CULTURA.SUL 84 11 - SET 2015

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Missão Cultura: d.r.

Atlas do Património Classificado

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‘A Filha do Papa’: Dario Fo na versão romancista p. 4

Grande ecrã: d.r.

História e património militar em Tavira p. 3

Panorâmica: ricardo claro

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Comunicar o património

Noção de património: da Antiguidade à actualidade

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Da minha biblioteca: d.r.

A Devota e a Devassa, uma novela de Fernando Pessanha

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SETEMBRO 2015 n.º 84 Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o PÚBLICO

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8.697 EXEMPLARES

www.issuu.com/postaldoalgarve


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Cultura.Sul

Editorial

Missão Cultura

A bem da memória

Atlas do Património Classificado: importante instrumento de gestão cultural para o Algarve foto: drcalg

Ricardo Claro

Editor ricardoc.postal@gmail.com

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A memória é muitas vezes curta, na neblina do tempo que passa caem no esquecimento uma parte de leão dos momentos que marcam a História da humanidade, os bons e os maus. Nestes tempos conturbados de migrações massivas em direcção à Europa, devemos todos parar para pensar e reflectir sobre que posições tomar relativamente a um fenómeno que assume proporções históricas. Independentemente das razões de vária ordem que estão por detrás da debandada em direcção à Europa de milhares de migrantes de várias nacionalidades da Ásia e da África, importa ter em conta o que a Europa - toda a Europa - tem por obrigação saber no que respeita a guerras e seus efeitos ao nível de refugiados. É neste contexto que ao ler "Hitler", de Ian Kershaw, uma obra (biografia) incontornável sobre o ditador e sobre a história da Segunda Guerra Mundial e dos profundos efeitos que teve em várias populações até então enquadradas na amálgama civilizacional europeia, me surge a ideia de quanto deve a Europa saber ser sapiente para poder gerir a 'crise' migratória que atravessamos. As diferenças étnicas, culturais e civilizacionais que nos 'separam' de muitos dos actuais migrantes não podem, de per si, ser razão bastante para fundar medos e receios, nem podem permitir-se arremessos de fantasmas populistas sobre os perigos do acolhimento dos migrantes assentes em generalizações que mais não são do que mera desonestidade intelectual. Os migrantes são todos eles nossos irmãos na humanidade e, como entre nós, entre eles estão bons e maus, apenas isso, seres humanos.

dos limites dos imóveis classificados e respetivas zonas de proteção de 14 dos 16 municípios algarvios (as exceções são os municípios de Loulé e Alcoutim). Essa verificação foi pontualmente acompanhada pela revisão dos conteúdos descritivos de cada imóvel na respetiva ficha de identificação. Não podendo os imóveis classificados ser alterados sem o parecer (aliás vinculativo) da

entidade de tutela, e ficando os licenciamentos de obras e comunicações prévias sujeitos a restrições nas respetivas zonas de proteção, compreende-se o grande interesse em democratizar o acesso dos cidadãos a esta informação, naquilo que consideramos ser uma boa prática de gestão do património e de divulgação dos bens culturais da região. O Atlas pode ser facilmente acedido, através do sítio da internet da Direção-Geral do Património Cultural, em http://geo.patrimoniocultural.pt/flexviewers/ Atlas_Patrimonio/default.htm, onde se pode visualizar e pesquisar o património e zonas de proteção diretamente sobre o mapa ou através da localidade ou endereço, ou selecionando alguns temas de referência. No horizonte mais próximo da Direção Regional de Cultura do Algarve está, agora, a conclusão da cartografia georreferenciada dos dois concelhos ainda em falta, tornando o Algarve a primeira região portuguesa a disponibilizar em linha informação georreferenciada sobre a totalidade dos seus bens culturais classificados ou em vias de classificação.

bem sucedida quanto improvável. Os Farra Fanfarra tomaram conta da Zona Ribeirinha no dia 21. Especialistas em euforia coletiva e transmissão de ritmos contagiantes. Artesanato, música, teatro e dança foram os ingredientes para o Mercado do Levante, que teve lugar no dia 22. Alexandre Lopes que nos dias anteriores tinha protagonizados dois grandes momentos teatrais de interação com o público, ao longo da Zona Ribeirinha, mostrou-se

também o seu talento vocal no dia 23, numa noite em que se recordaram alguns clássicos da língua francesa, inglesa e espanhola dos anos 60. No dia 24 foi a vez do grupo Tripé, um projeto de música eletrónica, progressiva e ambiental associada à multimédia. A fechar as Noites de Levante, no dia 25, a companhia Teatro do Mar, apresentou A Balada do Velho Marinheiro. Olhão não pára!

Direção Regional de Cultura do Algarve

O património cultural constitui um valioso elemento na diferenciação dos territórios. Por isso, um dos eixos estratégicos da DRCAlgarve passa pela proteção da riquíssima herança cultural que marca a trajetória temporal do território algarvio. O conjunto dos bens culturais imóveis da região constitui um importante ativo de desenvolvimento, que a administração pública tem obrigação de salvaguardar e cuja proteção jurídica é a medida de maior importância para a sua preservação física. Conforme a Lei 107/2001 – a lei de bases do património cultural português, que é uma das mais avançadas do mundo nesta matéria – a proteção dos bens culturais assenta na inventariação e na classificação. Se bem que o Algarve conte com uma notável densidade de bens culturais imóveis inventariados – mais de dois milhares de sítios arqueológicos e edifícios históricos oficialmente referenciados –, desses, encontram-se somente classifica-

Imagem da ferramenta web Atlas do Património Cultural dos 173 e em vias de classificação outros 29, situação a que não são estranhos os procedimentos burocráticos de classificação que se arrastam, em alguns casos, durante mais de uma década. Num esforço concertado com a Direção-Geral do Património Cultural, a Direção Regional de Cultura do Algarve tem vindo a contribuir para atualizar o Atlas do Património Classificado e em vias de Classificação, cuja ta-

refa de georreferenciação conta também com a colaboração das Câmaras Municipais (celebração de protocolos). A atualização do Atlas é constante e decorre da evolução jurídica da situação de classificação dos bens imóveis. Encontra-se assim concluída a revisão da cartografia georreferenciada de 180 do total de 202 bens culturais imóveis algarvios que dispõem de proteção legal, com identificação e verificação

Juventude, artes e ideias

Noites de Levante Jady Batista Coordenação Jornal J

Ao longo de oito dias, a Camara Municipal de Olhão e a Fesnima ofereceram aos olhanenses e a quem nos visita oito Noites de Levante com espetáculos de grande qualidade. Um cartaz va-

riado de música, dança e teatro muito elogiado pelo público. O evento começou no dia 18 com uma invasão pirata, na Avenida 5 de Outubro, seguida de um espetáculo de pirotecnia O Guardião do Tesouro, protagonizados pela Viv’arte. As Noites de Levante prosseguiram, no Jardim Patrão Joaquim Lopes, no dia 19 com os algarvios Azinhaga. No dia 20 deu-se lugar ao jazz, ao reggae e à soul, com Jazzafari. Uma “mistura” tão

“ESCOLA INTERN. ARTES DE LOULÉ 1993-1997” Até 30 SET | 21.30 | Convento de Stº António - Loulé Exposição apresenta trabalhos recentes de professores da Escola das Artes, em particular de Bruce Dorfman, Minerva Durham, Enrico Gonçalves, Cécile Massart e Pascaline Wollast

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“PONTO ZERO” 24 SET | 19.00 | Teatro das Figuras - Faro Carolina e Margarida Cantinho estreiam no Teatro das Figuras a sua mais recente criação, centrada no ponto onde tudo começa. O grande vazio que dá origem a todos os pontos de partida


Cultura.Sul

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Grande ecrã

Cineclube de Tavira regressa ao Cine-Teatro depois de Verão recheado de cinema Depois das Mostras de Cinema ao Ar Livre, que foram um sucesso sem precedentes a todos os níveis, já voltámos ao Cine-Teatro António Pinheiro. Aliás, este António Pinheiro (Tavira 1867 – Lisboa 1943) foi actor de teatro e cinema, realizador, argumentista, escritor e professor da Arte de Representar português. Fundou a Associação de Actores Dramáticos e publicou diversas obras. Estreou-se no cinema em 1910, como actor no filme brasileiro Os Milagres de Nossa Senhora da Penha. Em Portugal integrou o elenco de filmes de Georges Pallu. Como realizador, estreou-se com o filme mudo Tinoco em Bolandas, tendo também realizado e interpretado Tragédia

Cineclube de Tavira

Programação: www.cineclubetavira.com 281 971 546 | cinetavira@gmail.com SESSÕES REGULARES CINE-TEATRO ANTÓNIO PINHEIRO 21.30 HORAS

fotos: d.r.

