assim, com saudade, a memória de uma singular amiga, colega e cúmplice destas andanças. Ler é um direito e não um dever. A reivindicação central subjacente às campanhas de incentivo à leitura devia ser a do direito de cada cidadão ter ao seu dispor a maior panóplia possível de livros que lhe permitam, se quiser, ler o que for melhor para si, o que mais lhe agradar e da forma que mais lhe convier. Ninguém tem necessariamente de gostar de ler, nem fazem sentido certo tipo de apreciações morais ou intelectuais sobre quem não lê. Além disso, um indivíduo não se torna necessariamente (friso este advérbio) melhor pessoa ou mais solidário por ler muito. Uma certa mistificação/ sobrevalorização da leitura tende a vê-la, acriticamente, como um poderoso instrumento redentor, não existindo, contudo, um forçoso vínculo entre a prática da leitura e um comportamento dotado de maior humanidade e bondade. Ainda assim, e mesmo que os livros possam não salvar, curar ou humanizar o mundo (o importante será mesmo acreditar nessa utopia como se fosse tangível), é imenso e precioso o seu potencial de sonho, desassossego, lucidez e prazer. Escreveu Adília Lopes: “os livros não são feitos / de carne e osso / e quando tenho / vontade de chorar / abrir um livro / não me chega / preciso de um abraço / […] / no entanto gosto muito / de livros / e acredito na Ressurreição / dos livros / e acredito que no Céu / haja bibliotecas / e se

possa ler e escrever”. Ler (certo tipo de textos, sobretudo literários, que vivem muito da metáfora) ajuda a reparar (depois de olhar e ver, como diria Saramago) no que está para lá do imediato e óbvio, permitindo captar melhor, pelo estímulo da imaginação e do sentido crítico, o que vive nas entrelinhas das palavras, nas suas camadas mais subterrâneas, para lá da epiderme da escrita. Daí que Mario Vargas Llosa insista na ideia de que um “público comprometido com a leitura é [mais] crítico, rebelde, inquieto, pouco manipulável e não crê em slogans que alguns fazem passar por ideias”. Ler é tomar todos os dias um (útil e necessário) banho de humildade, fazendo-nos perceber que o nosso mundo é, de facto, muito pequeno perante as inúmeras e surpreendentes portas e janelas que as palavras nos abrem. Alexandre O’Neill, em 1972, dizia que procurava na poesia uma forma de (se) desimportantizar (“dégonfler”, em francês), ou seja, um modo de aliviar os outros e a si mesmo da importância que se julga ter, pois “só aliviados podemos tirar o ombro da ombreira e partir fraternalmente, ombro a ombro, para melhores dias, que o mesmo é dizer, para dias mais verdadeiros”.

Para a Maria Lua (1966-2012) fotos: d.r.

Leitura (também) como pacto de sentido com o silêncio Ler faz-nos “parar para ouvir gritar baixinho” (expressão feliz do escritor Sandro William Junqueira), pondo-nos, pela forma como são enunciadas/reinventadas, a pensar duas vezes em coisas que em não poucos momentos banalizamos ou damos pouca relevância no dia-a-dia. Ler é uma forma privilegiada e deliciosamente “egoísta” de estar sozinho e no meio de muita gente ao mesmo tempo. Ler é também encontrar sem (muitas vezes) ter de procurar, bas-

tando disponibilidade, mais do que esforço. Ler é sinónimo de prazer, por deleite estético e/ou fácil imersão do leitor no universo ficcional que lhe é apresentado. Isso não quer dizer, contudo, que essa forma de ler, baseada na experiência hedonista que certas obras proporcionam, seja melhor ou mais recomendada do que outras (mais exigentes/ herméticas, duras e menos “confortáveis” para o leitor), ou que o sujeito que a pratica se converta, por isso,

num leitor mais capaz ou até num leitor de outro tipo de textos. Ler pode promover o desenvolvimento intelectual e aumentar as capacidades de expressão oral e escrita dos seus praticantes, mas isso não é necessariamente (sempre) verdade. Se em primeira instância a leitura permite, de facto, armazenar informação (à imagem de outras formas de comunicação), gerar conhecimento, por seu lado, implica quer a capacidade, por parte do lei-

