CULTURA.SUL 83 - 7 AGO 2015

Page 1

d.r.

Editorial: d.r.

Cultura ‘à fresca’ p. 2

Grande ecrã: d.r.

Vidadupla segundo Sérgio Godinho p. 10

Agosto recheado de cinema

p. 3

Artes visuais: d.r.

d.r.

Qual a margem de liberdade do artista? p. 6 Letras e Leituras: d.r.

AGOSTO 2015 n.º 83

Umberto Eco: As notícias do amanhã

Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o PÚBLICO

p. 8

9.089 EXEMPLARES

www.issuu.com/postaldoalgarve

O Algarve num outro olhar ps. 4 e 5


2

07.08.2015

Cultura.Sul

Editorial

Missão Cultura

Cultura 'à fresca' em Agosto

Novo espaço de encontro: “Café com Letras”, Sextas às Seis

Ricardo Claro

Editor ricardoc.postal@gmail.com

AGENDAR

Agosto é por terras algarvias, todos os anos, sinónimo de cultura na rua, com a grande maioria dos momentos culturais, dos mais diversos géneros e estilos, a ter lugar fora de portas. É como se a cultura, também ela, se quisesse pôr 'à fresca', nestes dias de estio. É debaixo de um calor tórrido que as manifestações culturais se fazem ao ar-livre, em praças, auditórios de rua, à beira-mar e junto às margens dos rios. Num registo que há anos não se via, o mês passado fez-se de noites de invejáveis temperaturas, a fazer esquecer os casacos e outros apetrechos sempre indesejados no Verão e se Agosto repetir o estilo meteorológico, então a cultura está de parabéns neste período de espaços abertos e arejados a fazerem as vezes de palcos. Certo é que, em estilos mais ou menos populares, das festinhas, às festas, das maiores às mais pequenas performances, o Algarve popula por estes dias de uma pujança que a cada ano só se vê nos meses de época alta. Estes são dias de percorrer a região de lés-a-lés e de encontrar em cada esquina uma forma diferente de viver as férias com um toque cultural. Podem até não ser as manifestações eruditas a que convidam as salas confortáveis e apetrechadas, mas a cultura é muito mais do que esses momentos, e em muitos dos exemplos que enchem a região durante Agosto, a verdaedira identidade do Algarve está presente como dificilmente estará dentro de portas. Mais do que banhos de mar, noites aceleradas e sol e areais a perder de vista, o Algarve apresenta-se, uma vez mais, recheado de boas propostas culturais, atreva-se porque vai decerto valer a pena.

Direção Regional de Cultura do Algarve

Inserida na sua estratégia de valorização, promoção e reforço da divulgação das Artes e das Letras na região, a Direção Regional de Cultura do Algarve, em parceria com a Biblioteca da Universidade do Algarve e com a FNAC de Faro, decidiram criar um novo espaço de promoção das Letras do Algarve. O café é, normalmente, servido quente, e considerado um estimulante. Assim também estes encontros que se pretendem quentes e vivos (de inverno ou de verão!), para animar os nossos fins de tarde, que terão lugar nas primeiras sextas de cada mês, no novo espaço que a FNAC criou em Faro e no qual tem procurado estabelecer uma relação próxima com a comunidade. Este projeto, resultado de uma feliz associação entre estas três entidades, conta com a

participação da população, em geral, e da comunidade académica, em particular, que se deseja culturalmente envolvida e participativa. Conversas vivas e entusiastas em torno de livros, da leitura, do presente e do passado, da música, do cinema, das artes, enfim, da Cultura, que é o que nos move e ocupa o centro desta proposta para a qual contamos com a vossa presença. Este encontro acontecerá nas primeiras Sextas de cada mês, pelas 18 horas. A primeira proposta de encontro é para dia 4 de Setembro, pelas 18 horas, na FNAC do Forum Algarve e resulta da primeira edição assumida pela Direção Regional da Cultura do Algarve no âmbito do regulamento de apoio a obras temáticas, que identifica como preocupação central “contribuir para o conhecimento e maior divulgação da história e da identidade regional”. O trabalho de Cláudia Diogo sobre as Lendas e outras Memórias de Monchique decorre da investigação e dissertação

foto: drcalg

te que se estabeleçam diálogos intergeracionais, se transmita conhecimento e se valorize um património cultural imaterial do interior do Algarve. Consideramos este um livro pioneiro no registo cuidado que faz da transmissão oral armazenada na memória da população monchiquense e particularmente oportuno porque está associado a uma janela de temporalidade estrita, a partir da qual este registo específico seria impossível ou seria alterado porque sujeito a novas formulações de pensar, viver e sentir. Seguir-se-ão outras sextas e outros temas, que oportunamente divulgaremos.

Monchique, jardins do centro da vila desenvolvida no âmbito do seu mestrado e revelou-se um estudo académico de grande valor e coerência técnica. A autora aceitou o desafio de adaptar o seu trabalho tendo em vista alcançar um público de leitores mais abrangente, sem, contudo, lhe retirar a vertente de cuidado científico colocado

na investigação. O património oral, as lendas e memórias de Monchique, tornam-se assim acessíveis a um mais largo leque de interessados. Este registo de sabedoria e tradição popular é fundamental, pois sedimenta uma identidade e memória coletiva, ao mesmo tempo que permi-

tornou-se também sensível aos “novos públicos”, que até então

tinham dificuldade em contactar com esta realidade. Muito é feito hoje em dia no âmbito das acessibilidades e da inclusão, para que seja impossível conceber um espaço que não permita acolher todos os tipos de público. Este trabalho é interminável mas o Museu Municipal de Olhão também se associou a este desafio. Com o objectivo de tornar esta instituição viva e focada na comunidade, dispõe de uma equipa técnica especializada focada na conservação, estudo e divulgação junto dos diversos públicos, do seu acervo constituído por: património marítimo, ar-

Para a agenda: 4 de Setembro, 18 horas, Património imaterial do Algarve Lendas e outras memórias de Monchique, de Cláudia Diogo. Livro publicado pela DRCAlg. Apresentação: Natércia Magalhães/DRCAlg. Parceria: Biblioteca da Universidade do Algarve/Fnac/DRCAlg.

Juventude, artes e ideias

Ponto de partida Os caminhos actualmente percorridos pela sociedade contemporânea levaram a uma tomada de posição por parte das instituições mundiais, no sentido de atribuírem novas responsabilidades e competências às instituições museológicas. Assim, a Museologia e todos os técnicos ligados a equipamentos culturais foram obrigados a reflectir o seu papel e a redefinir metodologias. Fruto deste debate de ideias, os museus deixaram de ser meros repositórios de peças, para passarem a assumir funções em áreas tão importantes como a Investigação, a Comunicação e,

claro, a Educação. Esta nova abordagem técnica

“ESCOLA INTERN. ARTES DE LOULÉ 1993-1997” De 13 AGO a 30 SET | Convento de Santo António - Loulé Exposição apresenta trabalhos recentes de professores da Escola das Artes, em particular de Bruce Dorfman, Minerva Durham, Enrico Gonçalves, Cécile Massart e Pascaline Wollast

queologia, numismática, indústria conserveira, artes plásticas e decorativas, fotografia, metrologia, cinema, fainas agromarítimas, maquetas navais, armas, maçonaria e farmácia. São destes autênticos pedaços de história e cultura olhanenses que vive o Museu Municipal – Edifício do Compromisso Marítimo, e é com o objectivo de preservar e perpetuar a sua memória que trabalhamos no sentido de fazer mais e melhor. Hugo Oliveira Coordenador do Museu de Olhão

“FORA DO BARALHO” Até 29 AGO | 21.30 | Teatro Municipal de Portimão Trata-se de um espectáculo para toda a família que mistura a arte da ilusão com a arte cénica e teatral e que conta a história de um mágico que está a tentar criar o seu próximo espectáculo


Cultura.Sul

07.08.2015

3

Grande ecrã Cineclube de Faro

Programação: cineclubefaro.blogspot.pt Q - ESPAÇO CULTURAL (Jardins do antigo Magistério Primário) | 21.30 HORAS (* sessões gratuitas)

09 AGO - O INFERNO, Carlos Conceição, Portugal, 20’ | VÍCIO INTRÍNSECO, Paul Thomas Anderson, EUA, 2014, M/16, 148’ 13 AGO - FURICO & FIOFÓ, Fernando Miller, Brasil, 7’ | OS GRANDES ALDRABÕES, Leo McCarey, EUA, 1933, 68’, M/6 16 AGO - O HOMEM DA CABEÇA DE PAPELÃO, Luis da Matta Almeida, Pedro Lino, Portugal/ RU, 9’ | PHOENIX, Christian Petzold, Alemanha, 2014, 98’, M/12 20 AGO - YVONE KANE, Margarida Cardoso, Moçambique/Portugal/Brasil, 2014, 117’, M/12