19 SET | KAGUYAHIME NO MONOGATARI – THE TALE OF PRINCESS KAGUYA (O CONTO DA PRINCESA KAGUYAHIME), Isao Takahata – Japão 2014 (137’) M/6

12 SET | FATATSUME NO MADO – STILL THE WATER (A QUIETUDE DA ÁGUA), Naomi Kawase – Japão/Espanha/França 2014 (110’) M/14

24 SET | JIAO YOU – STRAY DOGS (CÃES ERRANTES), Tsai Ming-Lang – França/ Taiwan 2013 (138’) M/12

Cineclube exibe filmes à quinta-feira e ao sábado de Amor, ambos em 1924. Neste mês de Setembro iremos exibir filmes todas as quintas e todos os sábados.

Com a qualidade a que estamos habituados... Até lá! Cineclube de Tavira

17 SET | TAXI (TÁXI DE JAFAR PANAHI), Jafar Panahi – Irão 2015 (82’) M/12

26 SET | NATIONAL GALLERY, Frederick Wiseman – França/E.U.A./Reino Unido 2014 (180’) M/12

Espaço AGECAL

História e património militar em Tavira

Jorge Queiroz Sociólogo – sócio da AGECAL

No momento em que se anuncia a transferência para Beja da histórica unidade militar sediada em Tavira, a única actualmente existente na região algarvia, importa reflectir o significado desta estrutura para o País, a cidade e também para o Algarve. A defesa do território e das suas populações é uma das funções centrais da soberania nacional, mais acentuada em momento de crescente e perigosa instabilidade internacional. O Algarve encontra-se muito próximo de uma das zonas com maior tráfego marítimo do planeta por onde circula cerca de 50% do comércio mundial, 33% do gás e petróleo e 80% das mercadorias que a União Europeia consome. Torna-se evidente a necessidade de meios permanentes que colaborem em missões de protecção e vigilância. Mas para além destas questões estratégicas importa salientar as-

pectos de ordem histórico-cultural e económica. Tavira esteve desde sempre ligada à história militar portuguesa e poucas cidades poderão apresentar uma continuidade tão expressiva. Na 1ª dinastia e com D. Dinis, Tavira ganha um lugar fundamental como cidade mais próxima do norte de África. No final do século XIII possuía um “Alcaide de Mar”, dispondo de um efectivo de intervenção numericamente idêntico a Lisboa. Em Setembro de 1415, no regresso da conquista de Ceuta, o Rei D. João I, os príncipes e parte da armada desembarcaram em Tavira onde dois dos Infantes foram armados cavaleiros. No seculo XVI sediava em Tavira a importante “Esquadra do Estreito” (nessa época existiam no País duas outras sob a tutela real, a “Esquadra das Ilhas” e a “Esquadra do Continente”) e por Tavira passavam engenheiros, mestres pedreiros, religiosos, mercadores e outros relacionados com a expansão. A cidade transformou-se no reinado de D. Sebastião em “Praça de Guerra” com mais de um milhar de homens armados, sete companhias de ordenança e cavalaria, efectivo que terá aumentado no início do século XVII.

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O Regimento de Infantaria 1 foi transferido de Tavira para Beja Após a Restauração foi criado o “Terço Pago”, um corpo militar profissionalizado às ordens da hierarquia militar. Como consequência do grande terramoto de 1755 o Quartel-general sediado em Lagos, cidade que ficou muito destruída, passou para Tavira. Nas décadas seguintes surgiu o Regimento de Infantaria de Tavira e por decisão do Marquês de Pombal foi construído o imponente quartel da Atalaia concluído em 1795. Figura incontornável no Algarve desta época é o engenheiro José San-

de de Vasconcelos, que trabalhou e faleceu em Tavira em 1808, legando à região uma valiosa obra que vai das construções militares, ao ensino da matemática e levantamento cartográfico do litoral algarvio. O Regimento de Infantaria de Tavira defendeu em 1801 a fronteira do Guadiana do ataque de Castela e o Regimento de Infantaria nº 14 enfrentou os exércitos napoleónicos. As guerras civis entre liberais e absolutistas trazem nova instabilidade e a derrota dos miguelistas levou à extinção do RI de Tavira, que alinhara

pelo lado dos vencidos. Com a Convenção de Evoramonte surgiu o Batalhão de Caçadores nº 5. A unidade militar de Tavira participou nas campanhas do norte de Moçambique do final do século XIX e durante a 1ª Guerra Mundial na Batalha de La Lys em França registou 60 mortos. Na Praça da Republica está colocado um obelisco que homenageia os mortos pela Pátria. Durante as Guerras Coloniais (1961 - 1974) passou a Centro de Instrução de sargentos milicianos. O período mais recente reflecte as alterações estratégicas do regime democrático e a integração europeia do País, surgindo ciclicamente a desactivação e de reactivação da unidade militar tavirense. A economia sempre beneficiou em múltiplos aspectos com a presença militar na cidade. Com a recente decisão de abandono do Quartel da Atalaia o Algarve perderá e por isso os seus representantes na Assembleia da Republica devem lutar pela sua manutenção na função militar, devendo ainda acrescentar-lhe a função museológica que exponha, interprete e valorize a riquíssima História e património militares da cidade ligados a oito séculos da nossa soberania.


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Cultura.Sul

Letras e Leituras

A Filha do Papa: O único romance de Dario Fo fotos: d.r.

Paulo Serra

Investigador da UAlg associado ao CLEPUL

A Filha do Papa é a obra mais recente e também o primeiro romance, do italiano Dario Fo. Dario Fo nasceu em 1926, na Lombardia. Foi escritor, diretor e ator. Em 1997 recebeu o Prémio Nobel de Literatura. As suas obras destacam-se por representarem sátiras que atacam os poderes instituídos. O político, o capitalismo, a máfia e até mesmo o Vaticano. Talvez seja pertinente salvaguardar que o autor estava em plena adolescência quando deflagrou a Segunda Guerra Mundial. Tinha ingressado na Escola Brera de Belas-Artes quando se viu forçado a interromper os estudos, ao ser recrutado para o exército. Acabou depois por desertar e refugiou-se num sótão onde os seus pais escondiam judeus, ajudando-os a atravessar a fronteira para poderem chegar à Suíça. Terminada a guerra, Dario Fo retomou os estudos, voltando à Escola Brera, e matriculou-se no curso de Arquitetura do Instituto Politécnico de Milão. Mais tarde trabalhou como cenarista. Escreveu a primeira peça de teatro em 1944 e desde então não parou de escrever. Em 1951 conheceu Franca Rame, atriz descendente de uma longa linhagem de atores, com quem casou em 1954. Em 1959 fundou com a sua esposa uma companhia de teatro de nome Fo-Rame. Atualmente é um autor reconhecido internacionalmente, com cerca de setenta obras, muitas delas escritas em colaboração com a mulher. A Filha do Papa foi publicado em Outubro do ano passado, pelas Publicações Dom Quixote e neste seu romance histórico, Dario Fo dá-nos a conhecer a sua versão de quem terá sido afinal Lucrécia Borgia. Como a própria Sinopse da obra refere, Lucrécia é sobejamente conhecida na História e na literatura, se bem que nem sempre pelas melhores razões: «Filha de um papa, três casamentos, um marido assassinado, um filho ilegítimo… tudo em apenas trinta e nove anos, em pleno Renascimento. (...) afastando-se das reconstitui-