Leitura em voz alta e o prazer do som

tor, de articular criticamente elementos do mundo integrados num dado contexto histórico-cultural, quer uma competente manipulação de sistemas de referência e interpretação específicos, dotados de maior ou menor complexidade. Ler encerra ainda uma dualidade fundamental: transmitir uma (estranhamente) empática sensação de familiaridade, de inesperada (e até, por vezes, reconfortante) identificação no leitor, na medida em que, de alguma forma, este já sentiu, pensou, projectou/desejou ou vivenciou aquilo que lhe é dado a (re)conhecer; ou, por outro lado – e sobretudo, direi eu –, levar o leitor a não compreender melhor, a desaprender, a sair da sua “caixa”, incomodando, testando os (seus e do meio em que está inserido) limites/regras/convenções e semeando interrogações e inquietações que ficam a pairar/marinar na sua mente e corpo, que nem os poderosos solavancos interiores que Flaubert associava à fruição dos bons livros. Álvaro Magalhães, escritor, terá sintetizado bem a questão: A literatura serve sobretudo – se é que serve para alguma coisa – para lidarmos com o desconhecido: o amor e a morte. E se pararmos para analisar, a maioria das histórias são sobre o amor ou sobre o amor e a morte. E são destas que mais gostamos de ler.


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O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N

Julho gasosas da cápsula de moléculas líquidas soltas do marulhar da tempestade.

Linha de mar

Resta-me um livro de hemingway que trago na mochila, com cheiro a sandes de conserva de cavala à portuguesa e a paisagem que só olhos treinados neste horizonte daqui conseguem perceber como se modifica.

Casa de mar

Baixa-mar

Pedro Jubilot

pedromalves2014@hotmail.com canalsonora.blogs.sapo.pt

Longe do mar fotos: d.r.

Estou na ria. Vem a minha casa. Depois deitamo-nos todo o dia no colchão liquidificado, sobre lençóis lisos de azul formosa. Comeremos das conchas frescas. À noite enquanto as cadentes Perseidas choverem, desejaremos apenas só mais outro dia.

Basta-me procurar-te se estou longe do mar. No teu olhar espelha-se o vasto horizonte. As curvas do teu corpo foram desenhadas como um mar ondulado onde me espraio, no areal da tua cama, na espuma do teu sexo, na concha do teu amar.

funâmbulo em linha bamba de equador nesta hora do mês que divide o resplendor de o dia se igualar à noite para lá de que hemisfério se move? ósculo de verão ou érgastulo de inverno

Ria de mar

Frente ao mar

Mar de lua

Que os corações desenhados na baixa-mar serão apagados pela enchente. Que os desejos escritos no céu serão invisíveis quando as nuvens chegarem de norte. Que os beijos d’ água são de um sal que cristalizará. E que o resto são cantigas, mesmo essas leva-as o vento Suão e … apesar de o saber eu sempre acreditarei em ti.

Quarto de mar Todos os dias me custa abandonar o teu quarto azul, os lençóis de sol, essa cama de verdes limos, almofadas de espuma. Deixo esta singela e ténue mensagem escrita a cana d’água sobre a cómoda de areia: amo-te. volto já.

Um mar

AGENDAR

Nenhum homem está só frente ao mar. Há sempre um poema que se escapa das bolhas

Quero tirar a manhã para pescar na ria azul. A linha já lançada repousa agora na corrente fria. Os peixes não nadam por aqui. “AS FLORES ABREM MAIS DEPRESSA AO DOMINGO” Até 15 AGO | Galeria de Arte do Convento do Espírito Santo - Loulé Christine Henry apresenta um tema imensamente divisível, que é a dobra. Há o dobrar, desdobrar, redobrar incessantemente os espaços e as temporalidades da experiência

Se o dia do juízo final trouxesse um sol assim tão radiante, um mar de águas tépidas e calmas, um areal deitado em sossego não me importava de continuar a viver cada dia como se fosse o último.

Da muralha sobre a praia se deseja um novo dia infinito. Onde o mar se em-prata de lua ou se vai na-mouriscar. Só aqui se não deseja parar o tempo. E se acaso souberes de outro lugar assim de tão belo, poderás vir um dia trocar de morada comigo.

“VIDA E OBRA DE FRIDA KAHLO” Até 10 JUL | AlgarveShopping - Albufeira Exposição reúne 27 fotografias originais que marcaram não só a pintura e a vida artística de Frida Kahlo mas, sobretudo, a sua maneira de ser e o seu estilo único que influenciou decisivamente a moda


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Um olhar sobre o património

Ficha Técnica:

Escolas: pontes para o acesso à cultura!