23 AGO – ESTÓRIA DO GATO E DA LUA, Pedro Serrazina, Portugal, 5’ | O CONTO DA PRINCESA KAGUYA, Isao Takahata, Japão, 2013, 137’, M/6

Agosto recheado de cinema Ao contrário do que é tradição, o Cineclube de Faro tem este ano uma agenda de Agosto muito preenchida, fruto do inovador projecto que junta diferentes artes e associações culturais de Faro, chamado Q-Espaço Cultural. A actividade cineclubista do CCF estende o Cinema ao Ar Livre pelo mês de Agosto, trazendo à tela do antigo Quintalão do Magistério Primário, em plena Vila Adentro, uma programação que junta clássicos e alguns dos melhores filmes estreados no último ano. Os oscarizados Citizenfour, de Laura Poitras, Boyhood-Momentos de uma Vida (Richard Linklater), Vício Intrínseco (Paul Thomas Anderson), ou ainda a singularidade voyeurista hitchcockiana d’A Janela Indiscreta, o humor intemporal e frenético dos Irmãos Marx no preciosíssimo Os Grandes Aldrabões, o virtuosismo de Christian Petzold em Phoenix, o desarmante Yone Kane de Margarida Cardoso, o virtuosismo da animação dos estúdios Ghibli com O Conto da Princesa Kaguya ou ainda o sem-

Cineclube de Tavira fotos: d.r.

Programação: www.cineclubetavira.com 281 971 546 | cinetavira@gmail.com MOSTRA DE CINEMA NÃO-EUROPEU – AR LIVRE | CLAUSTROS DO CONVENTO DO CARMO | 21.30 HORAS 7 AGO | BEGIN AGAIN (NUM OUTRO TOM), John Carney, E.U.A. 2013 (104’) M/12

Imagem do filme 'Magia ao Luar' de Woody Allen pre presente Woody Allen com Magia Ao Luar são as sugestões do cartaz do Q- Espaço Cultural, sempre às quintas-feiras e domingos, a partir das 21:30. O cinema ao ar livre, pela mão do CCF não fica no entanto por aqui, entre parcerias e colaborações, o cinema é uma constante no Verão e destacamos ainda

mais uma edição do Cinema sob as estrelas em Cacela Velha, a 25 de Agosto com O Sal da Terra, filme centrado na vida e obra de Sebastião Salgado e ainda o genuíno e singular Volta à Terra primeiro e único filme assinado por João Pedro Plácido a 1 de Setembro. Cineclube de Faro

8 AGO | SELMA (A MARCHA DE LIBERDADE), Ava DuVernay – E.U.A./Reino Unido 2014 (128’) M/12 9 AGO | THE WIND RISES (AS ASAS DO VENTO), Hayao Miyazaki – Japão 2013 (126’) M/12 10 AGO | LEVIAFAN - LEVIATHAN (LEVIATÃ), Andrey Zvyagintsev – Rússia 2014 (140’) M/14 11 AGO | CITIZENFOUR, Laura Poitras – E.U.A./Alemanha/Reino Unido 2014 (114’) M/12 12 AGO | LIKE FATHER, LIKE SON (TAL PAI, TAL FILHO), Hirokazu Koreeda, Japão 2013 (121’) M/12

Espaço AGECAL

Conservação do património no Algarve

Leonor Esteban Técnica Superior de Conservação e Restauro Convidada da AGECAL

O conceito de Património Cultural evoluiu bastante nas últimas décadas, não sendo hoje entendido apenas como algo relacionado com o passado, mas sim como uma construção do futuro. Atualmente, as preocupações com a importância da conservação do Património Cultural passaram a fazer parte do discurso dos agentes que promovem a sua gestão. Nos últimos anos, a Rede de Museus do Algarve (RMA) conjuntamente com os museus, de tutela autárquica e outros de iniciativa privada, têm vindo a desenvolver uma campanha de consciencialização do público para a importância da preservação deste legado, que nos foi transmitido pelos nossos antepassados e que faz parte da nossa identidade e memória

coletiva, pois existe a consciência de que ela só será conseguida com a contribuição de todos. A conservação do património cultural pode ser algo fascinante e interessante, funcionando também como fonte de conhecimento e fruição, devendo, por isso, ser quebradas as barreiras entre os profissionais e o público. Nos finais da década de 1990 dá-se uma proliferação de museus e núcleos museológicos no Algarve, trazendo consigo a colocação de pessoal qualificado em conservação e restauro, entre outras áreas do conhecimento científico, tendo contribuído para a evolução da museológica no nosso País. A conservação é a disciplina mais jovem presente nos museus e foi a última a entrar no campo da Museologia. No Algarve, os Municípios de Portimão, Silves, Tavira, Alcoutim e Faro possuem laboratórios de conservação e restauro, havendo ainda relações de troca de informações entre os técnicos. Na RMA criou-se o grupo de conservação e restauro (RMA-CR) com o intuito de promover as suas atividades, tendo ainda sido criada uma página na internet sobre conservação “AL-Gharbe Conservação”, (https://

celso candeias

/ museu municipal de tavira

algharbconservacao.wordpress. com/), com fins de divulgação de toda a informação e artigos relacionados com esta área, tais como, workshops, lançamentos de livros, ações de formação, etc. A nível nacional, a Associação Profissional de Conservadores Restauradores de Portugal (ARP), foi fundada em 1995, tendo como principais objetivos a defesa e a promoção da classe profissional dos conservadores-restauradores no nosso País e na Europa, através da sua representação na European Confederation of Conservator-Restorers’ Organizations (ECCO) e na divulgação e salvaguarda do Património Cultural (http://www. arp.org.pt/). No laboratório de Conservação e Restauro do Município de Tavira os trabalhos desenvolvidos passam pela conservação do património arqueológico, etnográfico, religioso, industrial, estatuária pública, elementos arquitetónicos e gestão das reservas e coleções, além de atividades educativas vocacionadas para as escolas na sensibilização da importância desta disciplina na salvaguarda do património e o seu papel de retaguarda em qualquer exposição museológica.


4

07.08.2015

Cultura.Sul

Panorâmica

O Algarve num outro olhar 16 4 1 5 14 7 2

3

6

10 9

8

13

15

12 11

Ricardo Claro

Jornalista / Editor ricardoc.postal@gmail.com

Imagine-se um convite para deixar voar o olhar, planando até ao limite das vistas, ora estendendo-se até tocar o azul infinito do Atlântico, ora calcorreando encostas das serras até se esvair nos cumes que parecem recortar em desafio os céus. Há muitas formas de ver o Algarve e o desafio que propomos neste Cultura.Sul é o de o ver com outro olhar e de uma outra perspectiva, altaneiros. Percorremos o Algarve de lés-a-lés, começando no extremo noroeste até à fronteira com Espanha, no extremo leste, e trazemos-lhe locais únicos para uma mirada especial sobre as terras, os mares e os rios algarvios. Propomos uma nova perspectiva, com uma visão projectada em direcção ao vazio das grandes paisagens de costa, barrocal e serra, com imagens dignas de retrato mas, acima de tudo, dignas de serem guardadas na memória. Desafiamos, com recurso a coordenadas GPS, mas sempre em locais fáceis de encontrar com recurso a mapas ou ao velho truque de perguntar às gentes da terra, a que

encontre alguns dos diversos miradouros da região, com uma proposta em cada concelho algarvio. Escolhemos vistas do oceano, arribas escarpadas, monumentos, paisagens de cidade e de hortejo do barrocal. Seleccionámos visões das várias facetas deste Algarve que se estende à largura do país, com paisagens de serra, vistas a partir de faróis e de promontórios mais ou menos intervencionados pela mão humana. Convidamos a conhecer rios e praias, a descobrir os tons ocres da entrada da serra e o verde seco do Algarve sujeito aos rigores do estio, com o mesmo tom com que propomos que sinta a brisa marítima ou se deixe embevecer pelos parchais da Ria Formosa e do Sapal de Castro Marim. Mostramos vistas a partir de igrejas e castelos, e levamos a sede de vistas largas aos topos das serras algarvias num convite a imagens panorâmicas com absolutos 360 graus. O Algarve visto a partir do alto tem outra beleza, é diferente, ganha dimensão e assume em pleno a sua diversidade paisagística. Mostra-se a quem o olha de forma única e em todo o esplendor, sem reservas, nem obstáculos, numa verdadeira exibição de braços abertos ao conviva que o deseja olhar. Descanse o olhar e a mente no azul único do Verão algarvio, conheça de que matizes

se fazem os cursos de água e com que paletas se pintam os solos desta região única. Mais do que conhecer cada um destes segredos algarvios que lhe propomos, desejamos que em cada momento se deixe transportar e que em cada proposta encontre um momento raro que se mereça recordar. Deixe-se envolver pelo silêncio e pelo recato de alguns dos locais que sugerimos e ganhe uma nova interpretação sobre uma terra que muitos crêem ser apenas sol e mar e desmistifique um Algarve carregado de tradições, forjado tantas vezes, na rudeza bruta de terras duras de enfrentar. Há um mundo para descobrir nesta terra aberta ao mar que importa conhecer, do marulhar das ondas cumpridas na orla dos areais ao assobio dos ventos no alto da Fóia ou do Cerro de São Miguel. Há neste Algarve cheiros únicos de esteva e pinheiro, de mar e de ria por descortinar. De um só golpe tanto para ver na imensidão sem freio, desafiando o horizonte e tudo o que há de permeio, porque há em cada um destes miradouros um Algarve a descobrir com outro olhar. Dezasseis propostas raras para momentos inesquecíveis da serra à beira-mar porque nem só de praia se fazem as férias ou o Algarve e há paisagens que não se podem, simplesmente, deixar de admirar.