No seu único romance, Dario Fo revela o lado mais humano de Lucrécia Bórgia ções escandalosas ou puramente históricas, revela-nos num romance magistral, o único escrito pelo autor, toda a humanidade de Lucrécia, libertando-a dos clichés de mulher dissoluta e incestuosa e inserindo-a no contexto histórico e na vida quotidiana da sua época. Assim, ante os nossos olhos desfila o fascínio das cortes renascentistas, com o papa Alexandre VI – o mais corrupto dos pontífices –, o diabólico irmão Cesare, os maridos de Lucrécia – perseguidos, mortos, humilhados – e os seus amantes, acima de todos Pietro Bembo, com o qual partilhava o amor pela arte e, em especial, pela poesia e pelo teatro. Todos peões dos impiedosos jogos de poder. Uma verdadeira academia do nepotismo e do obsceno, entre festas e orgias.». Dario Fo tenta nesta obra não só retratar o lado mais humano de Lucrécia como joga ainda com o facto de produzir um romance quase cénico, muito próximo de uma peça dramáti-

ca, naquela que é também uma narrativa histórica, apoiada em diversa bibliografia (apresentada no final do livro). Procurando ater-se a um espírito documentalista e de honestidade, Dario Fo começa logo por apresentar no preâmbulo da sua obra de que o tema que nos traz não é propriamente novo: «Sobre a vida, sobre os triunfos e sobre as infâmias mais ou menos documentadas dos Borgia foram escritas e levadas à cena óperas e peças teatrais, realizados filmes de notável qualidade com atores de fama e, ultimamente, até mesmo duas séries televisivas de extraordinário sucesso./Qual é o motivo de tanto interesse sobre o comportamento destes personagens? Antes do mais, a despudorada falta de qualidade moral que lhes é atribuída em todos os momentos da vida. Uma existência libertina desde a sexualidade até ao comportamento social e político.» (pág. 33).

Encontraremos, aliás, diversas citações de obras de autores como Savonarola e Alexandre Dumas a corroborar o retrato que nos é apresentado da filha do papa. É bem patente, desde as primeiras linhas, a crítica ácida e o tom cáustico de que a escrita do autor se reveste. A Filha do Papa inclui ainda diversas ilustrações realizadas pelo próprio autor que procuram ilustrar a história com retratos não só de Lucrécia – sendo que a capa do livro é uma dessas ilustrações do próprio autor – como também das outras figuras que gravitam

Dario Fo recebeu em 1997 o Prémio Nobel de Literatura

em seu redor ou, melhor dizendo, nas mãos das quais Lucrécia foi muitas vezes um fantoche ou um peão. Dario Fo consegue assim, quase cinco séculos depois, recuperar a figura de Lucrécia, apresentando-a como vítima e cordeiro sacrificial, representando a jovem Bórgia, quase sempre vista como incestuosa e mestre na arte da sedução e do veneno, como uma figura inocente no meio dos esquemas levados a cabo pelo pai e pelos irmãos, bastante angelical aliás dado o clima de traição e ambição que reinava na época. Como o autor indica a dada altura no seu

Preâmbulo: «De todas as vezes, a vítima a imolar desde a infância não é outra senão Lucrécia. É ela que é lançada em todas as ocasiões, tanto pelo pai como pelo irmão, no vórtice dos interesses financeiros e políticos, sem a mínima piedade. O que pensava daquilo a doce menina não os preocupava nada. Aliás era uma mulher, um juízo que valia tanto para um pai futuro papa como para um irmão próximo cardeal. Portanto, em certos momentos, Lucrécia é uma coisa com rotundos seios e esplêndidos glúteos. Ah, já nos esquecíamos, também os seus olhos são cheios de encanto.» (pág. 34). O humor, assim como a ironia, reveste-se também de particular importância, no retrato apresentado da época e das personagens que gravitam em redor de Lucrécia e dos Bórgia. Veja-se, por exemplo, a seguinte passagem a propósito do papa Inocêncio, citando Savonarola: «em cuja existência a única coisa inocente foi o nome. (...) ele era chamado «pai do povo» porque graças às suas atividades amatórias tinha aumentado o número dos seus súbditos em oito filhos machos e oito fêmeas – numa vida que decorreu em grande voluptuosidade – naturalmente com amantes diversas.» (pág. 36). Ou noutra passagem digna de nota quando se refere a um massacre ocorrido em julho de 1492: «a cada morte de um papa, em Roma, ocorria uma grande quantidade de homicídios porque, por tradição secular, no final de cada conclave em que é eleito o novo pontífice se concede a graça a quem tiver cometido um crime nos dias de interregno./Portanto, todos aqueles que sonham com um ato de vendetta aproveitam as tradicionais férias para tirar a desforra, matar hoje para se tornar livre amanhã, e tudo graças a uma segura indulgência plenária. Que belos tempos!» (pág. 38). Para quem gosta de ler o livro e depois ver na tela ou no pequeno ecrã uma adaptação mais fiel, pode recorrer à série Os Bórgia que é certamente a mais mediática, em termos de projeção internacional, exibida entre nós no canal AXN. Realizada por Neil Jordan (Jogo de Lágrimas), conta com Jeremy Irons a representar o papel do papa Alexandre VI (outrora o cardeal Rodrigo Borgia) e a jovem atriz inglesa Holliday Granger que desempenha com inocência e candura o papel de Lucrécia Bórgia.


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Panorâmica

A arte de bem comunicar o património fotos: ricardo claro

Ricardo Claro

Jornalista / Editor ricardoc.postal@gmail.com

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Comunicar é uma necessidade e comunicar bem um cruzamento entre objectivos, técnicas e ferramentas e, em muitos casos, arte no sentido lato. A comunicação aplicada às áreas da cultura e, em particular, do património exige na era tecnológica que vivemos capacidades técnicas e ferramentas tecnológicas que permitam fazer chegar os conteúdos aos públicos-alvo com eficiência e eficácia. A comunicação na área da cultura no Algarve apresenta, ainda hoje e não obstante os investimentos e os esforços das entidades públicas, uma dispersão, uma falta de coesão e uma ausência de estratégia que prejudica sobremaneira a forma como, quer os algarvios, quer o imenso mercado do turismo, percepciona a região e a sua cultura, bem como, as manifestações culturais e o património regional. Na área do património e, muito em particular, na área do património regional a cargo da Direcção Regional de Cultura do Algarve, a comunicação foi durante muito tempo - demasiado tempo - rudimentar e desajustada da realidade. Sobre este facto indesmentível o Cultura.Sul publicou por diversas vezes peças que alertavam para a situação e confrontou os titulares da Direcção Regional de Cultura com a incapacidade comunicacional da direcção regional. Dos responsáveis destaque-se a hombridade de reconhecerem as deficiências da estratégia e em particular dos meios com que a direcção regional se debatia para dar resposta a uma necessidade comunicacional que não se compadece actualmente com ferramentas e discursos desactualizados. Alexandra Gonçalves, actual responsável pela pasta da Cultura no Algarve, identificada a dificuldade, fez um caminho no sentido de ultrapassar o problema da escassez e ineficiência da comunicação na área do património sob alçada da direcção regional.

“Desenvolvemos uma nova estratégia de comunicação com o público exterior através de uma página on-line que apesar de institucional disponibiliza informação a pensar em quem quer conhecer o património do Algarve que gerimos”, refere Alexandra Gonçalves, que destaca que “fazemos hoje uma comunicação mais alargada em que o sítio da direcção regional se articula com as redes sociais e este posicionamento tem dado resultados positivos nas várias vertentes em que desejamos comunicar com quem acede às ferramentas que utilizamos”. Balanço positivo