Soraia Pinho

Professora do 1.º Ciclo do Ensino Básico Adjunta da Direção do Agrupamento de Escolas Manuel Teixeira Gomes – Portimão

Nos dias que correm, transparece a noção de que recai sobre a Escola o peso da responsabilidade por todos os problemas da sociedade atual e pela falta de preparação das gerações futuras para intervir nessa mesma sociedade, em constante e acelerada mudança, que tudo exige desta instituição educativa. Por outro lado, também pesa sobre a Escola o dever de encontrar as soluções necessárias para resolver os problemas das quais é acusada de ser a causadora. A Escola, no contexto atual de mudança da sociedade, não pode continuar a perpetuar um papel de mera transmissora de conhecimentos científico-práticos, preconizados em matrizes curriculares rígidas e uniformes para todos os alunos, através de estratégias, atividades e metodologias monótonas e desinteressantes, mantendo modelos inalterados em relação às práticas de há décadas atrás, conservando-se inatingível, inacessível e dissociada dos pais, da comunidade e da Cultura. Contudo, a verdade é que todos passamos por ela e todos somos moldados nela, nas nossas formas de pensar e agir, o que torna a organização escolar uma das mais relevantes na sociedade, uma vez que, de alguma maneira, irá ter influência sobre todas as outras. É, portanto, fundamental que a Escola assuma as funções que lhe são inerentes, ao nível do desenvolvimento integral dos alunos, em toda a sua plenitude e multidimensionalidade, contemplando a aquisição, compreensão, operacionalização e desenvolvimento das competências e conhecimentos necessários à intervenção na sociedade, transformando-os em atores sociais aptos a contribuir para a produção de mudanças na realidade social em que se inserem.

Esta conceção de Escola e da sua função converge para o sentido de uma escola para todos, uma Escola que ensina a conhecer, conhecendo; a compreender, compreendendo; a fazer, fazendo; a ser, sendo; a estar, estando e a viver em comunidade, vivendo. Ou seja, através das vivências proporcionadas no seu seio. Esta noção é assumida e defendida pelo pessoal docente do Agrupamento de Escolas Manuel Teixeira Gomes, reforçado pelas condições financeiras atuais que impedem, na maioria dos casos (e cada vez mais) o acesso dos alunos e suas famílias à Cultura, Ciência, Desporto e Ambiente, tornando-se nosso lema proporcionar o mais diversificado leque de experiências educativas aos alunos, incorporando nas práticas diárias a “construção” de pontes de acesso a estas dimensões. Neste sentido, e especificamente no que respeita ao acesso à Cultura, são encontradas e dinamizadas com os alunos atividades diversas, ao longo do ano letivo, abrangendo desde o nível Pré-Escolar e 1.º Ciclo até ao nível Secundário. Estas iniciativas incluem o desenvolvimento de oficinas pedagógicas em parceria com o Museu de Portimão, quer se tratem de incursões ao espaço físico desta instituição para desenvolvimento de atividades educativas ou visita guiada às exposições temáticas, quer sejam visitas de estudo às ruínas de Alcalar, ou mesmo a receção dos técnicos do museu nas salas de aula da E.B. 1 Major

Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural fotos: d.r.

Editor: Ricardo Claro Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve

Atividade pedagógica nas ruínas de Alcalar David Neto para o desenvolvimento de atividades culturais, alicerçando relações de intercâmbio escolar de dentro para fora e de fora para dentro do contexto escolar. No caso específico do nosso Agrupamento, procuramos diversificar as ofertas culturais disponibilizadas aos alunos, proporcionando-lhes o acesso a sessões de Cinema, peças de Teatro, espectáculos Musicais, exposições de Pintura, entre outros, encontrando-nos sempre em busca de opções inovadoras e significantes, uma vez que estamos conscientes que muitos dos nossos alunos, por condições financeiras adversas, só têm oportunidade de aceder a estas realida-

des em contexto escolar e em companhia dos seus professores, uma vez que a Cultura, infelizmente, importa um custo acrescido não acessível a todas as carteiras em tempo de crise, como aquela que atravessamos. Outro aspeto relevante na integração dos alunos no património cultural constitui a prática direta de atividades culturais, nas quais se proporciona a participação das crianças enquanto atores na realização de peças teatrais, espectáculos de dança e canção, em sessões de partilha e transmissão das tradições com a participação dos encarregados de educação e outras personalidades de relevo