1 - Aljezur

Miradouro da Fortaleza da Arrifana GPS: 37°17'46.9"N 8°52'26.4"W

Recentemente intervencionada para redescobrir significativamente a sua beleza, a Fortaleza da Arrifana encima uma falésia da costa oeste do concelho de Aljezur desde 1635. Açoitada pela nortada a fortificação mostra a sul a Praia da Arrifana à qual se acede por um ziguezague entalhado na encosta das arribas. Em todo o seu esplendor, abrigado das investidas do vento numa forma de concha que convida a olhar o mar, a Praia da Arrifana é imperdível para quem se quer deixar levar pelo imenso azul atlântico. A visão a sul permite mirar a Pedra da Agulha, um leixão que se ergue do Atlântico qual sentinela costeira destemida face à dureza das vagas.

2 - Vila do Bispo

Miradouro da Torre de Aspa GPS: 37°05'42.1"N 8°57'02.5"W

Da Torre de Aspa só ficou para os

dias de hoje a memória, a atalaia que guardava a Costa Vicentina do Algarve esboroou-se com o rolar dos tempos, mas a arriba mais alta da costa do Algarve continua a ser um ponto privilegiado de observação. Miradouro natural encimado por um marco geodésico dali se avistam as praias do Castelejo e da Cordoama, onde o escuro das arribas luta com o branco areal para ganhar salpicos das ondas do mar. Um olhar a norte permite vislumbrar a Pedra da Laje, formação rochosa que se adentra ao mar sendo um pesqueiro de eleição para os amantes da pesca amadora.

3 - Lagos

Miradouro da Ponta da Piedade GPS: 37°04'51.8"N 8°40'10.8"W

ria até às cristalinas águas rodeadas por uma enseada de contornos e luminosidade místicos.

4 - Monchique

Miradouro da Fóia GPS: 37°18'56.1"N 8°35'31.5"W

É do ponto mais alto do Algarve, 902 metros, que se pode ter uma visão que percorre o traçado costeiro ao longe com a mesma facilidade com que permite percorrer o pontilhado da serra que marca o interior do Algarve. O melhor dos dois ‘algarves’ à distância de um olhar que se pode lançar sem obstáculos, nem reservas sobre o imenso a chamar pelo divagar num silêncio condicente.

5 - Silves

Miradouro da cidade GPS: 37°11'19.5"N 8°25'50.9"W À Ponta da Piedade chega-se por estrada que é simultaneamente Via Sacra com as paragens assinaladas por pequenos nichos alusivos aos momentos percorridos por Jesus carregando a cruz. No miradouro, junto ao Farol, o azul profundo estende-se até onde os olhos deixam ver e as vistas podem espraiar-se pela linha recortada da costa escarpada de Lagos. Aqui pode mirar-se ao longe do alto e para o fundo, descendo a extensa mas inesquecível escada-

Silves cai em dornas arruadas do Castelo até ao Arade com cores e mil sombras de verdes reflexos. Do lado de lá do Miradouro ::::: a frontaria da cidade debruça-se sobre o vale fértil e salpicada do branco alvo da cal deixa adivinhar um outro tempo.


Cultura.Sul

No topo o Castelo de Silves guarda os segredos de uma ocupação progressiva e os vestígios de povos que o escolheram para resguardo. Também ele um miradouro sobre o vale recortado em torno da cidade se apresenta como mais um local para deitar sobre o Algarve um outro olhar.

07.08.2015

8 - Albufeira

Miradouro do Pau da Bandeira GPS: 37°05'13.4"N 8°14'53.8"W

6 - Lagoa

Miradouro da Ponta do Altar GPS: 37°06'20.9"N 8°31'08.9"W

Sentinela da embocadura do Arade, a Ponta do Altar faz-se ver ao longe com um feixe luminoso vermelho a cada cinco segundos a partir do farol que encima a falésia. A vista permite um olhar sobre o oriente em direcção à Praia dos Caneiros com o leixão da Gaivota em primeiro plano, mas é para ocidente e para o interior que a paisagem mostra a foz do Arade, a Praia da Rocha e Portimão, com a marina a seus pés. Em direcção à longínqua Casablanca em Marrocos, a mais de 300 quilómetros, o inesgotável Atlântico com as cores das águas mais recatadas do sul do Algarve.

Do moderno miradouro do Pau da Bandeira se avista Albufeira Velha, a Praia dos Pescadores e a Praia do Peneco num único olhar sobre o leste. À baixa de Albufeira e às praias chega-se descendo a encosta numa viagem de escadas rolantes com o mar como pano de fundo. Para sul, uma vez mais o horizonte azul marítimo e se o olhar convidar a uma espreitadela para nascente mostra-se o areal da Praia do Inatel seguido da Praia dos Alemães, onde mais uma curva do recorte costeiro deixa a vontade de descobrir outros promontórios do Algarve.

9 - Loulé

Miradouro da Igreja de Nossa Senhora da Piedade GPS: 37°08'25.7"N 8°02'13.0"W

7 - Portimão

Miradouro da Fortaleza de Santa Catarina GPS: 37°07'00.9"N 8°31'47.6"W

Daqui se podem ver a oriente a Ponta do Altar já em terras de Lagoa, com o Arade a interpor-se entre as suas margens no encontro com o oceano. Para sul os molhes adentro, as águas convidando a um passeio, descida a escadaria até à Marina de Portimão, mar adentro ensolarado e fresco da brisa marítima. A este a Praia da Rocha em toda a sua extensão, plana e de areias brancas apresenta-se como se de um lençol se tratasse, com o Miradouro da Praia da Rocha, outro local de vistas convidativas ao deslumbre, a definir o extremo leste do areal.

De volta ao Algarve mais interior, junto a Loulé ergue-se altaneira a Igreja de N. Senhora da Piedade. Ao promontório não pode só subir o andor por altura da Mãe Soberana, festa maior da quadra pascal na região, suba-se pela estrada e contorne-se o edificado para se poder deixar repousar o olhar sobre o casario de Loulé com o castelo em destaque. A paisagem do barrocal estende-se para norte e oeste semeada de oliveiras e amendoeiras por entre mato de estevas.

no ferro que adorna, junto ao chão, este local de rara beleza dentre os muitos que pode visitar em São Brás de Alportel. Ao fundo, entre o recorte da serra a sul em direcção a Faro, o Atlântico deixa-se mirar, marcando posição ao longe como que a lembrar que também ele, a par da serra, é um dos pólos do Algarve. Num silêncio convidativo deixe-se levar pelas encostas da serra a sul em direcção ao vasto barrocal ou lance um olhar para norte em direcção ao pontilhado serrano profundo, onde nascem os sobreiros, obreiros da melhor cortiça do mundo.

11 - Faro

Torre da Igreja da Sé GPS: 37°00'47.9"N 7°56'06.7"W

A torre gótica da Sé de Faro, que exibe os sinos da construção religiosa, é a imagem de marca de um monumento incontornável para quem visita a cidade velha de Faro. Do alto da torre sineira a vista da Ria Formosa e da baixa da cidade impõem-se. O serpentar das águas da ria estende-se no horizonte até às dunas das praias das ilhas barreira num olhar que se pode deixar repousar de nascente para poente. Um labirinto laguna de esplendorosas cores ao pôr-do-sol que contrasta com o olhar para norte/noroeste onde a cidade se impõe da baixa em direcção aos arredores com a serra em pano de fundo.

12 - Olhão

Cerro de São Miguel GPS: 37°06'05.0"N 7°49'56.9"W

10 - São Brás de Alportel

Miradouro da Arroteia GPS: 37°09'33.1"N 7°54'28.2"W

Entre a serra e o mar pode ler-se

5

Do alto dos seus mais de 400 metros, o Cerro de São Miguel, maior elevação da Serra de Monte Figo, apresenta ao visitante todo o barrocal de sudeste a sudoeste, com a orla costeira a ver-se em dias de céu limpo desde Espanha até perto de Albufeira. A norte erguem-se as empeder-

nidas serranias do Algarve numa paisagem semeada de oliveiras e amendoeiras tão velhas como a lonjura que a vista pode alcançar. No extremo sul, a antecipar o Atlântico, a perder de vista a Ria Formosa que bordeja Olhão e as ilhas barreira como um suave risco de tom areia desenhado antes do horizonte imenso.