Imagem da página on-line da Direcção Regional de Cultura do Algarve - Fortaleza de Sagres A Alexandra Gonçalves coube dar resposta ao problema naquilo que concerne à página da Direcção Regional de Cultura do Algarve e à forma como este serviço público se relaciona com os seus públicos-alvo, nomeadamente através das redes sociais. Nova página da DRCAlgarve surgiu na internet em Dezembro de 2014 Em Dezembro do ano passado surgia na internet a nova página da Direcção Regional de Cultura do Algarve que, modernizada, se apresentava aos internautas com um visual moderno e arrumado de acordo com o actual estado da arte na comunicação em plataforma web. Ao invés do que anteriormente sucedia, digitar na barra de endereços de qualquer motor de busca www. cultalg.pt deixou de ser sinónimo de um anacronismo visual e comunicacional e de uma forma e substância de apresentação de conteúdos em tudo disfuncional e não amigável. Hoje, o sítio on-line da direcção regional de cultura contém bastante informação útil, destaques relativamente àquilo que mais importa em cada momento, funcionalidade na abordagem de conteúdos e um acesso privilegiado - de novo o património - a uma subpágina dedicada aos sete monumentos cuja gestão cabe à Direcção Regional de Cultu-

ra do Algarve. Assim, é hoje possível de forma rápida e eficaz conhecer mais em pormenor e à distância de um simples clique a Fortaleza de Sagres, os castelos de Paderne e Aljezur, as ruínas romanas da Villa da Abdicada e de Milreu, os Monumentos Megalíticos de Alcalar e a Ermida de Nossa Senhora de Guadalupe. Conteúdos simples e de qualidade Nem só de imagem e amigabilidade sobrevive a comunicação através

da internet, as páginas on-line só vingam quando os conteúdos no seu todo, intercomunicabilidade e sustentabilidade, são capazes de garantir ao público-alvo uma resposta adequada às respectivas necessidades. Nas várias subpáginas dedicadas aos vários monumentos, o sítio da Direcção Regional de Cultura do Algarve disponibiliza informação suficiente e atractiva para o utilizador, assegurando ao internauta links para informação mais detalhada, imagens, localização com mapas de fácil percepção, bem como dados históricos, plantas e em alguns casos áudio-guias e jogos didácticos cuja descarga permite aos utilizadores prepararem ou efectuarem visitas aos locais patrimoniais com acesso a informação qualificada e acessível. Assim se transforma de forma notável a acessibilidade digital ao património cultural e desta forma se garante mais e melhor qualidade na apresentação da herança patrimonial algarvia, projectando para o futuro a oferta cultural e patrimonial da região. Número de visitantes a subir

Alexandra Gonçalves

“RITMOS E MELODIAS” Até 7 NOV | 21.30 | Galeria de Arte da Praça do Mar - Quarteira Pedra, bronze e fibra de vidro são alguns dos materiais usados por Teresa Paulino na criação das suas esculturas, que pretende reflectir os sons, cores e padrões de algumas partes do mundo

Ao Cultura.Sul a actual directora regional de Cultura destacou “a subida substancial do número de visitantes da página institucional da direcção regional e em particular das áreas dedicadas ao património sob sua responsabilidade”.

“Para nós o balanço é extremamente positivo, mas há sempre coisas a melhorar e para as quais estamos a criar condições de implementação”, diz a responsável, que não esperou por um consenso nacional sobre a modernização dos sítios on-line das direcções regionais de cultura e avançou com o trabalho no Algarve, dando provas de que a região pode ser pioneira sem pôr em causa a coesão da linguagem comunicacional dos serviços centrais. Entre as questões a melhorar está a disponibilização em línguas estrageiras da informação actualmente apresentada pela página da direcção regional. “Foi uma questão que desde o início estava identificada, mas cuja implementação exige mais recursos do que aqueles que no momento eram possíveis alocar”, refere Alexandra Gonçalves, que deixa assim clara a visão estratégica de evolução da plataforma on-line no futuro. Um exemplo que podia e devia ser seguido de perto relativamente ao resto da património regional, nomeadamente aquele que está debaixo da alçada das autarquias e que teima em ser tratado com pouco mais do que meras referências nos respectivos portais autárquicos. Há ainda muito por fazer no Algarve em termos de comunicação relativamente à vasta herança patrimonial regional e urge fazê-lo de forma articulada que permita senão de raiz - como seria obviamente preferível - pelo menos a médio prazo a criação de uma plataforma integradas sobre o património do Algarve.

“14º FESTIVAL FLAMENCO DE LAGOS” 11 e 12 SET | 21.30 | Centro Cultural de Lagos Festival aposta numa programação equilibrada que junta artistas já consolidados com jovens referências do flamenco em espectáculos de enorme beleza visual e sonora


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Cultura.Sul

Artes visuais

Qual a importância da cor nas artes visuais? (1)

Saul Neves de Jesus

Professor catedrático da UAlg; Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora

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Um dos domínios em que a investigação científica tem tido mais impacto nas artes visuais diz respeito ao estudo da cor. Desde aspetos mais físicos e químicos que tinham sobretudo a ver com a forma de produzir certas cores, até aspetos mais psicológicos que dizem sobretudo respeito à perceção das cores pelo observador, a cor tem sido desde sempre uma dimensão importante na produção em artes plásticas, procurando aproveitar os conhecimentos científicos neste domínio. Como exemplos explícitos do reconhecimento da importância da cor e do interesse em ter mais conhecimento neste âmbito por parte dos artistas, destacamos os seguintes posicionamentos de Van Gogh e de Paul Klee. Em 1885, Van Gogh escreveu numa carta ao seu irmão Théo o seguinte: “Eu ouvi falar de uma experiência feita com uma folha de papel de cor neutra que se torna esverdeada sobre um fundo vermelho, avermelhada sobre um fundo verde, azulada sobre o alaranjado, alaranjada sobre o azul, amarelada sobre o violeta e violetada sobre o amarelo (…) Se encontrares algum livro sobre essas questões da cor, um livro que seja bom, envia-o antes de qualquer outra coisa, pois é necessário que eu saiba tudo sobre isso. Não se passa um dia sem que eu me procure instruir”. Por seu turno, em 1914, Klee escreveu no seu “Diário de viagem à Tunísia”: “A cor apoderou-se de mim. Sei que ela me tomou para sempre. Tal é o significado deste momento abençoado. A cor e eu somos um. Sou pintor”. A cor não tem uma existência material, sendo uma sensação provocada pela ação da luz sobre o órgão da visão. Já Epicuro, há mais de 2.300 anos, referia

que “os corpos não têm cor em si mesmos” e que “a cor guarda íntima relação com a luz, uma vez que quando não há luz, não há cor” (cit. em Pedrosa, 2009). Em termos de evolução das espécies, supõe-se que a capacidade para identificar as cores terá surgido nos primatas há 400 milhões de anos, no sentido de permitir identificar os frutos no meio das árvores (Bramão, 2011). Na atualidade, face aos avanços da ciência, sabe-se que a cor é como o olho do homem (e de outros animais) interpreta a reemissão da luz vinda de um objeto e que corresponde à parte do espetro eletromagnético que é visível, isto é, entre aproximadamente 380 a 750 nanômetros ou frequências. Apenas podemos conhecer aquela parte do Universo a que fisicamente temos acesso e apenas podemos formar sobre ele as imagens inteligíveis que sejam compatíveis com a estrutura neuronal do nosso cérebro. O olho humano é um mecanismo complexo desenvolvido para a percepção de luz e cor. No centro do olho, a fóvea é rica em cones, um dos dois tipos de células fotorecetoras, sendo responsáveis pela captação da informação luminosa dos objetos observados. As cores percebidas pelo olho humano dividem-se em três tipos e respondem preferencialmente a comprimentos de ondas diferentes de luz. Temos cones sensíveis aos vermelhos e laranjas, outros aos verdes e amarelos e ainda outros sensíveis aos azuis e violetas. Em termos de teorias da cor, embora já Hipócrates e Platão se tivessem pronunciado sobre as cores dos objetos, considera-se que a mais antiga teoria terá sido apresentada por Aristóteles, no séc. IV aC., ao considerar as cores como propriedade dos objetos, tal como o são o peso, o material ou a textura. Distinguiu entre seis cores principais: vermelho, verde, azul, amarelo, branco e preto. No entanto, foi na Renascença que o estudo da cor começou a ser objeto de pesquisa sistemática pelos próprios artistas, os quais muitas vezes eram também cientistas. Nesse contexto