Oficina pedagógica no Museu de Portimão

da comunidade, entre outras oportunidades de desenvolvimento cultural em ação, dentro da comunidade educativa e fora dela, alargada ao âmbito da comunidade local. No presente ano letivo, a título de exemplo da participação cultural, para além dos portões da escola, teremos duas canções a concorrer à “Chaminé d’Ouro”, nas quais se encontram envolvidos alunos do 1.º e 2.º Ciclos do Ensino Básico e respectivos professores de música. A preocupação da Direção do Agrupamento com o acesso dos alunos à Cultura e com o desenvolvimento dos seus conhecimentos e das suas competências ao nível do Património Cultural, conduziu a que se desenvolvesse, neste ano letivo, um Programa de Educação Estética e Artística, dinamizado pela Direção Geral de Educação, com a participação de todos os alunos, educadoras de infância e professores do 1.º ciclo do ensino básico, com o objectivo de dotar os profissionais educativos de estratégias e ferramentas práticas de dinamização das competências dos alunos ao nível da arte, do teatro, da música e da dança. O propósito do projeto será continuar a implementar as estratégias trabalhadas, no sentido de promover melhorias significativas nos alunos e nas práticas letivas a médio e longo prazo, ainda que os resultados já se comecem a vislumbrar. Continuaremos, portanto, a apostar numa Escola como ponte para o acesso à Cultura!

Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Espaço ao Património: Isabel Soares • Da minha biblioteca: Adriana Nogueira • Grande ecrã: Cineclube de Faro Cineclube de Tavira • Juventude, artes e ideias: Jady Batista • Letras e literatura: Paulo Serra • Missão Cultura: Direcção Regional de Cultura do Algarve • Momento: Ana Omelete • O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N: Pedro Jubilot • Panorâmica: Ricardo Claro • Sala de leitura: Paulo Pires • Um olhar sobre o património: Alexandre Ferreira Colaboradores desta edição: Marco Taveira Soraia Pinho Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve, FNAC Forum Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com on-line em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve

facebook: Cultura.Sul Tiragem: 8.431 exemplares


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Cultura.Sul

Da minha biblioteca

Panfleto utópico em forma romance: Troika-me, de Maria João Neves d.r.

Adriana Nogueira

Classicista Professora da Univ. do Algarve adriana.nogueira.cultura.sul@gmail.com

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Pode a literatura mudar a vida dos leitores? É esse o desafio final de Troika-me, primeiro romance de Maria João Neves. A autora vive em Tavira, onde, no seu consultório filosófico, aplica um método que criou e registou, partindo da Fenomenologia do Sonho, da filósofa e escritora espanhola María Zambrano (19041991), ao qual chamou Raciovitalismo Poético. Doutorada em Filosofia e a terminar um pós-doutoramento em Estética Musical, esta investigadora universitária partiu destes seus conhecimentos para, através da literatura, fazer uma proposta de mudança para Portugal. Utopia? Não será, certamente, por acaso que Thomas More é citado na epígrafe inicial, nem que uma das personagens da Utopia tenha dado nome a uma outra deste romance: Rafael Hitlodeu (indicação dada pela autora na Nota Final, p.303). O livro de Thomas More baseia-se, precisamente, na conversa que manteve com este português que teria encontrado uma sociedade ideal, não destruída pelos interesses particulares e egoístas. É precisamente esta situação que é colocada no Troika-me, sintetizada num diagnóstico que identifica as causas da doença de que o nosso país padece («ineficiência crónica e melancolia psicótica» - p.121) que, a serem sanadas, resolveriam o problema da nação (apresento a lista em forma resumida): 1 – Nepotismo, pois

'Troika-me' é o primeiro romance de Maria João Neves

não são os melhores a ocupar os cargos; 2 – Assédio sexual, como resquício do feudalismo na atitude dos dirigentes de empresas e instituições; 3 – Titulitis – «Portugal sofre de inflação de títulos» (p.123); 4 – Prolixidade – «Portugal é um país perdulário. Desbarata não apenas os recursos económicos mas, sobretudo, esbanja palavras» (p.124); 5 – Pessimismo – «Os portugueses têm uma disposição natural para atender ao lado mau das coisas. Cultivam a auto-depreciação» (p.124). Panfleto utópico em forma romance Parafraseei o subtítulo das Aventuras de João Sem Medo, pois também seria este o subtítulo que daria ao Troika-me. O romance desenvolve-se em torno de um grupo de amigos, todos eles com capacidades di-

ferentes, que as põem a render quando o momento de mudança surge, pois há uma altura em que alguém tem de fazer alguma coisa para mudar o país. Uns misteriosos envelopes chegam, lacrados e sem remetente, ao consultório de Francisco, médico, e ao gabinete de Rafael, professor no Instituto Superior Técnico, na área de informática. Contêm apenas recortes de jornais com notícias de situações como as descritas acima, relativamente ao diagnóstico do país, como, por exemplo, sobre um presidente de câmara que, mesmo após o mandato perdido, continuou a licenciar, contrariando pareceres técnicos e violando o PDM (p.56); sobre o aumento da pobreza infantil, citando a Caritas Crisis Report (p.88); sobre a alteração ao ordenamento das listas dos candidatos a bolsas da Fundação para a Ciência e Tecnologia (p.104), etc. Estas notícias incomodam verda-