13 - Tavira

Castelo e Igreja de Santa Maria GPS: 37°07'31.5"N 7°39'05.5"W

A zona do Castelo de Tavira e a envolvente da Igreja de Santa Maria, um dos edifícios que se ergue entre muralhas, proporcionam uma visão rara da beleza da cidade do Gilão. Com o Rio a escorrer entre o casario até às Quatro-Águas, a beleza da cidade tavirense sempre pautada pela presença omnipresente de edificações religiosas são um doce para o olhar. Como se fosse um puzzle recheado de segredos convidativos, o rendilhado dos arruamentos exibe-se ao visitante numa rara beleza que quando chega o entardecer se torna quase inacreditável.

toca a miradouros e paisagens de deslumbre, como aquela de que se pode usufruir a partir do Castelo de Castro Marim. Perceber o recorte da vila fortificada de fronteira é um dos desafios colocados aos olhos do mirante antes de se deixar embevecer pelos regatos do Sapal de Castro Marim que caminham inexoráveis para o Guadiana, também ele no percurso final até à foz. Do outro lado do rio terras de Espanha com Ayamonte em primeiro plano, enquanto para norte se mostram em poderio, uma vez mais, as serranias deste Algarve. Um olhar sobre a vila deixa perceber um tempo marcado por um ritmo próprio feito de um compasso único de que se pode usufruir com uma visita pelo centro de Castro Marim.

15 - Vila Real de Santo António

Farol de Vila Real de Santo António GPS: 37°11'14.2"N 7°24'59.2"W

14 - Castro Marim

Castelo de Castro Marim GPS: 37°13'05.5"N 7°26'34.5"W Não há amor como o primeiro, dizem, mas há-os vários no que

A vista do Farol de Vila Real de Santo António, visitável às quar-

tas-feiras à tarde, mostra o recorte pombalino da baixa da cidade do Guadiana. Dali se avista em perfeição Ayamonte, do outro lado da foz do Guadiana, e os areais e parchais que deixam adivinhar a Isla Cristina, primeira praia de terras de Espanha. Para sul e antes do azul do Atlântico imponente, a Mata Nacional e a Praia da Ponta da Areia que se estende até Monte Gordo a leste. Em direcção a norte Castro Marim e a serra, ao longe a enquadrar um Guadiana que se adivinha serpenteante.

16 - Alcoutim

Castelo de Alcoutim GPS: 37°28'15.2"N 7°28'18.7"W

Do alto do Castelo de Alcoutim parece poder-se estender as mãos para afagar o casario de Sanlúcar del Guadiana do outro lado da fronteira. O rio divide a meio as gentes que o hábito havia de unir depois das guerras entre as duas nações. O casario é alvo de branco cal de ambos os lados da serpente aquífera e decai sobre as margens em dornas expostas aos olhares estrangeiros permanentes Uma paisagem deliciosa e de bucólicos tons a lembrar outra vez que o Algarve se faz de muitos e diversos ‘algarves’, qual paleta disponível para pintar de mil tons uma terra recheada de surpresas.


6

07.08.2015

Cultura.Sul

Artes visuais

Qual a margem de liberdade do artista?

Saul Neves de Jesus

Professor catedrático da UAlg; Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora

AGENDAR

Já lá vai o tempo da dependência do artista em relação ao poder religioso ou ao poder político. Atualmente, considera-se que a dependência é sobretudo em relação ao mercado, aos marchand, ao público e aos investidores. Mas terá que ser assim? Será que a produção artística não pode ser realizada apenas pelo prazer dessa realização? “A arte como atividade libertadora ligada ao instinto” (Bossaglia, 2001), já estava bem presente nos action painting dos anos 40 e 50, em particular com Jackson Pollock, em que a pintura são filamentos de cores que vão nascendo do pulsar das sensações do artista. Não utilizava cavalete, pintando telas de grandes dimensões colocadas no chão para se sentir mais envolvido e dentro do quadro, e não utilizava pincéis, partindo do pingo de tinta que deixa cair na tela para produzir toda a obra de arte, utilizando latas de tinta perfuradas, numa relação física intensa com a obra produzida. Mas é a partir dos anos 80 que se desenvolve um movimento, designado de Transvanguarda, que procura acentuar a utilização de diversos meios na produção artística, numa atitude eclética e multidisciplinar, e de forma livre e com prazer. Tal como a crise na arte no início do século XX levou vários artistas em busca daquilo que parecia mais autêntico na arte, porque mais primitivo, em particular nas civilizações africanas e polinésias, por parte de Picasso e de Gaugin, por exemplo, também a vanguarda dos anos 60, em particular com a desmaterialização defendida na arte concetual, levou à necessidade dum retorno ao concreto, ao material, à cor, a partir dos anos 70 e 80,

sendo a Transvanguarda um dos movimentos que se desenvolveu nesse sentido. Assim, os transvanguardistas aproveitaram a ênfase nas ideias e na reflexão, mas com um suporte na produção artística material, conseguindo uma conciliação entre as ideias e a sua materialização, isto é, entre as imagens mentais e as imagens retinianas ou visuais. A transvanguarda pode ser enquadrada no neo-expressionismo dos anos 70, o qual se desenvolveu em diversos países. No caso de Itália, foi buscar referências à arte povera e iniciou-se com a publicação do livro “La transvanguardia”, em 1980, pelo crítico de arte Bonito Oliva (1979, 1980), em que propõe esta designação para caracterizar o trabalho de alguns jovens artistas italianos, nomeadamente Francesco Clemente, Mimmo Palladino, Enzo Cucchi, Sandro Chia e Nicola De Maria, os quais se dedicavam à pintura figurativa, rompendo com a vanguarda e assumindo uma ligação com o passado da arte, numa atitude descomprometida e de inspiração livre nas mais variadas correntes artísticas anteriores, podendo transitar de umas para outras. Bonito Oliva procurou dar uma dimensão internacional a esta perspetiva de produção artística livre (Bonito Oliva, 1982), tendo dirigido a 45ª Bienal de Veneza, em 1993, o que é revelador da sua importância no mundo artístico da década de 80. Nas obras mais conseguidas pela transvanguarda, a dimensão dramática é manifesta, exprimindo-se nas cores, ora vivas, ora escuras (Ferrari, 2001), adquirindo o título da obra uma função central para explicar essa tensão dramática. Embora este movimento tenha surgido em Itália, tendo sido apresentado na 40ª Bienal de Veneza, Oliva considerava que esta forma de arte seria mundial, podendo inspirar-se em diversas tradições, sem fron-

d.r.

dispensando o peso da história, podendo assumir a sua liberdade e o prazer da realização. O prazer na prática é, assim, uma das principais características da tendência transvanguardista, numa atitude livre de preconceitos académicos, podendo revelar-se até ingénua. Conforme referia o próprio Bonito Oliva (1980), “o princípio do prazer substitui o princípio da realidade, entendido como exercício gratificante do trabalho artístico”. Todos os artistas deste movimento revelavam a vontade de não obedecer às regras da composição, preferindo usufruir da catarse que pode estar presente na criação artística, quase que ficando num estado de fluxo, de acordo com a teoria de Csikszentmihalyi (1996). Segundo esta teoria, quando se encontram em estado Obra “Dino Campana”, de Sandro Chia (2000) de fluxo, as pessoas do trabalho sobre a técnica”. tornam-se parte da atividade que teiras limitativas. A atitude eclética caracteriza Para Oliva será a subjetividade estão praticando, apresentando os praticantes da arte transvan- do artista que permitirá tornar um sentimento de total envolviguardista, pois utilizam e expe- as obras atemporais, pois “o ca- mento e a consciência totalmenrienciam vários estilos e diversas ráter atemporal é alcançado pelo te focada na atividade em si. técnicas artísticas, sem se com- fato da obra nunca representar o Não diminuindo a importânprometerem com nenhuma, presente do artista, uma vez que cia do pensamento e da arte pofluindo e fruindo na sua utiliza- a sua sensibilidade é inconstan- der ser uma forma de comunicação. Este ecletismo acontece tan- te”. A não dependência em rela- ção importante, graças ao poder to na escolha temática, como nos ção ao reconhecimento do seu de síntese da imagem visual, meios e nos materiais utilizados trabalho e de aspetos socioeco- toda a produção artística deve(Duzzo, 2011; Santaella, 2009). nómicos relacionados com a sua ria permitir expressar a emoção Nas palavras de Bonito Oliva produção artística, liberta o su- e a alma do artista... (1980), “o ecletismo é uma ca- jeito de avaliações pelos outros. racterística da suave identidade O artista transvanguardista desFinalizaríamos com um podo artista (…) A Transvanguarda taca-se pelo seu individualismo, ema que escrevemos em 2009, não ostenta o privilégio de uma decidindo para onde quer ir, o com o título “Alma de artista” genealogia única, pois bebe de que quer fazer, sem compromis- (Jesus, 2009): diversas fontes”. E continua refe- sos ou preconceitos. Numa sociedade global, ape- O início é branco, rindo que “a arte transvanguardista deixa circular a imagem nas teria sentido uma “arte mun- minimalismo sem cor, sem lhe perguntar de onde vem dial”, que se inspira em todas as vazio de emoções. ou para onde vai, seguindo o im- tradições. Assim, o artista não pulso de prazer que se re-estabe- tem necessidade de se fixar a Corpo sem alma lece na primazia da intensidade um passado ou a um presente, que precisa de vida