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Proposta de Newton no seu livro “Uma nova teoria de luz e cores” (1672) compreende-se que nesse período tenha surgido a expressão “ciência da pintura”, da autoria de Leonardo da Vinci ao afirmar: “A ciência da pintura reside no espírito que a concebe” (cit. em Pedrosa, 2009). Aliás, já no início do séc. XV, no seu “Livro da Arte”, Cennino Cennini evidenciava que o ateliê do pintor era o mais desenvolvido laboratório de química da época. Nesta época do Renascimento, destacam-se os tratados de Leon Alberti sobre a arquitetura, a pintura e a escultura, em que definiu o vermelho, o verde e o azul como sendo as cores fundamentais que dão origem

a todas as outras. Essa tríade veio a ser consagrada entretanto pela Física Moderna. Procurando uma correspondência aos quatro elementos, fogo, água, ar e terra, Alberti incluiu também o cinza (mistura do preto e do branco). Assim, o vermelho seria a cor do fogo, o verde da água, o azul do ar e o cinza da terra. No final do séc. XV, Leonardo da Vinci escreveu o “Tratado da pintura e da paisagem”, sendo o primeiro a salientar que a sombra pode ser colorida, propondo que a relação entre luz e sombra pode ser mensurada e representada proporcionalmente. Concordou que todas as outras cores poderiam formar-se

Obra “A descoberta da Lei da Gravidade. Homenagem a Newton”, de Saul de Jesus (2011)

“LA VOZ DE NUNCA” 19 SET | 21.30 | Teatro das Figuras - Faro Espectáculo onde se tenta encenar a ‘dança do absurdo’ numa obra total em que confluem movimento, palavra e música interpretada ao vivo

a partir do vermelho, verde, azul e amarelo e demonstrou experimentalmente a composição da luz branca, pois observou que o branco surge quando um raio de luz diurna (cinza-azulada) penetra por um respiro no interior de uma câmara escura e entra em contato com a luz de uma vela (amarelo-alaranjada) que lá se encontra. No seu tratado sobre pintura escreveu: “A primeira de todas as cores simples é o branco, embora os filósofos não aceitem tanto o branco como o preto como cores, porque branco é a causa ou o receptor de todas as cores e o preto é a privação total delas. Mas como os pintores não podem ficar sem ambas, as colocaremos dentre as demais. (...) Podemos colocar o branco como representante da luz sem a qual nenhuma cor pode ser vista, amarelo para a terra, verde para a água, azul para o ar, vermelho para o fogo e preto para a escuridão” (cit. em Araújo, 2005). Ao afirmar que todos os corpos se refletem de luzes e sombras, podendo as luzes ser originais ou derivadas (refletidas), Leonardo abre caminho para a concepção do espaço renascentista, pleno de cores e imagens refletidas pelos corpos sob a ação da luz incidente (Pedrosa, 2009). No final do século XVII, destacam-se as experiências sistemáticas para o estudo da cor realizadas pelo físico Isaac Newton, as quais se encontram descritas em “Uma nova teoria de luz e cores”, publicado em 1672. Newton veio revolucionar os conhecimentos sobre a luz, pois demonstrou que as cores eram propriedades da luz e não dos corpos refleto-

res, como se acreditava anteriormente. Observou que um raio de sol se decompunha em várias cores ao atravessar um prisma de vidro, voltando estas cores a dar origem à luz branca ao atravessarem um segundo prisma invertido. As cores do espetro seriam vermelho, alaranjado, amarelo, verde, azul, anil e violeta. Newton relacionava as sete cores com os sete planetas e as sete notas musicais da escala diatónica. A partir destas cores criou um disco que rodando a uma certa velocidade provocava a percepção de branco. Este dispositivo de sete cores ficou conhecido como Disco de Newton. No seu livro afirmava o seguinte: «As cores não são qualificações da luz derivadas de refração ou reflexões dos corpos naturais (como é geralmente acreditado), mas propriedades originais e inatas que são diferentes nos diversos raios. Alguns raios são dispositivos a exibir uma cor vermelha e nenhuma outra; alguns uma amarela e nenhuma outra, alguns uma verde e nenhuma outra e assim por diante” (cit. em Rocha, 2002). Newton foi um dos nomes que mais se destacou no seu tempo, tendo tido outros importantes contributos para o desenvolvimento da ciência, destacando-se a descoberta Lei da Gravidade. Cerca de meio século depois de Newton, em 1725, o francês Le Blon utilizou os três pigmentos básicos para impressão, o vermelho, o verde e o azul. As cores primárias seriam um número mínimo de pigmentos a partir dos quais se poderiam obter as demais cores. Estas cores-luz primárias, por síntese aditiva produzem o branco. Por seu turno, as cores-pigmento opacas primárias, vermelho, amarelo e azul, por síntese subtrativa produzem o preto. Esta teoria da formação de cores complementares por mistura ótica tornou-se a base para qualquer trabalho envolvendo pigmentos coloridos. Estes foram alguns dos principais desenvolvimentos para a utilização das cores em artes visuais. No próximo número iremos analisar os desenvolvimentos mais recentes, desde o século XIX.

“V MOSTRA DE ARTISTAS DE LAGOS” Até 10 OUT | Centro Cultural de Lagos A MALA é um evento que apresenta a vasta actividade dos artistas de Lagos e que acompanha o balanço da diversidade do trabalho dos artistas do concelho


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11.09.2015

Momento

American cars Foto de Ana Omelete

Espaço ALFA

Fotografar para recordar Raúl Grade Coelho Membro da ALFA

Tirar fotografias pode ter diversos significados. Há mil e uma razões para se fotografar. Há o já conhecido casamento, o grupo de amigos, a família, aquela paisagem, o carro novo ou para vender e outros tantos temas para fotografar. Há, no entanto, uma outra coisa muito importante em tirar fotografias. Há o fotografar para mais tarde recordar. A fotografia é um momento único mas o seu conteúdo, a imagem, ficará gravada para sempre. Temos como exemplo prático as fotografias antigas que expressam e nos mostram determinados momentos de grande impor-

tância na nossa história. Foram fotografados monumentos. Foram fotografados momentos. Foram fotografadas pessoas. Em tempos passados as pessoas que eram fotografas tinham de ter alguma importância, por vezes, apenas monetária ou política. Atualmente já não é assim. A fotografia está sempre a mudar nalguns aspetos mas noutros continua sempre igual. Fotografar é sempre captar o momento. E há sempre o recordar. Todas as pessoas se lembram daquela fotografia que foi tirada naquele dia. A recordação dá vida à imagem. São muitos momentos que a ALFA – Associação Livre Fotógrafos do Algarve tem guardado nos seus passeios fotográficos que irão continuar. Basta consultar as informações em www. alfa.pt para saber quando fotografar nos nossos passeios e mais tarde a nossa memória consultar para lembrar aquele momento.

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Cultura.Sul

Sala de leitura

O passaporte de Hatherly

Paulo Pires

Programador cultural no Município de Loulé esteoficiodepoeta@gmail.com

“Um cego a quem foi dado ver numa pequena pausa fria” – era assim que a criadora de imagens Ana Hatherly (1929-2015) se gostava de definir. Um das dádivas (e privilégios) maiores da sua vida terá sido precisamente essa iluminação inquietadora, esse aclarar do mundo, esse desprendimento de uma “visão” única/ unívoca e redutora no que toca à linguagem artística. Em 1992 ela assumia a sua vocação para a derivação: uma escritora que transita para as artes visuais através da experimentação com a palavra (e sua caligrafia); e uma pintora que se espraia pela literatura através de um processo de consciencialização dos laços que unem todas as artes. A sua obra representou singularmente esse passaporte, esse livre-trânsito entre poesia, desenho e pintura, abolindo limites e visões estanques, transpondo fronteiras e instaurando pontes e diálogos interdisciplinares, em muitos casos bem à frente do seu tempo (anos 60 do século passado), numa cativante e inspiradora tendência para a “promiscuidade” e experimentalismo estéticos. A motivação central desse ímpeto (saudavelmente) contaminante e transgressor foi sempre o mesmo para a poeta nascida no Porto: “uma investigação do idioma artístico, particularmente do ponto de vista da representação – mental e visual”.