“EXPRESSÕES DE ARTE” Até 24 JUL | Antigos Paços do Concelho de Lagos Exposição colectiva de Laurentino Cabaço e Caetano Ramalho, numa mostra da diversidade dos seus estilos na pintura em diversas temáticas por si apresentadas

deiramente estes dois amigos e, sem que um saiba que o outro também recebia aquele tipo de envelopes, embarcam numa aventura e encontram-se a fazer parte de uma espécie de think tank, grupo de pensadores ativos, que pretende levar à prática uma série de medidas que permitam consertar as deficiências de Portugal. Mas como quantas mais cabeças, melhor se pensa, os restantes membros do grupo vão-se juntando: Isabel, pintora; Patrícia, bailarina; Ivo, músico (e algarvio, que acentua a sua pronúncia regional, quando está nervoso ou irritado); Mena, sociobióloga; e Laura, o elemento de equilíbrio do grupo, especialista de Filosofia, especialmente em María Zambrano. É ela que traz a questão ética necessária à discussão das medidas a tomar, considerando que «se reduzirmos a moralidade a uma questão biológica, deixamos de ser responsáveis pelos nossos actos» (p.202). «Considerar o bem dos outros talvez seja a única forma de nos salvarmos a nós próprios» Com esta frase (p.114) termina o penúltimo episódio da

primeira das três partes que compõem o livro (intitulada «Século XXI – Portugal Feudal»), resumindo a preocupação subjacente a este «panfleto»: não podemos pensar apenas em nós, se queremos uma mudança na sociedade, onde todos temos lugar. Um dos capítulos (o livro tem capítulos de tamanhos diferentes, mas todos pequenos, que permitem um mudar – aparente – de assunto) conta uma situação vivida por Laura: «“Quem é aquela senhora?” Laura dirigiu o olhar para uma das mesas onde, enroscada no kispo vermelho, a pequenina cabeça grisalha enterrada nas mãos, uma idosa com corpo de criança dormia placidamente. “Não conhece a Graça?” Laura abanou a cabeça confirmando o desconhecimento: “Vive aqui?” “Não conhece a Graça?”, insistiu o dono do estabelecimento. “Costuma vir para aqui quando abro. Depois vai para o bar do irlandês ali do outro lado do rio, anda assim, à mercê. Vive sozinha, tem síndrome de Down. Todos protegemos a Graça!”»

(p93). Estas atitudes de gente boa contrastam com a realidade que se vive no país. Alguns tentam fazer justiça pelas próprias mãos, como é narrado no episódio «A revolta dos xaringados», em que «os dispositivos de cobrança electrónica da Via do Infante foram inutilizados a tiros de caçadeira» (p.86), mas outros vão simplesmente definhando. É contra este estado em que o país se encontra (o país e não só. Um dos episódios passa-se na Grécia) que este grupo de gente educada e criativa procura aplicar os seus conhecimentos, encontrando soluções práticas. Assim se desenvolve a segunda parte («Troika-me»), dando origem à terceira parte, mais pequena, que funciona quase como um epílogo. Aí, em resultado das ações das pessoas preocupadas e resolvidos os problemas identificados anteriormente, já o nosso país é conhecido como Porto-Graal, «devido à sua ascensão a número um no ranking de países com melhor qualidade de vida», tendo-se tornado numa «nação sem cunhas, sem assédio e sem burocratas. Na generalidade, os portugueses de hoje são gente ativa, bem-disposta e bonita que sabe gracejar sobre os tempos acabrunhados e taciturnos que já lá vão» (p.277). Uma utopia ou uma possibilidade? Como em todas as utopias, surgem soluções mais ou menos radicalizadas, apresentadas com mestria e algum humor. Maria João Neves consegue criar uma obra muito interessante e provocadora, para ser lida e discutida por quem se preocupa com a atualidade, com a qual podemos aprender muita coisa, principalmente filosofia e música, assuntos de especialista que a autora nos consegue apresentar com simplicidade e clareza.

“CAMINHOS” Até 28 JUL | Galeria de Arte Pintor Samora Barros - Albufeira Desde pequena que Susana Gonçalves sente um forte apelo pelo desenho, possuindo um gosto e curiosidade peculiares pelo mundo da arte


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