“FIL TIRÉ – RACINES COUPÉS” Até 28 AGO | Casa dos Condes - Alcoutim Exposição da artista francesa Dominique Chaumelle, que se tem evidenciado nas áreas da decoração, desenho e pintura, inspirando-se nas viagens que tem feito

para viver… Tela… Jogo de possíveis, caminho para a fantasia… Alma de artista… Sopro de inspiração, arrepio da pele, transpiração de sensibilidade… Palpitações de alegria, fôlego da esperança, em cada pincelada de cor. Projecções do inconsciente traduzidas em azul, vermelho e amarelo, cores básicas e suas misturas. Cascata de cor inunda o espaço branco, num tempo de magia. Euforia dos sentidos, chama da alma, energia da luz. Emoções expressas em rasgos de um pincel, êxtase dos sentidos, clímax da cor… No final os contrastes ganham sentido, retoques dados pelo consciente, coerência do todo, superando a soma das partes. Alma de artista no corpo da tela. Vida partilhada com os que vão ver… e viver… sentindo…

Nota: Este artigo integra o livro “Construção de um percurso multidisciplinar, integrativo e de síntese nas Artes Visuais”, de Saul Neves de Jesus (snjesus@ ualg.pt). Todas as receitas obtidas com a venda deste livro revertem a favor da compra de uma mesa de gravura para o curso de Artes Visuais da Universidade do Algarve. Pode ser adquirido na Fnac de Faro (Forum Algarve) ou em Fnac online (http://www.fnac. pt/Construcao-de-um-Percurso-nas-Artes-Visuais-Saul-Neves-de-Jesus/a869599)

“CONCERTO PELOS TIME FOR T” 23 AGO | 22.00 | Praça do Infante - Lagos Tiago Saga é o fundador do projecto Time For T, luso-britânico, oriundo do Algarve. Actualmente vive em Brighton, onde concluiu o curso de composição musical na Universidade de Sussex


Cultura.Sul

07.08.2015

7

Momento

Irresistível Foto de Ana Omelete

Na senda da Cultura

Obras de reabilitação do Centro Cultural de Lagos entram na segunda fase O Centro Cultural de Lagos, quase a completar 23 anos, tem estado a receber, desde o início deste ano, obras de reabilitação que visam a manutenção e conservação geral do edifício, a adequação às novas exigências em matéria de segurança e evacuação, o reapetrechamento técnico do auditório, a melhoria de condições para os agentes culturais que habitualmente se apresentam nesta sala de espectáculos, assim como o aumento do nível de conforto para o público.

d.r.

Obras vão custar mais de 110 mil euros Se a intervenção já realizada no primeiro trimestre de 2015 teve como principal foco as questões de segurança do auditório, nesta segunda fase de reabilitação do Centro Cultural de Lagos as atenções viram-se para aspectos estruturais e remodelação de espaços interiores (impermeabilização de coberturas, pintura de paredes exteriores e interiores, remodelação das instalações

Intervenções rondam um investimento total de cerca de 270 mil euros sanitárias da área dos camarins, substituição do tecto falso e da iluminação do auditório), o que obri-

ga ao encerramento do auditório, prevendo a autarquia lacobrigense que “os trabalhos desta empreitada,

adjudicada pelo valor de 110 mil e 916 euros, acrescidos de IVA decorram até ao final do mês de Agosto”.

Equipamentos técnicos e conforto da sala ficam para a terceira fase A decorrer estão também os procedimentos de contratação pública visando o fornecimento de materiais e equipamentos para reapetrechamento técnico do auditório (equipamento de áudio, vídeo e iluminação de cenografia), assim como a substituição da alcatifa e cadeiras, trabalhos que irão decorrer num terceiro momento, programado para o final do mês de Setembro, de modo a não comprometer a programação já existente. Estas intervenções no Centro Cultural de Lagos rondam um montante total estimado na ordem dos 270 mil euros e integram uma candidatura no âmbito do FEDER, pelo que poderão vir a ser financiadas na ordem dos 65%. Os trabalhos podem “suscitar a alteração ou condicionamento temporário do horário de funcionamento do Centro Cultural de Lagos, designadamente na primeira quinzena de Agosto”, prevê a Câmara de Lagos.


8

07.08.2015

Cultura.Sul

Letras e Leituras

Umberto Eco – As notícias do amanhã fotos: d.r.

Ficha Técnica: Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Ricardo Claro Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve

Paulo Serra

Investigador da UAlg associado ao CLEPUL

Umberto Eco, escritor e erudito italiano, nasceu a 5 de Janeiro de 1932 em Alessandria (Piemonte). Pouco se sabe sobre a sua infância, a não ser que se doutorou pela Universidade de Turim com apenas vinte e dois anos de idade, apresentando uma tese consagrada ao pensamento filosófico de São Tomás de Aquino intitulada «O Problema Estético em S. Tomás de Aquino». Entre 1954 e 1959 desempenhou as funções de editor cultural na cadeia de televisão estatal italiana RAI. Leccionou nas universidades de Turim, Milão e Florença e no Instituto Politécnico de Milão. Tinha trinta e nove anos de idade quando foi nomeado professor catedrático de Semiótica pela Universidade de Bolonha, a mais conceituada de Itália. Destacara-se como filósofo, medievalista e semiólogo, quando se estreou na narrativa com O Nome da Rosa. O romance possui uma pequena ressalva introdutória de que se trata de um texto verídico: um estudioso terá descoberto por acaso a tradução francesa de um manuscrito do século XIV. O autor do manuscrito é um monge beneditino alemão, Adso de Melk, que narra, no fim da sua vida, um estranho caso vivido na adolescência. A história decorre no ano de 1327, na Idade Média, período que poderemos verificar adiante é caro a Umberto Eco. Guilherme de Baskerville, um franciscano inglês, e o jovem Adso, chegam a uma abadia beneditina onde se irão reunir importantes teólogos ao serviço do Papa e do Imperador mas subitamente vêem-se envolvidos numa história policial. Note-se aliás na ironia do nome Guilherme de Baskerville que traz ao leitor associações a O cão dos Baskerville, um romance policial de Sir Arthur Conan Doyle onde figuram nada mais nada menos que Sherlock Holmes e Watson. Guilherme de Baskerville e o jovem Adso armam-se assim em detetives amadores, tentando desvendar este mistério que envolve a morte por

'Número Zero' é como se intitula o último romance de Umberto Eco envenenamento de um monge, que surge com a ponta do dedo e a ponta da língua roxas, num mosteiro fechado ao mundo onde ocorrem sete crimes em sete dias, e tudo parece girar em torno um manuscrito proibido que se esconde na biblioteca labírintica da abadia, com acessos secretos e onde os corredores parecem não levar a lado nenhum. Muito antes do sucesso de romances como O código da Vinci, O Nome da Rosa foi um verdadeiro êxito editorial que foi depois adaptado ao cinema, com Sean Connery no principal papel. Baudolino é um romance que mais uma vez versa o medieval, sobre um pequeno camponês fantasioso e mentiroso. Numa história rocambolesca e pícara, este anti-herói passa a vida a inventar mas, como que por milagre, tudo o que imagina produz História, e conquista mesmo o imperador Frederico Barbarroxa que o adota. A Misteriosa Chama da Rainha Loana conta como um alfarrabista de Milão sexagenário luta por recuperar a memória após um AVC. Yambo lembra-se de cada livro que leu mas não se lembra do próprio nome ou da sua infância nem reconhece a família. Como forma de recuperação de si próprio, volta à casa de campo da sua infância, onde descobre livros, álbuns de banda desenhada, revistas, discos de outros tempos, religiosamente guardados, e começa uma viagem em que se percebe