Profunda conhecedora do legado barroco e maneirista, e dos labirintos (ou textos visuais) do século XVII, Hatherly fez uma releitura criativa dessa estética cultural, dialogando ao mesmo tempo com formas e tendências da vanguarda internacional (sobretudo a poesia concreta). A sua “mão inteligente” reinventou a escrita poética, o que implicou também um outro tipo de recepção por parte do leitor: mais participante, criativo e livre. O seu arrojo e versatilidade estenderam-se assim às artes plásticas, cinema e performance, e a poeta-pintora-investigadora-docente universitária acabou por colar indelevelmente essa máscara ao rosto como seu “mais vital artifício” (para usar um verso seu de 1998). Não por acaso, Valter Hugo Mãe confessava há pouco tempo, revisitando andanças literárias em que privou com a escritora, que “era uma maravilha correr tanto perigo com ela”, pois ele, “ainda moço, nunca teria lata para uma rebeldia daquelas”, o que, no fundo, lhe instigava o seu lado livre e improvável, sobretu-

in memoriam Ana Hatherly d.r.

A poesia visual de Ana Hatherly do quando Hatherly o estimulava reiterando-lhe: “Põe-te sem pés e sem cabeça”. Em 2008, no Dia Mundial da Poesia, recordo-me de ouvi-la a ler a sua própria poesia no CCB,

A reinvenção da leitura (pormenor), de 1975, de Ana Hatherly

ao lado de outros reconhecidos poetas e actores. Retive de si uma imagem discreta, rigorosa e generosa na partilha da palavra. Ali, viajei também por uma preciosa retrospectiva de poesia visual (desenho e pintura) sua com cerca de 150 desenhos pertencentes à exposição Anagramas (1969) e à obra Poesia Visual – Mapas da Imaginação e da Memória (1973), que era complementada, e bem, por oficinas de desenho, pintura e colagem inspiradas na sua obra e destinadas a escolas e grupos. No fundo, um mapa da imaginação no/do mundo que dava toda a liberdade de leitura e interpretação, como ela tanto frisava: com a poesia visual “podemos ler, ver, ouvir ou fazer o que quisermos”, pois esta, pela constelação de significados que lhe é inerente, exige outro tipo de reacção que não se compara à “partitura” que um livro implica que sigamos (da

esquerda para a direita, de cima para baixo). Ana Hatherly assumia a escrita como uma pintura de signos, como aventura física e mental que aspirava a uma forma de conhecimento, sendo o poeta um pintor do mundo invisível (como se lê numa das suas Tisanas). Daí que a sua obra navegasse muito por anagramas, acrósticos e outros labirintos de sentido e imagem, em que ressaltava a “pura potencialidade do traço como desejo de ser e de inventar ser”, como certeiramente salientou o poeta e professor Manuel Portela. As referidas Tisanas, iniciadas em 1969 como work in progress, reflectem bem essa concepção da escrita enquanto pintura e filtro da vida. São textos inclassificáveis do ponto de vista da genologia literária, cruzando poesia, micronarrativa e ensaio, e apresentando múltiplas ressonâncias e influências aos níveis temático e

formal/estilístico: um aprofundamento do imaginário/filosofia oriental e do budismo zen e sua tradição contista; a exploração das amplas potencialidades expressivas do poema em prosa; a inserção de elementos surrealistas em formas narrativas mais clássicas; e uma vincada propensão reflexiva e experimental, com forte carga simbólica, a qual se associa, não poucas vezes, a uma roupagem aforística/proverbial/ epigramática e fragmentária em que o registo ensaístico e/ou poético se sobrepõe claramente ao modo narrativo. Na visão de Hatherly, a poesia surge como uma espécie de emergência e a sangria que esta lhe provoca no corpo – à qual o mundo parece ser indiferente – como metáfora da criação (Tisana 336). O autor e o leitor, por seu lado, vivem no limiar do prazer, um de cada lado como tensos anfitriões. Vivenciam “a problemática do segredo – se for divulgado deixa de existir; se não for torna-se um horrível tormento”. Talvez por isso alguns mestres digam “que o próprio do prazer é não poder ser dito” (Tisana 126). E os livros? Estão sempre sós, tal e qual nós, sofrendo o terrível impacto do presente e calando a sua fúria com a sua farsa, como escreveu na Tisana 433. E continua: “[Os livros] estão ali sendo entretanto. Como nós. No limiar do esquecimento. Como nós. Cheios de submissão ao serviço do impossível. Como nós”. A fechar, revisito, com renovado prazer, a curta e incisiva Tisana 336: “Durante o jantar vou contando coisas que me aconteceram mas de tal modo que todos me ouvem como se eu estivesse contando histórias. Apercebendo-me disso digo: sou uma efabuladora, percebem? Percebem e tranquilizam-se”.

Um olhar sobre o património

Património Humano - Bem a preservar?

Alexandre Ferreira

Licenciado em Património Cultural pela UAlg

Há olhares que não perdendo o seu foco, não podem deixar de olhar mais além. Erguida nos pilares da liberdade, da democracia, da igualdade, do respeito pelos direitos humanos e do respeito pela dignidade humana, a Europa e os seus fundadores pretendiam desde o seu primeiro momento criar uma sociedade

onde o pluralismo, a não discriminação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre mulheres e homens prevaleçam. Muito se tem visto, dito e escrito sobre os tempos conturbados que vivemos. Nalguns casos, poucos, análises fundamentadas e realistas; na grande maioria réplicas de opiniões simplis-

tas, demagógicas e toldadas por sentimentos que criam antagonismos muito pouco saudáveis reveladoras de frieza, crueldade, insensibilidade e porque não desumanidade? Património, legado transmitido às gerações actuais e futuras pelos seus antepassados, só o é enquanto as gerações presentes o entenderem como tal, e virem nele os alicerces para o seu futuro e para o futuro dos seus descendentes. Eis então que surge a questão que nos devemos colocar constantemente: qual é o património humano que queremos deixar às gerações futuras?


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O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N

Setembro que já pouco vivia por esses dias. “Estou cansada, cada vez mais incompreendida e insatisfeita comigo, com a vida e com os outros”. Ali não consegue refazer-se do desgaste acumulado pela situação física e psicológica em que se encontrava. Da sua fugaz passagem ficou na estrada junto à casa, uma lápide colocada em Março de 1985, homenagem dos seus admiradores, a assinalar o edifício onde viveu um dos maiores poetas portugueses de todos os tempos.

Pedro Jubilot

pedromalves2014@hotmail.com canalsonora.blogs.sapo.pt

1895

1943

1974 Em pleno ano da revolução dos cravos Bryan Ferry instalava-se incógnito na costa do barlavento, aliando o lazer à intenção de se inspirar para escrever temas para um novo disco. Pertence a chão algarvio a relva da capa, naquela que seria a mais ousada da sua discografia em contraponto com o menos conseguido long-play dos Roxy Music, apesar de neste se incluir o sucesso ‘Bitter Sweet’. A canção que usa versos em língua alemã, foi inspirada na convivência com as duas raparigas alemãs (também na capa do lp).

1923 fotos: d.r.

Dá-se o início da construção do coreto de Faro, no jardim Manuel Bívar, então espaço nobre de lazer da cidade. Com materiais vindos da Companhia Aliança do Porto (cidade donde terá vindo também o coreto de Tavira) ali permanece este ‘monumento’ esquecido pelas edilidades e seus munícipes. Mas é assim um pouco por todo o lado, são espaços desaproveitados sobretudo aqui onde num clima ameno pediria mais uso àquela que foi a sua função inicial. Poder-se-ia por exemplo criar em volta dos coretos uma esplanada-cafetaria de madeira elevada para aproximar os artistas do público em recitais de poesia ou música.

1918

Numa noite de Novembro um PB4Y-1 (versão da Marinha do quadrimotor B-24 Liberator) desorientado, despenhou-se no mar a algumas milhas de Faro. Mas para Carlos Guerreiro a inspiração e motivação para escrever o livro ‘Aterrem em Portugal’ (pedra da lua,2008) começou quando conheceu a história do pescador algarvio Jaime Nunes (já falecido), que salvou do mar para a sua embarcação, seis soldados americanos sobreviventes dessa queda. A partir daí o jornalista farense iniciou uma pesquisa de vários anos sobre os aviões que na segunda guerra aterravam de emergência em Portugal.

1968

Na margem direita do rio guadiana, localizado no areal ao sul de V.R. Stº António, o farol da cidade do iluminismo está em latitude 37º11’ 07’’/longitude 7º24’54’’. Caracteres de luz-branca; relâmpagos de 0,1s –ocidente -7,4s; período de 7,5s. Edifício em forma de torre circular de cimento armado, branca, com estreitas listas horizontais escuras com anexo de dois pavimentos, com 48 metros de altura e um alcance de 19 milhas. Tem elevador mas está desprovido de faroleiro devido à automatização em 1989.