como o poder da ficção e da cultura que nos envolve é tão determinante como os episódios históricos e pessoais que vivemos. Este é talvez um dos livros mais pessoais ou nostálgicos do autor, bem como profundamente inovador. O Cemitério de Praga situa-se no século XIX, entre Turim, Palermo e Paris, e conta a história de um espião que condena tudo e todos mas que é ele próprio uma personagem execrável. Ao estilo de um romance-folhetim, cruza personagens e situações que aconteceram efetivamente, em torno de uma personagem fictícia cujos feitos são também eles fatuais apesar de muitas vezes desprezíveis, como é o caso da falsificação conhecida como «Os Protocolos dos Sábios Anciãos de Sião», que iria depois inspirar a Hitler a criar os campos de concentração do Holocausto. Entre as suas numerosas obras ensaísticas, podemos destacar Os Limites da Interpretação, A Passo de Caranguejo, Construir o Inimigo e outros escritos ocasionais, Obra Aberta, Sobre Literatura e o famoso guia académico Como se Faz uma Tese em Ciências Humanas. Organizou ainda os livros ilustrados e ricos em informação histórica intitulados História da Beleza, História do Feio e A Vertigem das Listas, e mais recentemente coordena em três volumes um importante estudo sobre a Idade Média, cruzando a sociedade, a arte,

a espiritualidade, a filosofia e a ciência desse período comummente tido como obcuro e erradamente apelidado de a Idade das Trevas. O último romance de Umberto Eco intitula-se Número Zero e trata justamente de uma equipa de seis redactores, sem grande experiência aliás no jornalismo, criada à pressa com vista à edição de lançamento de um jornal. O jornal chama-se «Amanhã» justamente por não lidar com as notícias do que aconteceu na véspera mas sim com o que ainda irá acontecer: «as notícias do dia anterior já nós as sabemos pela televisão às oito da noite, pelo que os jornais contam sempre as coisas que já sabemos, e é por isso que vendem cada vez menos. No Amanhã, a estas notícias que já cheiram mal como o peixe será certamente oportuno resumi-las e relembrá-las, mas bastará uma colunazinha, que se leia em poucos minutos.» (p. 28). O romance narrado na primeira pessoa pela voz de Colonna, um escritor fantasma, inicia com uma nota de alerta, datada de Junho de 1992, no momento em que a vida de Colonna parece encontrar-se ameaçada, à semelhança do que terá acontecido com Simei, o director do jornal, que desapareceu sem deixar rasto. Só depois recuamos até ao mês de Abril do mesmo ano, durante o período em que se constituíu a equipa de redacção e se delineiam

as características do jornal. Da equipa de redactores destaca-se Braggadocio, um redactor paranóico que vai conjecturando obsessivamente uma teoria da conspiração em torno do cadáver de Mussolini, acreditando que o Duce nunca terá morrido, e é também no espaço da redacção que Colonna conhece a jovem Maia, quase licenciada em Letras, que trabalhava numa revista de mexericos e com quem se irá envolver amorosamente. Este curto livro, o mais pequeno romance de Eco até à data, constitui-se assim como uma crítica ou reflexão do que é o jornalismo actualmente, constituindo-se, conforme refere a contracapa, como um «manual perfeito para o mau jornalismo que, gradualmente, nos impossibilita de distinguir uma invenção de um directo»: «Habitualmente, mesmo para um jornal verdadeiro, a solução mais prudente é puxar para o lado sentimental, ir entrevistar os parentes. Se estiverem atentos, é assim que fazem as televisões, quando vão tocar à porta da mãe a quem meteram o filho de dez anos nos ácidos: senhora, o que sentiu com a morte do seu menino? Humedecem-se os olhos das pessoas e fica tudo satisfeito. Existe uma bela palavra alemã, Schadenfreude, o prazer com a desgraça alheia. É este sentimento que um jornal deve respeitar e alimentar.» (p. 114).

Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Espaço ao Património: Isabel Soares • Da minha biblioteca: Adriana Nogueira • Grande ecrã: Cineclube de Faro Cineclube de Tavira • Juventude, artes e ideias: Jady Batista • Letras e literatura: Paulo Serra • Missão Cultura: Direcção Regional de Cultura do Algarve • Momento: Ana Omelete • O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N: Pedro Jubilot • Panorâmica: Ricardo Claro • Sala de leitura: Paulo Pires • Um olhar sobre o património: Alexandre Ferreira Colaboradores desta edição: Hugo Oliveira Leonor Esteban Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve, FNAC Forum Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com on-line em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve

facebook: Cultura.Sul Tiragem: 9.089 exemplares


Cultura.Sul

07.08.2015

9

O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N

Agosto ainda conseguimos trazer à memória esse tempo de quando éramos reis. o mar, quente ou frio, é ainda e sempre do seu domínio. para isso elas constroem castelos e fortalezas à beira-mar, num árduo trabalho de carregar baldes de água e areia. a tarefa é sempre recompensada a bolas de berlim ou gelados ~

Pedro Jubilot

pedromalves2014@hotmail.com canalsonora.blogs.sapo.pt

Da calma

Linha do horizonte fotos: d.r.

~ uma estranha calma apoderou-se do dia. a brisa do nascente embala pequenas vagas para se dissimularem na borda de costa. o movimento regular e retrógrado da maré que escoava, foi soltando conchas na praia, para as repousar desse intenso refluxo (e influxo) a que se entregam diariamente. ficarão então expostas aos olhos de todos, e às mãos de quem as quiser tomar por empréstimo ao mar, na franja de areia húmida por instantes deixada livre ~

Do tacho

~ da praia de hoje, a linha do horizonte não passa de um conceito. está ali muito perto de nós, e mesmo assim é tão só uma miragem. por vezes, no ensejo das marés, o mediterrâneo empurrado pelo vento levante esgueira-se diligentemente para cá do estreito, expedindo uma parte das suas águas mornas que se vêm refrescar do atlântico. na costa sotavento vão apropriar-se de cores com nomes próprios de azul e verde, encostados a apelidos ainda por inventar ~

Pedaço do mundo

~ mas que grande caldeirada: patarroxa, tramelga, tamboril e safio. de azeite rega-se mais que um fio. folha de louro só metade, não vá estragar o guisado. o tomate tem de ser pelado. alho picado, pimento às tiras e rodelas de cebola. e não te esqueças do sal, ó tola. das batatas descascadas faz a terceira das camadas. vinho branco, salsa picada, liga o lume, liga o rádio, abre a janela para sair o vapor. não, esse ainda não é o barco do teu amor. que o dele é à vela, e na barra vai entrar mesmo a horas do jantar. um pouco de piri-piri, já não te aguentas em lume brando. pões a mesa e o vestido de exchita. e tudo em ti palpita ~

Da hora

AGENDAR

~ a praia. é o pedaço de mundo por excelência que foi inventado para as crianças. e que nós tomamos de assalto em cada verão, para ver se

~ aproveitar o dia. sair na direcção do mar, nessa hora matutina de quase não-nuvens desfilando livres, em que a luz incandescente da orla marítima não tem igual neste lado do paraíso. destas penínsulas prometidas resta o que não foi tocado pela mão do homem, ou aquilo que “ENTRE O ABSTRACTO E O FIGURATIVO” Até 21 AGO | Biblioteca Municipal Álvaro de Campos - Tavira Após uma breve incursão no estilo figurativo, é na arte abstracta que Marisa Patrício consegue mostrar toda a sua sensibilidade, numa verdadeira comunhão de sentimentos

ainda consegue por enquanto ficar fora do seu alcance. como o vai e vem das marés remexendo as areias que formam e disformam línguas traçando as passagens da corrente. são os encantos naturais o que mesmo assim resta para o olhar ~

Da felicidade ~ as ondas decrescendo na vazante vão-se aliviando das suas algas para amaciar o plano e extenso areal que se vai destapando com o avançar da tarde. no regresso da praia tudo está calmo numa luz dolente. como se não houvesse amanhã. este dia parece não querer sair do lusco-fusco. as águas estão paradas numa maré que não quer quebrar esse espelho deitado. e se a felicidade fosse apenas isto de ficar olhando a tamanha beleza da hora crepuscular, infinitamente… ~

se é dono do destino, parecer que se perdeu o tino, sentindo-se de novo menino, andando livre. escolhem-se roupas leves e pedala-se contra o vento sudoeste que interfere com a música nos auriculares. mesmo assim o sol de frente aquece a cara protegida pelos óculos escuros. depois chega-se a um cais de pedra, colocam-se as mochilas aos ombros e segue-se o trilho que levará ao mar crescente. quem alcunhou esta estação de estúpida (‘silly season’), não devia estar de perfeito juízo ou não amava a liberdade ~

Da simplicidade

Do mar

~ em agosto perguntava sempre ao meu avô quando era o dia da maior maré do ano, embora ele quase sempre me dissesse que era bem provável que a de setembro ainda fosse um pouco maior. gostava de vê-la vazar muito e tentava atravessar com pé os canais da ria formosa. à tarde ia sempre ver até onde a água da preia-mar tinha chegado. ficava ali a observar aqueles 10 a 12 minutos em que se diz que as águas param. antes e depois da maré começar a vazar ou encher novamente. era então só nesses momentos que me apercebia que o mar era maior que a vida em terra ~