1924

AGENDAR

Nenhuma poetisa poderia querer viver numa terrinha como Quelfes, ainda que aconselhável pelos bons ares. Muito menos Florbela Espanca

1976

Quem negoceia com peixe mais cedo ou mais tarde vem parar a Olhão. Raul ‘Tamanqueiro’ Figueiredo (1903-1941) juntou o útil ao agradável e representou o S. C. Olhanense- campeão de Portugal na época de 1923/24. Na final (4-2 ao F.C.Porto) da 1ªcompetição organizada pela F.P.F, no Campo Grande, onde o presidente algarvio Teixeira Gomes destacou a sua forma de jogar «juvenilmente obstinada, na sua ubiquidade inverosímil (…) sem deixar nunca de sorrir». De seguida foi chamado a representar a selecção nacional, e logo aliciado a ingressar no Benfica. “HENRIQUE O NAVEGADOR” 25 SET | 18.00 | Fortaleza de Sagres Apresentação do filme artístico de Timo Dillner (25 min.) dedicado ao lado mais humano do Infante D. Henrique, integrado nas Jornadas Europeias do Património

Quando esteve de férias com Linda no Algarve, Paul McCartney escreveu uma canção de nome “Penina” que ofereceu ao grupo musical Jotta Herre (do Porto), com quem tocou numa noite em que tomava uns copos no bar do Hotel Penina. O fanzine “Club Sandwich” do antigo clube de fãs de McCartney, conta que Paul terá composto ali de improviso a letra e música da mais obscura canção que aparece no cd pirata: ‘Unheard Melodies, The Songs The Beatles Gave Away’, juntamente com as versões dos Jotta Herre (EP Philips 431923PE) e de Carlos Mendes.

1974 Neste tempo impreciso em que vivemos, mesmo na poética Lagos - cidade de luz, se torna difícil esquecer os adjectivos que temos sempre a ecoar no dia-a-dia destes dias: confuso, disforme, ocultação, degradação - tal como para Sophia M.B.A , no dia 20 de Abril de 1974, quando escreveu naquela cidade atlântica estes versos para o poema ‘Lagos I’: (…)Na precisa claridade de Lagos é-me mais difícil /Aceitar o confuso o disforme a ocultação/Na nitidez de Lagos onde o visível /Tem o recorte simples e claro de um projecto/O meu amor da geometria e do concreto/Rejeita o balofo oco da degradação.(…) – in ‘O Nome das Coisas’,1977

Influenciada pelo construtivismo e pela pop art, aquando da sua passagem de quatro anos por Paris, Maluda usa a linearidade nas paisagens urbanas. Recorrendo ao hiper-realismo e ao foto-realismo, começa a ser mais conhecida na década de 70, pelas paisagens tradicionais do país. Tanto os famosos quiosques como as janelas portuguesas, exploram os reflexos e os efeitos de luz. Já para não falar da intensidade da luz na arquitectura cubista que Olhão ainda tinha quando Maluda a pintou em «Olhão VII», óleo sobre tela (81/65cm).

1985 Para a gravação do clip de um single do seu lp de estreia ‘Psycocandy’, os The Jesus and Mary Chain escolheram um barato destino do Sul da Europa, no tempo em que Algarve ainda tinha ‘360 dias de sol por ano’, o slogan quase mais verdadeiro da história do turismo em Portugal. Quem os viu chegar ao aeroporto de Faro, diz que os irmãos Reid vinham já assim mesmo desgrenhados, nos blusões de cabedal de 2ªmão, dispensando cabeleireiro e guarda-roupa na equipa de produção. Daí para o ‘set’ localizado nas praias e ruas de Ferragudo e Alvor.

“DO DIA-A-DIA” Até 31 OUT | Galeria do Convento do Espírito Santo - Loulé Exposição de pintura e instalação de Alfredo Revuelta que integra a colecção de Marie e Volker Huber


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Cultura.Sul

Um olhar sobre o património

Ficha Técnica:

Acerca da noção de património

Ana Xavier

Antropóloga, Mestre em Museologia e Património

O modo como, em cada momento, uma sociedade sente, pensa e age sobre o seu património constitui um indicador do “pulsar” social, das suas angústias e motivações, do seu quadro de valores e de referências, dos seus momentos de ruptura e de mudança. Entendida pelos romanos como uma relação particular entre um grupo e certo tipo de bens materiais a noção de património manteve-se durante séculos na esfera da propriedade privada, transmissível por transacção ou herança. A noção de património, no sentido que aqui nos interessa, teve a sua origem no séc. XVIII com a Revolução Francesa. O confisco dos bens da nobreza e do clero, aliados às destruições radicais dos símbolos do poder perpetrados por grupos de populares, leva o Estado a definir critérios para o que deve ou não ser salvaguardado. Nas vicissitudes desse período conturbado ganha forma um sentimento novo que é a ideia de bem comum e de riqueza moral de uma Nação, a qual, porque inalienável, passa a estar legalmente protegida pelo Estado. Surge assim a noção actual de património, que se desloca definitivamente do domínio privado para o colectivo, que se liberta da matéria para ganhar uma existência imaterial. Mas não é só o património cultural que é objecto de medidas de protecção. Desde finais do séc. XIX que a noção de património natural se impôs, tendo originado a criação de parques nacionais e reservas naturais um pouco por todo o mundo. O objectivo destas áreas classificadas não é já o de preservar a Cultura mas sim a Natureza ou, melhor dizendo, sistemas vivos e, portanto, sujeitos a um processo evolutivo. A noção de património desloca-se do passado para o presente, é aquilo que ainda existe que tem de ser preservado.

Esta deslocação temporal da noção de património verificou-se também no domínio da cultura, principalmente através da etnologia que se começa a interessar não só pelo exótico mas também pela cultura europeia, datando da 2ª metade do séc. XIX a criação de museus nacionais de etnografia em vários países da Europa. É também deste período o interesse pela etnografia regional, que se manifestou inicialmente nas grandes exposições universais, e que motivou a criação de vários museus regionais de etnografia, que testemunhavam a existência de um património local, se bem que ainda restrito ao “típico” e ao “decorativo”. Com efeito, a noção de património conheceu notável desenvolvimento durante o séc. XIX, tendo progressivamente abrangido vários domínios disciplinares mercê da especialização das ciências e das transformações sociais ocorridas na Europa Ocidental e América e a industrialização que conheceram durante este período. Em contrapartida, a sociedade da primeira metade do séc. XX, atravessada por duas guerras mundiais, centrou-se no esforço de guerra e no drama humano que lhe é inerente, remetendo para plano secundário as preocupações com o património. Não obstante, o impacto destrutivo de tais conflitos iria desencadear na sociedade do pós-guerra uma motivação sem precedentes pela preservação do património, alargando esta noção a campos inéditos até então. A noção contemporânea de património é um conceito

Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural foto: antónio coelho

Editor: Ricardo Claro Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve

Arraial do Barril amplo e integrador onde podemos ainda isolar conceitos mais específicos (património arquitectónico, património paisagístico, património in-

património ganhou forma oficial em 1972, quando foi adoptada pela Conferência Geral da Unesco, em Paris, a Convenção para a Protecção do Patrimófoto: paula martins

Narciso-das-areias dustrial, património científico, património geológico… entre outros), muitos dos quais se afirmaram na 2ª metade do séc. XX. Uma concepção universal do

nio Mundial, Cultural e Natural. Esta convenção assenta na ideia que determinados bens do património cultural e natural se revestem de excepcional interesse para toda a humanifoto: agostinho gomes foto: agostinho

Flamingos

dade, pelo que a sua preservação não respeita apenas a uma nação mas a toda a comunidade internacional. Paralelamente, face à ameaça de uma guerra nuclear e ao esgotamento dos recursos, o homem toma consciência de que não está fora da natureza mas que faz parte dela, para o que foi decisivo o contributo da ecologia. De ora avante, a conservação já não diz respeito só às outras espécies, é da sobrevivência da própria espécie humana que se trata, a qual está ameaçada pela ruptura dos equilíbrios naturais. A noção de património natural alarga-se assim à de património ambiental, abordagem que desencadeou numerosos movimentos de protecção do ambiente e a formação de partidos ecologistas. Como vimos, a noção de património é bastante dinâmica e plástica. Se inicialmente se restringia à herança artística e monumental, hoje o património pode ser quase tudo; os traços materiais e imateriais de uma vida e gerações passadas, a memória de um mundo em vias de extinção. É assim uma noção vaga mas extremamente presente, que traduz a inquietação da consciência colectiva perante as ameaças à sua integridade. Formulada num contexto de ruptura social, a noção de património não mais se desligou deste sentimento de perda, numa incessante procura de referências que, por descodificarem o passado, dão sentido ao presente e orientam a construção do futuro.

Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Espaço ao Património: Isabel Soares • Da minha biblioteca: Adriana Nogueira • Grande ecrã: Cineclube de Faro Cineclube de Tavira • Juventude, artes e ideias: Jady Batista • Letras e literatura: Paulo Serra • Missão Cultura: Direcção Regional de Cultura do Algarve • Momento: Ana Omelete • O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N: Pedro Jubilot • Panorâmica: Ricardo Claro • Sala de leitura: Paulo Pires • Um olhar sobre o património: Alexandre Ferreira Colaboradores desta edição: Ana Xavier Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve, FNAC Forum Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com on-line em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve

facebook: Cultura.Sul Tiragem: 8.697 exemplares


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Cultura.Sul

Da minha biblioteca

A Devota e a Devassa, uma novela de Fernando Pessanha d.r.

Adriana Nogueira

Classicista Professora da Univ. do Algarve adriana.nogueira.cultura.sul@gmail.com

Há um ano e meio escrevi neste jornal sobre Hotel Anaidaug, narrativa fantástica de Fernando Pessanha, que brevemente (assim o espero) poderemos ver em filme. Hoje, este prolífero autor proporcionou-me a oportunidade de escrever sobre a sua mais recente novela, A Devota e a Devassa, da qual já tive o privilégio de redigir o prefácio. O título

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O título do livro equilibra-se na escolha dos adjetivos (aqui, podendo, até, ser encarados como substantivos) que o compõem, «devota» e «devassa», que partilham, além do mesmo número de sílabas, as primeiras 3 letras (dev-). Há um certo humor associado a este balancear, a este hesitar entre duas características tão diferentes (mesmo antagónicas, poder-se-ia dizer), como se emendasse, a meio da palavra, um lapsus calami (não resisti a usar esta expressão latina, que significa, literalmente, «erro da caneta», logo, «erro de escrita»), indiciando, assim, o tom jocoso da novela. O facto de ambos virem precedidos pelo determinante artigo definido «a» («a devota», «a devassa»), em vez de ligados apenas pela conjunção copulativa «e» («devota e devassa»), pode levar-nos a pensar que se referem a pessoas diferentes. Além disso, a moralidade dos nossos tempos fez com que estes dois termos entrassem quase em

O historiador e escritor Fernando Pessanha≠ desuso, o que nos dá uma indicação sobre a época em que a história se passará: um tempo no qual estes qualificativos teriam ainda usança. A linguagem e a época «D. António Correia de Vasconcelos, figura pomposa da sociedade lusa da centúria de setecentos, tinha-se mudado há três anos para o palacete da família, restaurado após o terramoto de 1755 e situado nas proximidades do sofisticado centro da cidade. Para tal, em muito tinha contribuído o marasmo cultural imposto pela entediante vida no campo. O distinto cavalheiro, morgado descendente de nobres linhagens, era possuidor de uma invejável herança, alicerçada por uma política de relações endogâmicas que se encarregou de transformá-lo no exclusivo proprietário de um abastado património.»

Assim começa a narrativa, apresentando a personagem à volta da qual se tece a teia de relações das restantes personagens e situando, de imediato, o leitor na época retratada: Lisboa, segunda metade do séc. XVIII (pós-terramoto). Fernando Pessanha é historiador e o conhecimento que tem nesta área do saber revela-se no cuidado com que o põe ao serviço da construção da narrativa, não só relativamente a momentos da nossa história, mas também à linguagem então usada. Só neste pequeno excerto, podemos ver a tonalidade que pretendeu dar ao texto, através do vocabulário escolhido para descrever D. António. E começando pela primeira palavra: o uso do título «Dom» (abreviado, como é costume) remete, de imediato, para um contexto de nobreza. D. António é um morgado (um «vínculo dado

“BIGODES DE ALFAZEMA” Até 3 OUT | Posto Municipal de Exposições de Lagos Exposição de artesanato directamente relacionado com o tema a partir de tecidos onde as figuras de gatos estão sempre presentes e associadas ao perfume de alfazema

a certos bens que d e v e r i a m ser transmitidos ao primogénito sem que este os pudesse vender», como nos diz o dicionário Houaiss, que foi abolido na segunda metade do séc. XIX), um fidalgo rico («descendente de nobres linhagens» e de « invejável herança»). Ao colocar o adjetivo antes do nome (e dando apenas exemplos do excerto citado: «sofisticado centro», «entediante vida», «distinto cavalheiro», «nobres linhagens», «invejável herança», «exclusivo proprietário», «abastado património»), consegue dar ênfase e tornar a linguagem mais pomposa, fazendo, assim, par com a personagem descrita. Este modo de adjetivar é o usado preferencialmente ao longo da novela, exagerando o ridículo ou o trágico (que se torna, por isso, ridículo) das situações:

«E, então, lágrimas de inenarrável tristeza brotavam dos seus olhos, escorrendo-lhe pelas delicadas faces piedosas. O fidalgo, entediado, via naquele pranto um recurso frequente nas mulheres frágeis, incapazes de aceitar as mais óbvias verdades. Ainda assim, pronto se apercebia das alturas em que transpunha os limites e não ousava levar mais longe as suas provocações.» (p.26). A História Cada personagem é um bom recurso para a crítica à sociedade daquela época e às suas instituições, nomeadamente a Igreja. A devoção de D. Amelinha, que se escusa a cumprir os seus deveres conjugais em nome de uma dedicação à oração, dentro e fora de portas, permite as mais duras críticas do seu marido ao comportamen-

to nada abonatório dos representantes do clero: «Pois não há nada mais duvidoso do que o paleio dos malandros dos padres; é com manhas e falinhas mansas que seduzem as mulheres e as jovenzinhas, e é sempre em nome do altíssimo que as ludibriam e as desonram. Já para não falar dos meninos do coro…» (p.25). D. Nuno de Mascarenhas, amigo de D. António, é o aventureiro com quem percorremos episódios (alguns bem caricatos) da nossa história e que, ao mesmo tempo, nos mostram a falta de princípios de muitos dos nossos nobres: «Durante algum tempo frequentou a alcova da célebre Ana Jacques Mondtegui, uma dama natural de Damão, tão famosa pela rara beleza como pelos amantes que coleccionava. Todavia, a desconfiança do marido da senhora, o sargento-mor do corpo de sipais da infantaria de Bardez, fê-lo fugir para Macau, onde se dedicou ao contrabando de especiarias, sedas, porcelanas, sândalo e outros produtos. Ainda assim, foi o rentável tráfico de ópio, entre Bengala e a China, que acabou por denunciá-lo. Perseguido pelas autoridades, foi interceptado em Díli, no decurso da designada “Guerra dos Doidos”, a célebre revolta comandada por um feiticeiro que se pretendia invulnerável perante as armas portuguesas. Curiosamente foi apanhado in flagrante delicto, no decurso de um assalto a uma igreja em que se fazia acompanhar pelos indígenas revoltosos, a fim de roubarem alfaias religiosas.» (p.32). Tenho a certeza que esta leitura vai agradar ao leitor que gosta de aprender enquanto passa por momentos de boa disposição.

“MÁRIO LAGINHA TRIO” 11 SET | 21.30 | Auditório Municipal de Olhão No trio que mantém com o contrabaixista Bernardo Moreira e baterista Alexandre Frazão, Mário Laginha mantém o gosto pela mistura, pela diversidade musical e pelo risco


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