Da ‘silly season

’ ~ não reparar do tempo que passa, dormir sem malha na hora que calha, esquecer que não

~ a vida é simples. montam-se as bicicletas e aproximamo-nos da ria formosa. depois atravessamo-la por uma ponte pedonal. caminha-se então pelo trilho que é ladeado de diversificada vegetação, dentro e fora da laguna. chegados ao longo areal bebe-se a água fresca das mochilas. entra-se então noutra dimensão. apesar da ainda baixa temperatura (20ºc) do mar para esta zona atlântica da costa sul, dão-se 3 mergulhos e 1/2 dúzia de braçadas. segue-se uma 1/2 h ao sol, à leve brisa de sudoeste. um passeio perfeito é isto. (nem vou falar dos biqueirões fritos com arroz de tomate que vieram a seguir e etc...) ~

Da travessia ~ acabou o levante mas resta um suave alongar das ondas até se espraiarem no pontal de areia mais a sul do território. ao fim da tarde regressa o vento norte, mas agora na sua vertente quente. quando se deixa uma ilha, mesmo que perto de terra firme, há sempre um sentimento de perda. parece que lá deixámos um momento de vida irrecuperável. na travessia, por mais pequena que seja, há um qualquer segredo recôndito que se assoma. e que só a brisa marítima sossega, nesse lugar externo entre dois pontos indeléveis ~

“FESTIVAL CAIXA A SUL” 22 AGO | 22.00 | Praça do Infante - Lagos Guiados pelo magnífico tenor português Carlos Guilherme, a Orquestra Clássica do Sul embarcará numa ‘viagem sensorial’, sob a direcção do seu maestro titular Rui Pinheiro


10 07.08.2015

Cultura.Sul

Sala de Leitura

Vidadupla segundo Sérgio Godinho A beleza é uma contradição velada. Jean-Paul Sartre

Paulo Pires

uma delas, no conto “O álibi do falso culpado” –, e há, em geral, estranheza, conflito, precariedade e desfasamento na sua relação consigo próprias e com (a passagem d’)o tempo, o amor, a morte, os outros. As contradições são,

gens (e, por extensão, aos leitores): o carrasco que procura depois expiar-se, o professor que tem um caso amoroso secreto com um aluno, a rapariga do circo “posta a girar desde pequena”, o “arquitecto-paisagista

Amor, (desas)sossego, emprego… Aparentemente sombrio, no fotos: d.r.

Programador cultural no Município de Loulé http://escrytos.blogspot.pt

Quem disse que a vida é simples? Ou transparente? Ou linear? As vidas dentro da vida soará a mais realista, autêntico e complexo, convocando assim a intemporal questão da pluralidade-diversidade na unidade-singularidade, a qual traz consigo inquietação, espanto, júbilo, dúvida, como convém à boa literatura. Onde acaba uma vida e começa outra dentro de uma polifónica vida? E como coexistem essas múltiplas vidas? E de que lado da vida estamos (ou queremos estar)? E vivemos realmente a nossa vida ou a(s) do(s) outro(s)? E que vida nos é roubada? E a vida também é o que não vivemos, o que imaginamos viver? No livro Vidadupla, que marca a sua estreia na ficção para adultos, Sérgio Godinho [SG] lança-nos muitas interrogações porque “só se desvenda o que se pensa que se conhece”, como se lê logo, em jeito de subtil mote, no conto inaugural “O lençol”. (Não se dizia, a propósito dos grandes segredos dos alquimistas, que “quem fala não sabe, quem sabe não fala”?) Se é vincado o pendor filosófico destas histórias duplas urdidas na primeira pessoa, em fala íntima (metendo-se na pele dos leitores), e sem nomes próprios, feitas para pensar (o pensamento a acontecer), as ideias são bem temperadas por uma linguagem simbólica e uma poeticidade em que o espelho (“Um espelho é reflectir e depois reflectir sobre isso”.), o círculo/o girar, o lençol, a bicicleta (dar ao pedal da vida), um cavalito vaidoso e sedento de liberdade ou, entre outros, um cão rafeiro, intuitivo, que dá à cauda mostrando o caminho do “próximo momento mágico”, são elementos que questionam a existência quotidiana, a interioridade e o rumo dos protagonistas. Estas personagens buscam o seu equilíbrio próprio, a sua identidade (múltipla e desdobrada), têm receio da transmissão do seu espaço de liberdade – como confessa mesmo

aproximativas”, como SG adverte noutro passo do livro.

A inquietante reinvenção do acto criativo em Sérgio Godinho no fundo, a argamassa e o motor destas segundas naturezas que parecem teias de aranha, porque “nós somos tal qual o girassol e a margarida, parecemos ser um, mas somos muitos. Vivem egos, aos milhões, dentro de nós, mesmo quando pensamos ser uma unidade, uma singularidade, um indivíduo” (segundo Afonso Cruz). Já em 2012, em conversa com Mário Soares, o pintor Júlio Pomar sabiamente lembrava: “Que isto de viver é difícil, não é brincadeira nenhuma. Não sabemos viver com as nossas contradições. ‘É um indivíduo cheio de contradições’, dizem as famílias. Ainda bem! Se não tem consciência das suas contradições, o bicho homem anda com as quatro patas no chão”. A construção destes contos assenta, em larga medida, na exploração de várias dualidades de sentido: memória/esquecimento, inocência/culpa, esperança/desencanto, liberdade(s)/prisão. O olhar interrogativo e perscrutador de SG, que nem “perguntador de histórias”, revisita as várias tonalidades, desafios e dilemas que esse rol de ambiguidades, e seus limbos, coloca às persona-

com desorientação topográfica”, o pré-catastrofista que faz rir os outros com as suas duras verdades ditas em tom lúdico. A evolução em cena desta galeria de figuras duplas proporciona sempre a vinda à tona de uma consciência (como quando o carrasco compreende o condenado que o reconhecera no momento derradeiro), interpelando-nos e levando-nos a pensar quão ténue e fina pode ser a fronteira entre os dois pólos de cada uma das dualidades acima explicitadas, desconstruindo uma certa visão rígida, parcelada e estanque do que constitui o labirinto da vida, como se feito de paredes muito espessas onde não cabem vasos comunicantes, onde nada se mistura. No conto “Notas soltas da corda e do carrasco”, quando se pensaria que o triângulo clássico e equilátero carrasco-vítima-salvador seria perfeito, estando bem definidos os lugares/papéis de cada vértice e as distâncias (iguais) entre os mesmos, o desenrolar do enredo mostra-nos a dimensão imperfeita, permeável e mutável dessa tríade aparentemente exacta – não fossem os gráficos “artes

subtexto desta Vidadupla – assim escrita, pois não há um abismo entre a vida e os seus duplos, antes continuidades, pontes, recomeços – reside uma luminosidade própria (por vezes algo difusa), expressa numa vontade de viver, de arriscar, de experimentar, de reinventar os dias, sem derrotas definitivas ou desistências. Um dos passos mais poéticos da obra, espécie de súmula lírica da mesma: “[…] sempre na esperança de sentir no meu amor rugoso a pele lisa dos inícios”. As dualidades novamente: rugoso/liso, turbulência do amor/apaziguamento pós-sofrimento, rumo ao esperançoso renovar dos dias. Isto não invalida, paralelamente, o tratamento irónico-satírico do tema da esperança num outro conto de maior alcance social (“Queria só falar da minha história de amor”), em que se retrata a crise e a falta de emprego (“Havia esperança, sobretudo nas exportações”.) e em que a operária protagonista viu a palavra “esperança” escrita a letras vermelhas de trás para a frente e esteve três dias seguidos a olhar para ela e a tentar dizê-la ao contrário e sabê-la de cor. A

atitude idealista da operária de se despedir, sem indemnização, antes de ser oficialmente dispensada reflecte sobre a questão da dignidade individual como valor supremo em tempos em que a “crise” surge também como sinónimo de diluição de valores básicos/ideais, de falta de respeito pelo outro e de repetição de erros do passado, resumidas nesta pérola poética: “A injustiça, o tempo cortado, a bicicleta a apanhar ferrugem”. Porque a vida sem dignidade, com o nome riscado, é como a bicicleta com ferrugem: uma roda emperrada que impede a vida de girar, uma vida por viver (atrasada, adiada). São múltiplas as formas como a ideia de liberdade (vocábulo recorrente na obra) é percepcionada nestes contos dilemáticos, pois cada personagem intenta encontrar/preservar/ reflectir sobre a sua concepção do que é ser livre na duplicidade, de como o livre-arbítrio convive com a contradição no psicologismo humano e na interacção com o outro. Pois a liberdade também pode, eventualmente, ser um pau de dois bicos, como frisa o protagonista do conto “O

álibi do falso culpado”: “Preservar o meu espaço de liberdade tinha-se tornado tarefa simples, e recompensadora, se bem que cobrada a preço alto várias vezes à saída”. Ou a rapariga do circo, que acostumada, vaidosamente, a girar no seu círculo (de conforto) desde tenra idade, um dia encontra uma saída com o seu cavalo (pois “falta muita comida à liberdade”), mas apercebe-se depois que, contraditoriamente, precisa desse movimento circular, rotineiro e previsível, desse porto seguro mesmo que ocluso. Para o carrasco, por seu lado, a liberdade é “o momento em que se apercebeu de tudo o que não tinha sido […], o momento em que se é outra pessoa”, mas também o espaço incerto e irregular, a insondável e cativante terra de ninguém entre o corpo e a alma, entre o pescoço e a corda – no fundo, aquele magnífico espaço, patético e sublime, entre as árvores, de que falava o poeta Rilke. Uma nota para o conto “Osmose”, talvez o mais poético do livro: SG perscruta com mestria os processos interiores, as forças que se debatem dentro de um homem que um dia descobre o amor, levando-o a descentrar-se, a diluir a sua capa osmótica, a redescobrir o seu corpo, a construir “uma nova rua, um cheiro diferente na cama”, a perceber que a sua vida não ia ser feita só para o amparar pois ele acabara de amparar a cabeça noutro ombro (e não mais seria o mesmo) – a duvidar dos versos de Márcia, que antes lhe pareciam tão certeiros: “Não fiz camadas do meu ser só para ti”. Doravante, um novo refrão, precário e esperançoso: “Eu via-me, e não era fácil, ter de ramificar o meu carreiro no mundo. Amor incluído. Não tinha hábito”.


07.08.2015  11

Cultura.Sul

Da minha biblioteca

«Salpicos de vida» em Só mais um abraço, de Maria de Fátima Santos d.r.

de, como se tudo não passasse de conjeturas: «Se já então soubesses, terias reparado que o brilho nos olhos do teu pai era um brilho diverso: como se fosse um susto que lhe andasse lá no fundo. Se já então soubesses, terias percebido que o destino desenha futuros no olhar da gente» (p.39). Outro tempo bastante usado é o futuro que, assim, vaticina o porvir: «tu nunca terás a dádiva das lágrimas e dos soluços» (p.92) «E no abraço que hão-de dar-se, saberás que não são choros que te lavam o rosto mas tão-somente a chuva que cairá intensa nesse inverno na capital do que já fora um vasto Império» (p.105).

Adriana Nogueira

Classicista Professora da Univ. do Algarve adriana.nogueira.cultura.sul@gmail.com

AGENDAR

Gostei muito deste livro de Maria de Fátima Santos (que já recebera uma menção honrosa no Prémio Literário João Gaspar Simões). É daqueles livros que lemos e não sabemos se é prosa ou poesia, de tão bonito que é. Bonito… talvez não seja este o adjetivo que se esperaria para classificar o conteúdo literário de um livro, mas é o que não me sai da cabeça. Não é que a história seja bonitinha ou as personagens exaltem em beleza. Não é isso. Nem quer dizer que não haja violência, mortes, traições. Que as há. Mas existe nele um tom, uma musicalidade, uma calma (ajudada por uma pontuação onde a exclamação está ausente) que dão harmonia a um conjunto de vozes que se vão fazendo ouvir através de um narrador peculiar. Mas já lá vamos. Vou primeiro apresentar a autora, que para alguns pode ser menos conhecida. Maria de Fátima Marques Correia Santos nasceu em Lagos, em 1948, e aposentou-se como professora de Física e Química. Talvez tenha sido essa condição que lhe tem dado tempo – e predisposição – para escrever e pintar. Tem publicado poemas e contos, quer no seu blogue, quer em livro (foi também vencedora de um dos cinco prémios Novos Talentos FNAC Literatura 2012). Quanto ao que desenha e pinta (a que chama «o gosto pelo traço desenhado e pelas tintas»), pode ser visto num dos seus blogues, Intimarte (http://intimarte.blogspot.pt/). Só mais um abraço é o seu primeiro romance. Mas não parece nada, pois não padece de maleita de principiante, que procura mostrar tudo quanto sabe.

guem (nenhum é numerado ou tem nome) falam-nos, com subtileza, dos filhos que Maria Inácia teve, da vida que foi vivendo, das mortes a que foi assistindo, das mudanças de casa e de terra, tudo temperado com o calor de África, que desgasta os corpos a ele não habituados. «Ainda não sabias que um dia, partirias, apenas tu e ela»

'Só mais um abraço' é o primeiro romance de Maria de Fátima Santos Antes pelo contrário: é uma escrita muito contida, onde as emoções, os sentimentos e as ações ficam-se pela esfera do não-dito e do subentendido. «o passado não tem depois nem antes» Se escrevesses, farias um saltitar no tempo. Salpicos de vida, que o passado mão tem depois nem antes» (p.131), diz-nos a narradora, numa frase que resume, de uma maneira muito simples e esclarecedora, o modo como a história nos é contada. E digo «narradora», porque entendi (apesar de isso nunca ser revelado, sendo apenas a minha

opinião) que quem narra é a personagem principal, Maria de Lurdes, uma jovem nascida no Sul e que vai pequenina para África, com os pais. Através de um subterfúgio que lhe permite afastar-se emocionalmente da história, dirige-se a si própria como se fosse outra, através do uso da 2ª pessoa do singular, contando a sua vida, a vida dos seus pais, dos seus irmãos, dos seus amores, dos amores dos outros. Uma história que nunca foi contada, que nunca foi escrita, uma história que apenas conjetura e que não se atreve a adivinhar («Se escrevesses, talvez dissesses do seu cheiro. Mas nem tu escreves, nem a tua mãe retoma o decurso do

“AS FLORES ABREM MAIS DEPRESSA AO DOMINGO” Até 15 AGO | Galeria de Arte do Convento do Espírito Santo - Loulé Christine Henry apresenta um tema imensamente divisível, que é a dobra. Há o dobrar, desdobrar, redobrar incessantemente os espaços e as temporalidades da experiência

tempo» – p.18). A narrativa saltita, de facto, no tempo, pois a história não nos é contada de uma forma linear (apesar de nunca nos fazer perder o fio à meada). Somos colocados in medias res, na selva africana, como se soubéssemos de quê e de quem se está a falar. Logo no primeiro capítulo, fala-se do Afonso (o pai), da Maria Inácia (a mãe) e do Augusto (o vendedor ambulante), como se já os conhecêssemos e cada capítulo que se segue não fizesse mais que nos lembrar de quem foram. No segundo capítulo, há uma analepse onde se conta como foi que Maria de Lurdes nasceu. E os capítulos que se se-

Uma das razões porque a narrativa nos prende (além da elegância da escrita) é o jogo que é feito com os tempos e modos verbais, permitindo a criação de ambientes muito diferentes. Os tempos do passado, esse que não tem «depois nem antes», vão sendo revelados, mas à medida do saber da protagonista, pois se esta não conhece, a narradora só pode tentar deduzir: «Não tens certeza se foi no rosto dele que viste desenharem-se as palavras que cuidas ter ouvido, ou se nem seria mais do que o teu pai dizendo que o Augusto tinha morrido» (p.60). O abundante uso do imperfeito do conjuntivo, acompanhado do condicional (presente ou pretérito, como no exemplo que se segue), marca a irrealida-

«Não tens certeza do quanto possas ter imaginado» Uma característica que me agrada neste livro é o facto de não considerar o leitor alguém a quem tem de se contar tudo. Antes pelo contrário: este é um livro cheio de subentendidos, mas de tal forma apresentados que percebemos perfeitamente a situação ou a palavra não dita: «Maria Inácia sempre fora de escrever com a mão direita o que se não dera com Fabíola, e as lutas que a tua mãe teve com a professora da primária que queria corrigir aquele hábito na menina» (p.125-6). Um livro que nos embala no seu ritmo, que nos envolve na humidade tropical, que nos leva a juntar todos os pontos que foram sendo dispersos na narrativa e a construirmos o seu (nosso) sentido. Um belíssimo romance, primeira obra literária publicada por uma nova editora, a iwinPress. Dedicada, sobretudo, à publicação de livros eletrónicos de natureza científica e pedagógica, em boa hora não fecharam a edição apenas a estas áreas e fizeram uma incursão pela literatura. Pelo sucesso da escolha, espero que continuem.

“CONCERTO DE DAVID GUETTA” 14 AGO | 19.00 | Estádio Municipal de Quarteira Considerado o maior DJ da actualidade e um dos produtores mais requisitados internacionalmente, os espectáculos de David Guetta atraem multidões


pub


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.